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João Cabral do Nascimento nasceu no Funchal (R. do Carmo), em março de 1897, no seio de uma família madeirense, cuja genealogia integra diversas filiações nacionais, como o próprio notou na sua Genealogia da Família Medina…, em cuja gens, de resto, Nascimento se inscrevia. Para além dos Medina e Vasconcelos, família com raiz judaica e com relevância política e cultural nas ilhas atlânticas, há também a referir os Caiados, família portuguesa instalada na Madeira desde o séc. XV (e nome que o autor recuperará para um dos seus pseudónimos – João de Cayado) e, entre outras, os Crawford, família escocesa residente na Ilha desde o séc. XVIII. Acresce ainda a este cosmopolitismo familiar a ligação de Cabral do Nascimento a um empresário francês residente na Madeira e casado com Matilde de Menezes Cabral, tia do autor Adolpho Constant Burnay, que foi padrinho de batismo de Cabral do Nascimento. Na verdade, trata-se de um escritor e agente cultural, cuja obra integra várias centenas de textos publicados em livro e na imprensa periódica, assim como um vasto conjunto de traduções, a criação e a coordenação de alguns dispositivos culturais (entre os quais se destaca o Arquivo Distrital do Funchal, diversos jornais e revistas) e ainda a colaboração em grupos e iniciativas que, na Madeira e na então metrópole, marcaram a vida cultural e política do séc. XX. Entre estes últimos, salientam-se o círculo integralista de António Sardinha, as tertúlias dos Artistas Independentes e diversos grupos de criadores e intelectuais ligados a periódicos como Orpheu, A Monarquia, Restauração, Cadernos de Poesia, Távola Redonda, Colóquio-Letras, etc. Não surpreende, portanto, que um dos traços mais marcantes na sua obra seja, justamente, um certo cosmopolitismo, que não deixa de conviver, sempre de forma (auto)crítica e tensional, com uma aguda atenção dada às realidades culturais, sociais e políticas de Portugal e da Madeira. Isto é, uma forma muito própria de nacionalismo e regionalismo que se distingue claramente do exclusivismo e do ufanismo que outros nacionalismos e regionalismos assumiram em Portugal e na Madeira no séc. XX. Parecendo paradoxal, este posicionamento ambivalente e tensional era já defendido por João Cabral (do Nascimento) em 1924, no artigo “Queiroz póstumo”, por si publicado no Diário de Notícias do Funchal, a 26 de abril. Aqui, satirizando a “patriotice” dos que defendiam o confinamento da cultura portuguesa (e madeirense) aos limites das suas fronteiras geopolíticas e culturais, Nascimento defendia, com Eça de Queiroz, que “um povo só vive porque pensa” e “um espírito superior, afeito às coisas elevadas e espirituais, esse aprende a ser nacional se acaso atravessa o estrangeiro ou aí instala a sua residência” (CABRAL, DN, 26 abr. 1924, 1). É certo que, no primeiro quartel do séc. XX, Nascimento assumiu publicamente a sua adesão ao nacionalismo monárquico, quer junto do integralismo lusitano de António Sardinha, ao longo do ano de 1917, quer, depois, junto dos dissidentes nacionalistas integrais de Coimbra, entre os quais viria a ser uma figura-chave nos anos de 1921-22, ao serviço do semanário Restauração. É igualmente verdadeiro que muitos daqueles com quem privou foram figuras próximas de Salazar e do Estado Novo (Francisco Franco, António Ferro, João de Castro Osório, Luís Vieira de Castro, Amândio César, entre outros), sendo ainda notória, na versão de 1933 do seu Além-Mar, alguma aproximação de Nascimento a valores legitimados pelo regime recentemente instituído, algo que, de resto, aconteceu com muitos monárquicos, nesse mesmo período. Entre esses valores, destaque-se: a estética adotada no grafismo geométrico da capa do opúsculo; a opção pelo registo épico nacionalista; ou, na sua fábula, a subliminar manifestação de uma esperança num líder capaz de mobilizar a grei na busca de um caminho para a ordem. Esta nova versão revista de Além-Mar, poemeto épico publicado pela primeira vez em 1917, apresenta variações significativas na sua fábula, distanciando-se, por isso, do registo desencantado e antiépico da 1.ª edição, publicada nos anos da Grande Guerra. Tudo isto não invalida, porém, que se considere Cabral do Nascimento ora como um nacionalista cosmopolita, avesso a conceções monológicas e puras de nação, ora como um cosmopolita nacionalista, cuja obra evidencia um permanente trânsito e diálogo entre o que (lhe) era familiar e (lhe) era estranho, entre distintas culturas e línguas, entre diversos textos, tempos, posicionamentos ideológicos e estéticos, numa itinerância particularmente atenta a questões de identidade e de memória. O passado, a memória e a dor causada pela memória do que nesse mesmo passado foi experienciado ou foi desenhado como utopia serão, aliás, tópicos fundamentais na sua poesia, evidenciando-se de igual forma no trabalho que desenvolveu como arquivista, investigador sobre a história da Madeira, genealogista ou até antologiador de textos de períodos históricos anteriores. Na verdade, a autonomia crítica que sempre marcará a sua atuação como agente cultural e político leva-o a distanciar-se rapidamente do integralismo lusitano e do neorromantismo lusitanista, ao publicar no Diário da Madeira, logo a 25 de dezembro de 1917, uma carta em que se desvincula do grupo de Sardinha e das suas “doutrinas artísticas” (“Integralismo lusitano”, Diário da Madeira, 25 dez. 1917, 1). O mesmo acontecerá relativamente ao projeto político do Estado Novo, ao demarcar-se deste, e em particular do obscurantismo do seu lema, “orgulhosamente sós”, logo a partir da déc. de 1940. Já a residir em Lisboa e paralelamente à atividade docente que, iniciada em 1922 na Escola Industrial e Comercial do Funchal e no Instituto Comercial do Funchal, será retomada nas escolas Veiga Beirão e Ferreira Borges (Lisboa, entre 1937 e 1958, ano da sua aposentação), Cabral do Nascimento reorienta a sua atividade cultural para a tradução de autores estrangeiros, os quais, assim, são integrados no sistema cultural português. Algumas dessas traduções viriam mesmo a ser objeto de censura pelo lápis azul. A evidenciar também esse distanciamento de Nascimento relativamente ao projeto de nação do Estado Novo, note-se que, nesse mesmo período, o autor insular não se inibe de publicar poemas como “Na vilazinha pobre”, onde, com o sarcasmo corrosivo que muitas vezes se encontra nos seus textos em prosa, denuncia os efeitos nefastos que entrevia nessa forma exclusivista de pensar as sociedades, as culturas e os sujeitos, ridicularizando a imagem de um “Portugal-vilazinha-pobre” que Salazar se orgulhava de estar a implementar no país. Enquanto autor literário (poeta, cronista e ficcionista), rejeitará sempre o registo panfletário, evitando, de igual forma, processos de referencialidade denotativa, heranças, certamente, do convívio inicial com a estética e a poética simbolistas. Mas nem por isso a obra de Cabral de Nascimento (literária e não só) pode ser lida como um conjunto de fenómenos culturais totalmente desvinculados da polis e da política. Move-o, sobretudo, a busca de um saber em crescendo, a que, porém, não são alheios os valores éticos e deontológicos do rigor autocrítico ou da exigência epistemológica, criativa e cívica que sempre manifestou. Lembre-se, a título de exemplo: o perfecionismo e a depuração linguística da sua poesia; a continuada revisão dos livros que foi publicando, incluindo-se também aqui as suas traduções; e até o seu afastamento da Madeira e dos cargos que aqui ocupava, quando, nos anos 30, na qualidade de cidadão insular, mas também enquanto diretor do Arquivo Distrital do Funchal e sócio eleito quer da Associação de Arqueólogos Portugueses, quer do Instituto Português de Arqueologia Histórica e Etnografia, se opõe à política de turismo em implementação na Ilha e às lutas locais pelo poder, no quadro das quais, em seu entender, não estavam a ser asseguradas a preservação e a dignificação do património histórico e cultural do arquipélago. A este respeito, não se ignore também que, em outubro de 1924, Nascimento assumira, por algum tempo, o cargo de delegado do Governo no Funchal, quando o presidente do Ministério era o madeirense Alfredo Rodrigues Gaspar. Nessa ocasião, participou no debate público sobre o modelo de política de turismo para a Madeira, defendendo, entre outras propostas, a criação de um museu regional, com a salvaguarda de que este não fosse destinado ao turista, como então se defendia na Ilha. Num artigo de opinião publicado a 28 de novembro de 1925, no Diário de Notícias do Funchal, a que deu o título “Acêrca do Museu”, João Cabral (do Nascimento) contra-argumentará esse posicionamento dominante, defendendo que o museu, com uma “biblioteca anexa” e dando visibilidade às “manifestações artísticas regionais (ou cujos documentos se consigam obter)”, deveria funcionar como dispositivo cultural, pedagógico e científico, destinado à “mocidade das escolas”, àqueles “que se entregam a monografias regionais” e, de um modo geral, ao “povo” que, assim, “adquiri[ria] certos conhecimentos […] que tanto lhe escasseiam” (CABRAL, DN, 28 nov. 1925, 1). Ainda a este respeito, recorde-se que no início de 1937, ano em que, desencantado com as dinâmicas políticas, sociais e culturais em curso na Ilha, acabará por abandonar o Funchal, passando a residir em Lisboa, Nascimento integrava o recém-formado Conselho de Turismo da Madeira, órgão local onde procurou, sem sucesso, arguir o seu posicionamento sobre a política de turismo para a Madeira, contra as perspetivas mercantilistas aí dominantes. Cabral do Nascimento constrói, assim, uma obra (literária e não só), cujos posicionamentos surgem em grande parte sustentados por uma experimentação do que era próprio do “outro”, mas que, de alguma forma, ao ser conhecido/experimentado, passava também (mesmo que em conflito ou oposição), a integrar o que era próprio de si e da sua obra: a língua, o texto, a cultura, a conceção estético-artística, os valores ideológico-políticos desse(s) “outro(s)”. Assim, e apesar de toda a autonomia que, após as décs. de 1920-1930, o levaria a evitar filiações em grupos ou até em associações políticas, culturais e profissionais (incluindo-se aqui a Sociedade Portuguesa de Autores e a Associação Portuguesa de Escritores, cujos convites para adesão declinou, respetivamente em 1965 e em 1973), Cabral do Nascimento assume-se como um autor não-insulado e em recorrente visitação de uma pluralidade de sistemas que quer conhecer por dentro e que ultrapassam em muito as fronteiras dos sistemas culturais madeirense e português. Experimentando-os até onde lhe permitia a sua alteridade, procurava depois rever ou confirmar o seu próprio lugar identitário, estético, epistemológico e político. Em simultâneo, afirmava-se como um sujeito que, apesar dessa contínua aprendizagem, assumia com determinação, mas sem protagonismos exibicionistas, o dever de e o legítimo direito a inscrever a sua voz (pessoal, literária e ideológica) e o seu corpo (físico, cultural e político) no mundo. Disso nos dá conta, e.g., no poema “Memória”, publicado significativamente nos números 32 e 33 de Panorama. Revista Portuguesa de Arte e Turismo (1947), onde encontramos uma voz poética periférica e ignorada pelos outros, ou melhor, pelo outro-eu, dado que esse outro é, na verdade, Lisboa. Mas é um sujeito que, mesmo perante essa marginalização, quer deixar as suas “passadas” e a sua “fala” “nova” inscritas nesse mundo que as não vê/lê/ouve ou que as insiste em rasurar da memória. A obra de Cabral do Nascimento dá conta de um complexo processo discursivo que fica marcado pelas dinâmicas da hipertextualidade e do contraponto, este último aqui entendido no sentido proposto por Edward Said). Apesar de perfeitamente aceites nos sistemas culturais e literários dos inícios do séc. XXI, na déc. de 1910, estas dinâmicas discursivas seriam inusitadas na Madeira e até a nível nacional, como demonstra a história da receção de autores coevos como Fernando Pessoa ou Almada Negreiros, efetivos interlocutores de Cabral do Nascimento, no debate sobre o modernismo e as vanguardas que, nesses mesmos anos, se desenvolvia em Portugal. Ler a obra poliédrica do autor madeirense exige, pois, um paralelo exercício de itinerância discursiva: ora pelos discursos desses outros autores evocados e transferidos criticamente para a obra de Nascimento, ora pelos múltiplos trabalhos do próprio autor madeirense. Estes últimos, justamente por se apresentarem como resultantes de um continuado exercício de revisão e reescrita, surgem como ensaios provisórios ou fragmentos de uma obra compósita e em devir, cuja construção do(s) sentido(s) ganha (um pouco à semelhança do drama em gente de Pessoa) com o cruzamento dessas múltiplas textualidades autónomas, mas afinal implicadas umas nas outras, e que, nessa exata medida, apelam a uma constante (re)leitura crítica e em rede. Trata-se, na verdade, de uma dinâmica de composição e de leitura que Nascimento experimentou, desde o início da sua vida literária, com a adoção do género folhetim, embora essa sua prática, por ser desconhecida até muito depois, não tenha sido analisada com a devida relevância por críticos e académicos atentos à obra e à poética do intelectual madeirense. Referimo-nos em particular a Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos, folhetim publicado no Diário da Madeira, na segunda metade de 1916, em coautoria com Ernesto Gonçalves, Luís Vieira de Castro, Alfredo de Freitas Branco e Álvaro Manso de Sousa; e, já em 1921-1922, aos folhetins publicados no jornal Restauração e atribuídos a três figuras autorais criadas por Nascimento: João da Nova, Simão Escórcio e Houston Cherry. Convocando as palavras de Edward Said, quando atribui a alguns intelectuais o perfil da figura do exilado, um “perturbador do status quo”, ocupado em “derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que tanto limitam o pensamento humano e a comunicação” (SAID, 2000, 13-14), podemos afirmar que também a obra de Nascimento, e pesem embora as suas simpatias conservadoras no domínio da política, nos revela um intelectual exílico, que quase sempre foi um tradutor: um mediador empenhado em viajar entre espaços, tempos, culturas e línguas, ora trazendo esses muitos outros até ao hic et nunc do texto e do leitor, ora, inversamente, levando estes até esses outros. O objetivo da globalidade heterogénea da sua obra foi, sobretudo, servir de ponte ou criar textos e dispositivos culturais capazes de suplantar os abismos temporais, espaciais, linguísticos, ideológicos e culturais que separam sujeitos e as suas comunidades. Não apenas com a missão de contribuir para o que considerava ser o bem comum, mas também como dinâmica fundamental de questionação autorreflexiva e de permanente refazer da sua própria identidade, quer como sujeito político, quer como autor literário e agente cultural. Poliédrica, também nas opções genológicas praticadas (poesia lírica; narrativa em verso e prosa; folhetim; ensaio; crónica; artigo jornalístico e artigo historiográfico; crítica literária; descrição genealógica, etc.), essa heterogeneidade e transitoriedade exílicas, não raras vezes geradoras de tensões e até de aparentes paradoxos, reencontram-se na sua assinatura autoral, ou melhor, nas suas assinaturas autorais, dado que foram vários os nomes com que assinou os seus trabalhos. O seu mais antigo texto conhecido até aos começos do séc. XXI surge assinado com o seu nome civil e remonta a 1913, tendo saído em Gente Nova, uma edição comemorativa do primeiro aniversário da Caixa Escolar do Lyceu do Funchal, escola frequentada por Nascimento a partir de 1911, onde participou em várias iniciativas culturais e onde realizaria os estudos secundários, antes de ingressar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em outubro de 1915. Com apenas 15 anos, o jovem autor publicava, em 1913, a narrativa breve “Um engano”, onde o estranho e o fantástico fazem notar o diálogo que Nascimento sempre manterá com Edgar Allan Poe e com a cultura anglo-saxónica. A este respeito, saliente-se que a última edição (ne varietur) do seu Cancioneiro, datada de 1976, encerra, justamente, com uma “recriação em português” do poema “O corvo” de Poe, sublinhando, assim, o traço dialógico da sua poética, mas também a valorização da atividade tradutória e das culturas anglófonas na globalidade da sua obra A partir de 1913, o nome de Cabral do Nascimento passa a constar com crescente regularidade e destaque nos jornais funchalenses: Alma Nova; Heraldo da Madeira; e sobretudo Diário da Madeira, onde, até à déc. de 1920, será um assíduo colaborador, mesmo nos anos em que se encontrava a estudar em Lisboa e, depois de 1919, em Coimbra, em cuja universidade finalizará a licenciatura em Direito em 1922. Publicará também com regularidade no jornal A Monarquia, em Lisboa, no ano de 1917. E já na década seguinte, destacam-se as suas colaborações recorrentes no semanário Restauração de Coimbra (1921-1922) e no Diário de Notícias do Funchal (1923-1934). Porém, se a maioria desses textos dispersos e os vários livros que publicou ao longo da vida surgem assinados com o seu nome civil, embora, por vezes, com ligeiras variações (João Cabral, Joam Cabral do Nascimento, João Cabral do Nascimento, Cabral do Nascimento, J. C., J. C. N), foram também diversas as situações em que recorreu a pseudónimos, tais como: João de Caiado ou João de Cayado, nom de plume com que subscreveu, na déc. de 1910, vários artigos no Diário da Madeira; e Mário Gonçalves, pseudónimo com que assinou algumas traduções incómodas para o Estado Novo ou que não caberiam dentro da lista das suas afinidades eletivas. Esta variação na onomástica autoral da sua obra não se esgota aqui, chegando mesmo, nas décs. de 1910 e 1920, à criação dos semi-heterónimos Ismael de Bô, João da Nova, Simão Escórcio e Houston Cherry, porquanto, nestes últimos casos, os textos subscritos por essas assinaturas apresentam de diferenciador relativamente aos textos assinados com o nome civil do escritor. Se o ideologema e os valores legíveis nessas textualidades se mantêm idênticos em uns e em outros, na escrita assinada pelos três semi-heterónimos ganham particular destaque registos e processos de construção discursiva que quase estão ausentes da poesia assinada com o nome civil do autor, embora aflorando pontualmente em algumas das suas crónicas. Entre estes traços distintos, destacamos o recurso à ironia, ao sarcasmo e à paródia, por vezes geradores de um discurso que toca o non-sens, distanciando-se, assim, da limpidez e contensão discursivas que se registam na sua poesia. E sublinhamos de igual forma, nos folhetins desses semi-heterónimos, o registo lúdico e provocatório, assim como uma técnica composicional que não raras vezes se aproxima de um certo experimentalismo, nomeadamente pela adoção do corte e colagem ou da citação recontextualizada. Retrato de João Cabral do Nascimento por Abel Manta Por outro lado, embora a sua obra tenha passado a ocupar um lugar discreto nos vários sistemas culturais lusófonos (incluindo-se aqui o nacional português, mas também o madeirense), Cabral do Nascimento foi um escritor e um agente cultural e político com mérito reconhecido ao longo de toda a sua vida, quer por figuras relevantes no panorama cultural e académico nacional e internacional, quer por algumas das principais instituições ligadas à cultura portuguesa do séc. XX. A consulta da correspondência e notas pessoais conservadas no seu espólio, à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (espólio N28), surpreende não apenas pelo número e prestígio dos seus interlocutores, mas acima de tudo pela heterogeneidade política, artística e geracional dessas figuras, incluindo-se aqui, entre muitos outros, nomes como: Abel Manta, Afonso Lopes Vieira, António Ferro, António Sardinha, António Sérgio, Carlos Queiroz, David Mourão-Ferreira, Fernando Lopes-Graça, Fernando Pessoa, Haroldo Campos, Jacinto do Prado Coelho, João Brito Câmara, João Ameal, João Gaspar Simões, Joaquim Montezuma de Carvalho, Jean Michel Massa, Jorge de Sena, Júlio Dantas, Leroy James Benoit, Luís Amaro, Luiz Peter Clode, Maria Archer, Philéas Lebesgue, Ruy Cinatti, Tomás Kim, Vitorino Nemésio. Confirmou-se, assim, o prognóstico que, logo em 1914, era publicado no Diário da Madeira, após a divulgação dos seus primeiros textos no Funchal e a sua intervenção nas Conferências Académicas Quinzenais do Lyceu: o tímido e discreto João Cabral do Nascimento (traço de personalidade que manterá ao longo da sua vida) era então apreciado como um jovem dotado de um “precoce e prometedor desenvolvimento intelectual” (“Lyceu do Funchal. Conferências académicas”, Diário da Madeira, 18 dez. 1914, 1). A matrícula na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa leva-o, no ano seguinte, até à capital, onde participou ativamente em vários círculos artísticos e culturais, muitas vezes acompanhado por dois amigos também do Funchal: Alfredo de Freitas Branco, escritor, monárquico e futuro visconde do Porto da Cruz, que, nos anos da Segunda Guerra Mundial, viria a ser um germanófilo e apoiante do regime nazi; e Luiz Vieira de Castro, também escritor, monárquico e filho do banqueiro madeirense Henrique Vieira de Castro, que em diversos momentos desses anos assumiria o papel de mecenas dos jovens criadores e intelectuais insulares. Em 1916, Nascimento publicava em Lisboa o seu primeiro livro, intitulado As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas, o qual surpreenderá os escaparates e os críticos literários de então, sobretudo pela qualidade poética e por se tratar do primeiro livro de um jovem e desconhecido poeta madeirense. Os textos deste breve opúsculo de poemas, onde se torna evidente o diálogo com o simbolismo finissecular, eram significativamente dedicados a alguns dos seus companheiros de letras, insulares e continentais (Ernesto Gonçalves, Américo Durão, Alfredo Guisado, Elmano Vieira, Álvaro Manso de Sousa ou Luís Vieira de Castro), mas também a figuras autorais ficcionais, algumas das quais criadas pelo próprio Nascimento ou por amigos de carne e osso a quem também dedicava o livro: Ana Clara e Ismael de Bó, criados por Nascimento; Manoel de Lins, por Ernesto Gonçalves; e Pedro de Meneses, por Alfredo Guisado. As Três Princesas… viria a receber, nesse mesmo ano, uma crítica muito positiva publicada por Fernando Pessoa na revista Exílio, onde o criador do drama em gente sublinha uma suposta aproximação de Nascimento às vanguardas modernistas e em particular ao sensacionismo. O autor madeirense rejeitará sempre essa afiliação sensacionista, declarando-o abertamente num artigo que, em 1925, assinala a efeméride da publicação da revista Orpheu, publicado no Diário de Notícias do Funchal, a 5 de abril, e intitulado “Dez anos depois”. Embora declarando a sua fidelidade aos “clássicos”, à “gramática” e à “decência”, Nascimento salienta, a relevância cultural e artística do projeto Orpheu, assim como a influência que essas primeiras experiências vanguardistas, “prudentemente expungi[das de] certas inconveniências da sua estética”, tiveram “não só na literatura, mas na música e nas artes plásticas, e em tudo o mais […] [d]a geração nova”, acrescentando ainda, em jeito de confissão, o seu encontro de passagem com o sensacionismo: “O movimento sensacionista colhera-me de surpresa, no acordar da lira – ó romântica imagem! – e enredára-me nas suas teias espessas” (CABRAL, DN, 5 abr. 1925, 1). Se dúvidas restassem acerca desta confissão estética e poética de Cabral do Nascimento relativamente à sua aproximação às vanguardas estéticas então em debate na capital, elas eclipsam-se quando notamos a dedicatória de alguns dos poemas de As Três Princesas… a Alfredo Guisado e Pedro de Meneses; quando percebemos toda a estrutura fragmentária e dialogante da globalidade da sua obra; quando verificamos que esse diálogo também inclui figuras autorais dotadas de alguma autonomia e que foram criadas pelo próprio Nascimento; e, sobretudo, quando lemos o projeto narrativo Novela Romântica…, publicado em folhetim, na segunda metade de 1916, no Diário da Madeira. Polifónica e irreverente, desde logo pela autoria coletiva atribuída a cinco artistas vagabundos e por adotar um registo narrativo por vezes non-sens e provocatoriamente sarcástico, essa narrativa fragmentária e autobiográfica dá conta das aventuras ficcionais de seis diletantes cosmopolitas em deriva pelo mundo: os cinco artistas vagabundos e Colecta de Nylves, uma mulher moderna transgressiva, que assume o papel de intelectual-líder do grupo. Mais do que uma simples narrativa ou um ato criativo meramente lúdico, esta novela constitui um irónico exercício autorreflexivo ora sobre a modernidade cosmopolita coeva, assombrada por inúmeras crises, de entre as quais a Primeira Guerra Mundial seria a mais evidente; ora sobre o papel das artes (os protagonistas da narrativa surgem associados às várias artes – a música, a dança, as artes plásticas, a poesia e a ficção), das vanguardas e dos neorromantismos no mundo seu contemporâneo. Oscilando entre, por um lado, o cosmopolitismo e a irreverência vanguardista que, na fábula, os artistas vagabundos efetivamente personificam e, por outro lado, a distância crítica que os narradores-autores constroem com o seu discurso (auto)irónico e sarcástico, acerca da vida e dos valores modernos, Novela Romântica… constitui-se, uma vez mais, como experimentação paródica de múltiplas tendências estéticas e poéticas, mas sobretudo como exercício de reflexão crítica promovida no Funchal, sobre o debate artístico e cultural que, nesse mesmo período, se desenrolava em Lisboa e Coimbra, assim como em outras cidades do país que, à semelhança do Funchal, muitas vezes são rasuradas da cartografia e da história do primeiro modernismo Português. A participação de Cabral do Nascimento neste debate estender-se-á de forma evidente até meados da déc. de 1920. Entre 18 e 27 de agosto de 1918, anuncia em vários textos publicados no Diário da Madeira o projeto já em curso de criação de uma Antologia de Poetas da Ilha da Madeira, projeto que, no entanto, nunca viria a ser editado. Nascimento propunha-se reunir um conjunto alargado de autores e textos do passado e do presente, por forma a inaugurar uma reflexão séria sobre a existência ou a necessidade de criação de uma literatura madeirense, conceito que aqui deve ser entendido enquanto sistema literário insular autónomo do nacional, algo muito próximo do que, nas décs. de 1920 e 1930, também acontecerá nos Açores e em Cabo Verde. Nesse mesmo jornal, saíram vários fragmentos de um estudo introdutório a constar nessa antologia, sendo que num desses fragmentos, transformado em artigo-ensaio sobre a “novíssima geração” de autores madeirenses, Nascimento aborda a questão da relação dos novíssimos insulares com as vanguardas. Não surpreende, portanto, que ainda em 1918 este intelectual integre a tertúlia dos Artistas Independentes (1918-1933), promovida no café funchalense Golden Gate, e em que também participaram Alfredo Miguéis, Emanuel Ribeiro, Ernesto Gonçalves, Francisco Franco, João Abel Manta e Henrique Franco. Em 1919, já a estudar na Universidade de Coimbra, para onde transferiu a sua matrícula depois da Primeira Guerra Mundial, funda, com Luiz Vieira de Castro, Alfredo Brochado e Américo Cortez Pinto, a eclética e efémera revista Ícaro, dirigida por Ernesto Gonçalves. Se o título aponta para o regresso a um certo classicismo, ao culto da beleza e da harmonia das formas, conforme é também sublinhado no editorial de abertura do n.º 1 da revista, a escolha da figura de Ícaro como patrono da publicação revela algo que, sendo profundamente moderno, é claramente verbalizado nesse mesmo texto de apresentação: o “frémito aventureiro – aspirando à Beleza, ao Sonho e à Vida”; a “ânsia imperfeita e humana” de absoluto e de “revelar, de anunciar novas formas de Sonho e de Beleza” (“Ícaro”, Ícaro, n.º 1, jul. 2019, 1). Em 1921, preside, em Lisboa, ao Comício dos Novos, representando a academia de Coimbra. Esta iniciativa, promovida por vários artistas ligados a Orpheu, a Exílio e a Portugal Futurista (e.g., António Ferro e Almada Negreiros), assim como às belas artes, teve lugar no cinema Chiado Terrace e procurou não só analisar criticamente os sistemas culturais e artísticos nacionais, como também discutir a necessidade de modernização da Sociedade Nacional de Belas Artes. A sua atividade cultural e política implicada em publicações periódicas intensifica-se nesse ano e no seguinte. Em 1921 colabora no único número da revista Nova Phenix Renascida, dirigida por Vieira de Castro, que, na linha de Ícaro e com uma orientação declaradamente europeísta, mas sem a pretensão de querer ser um “órgão de nenhuma côterie, nem tampouco […] [condicionado por] qualquer programa determinado”, assume o propósito de contribuir, com a sua “critica impiedosa”, para a dinamização e modernização do sistema literário nacional que, em palavras de Manoel de Menezes no texto de abertura da revista e intitulado “Portugal Literário”, necessitava regressar aos autores de avant-guerre, por se encontrar urgentemente necessitado de renascimento, fosse pelo vício do compadrio bajulador e falta de exigência da crítica, de autores, de pseudocríticos e das editoras; fosse pelo abandono da literatura por parte de autores conceituados e com valor, entretanto ocupados com a vida política; fosse ainda pela superficialidade e exibicionismo excessivo que encontravam na nova geração do Chiado (MENEZES, 1921, 1). Em fevereiro de 1922, ano em que termina o curso de Direito e regressa ao Funchal, toma ainda a função de subdiretor do semanário Restauração que ajudara a fundar em 1921, vindo a assumir, em maio de 1922, o cargo de secretário do Nacionalismo Integral, grupo monárquico defensor de um entendimento entre as diversas fações monárquicas, apoiado pelo madeirense Aires de Ornelas, e cujo órgão de divulgação foi esse mesmo jornal. O falhanço das negociações entre monárquicos estará implicado no regresso de Nascimento à Ilha e no seu progressivo afastamento da atividade político-partidária. No Funchal, exerce advocacia por um curto período, seguindo, logo depois, outros rumos profissionais que pouco terão a ver com a sua área de formação académica. Exerce a docência na Escola Industrial e Comercial do Funchal e no Instituto Comercial do Funchal, mas logo reorienta a sua atividade profissional para a investigação e divulgação histórica. Na segunda metade da déc. de 1920, dá os primeiros passos para a constituição do que virá a ser o Arquivo Distrital do Funchal (posteriormente, Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira (ABM)), instituição que apenas viria a ser constituída de jure em 1931, ano em que assume oficialmente o cargo de diretor, o qual seria por ele ocupado até 1954, embora de forma pouco convencional e por impasses administrativos. Leitor atento do que no mundo acontecia, colabora regularmente no Diário de Notícias, ao longo dos anos 20, onde vai comentando criticamente questões prementes na sociedade madeirense, em Portugal e a nível internacional: o bolcheviquismo; o fascismo; os totalitarismos; o antissemitismo crescente na Europa; a crise de Marrocos; as comemorações da suposta descoberta da Madeira por Zarco; o regionalismo insular; o descuido com que se tratava o património material e imaterial da Ilha; algumas decisões político-administrativas tomadas na Madeira; a morte ou o esquecimento de figuras relevantes da cultura portuguesa e madeirense, como Camilo Pessanha, Eça de Queiroz, Medina e Vasconcellos, António Sardinha, e muitos outros. Em junho de 1927 participa na excursão académica às ilhas Canárias, na qualidade de diretor pedagógico, em parceria com Manuel de Matos. Esta viagem ficaria registada em filme por Manuel Luiz Vieira, embora se desconheça o paradeiro da película. Na sequência dos movimentos autonomistas experienciados nas décs. de 1910 e 1920, nas ilhas da Macaronésia, esta viagem tinha como objetivo aproximar as culturas insulares atlânticas e aprofundar o conhecimento mútuo. Previa-se igualmente uma viagem aos Açores. Em 1928, João Cabral do Nascimento casa-se com Maria Franco e em 1929 nasce o seu único filho, João Crawford de Meneses Cabral, de quem virá a ter dois netos: o ator e encenador Filipe Crawford, especialista conceituado na área do teatro de máscara; e a artista plástica Maria Teresa Crawford Cabral. Ambos reconhecem o papel que Maria Franco e Cabral do Nascimento tiveram na sua formação estética e cultural. Maria Franco, também ela pintora e tradutora (cuja obra merece ser revisitada), era sobrinha de Francisco e Henrique Franco. O casamento entre ela e Cabral do Nascimento estreitava, assim, os laços de camaradagem cultural e amizade que, desde as décadas anteriores, existiam entre o escritor e os dois artistas plásticos. A este respeito, é de notar que em 1926 se publicara a 1.ª edição de Descaminho, onde a poesia de Nascimento se cruza com as xilogravuras de Francisco Franco, num processo dialogante inovador e que ultrapassa em muito o da tradicional ilustração visual de textos escrito. Em 1930, regressa temporariamente a Lisboa, desta vez com Maria Franco, e com um subsídio da Junta de Educação Nacional, encarregado da tarefa de realizar investigação em bibliotecas e arquivos sobre a história da Madeira. Na sequência desta sua atividade, publica vários estudos e recolhas documentais sobra a história da Madeira, assume oficialmente o cargo de diretor do Arquivo Distrital do Funchal (ADF), inicia a publicação do boletim desta instituição, intitulado Arquivo Histórico da Madeira (financiado pela Câmara Municipal do Funchal, mas cuja publicação seria muitas vezes suportada por Nascimento), dinamiza a incorporação, no ADF, de múltipla documentação relevante para o conhecimento da história do arquipélago que, até à data, se encontrava à guarda de diversas instituições ou até de particulares. Este processo gerará alguma conflituosidade institucional e social, nomeadamente com alguns responsáveis por instituições da Igreja Católica, que não aceitaram essa transferência documental. É particularmente acesa a polémica que, em 1934, Nascimento trava com o Cón. Homem de Gouveia, nas páginas de vários periódicos locais. O motivo da discussão não era explicitamente o da transferência de documentação da Igreja para um arquivo laico, mas compreende-se que esse assunto estaria no fundo da polémica. Já a residir definitivamente em Lisboa, é convidado a lecionar um curso de férias na Faculdade de Letras de Lisboa. Em 1941, acompanha de perto a criação do projeto Cadernos de Poesia, cujo lema, “A poesia é só uma”, foi uma sugestão de Cabral do Nascimento, de acordo com testemunhos de Jorge de Sena, um dos mentores do projeto, e seu amigo pessoal. Em 1942, inicia a sua atividade tradutória, não por acaso com a publicação quer da História da Literatura Inglesa de Benjamin Ifor Evans, editada pelo Instituto Britânico, quer do romance O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Mr Hyde de Robert L. Stevenson. De extrema relevância para o sistema cultural português da segunda metade do séc. XX, seja pelo número de textos traduzidos, seja pela variedade e qualidade dos autores que, por essa via, entraram em Portugal, a obra tradutória de Nascimento ocupou-se, em grande parte, da transferência para português de textos anglófonos. Em 1943, recebe o Prémio Antero de Quental, atribuído pelo Secretariado de Propaganda Nacional ao seu mais recente livre de poesia, Cancioneiro, editado nesse mesmo ano. Isso não invalida, porém, que em 1955, ano em que publica o seu último livro de poemas inéditos (Fábulas), a sua tradução de Le Lettere da Capri de Mário Soldati, assinada por Mário Gonçalves e a italiana Inácia Dias Fiorillo, tenha sido censurada pelo “lápis azul”. Assumindo, em português, o provocatório título Carne Viva, a tradução do romance de Soldati seria considerada pelos censores uma obra potencialmente pornográfica. Na déc. de 1960, visita por duas vezes Angola, província onde residiam o filho e os netos: Luanda, em 1961; Sá da Bandeira (mais tarde, Lubango), em 1962. Em carta a João Gaspar Simões, datada de 13 de outubro de 1962, assume o desejo de permanecer em Angola, não fosse a insegurança decorrente da Guerra Colonial, conflito que eclodira no ano anterior. São vários os poemas que, na secção final da última edição de Cancioneiro (1976), fazem referência a Angola ou até, de forma subliminar, à ruína ou ilusão do sonho imperial português. Em 1975, assiste à morte de Maria Franco, esposa e companheira de um longo percurso vida. Debilitado com essa perda e com alguns problemas de saúde agravados com o avançar da idade, morre a 2 de março de 1978, em Lisboa, no Campo Grande, a poucos dias de completar os 81 anos. O seu corpo foi sepultado no Cemitério do Alto de São João, na capital portuguesa, mas parte da sua obra permaneceu ativa, ainda que de forma discreta, seja nas muitas traduções por si realizadas e que continuaram a ser reeditadas; seja no ABM, cuja génese se fica a dever a Cabral do Nascimento e ao seu companheiro de juventude, Álvaro Manso de Sousa. A cidade do Funchal concedeu o nome de João Cabral do Nascimento a uma pequena rua situada no periférico bairro das Virtudes. Uma rua discreta, cortada por outras pequenas ruas e que termina num beco sem saída. A placa identificadora dessa rua apresenta-o como advogado e poeta. Contudo, a sua obra foi, como por aqui se torna evidente, bem mais vasta e complexa do que aí se indica. Obras de João Cabral do Nascimento: As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas (1916); Além-Mar. Poemeto Épico que Fez Joam Cabral do Nascimento para Narrar a História Tormentosa das Caravelas que Aportaram à Ilha da Senhor Infante na Madrugada do século XV (1917); Hora de Noa ou o Livro dos Trinta e Três Sonetos (1917); Alguns Sonetos (1924); “Queiroz póstumo” (1924); “Dez anos depois” (1925); “Acêrca do Museu” (1925); Descaminho (1926); Apontamentos de História Insular (1927); Arrabalde (1928); Documentos para a História das Capitanias da Madeira (1930); Genealogia da Família Medina da Ilha da Madeira, com Algumas Notas Inéditas acerca do Poeta Francisco de Paula Medina e Vasconcelos (1930); Litoral (1932); Poesias Escolhidas (1936); 33 Poesias (1941); Cancioneiro (1943); Confidência (1945); Líricas Portuguesas (1945); Lugares Selectos de Autores Portugueses que Escreveram sobre o Arquipélago da Madeira (1949); Poemas Narrativos Portugueses (1949); Digressão (1953); Fábulas (1955); A Madeira (1958); Colectânea de Versos Portugueses do Século XII ao Século XX (1964).   Ana Salgueiro (atualizado a 03.03.2018)

Literatura

mendes, josé alberto reynolds

O Gen. José Alberto Reynolds Mendes nasceu no Funchal a 9 de abril de 1939, filho de João Gregório Mendes e de Cândida Assunção Reynolds Mendes; casou-se em 1967 com Maria de Fátima F. P. Pereira Reynolds Mendes e teve três filhos, Paulo José (1967) e os gémeos Alexandra Sofia e Alberto Sérgio (1968). Frequentou o Liceu Nacional do Funchal e ingressou na Academia Militar como cadete, em 1957. Em julho de 1960 concluiu na mesma Academia o curso de Infantaria e ficou colocado em Mafra, na Escola Prática deste ramo do Exército. No ano seguinte, frequenta na mesma Escola um curso sobre métodos de instrução, na qualidade de aspirante tirocinante. Ainda em 1961, é promovido a alferes, e, após um tempo de serviço no Regimento de Infantaria 2, em Abrantes, é mobilizado para servir na Região Militar de Angola (RMA). A 20 do mesmo mês parte do Aeroporto Militar de Figo Maduro em direção à Base Aérea 9 de Luanda como comandante do pelotão da Companhia de Caçadores 89. Depois de ter sido promovido a tenente, é colocado no Batalhão de Infantaria 19 no Funchal a 13 de abril de 1963. De 11 de junho a 6 de julho do mesmo ano, no Centro de Instrução de Operações Especiais, de Lamego, frequenta o curso de Instrutores e Monitores de Operações Especiais. A 24 de julho de 1964, mobilizado pelo Batalhão de Caçadores 5 de Campolide, segue de novo para Luanda, onde prestará serviço na Região Militar de Angola. Em 1966, habilita-se com o curso de Instrução de Comandos, é promovido a capitão e agraciado com a medalha de mérito militar de 3.ª classe, sendo louvado como “oficial de excelsas virtudes”, “extremo sentido de disciplina e de missão, elevadas qualidades de iniciativa, decisão, coragem e determinação” (“Nota de óbito”), e passa a comandar a 6.ª Companhia de Comandos até 1 de setembro de 1967, data em que regressa à metrópole. A 5 de Março de 1968, é-lhe conferida a medalha de mérito, que dá origem, a 5 de março de 1968, à condecoração com a Cruz de Guerra de 3.ª classe. De 23 de setembro a 4 de outubro do mesmo ano, conclui o estágio de Ação Psicológica no Instituto de Altos Estudos Militares de Pedrouços. No ano seguinte, a 22 de fevereiro, parte para Luanda e integra as tropas de reforço à Guarda Nacional na RMA. Mantém-se nesta comissão até 1973 e habilita-se com o Curso Geral do Estado-Maior. Nesta data recebe a medalha de prata de comportamento exemplar. Em fevereiro de 1975, é nomeado chefe da 2.ª Repartição do Comando Geral da Polícia de Segurança Pública. Parte para Macau, onde, em 1980, frequenta o curso da Criminal Information Research School/Drug Enforcement Administration/EUA e aqui, no posto de major, desempenha as funções de chefe de Divisão de Operações e Informações do Comando das Forças de Segurança. Depois das campanhas de Angola e das comissões especiais em Macau é condecorado, em 1984, com o grau de cavaleiro da Ordem de Avis (comendador). Frequenta, em 1986, o curso do Colégio de Defesa da NATO, em Roma, onde, após graduação e promoção a coronel, foi Conselheiro de Estudos, entre 1987 e 1990. Uma vez promovido a brigadeiro, exerceu o cargo de subdiretor do Instituto de Defesa Nacional, e foi colocado, em 1996, como comandante da Zona Militar e comandante operacional da Madeira, tendo terminado este desempenho em 1998. Passou à situação de reserva em abril deste mesmo ano, por limite de idade. Em 2003, participa no fórum da Military Review, revista profissional do exército dos EUA, sediada em Fort Leavenworth, Kansas, com um estudo intitulado “Guerra Assimétrica, Riscos Assimétricos”. O estudo consiste numa análise sobre os diversos níveis de terrorismo existentes nos começos do séc. XXI e em previsões sobre os seus efeitos nas organizações de defesa, nas alianças internacionais e nas áreas de informações, operações e logística. Este estudo foi publicado na versão brasileira da mesma revista (vol. LXXXIII, 2.º trim., pp. 46-54. Com a patente de major-general, Reynolds Mendes atinge a reforma em julho de 2004. Foi ainda diretor do Gabinete de Gestão do Litoral do Governo Regional da Madeira. Na sua obra poética, publicada sob o pseudónimo de Marco Reynolds, a escrita revela-se uma necessidade moral de participar no mistério da vida, na intangibilidade dos afetos e no contraditório da existência humana: a sua dupla face, em busca dum estado de ser. Observa a matriz sanguínea e telúrica que define o poeta, amador da vida, do amor e da terra de origem, a “Ilha-Mãe”, onde “vale a pena reencontrar” (-se) (MENDES, 2009, 36). A fusão dos vários espaços onde se move remete para uma situação de duplicidade em que o homem-cívico, imbuído dum espírito de missão, se coliga ao homem-emotivo, sensível aos sortilégios do amor. Há um sentimento de promissão dirigido a uma vontade de resgate da mulher amada e do solo “depredado” que permanece em todos os seus livros, consolidando-se a última vertente em Ilha-Mãe – Ilha-Pátria. Sendo a Ilha a terra do regresso e da esperança, são as memórias do seu tempo em África que o levam a auscultar, em Ofício Prestante, os caminhos imperfeitos, ainda que aliciantes, da pátria: a pátria que refere como “lágrima de Deus” e “ubérrimo ventre”. “Não tomes nas tuas mãos pálidas/o meu esplendor de ébano selvagem/O que digas perder-se-á nas brumas/de África/e assaz tardará o sol a aquecer-nos/Não tomes no peito o amor/antes que chegue o tempo maduro da vinha nas encostas” (MENDES, 2005, 78). José Alberto Reynolds Mendes morreu em Lisboa, em 2016. Outras distinções profissionais recebidas pelo Gen. José Alberto Reynolds Mendes: medalha das expedições das Forças Armadas Portuguesas – Macau, 1976-80; medalha de mérito militar de 2.ª Classe, 1979; medalha de prata de Serviços Distintos, 1985; medalha de ouro de comportamento exemplar, 1988; medalha de mérito militar de 1.ª classe, com distintivo branco do exército espanhol, 1991; medalha de mérito militar de Avis (cavaleiro, oficial, grande oficial), 1995; medalha de ouro de Serviços Distintos, 1998. Vários louvores individuais provenientes de entidades militares e Conselho de Governo da Madeira. Obras de José Alberto Reynolds Mendes: Gestação de Uma Nova Face (1970); “Guerra Assimétrica, Riscos Assimétricos” (2003); Gestação da Face e Outros Poemas (2005); Ofício Prestante (2006); Ilha-Mãe – Ilha-Pátria (2009).   Irene Lucília Andrade (atualizado a 01.02.2018)

História Militar Personalidades

henriques, germano francisco de barros

Este apelido de família procede de D. João Henriques, que foi aposentador e caçador-mor de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I. Há outros Henriques, que descendem de Henrique Alemão e Henriques de Noronha, que procedem de D. João e de D. Diogo Henriques, e de D. João e D. Garcia de Noronha, todos filhos de D. Garcia Henriques, de Sevilha. Poeta muito apreciado, escritor, professor e escrivão, nasceu na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos em 1805, sendo filho de Francisco Policarpo de Barros Henriques, empregado de repartição pública e professor do ensino público em Câmara de Lobos, e de Luísa de Barros Henriques. Faleceu em 1856, vítima de colera morbus, que foi considerada a primeira doença global. Era apreciado como poliglota, pois falava corretamente francês, inglês, espanhol e latim. Dotado para a composição de poemas, dando primazia à produção de sonetos, escreveu Lições de Arte Poética e colaborou em diversos jornais e revistas, entre os quais A Discussão e Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Usou o pseudónimo de Germano Francisco Dee. O poeta Joaquim Pestana, no Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, menciona Barros Henriques de forma bastante elogiosa, referindo a rara facilidade com que compunha versos, a sua predileção pelo soneto e a influência da escola de Filinto, em alusão a Filinto Elísio, poeta e tradutor português do Neoclassicismo. Constituem digno exemplo da sua produção poética os sonetos que Luís Marino transcreve na sua Musa Insular: “Ao Suicídio” e “Soneto”, este último com uma dedicatória em alusão «Ao faustíssimo dia 16 de setembro de 1855, / aniversário natalício e de coroação de Sua / Majestade fidelíssima, o senhor D. Pedro V». Obras de Germano Francisco de Barros Henriques: Lições de Arte Poética.   António José Borges (atualizado a 23.02.2018)

Literatura

henriques, josé anselmo correia

Nasceu na ilha da Madeira, em 1775, e faleceu em Paris, a 1831. Era filho de António João Correia Bettencourt Henriques, pai do 1.º conde de Seixal, José Maurício Correia Henriques, e irmão de Fernando José Correia Brandão Bettencourt Henriques, 1.º visconde de Torre Bela e ministro de Portugal na Prússia e na Suécia. Não consta que tivesse habilitações literárias superiores – o que faz supor que terá, com efeito, obtido formação elevada em algum curso de que não ficou registo, talvez no Colégio dos Nobres, onde então se ensinavam as línguas mortas grega e latina, as línguas vivas francesa, inglesa e italiana, e história, matemática, física, desenho, arquitetura, equitação, esgrima, entre outras disciplinas que lhe terão proporcionado uma vasta cultura intelectual e literária –, o que não o impediu de seguir uma carreira diplomática em vários consulados, servindo, em representação de Portugal, nas cortes europeias, entre as quais Londres, Paris, Veneza e Cristiania, uma comunidade independente e autogerida, localizada na cidade de Copenhaga, Dinamarca. Escreveu vários livros, tornando-se um pensador de alto nível. Além de Bremen e outras cidades, residiu vários anos em Hamburgo. Partidário das ideias do séc. XVIII, leitor e admirador de Voltaire, deveu certamente à sua ausência de Portugal o facto de não ser perseguido. Na verdade, foi em Hamburgo que publicou, em 1806, o poema heroico-cómico A Padeira de Aljubarrota, imitado de La Pucelle d´Orléans, de Voltaire. Esteve no Rio de Janeiro quando a corte e o governo português ali permaneceram, desempenhando alguns cargos de confiança junto do príncipe regente. Escreveu também, em 1809, uma tragédia sobre a revolução de Portugal contra os Franceses, com o seguinte título: A Revolução de Portugal, Tragédia Dedicada à Inseparável Memória dos Portugueses pelos Seus Legítimos Senhores e Reis da Casa de Bragança, que publicou em Londres. Trata-se de uma obra repassada de alusões aos acontecimentos da época. Na capital britânica, colaborava no Correio Brasiliense e redigia o Espêlho, jornal que terminou em 1813. Ali fundou ainda, no ano de 1821, o periódico O Zorragar das Cortes-Novas. Em 17 de dezembro de 1815, escreveu um “Poema aos Anos de muito Alta e Augusta Majestade, a Senhora D. Maria I, Rainha de Portugal”, que viria a sair no vol. I das suas Obras Poéticas, sendo o resto do volume preenchido com a tradução da “Carta de Heloísa”, de Pope, uma “Ode a el-Rei D. João VI” e outros textos. Este primeiro volume publicou-se em Hamburgo em 1819. Nesta cidade, redigiu também, durante algum tempo e no mesmo ano, Le Plenipotentiaire de la Raison. Publicou em Paris, Hamburgo, Londres, Veneza e na Suécia. Consta que no Brasil, entre 1817 e 1818, terá sido o chefe da espionagem do ministro Tomás de Vila-Nova Portugal, sendo por ele solicitado no sentido de identificar e denunciar os pedreiros-livres, tendo cumprido com sucesso a sua missão. Foi nessa altura que D. João VI descobriu, para seu enorme desgosto, que muitos dos que trabalhavam de perto com ele eram pedreiros-livres, assim como o haviam sido todos os ministros que nomeara no Rio de Janeiro, até junho de 1817. Além das publicações já referidas, importa mencionar mais algumas composições, como “Arte da Guerra; Poema em Seis Cantos, de Frederico II, Rei da Prússia, Traduzido em Português” (Hamburgo, 1819); “Perodana, ou o Conciliábulo ou Periódico; Poema Heróico-cómico” (Veneza, 1819); A Escola do Escândalo, Comédia de Sheridan, Traduzida do Inglês (Lisboa, 1795), representada em várias épocas no teatro da R. dos Condes. Há ainda registo de vários manuscritos que terá deixado: “A Mariolada; Poema Herói-cómico à Musa do Reverendo José Agostinho de Macedo, a Formosa Estanqueira do Chiado, pelo Autor o Gigante Voraz”, composto em 1813, com três cantos precedidos de uma introdução; e, em verso, Mesquita, Tragédia Portuguesa. A literatura madeirense seguiu as fases da literatura continental, embora poucos escritores daquele arquipélago deixassem nome aureolado na história literária do país. É certo, porém, que logo no século dos Descobrimentos apareceram alguns poetas de notável mérito, que figuram no Cancioneiro de Garcia de Resende, chegando Teófilo Braga, na sua obra Poetas Palacianos, a considerá-los um grupo à parte, característico e distinto, a que deu o nome de Ciclo Poético da Ilha da Madeira. A par de autores como Marceliano Ribeiro de Mendonça e Manuel Caetano Pimenta de Aguiar, José Anselmo Correia Henriques figura como um dos melhores escritores da Madeira durante a primeira metade do séc. XIX. Obras de José Anselmo Correia Henriques: A Escola do Escândalo, Comédia de Sheridan, Traduzida do Inglês (1795); A Revolução de Portugal, Tragédia Dedicada à Inseparável Memória dos Portugueses pelos Seus Legítimos Senhores e Reis da Casa de Bragança (1809); Obras Poéticas (1819); Le Plenipotentiaire de la Raison (1819); O Charlatanismo, ou o Congresso Abolido; Poema Herói-cómico em Verso Solto; Manuscrito Achado num Canto do Palácio das Necessidades, depois de as Côrtes Serem Abolidas em 5 de Junho de 1823 (1824); Apologia da Conduta de José Anselmo Correia, contra as Asserções Mentirosas do Correio Brasiliense.   António José Borges (atualizado a 23.02.2018)

Literatura

henriques, manuel antónio de azevedo

Manuel António de Azevedo Henriques foi um escritor madeirense nascido no séc. XVIII, natural do Funchal, mais concretamente da freguesia de São Pedro, que residiu na R. dos Murças ou das Mercês (o registo manuscrito da certidão de casamento não desfaz a dúvida). É filho de Silvestre de Azevedo e de Maria da Fé, que se casaram em São Pedro a 24 de junho de 1733. Seu avô paterno é António de Azevedo Henriques, que se casou na igreja de S. Bartolomeu, com Maria da Silva, estando este casamento registado na paróquia da Sé, como tendo ocorrido no mês de maio de 1709. Manuel António de Azevedo Henriques casou-se na paróquia de São Pedro com Juliana Rosa Joaquina, no dia 27 de novembro de 1784. O seu registo de casamento não contém o apelido Henriques, mas a probabilidade de se tratar do autor madeirense é muito grande. No âmbito literário, Manuel António de Azevedo Henriques destacou-se por ter escrito a obra Reino de Deus, ou Reino de Portugal, Panegírico Funchalense, Oferecido aos muito Altos, etc. Reis Fidelíssimos D. Maria I e D. Pedro III. O opúsculo, publicado em Lisboa em 1778, é constituído por 47 páginas e dividido em 4 partes. Na primeira parte, o autor debruça-se sobre as razões da aclamação da Rainha D. Maria I; na segunda, aborda a fundação de Portugal; na terceira parte, descreve a ascendência do casal real, continuando este mesmo assunto na quarta parte. Esta obra do autor madeirense foi uma prenda ao casal real, que tinha subido ao trono no ano anterior à sua publicação (1777). Nesse mesmo ano, segundo o Catálogo da Colecção de Miscelâneas, da Universidade de Coimbra, Manuel António de Azevedo Henriques terá assinado a protestação do epitalâmio de José de Assiz de Mascarenhas, conde de Óbidos e conde de Palma, meirinho-mor do reino, e de Helena Maria Josefa Xavier de Lima, condessa de Óbidos. Azevedo Henriques terá oferecido este opúsculo de 15 páginas, publicado em Lisboa, ao conde de Óbidos. Há ainda uma terceira obra, atribuída a Manuel António de Azevedo Henriques por Brito Aranha, o autor que continuou e completou os estudos de Inocêncio Francisco da Silva no Dicionário Bibliográfico Português. Segundo o estudioso, o escritor madeirense terá ainda redigido um extenso poema de 45 páginas intitulado Nova Historia do Pastor Desenganado ou Fileno Arrependido. O texto encontra-se dividido em 3 partes consoante a sua estrutura estrófica: a primeira, de 15 páginas, organiza-se em oitavas rimadas; a segunda, com 14 páginas, em sextinas; a terceira, com as restantes 16 páginas, contém estrofes de 7 versos. Há, no entanto, divergências quanto ao subtítulo da obra, a versão de 1811, supostamente a original, indica que a obra foi “moralizada em várias sentenças e autoridades, etc. Para utilidade e espelho dos mancebos e exemplos das donzelas”, enquanto a versão de 1874, presumivelmente uma reedição póstuma, apenas refere que a obra foi “moralizada com várias sentenças das divinas e humanas letras”. Pouco mais se conhece do perfil biográfico e literário de Azevedo Henriques, cuja obra terá sido difundida por via oral e tradicional, em folhetos de cordel, mas pode depreender-se que terá vivido algum tempo em Lisboa, onde desenvolveu parte da sua atividade literária e onde se terá movimentado nos ambientes da corte e da nobreza da época. Obras de Manuel António Azevedo Henriques: Reino de Deus, ou Reino de Portugal, Panegírico Funchalense, Oferecido aos muito Altos, etc. Reis Fidelíssimos D. Maria I e D. Pedro III (1778); Nova Historia do Pastor Desenganado ou Fileno Arrependido (1811).   João Carlos Costa (atualizado a 23.02.2018)

Literatura Personalidades

género

Além dos estudos de género, as relações homem-mulher têm sido abordadas pelos estudos culturais, pelos estudos da mulher, pela sociologia da violência simbólica, numa perspetiva reflexiva ou libertária ou emancipatória, assim como por uma consolidada antropologia do género. No que respeita à sociedade insular, o conhecimento produzido até ao começo do séc. XXI era insatisfatório. Os estudos literários sobre a ficção madeirense e alguns outros trabalhos avulsos constituíam exceção. A investigação disponível permite uma abordagem exploratória com vista a delinear mais pistas de análise. Para além da relação assimétrica entre géneros, da de cada um deles no seu seio, e da existência frequentemente apagada da voz feminina, pretende-se indagar a dinâmica da condição de ser mulher no arquipélago. Serão analisadas as relações de género predominantes na sociedade insular na base das representações literárias a que deram origem, considerando, por um lado, a sua projeção na semiosfera, e por outro, a sua (des)construção no plano literário. Estas vertentes devem ser entendidas como um substituto duma investigação social incidindo sobre a supremacia masculina na sociedade madeirense e as dinâmicas nela geradas pelos fatores tempo e território. Definindo este arquipélago atlântico como uma sociedade patriarcal, tem pertinência refletir sobre o modo como na narrativa de ficção se dá espaço à identidade feminina e se obriga o leitor a ponderar sobre o estatuto da mulher numa cultura em que ela é subjugada. Insistir-se-á no significado e na distribuição dos papéis sociais que escritores ensaiaram, nomeadamente no campo das relações amorosas e no universo familiar, já que o espaço público era, até meados do séc. XX, vedado às mulheres. Estabelecendo um corpus constituído por textos dos sécs. XIX e XX socialmente reconhecidos na esfera cultural madeirense, de fundo histórico, testemunhal, memorialista e/ou autobiográfico – da autoria, e.g., de João dos Reis Gomes (1869-1950), Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), João França (1908-1996), Carlos de Freitas Martins (1909-1985), Helena Marques (n. 1935), Maria Aurora Carvalho Homem (1937-2010) e Irene Lucília Andrade (n. 1938) –, tentar-se-á examinar as ressonâncias afetivas e ideológicas que problematizam as imagens que a Madeira constrói de si própria, numa modernidade em devir. Nestes discursos sobre homens e mulheres ficcionados da periferia insular, procurar-se-á compreender o processo de transformação que a cartografia dos géneros propõe em contexto de redefinição identitária e renovadas mobilidades sociais e culturais. No arranque do processo de povoamento da Madeira, essa terra verdejante, com belas paisagens e sem animais perigosos foi naturalmente equiparada a um cenário bíblico, onde se impunha, para o povo católico que o reino de Portugal então abrigava, o modelo de família patriarcal da tradição judaico-cristã que persistiu na sociedade portuguesa. Rezam as crónicas, como ilustra o conto “Aquele campo de funchos”, de João França, que Gonçalo Aires, companheiro de Gonçalves Zarco (o povoador do arquipélago da Madeira), foi pai das primeiras crianças – gémeos falsos – que nasceram na Ilha; ao menino foi dado o nome de Adão, e à menina, o de Eva. Nesse tempo de desbravamento, de lavoura e depois de construção de levadas e de engenhos, o narrador de A Ilha e o Tempo, romance histórico que o mesmo João França publicou em 1972, faz notar que os povoadores “queriam braços másculos, mas também mulheres para sossegar os homens” (França, 2006, 31). Mas o problema não se ficava por aí. Eram também precisos homens de boa linhagem para dar continuidade às famílias de estirpe, como adianta o cronista Jerónimo Dias Leite (séc. XVI), em Descobrimento da Ilha da Madeira: “por ser a terra nova e não haver na Ilha com quem pudessem casar segundo o merecimento de suas pessoas, mandou o dito capitão Zarco pedir a Sua Alteza homens conformes à sua qualidade para lhe dar suas filhas em casamento” (Leite, 1989, 41). Vale recordar que, na sociedade da época, de configuração feudal, um dos princípios era, consoante a epígrafe do já referido romance de João França, “Enquanto houver filho macho, não herdará a fêmea” (França, 2006, 13), sentença então validada pelo Rei D. João III. Vivia-se no regime de morgadio, que consistia em legar os bens fundiários ao filho mais velho, que devia ampliá-los através de um casamento de conveniência com uma filha de outra família de condição similar. Este sistema excluía da herança os restantes filhos, a quem – muitas vezes, mas não forçosamente – destinavam à vida eclesiástico-monacal ou à carreira militar, com o fito da recompensa de bens ou cargos ou, já nos sécs. XVIII e XIX, à aventura da emigração, no Brasil ou em Demerara, como mostra o romance Os Íbis Vermelhos da Guiana, de Helena Marques. Noutro livro de João França, António e Isabel do Arco da Calheta, o escritor sublinha a importância dos dotes e das alianças políticas entre as casas da nobreza seladas através do casamento, a relevância dos laços sanguíneos, dos preconceitos de casta e da “desgraçada convenção sobre as idades” (França, 1985, 26), que inibia o enlace de um homem com uma mulher mais velha, mesmo que a diferença fosse apenas de três anos. Naquele tempo, para as meninas fidalgas, estava determinada apenas uma alternativa, dois horizontes opostos um do outro: ou eram destinadas ao casamento, a uma vida submissa ao marido e ao dever da procriação, ou eram encaminhadas para a vida conventual, sendo a família obrigada ao pagamento de um elevado tributo para o efeito. No entanto, tal não sucede com Isabel Balda, a protagonista de A Ilha e o Tempo, que vai, em contracorrente face aos valores e práticas dominantes, forjar o próprio destino, distinguindo-se das demais mulheres do seu tempo. João França projeta, pois, na sua narrativa de ambientação histórica uma criatura de papel representativa de um inusitado ato de rebeldia para a época. O casamento e a família constituem o principal meio de controlo social dos seus elementos, coadjuvados pelo próprio tecido social em que se inserem. Exercem uma vigilância constante dos comportamentos dos seus membros, sobretudo das condutas vistas como moralmente reprováveis da mulher, podendo pôr em causa a sua honra e reputação. Em regra, era o pai que tomava a decisão sobre o partido que a filha havia de aceitar. Ainda em meados do séc. XIX, não aceitar a vontade paterna tinha consequências, como ilustra a seguinte tirada do Luís da Cunha, um proprietário e negociante próspero do Funchal, ao responder a Clara, a filha rebelde, no romance Saias de Balão, vindo a lume em 1946, de Ricardo Nascimento Jardim (1906-1990): “– Desgostas-me. A tua atitude é tola, porque perdes um bom partido, e desobedeces-me, o que é pior. Até aqui, ninguém se atreveu a desobedecer-me. Ninguém! Mereces um castigo… és muito velha para levares umas palmadas minhas, que é o que merecias! Castigo-te de outra maneira: se não casares com Tony, deserdo-te! Deixar-te-ei da minha fortuna apenas a pequena parte a que a lei me obriga – tudo o resto irá para tua irmã, já de si mais rica do que tu, pelo que herdou da tia Maria. Vai-te!” (Jardim, s.d., 178). Esse quadro manteve-se até ao séc. XX, como atestam os idílios frustrados pelos progenitores de Pedrinho, o filho-família, com Constança, a filha do caseiro, em Águas Mansas, romance de Bento de Gouveia, e de Ricardo Meireles, o filho de um republicano, com Lúcia, a filha de um monárquico, em Uma Família Madeirense, romance póstumo de João França. Os princípios da compatibilidade social entre os noivos e/ou o casamento arranjado estavam tão arreigados nos costumes, que dificilmente havia lugar para o sentimento amoroso. Nesse contexto, também não admira que a sexualidade dos homens fosse resolvida fora do matrimónio, à custa de mulheres muitas vezes desprotegidas ou marginalizadas, como observa o ensaísta António Ribeiro Marques da Silva: “Pensamos que não, embora muitos estudos, sobretudo os de Maria de Lourdes Freitas Ferraz aludam ao excessivo número de expostos, pelo que as ligações fora do casamento e, sobretudo, o hábito do cavalheiro de posses ter a sua amante determinam o aparecimento de muitos ilegítimos” (Silva, 2008, 122). Na verdade, parece que a monogamia oficial encobria infidelidades masculinas, quando não uma poligamia de facto: lê-se, em A Ilha e o Tempo, que nas casas senhoriais dos sécs. XV e XVI proliferavam as mulatinhas e que muitos bastardos eram filhos de fidalgos, a exemplo de José Travanca, filho de Afonso Balda com uma “degredada lisboeta” (França, 2006, 19-20), a Travanca, que acabaria num prostíbulo, e de Bento Enjeitado, igualmente filho de Afonso e de “uma camponesa limpa mas sem recursos” (Id., Ibid., 20); na Madeira do final do séc. XIX e início do séc. XX, que Helena Marques reconstituiu no seu romance de estreia, O Último Cais, um homem de idade avançada, Ferdinando, é rejeitado pela jovem mulher, Luciana, quando esta descobre que o marido satisfaz os seus apetites sexuais com as criadas: fecha-lhe definitivamente a porta do quarto e regulariza as visitas que irá fazer às serventes. Num período situável no primeiro quartel do séc. XX, é, e.g., revelado em Águas Mansas, de Horácio Bento, que um dos donos de engenho da Ponta Delgada, Germano Teixeira, tinha, ao mesmo tempo, “duas mancebas: mãe e filha”, “além da mulher” (Gouveia, 1963, 74). A propósito deste comportamento masculino que parece consubstanciar uma sociedade das aparências, vale a pena consultar o romance Madeira: Mar de Nuvens, de Carlos de Freitas Martins (1909-1985), com cenário implantado nos anos 30-40 do séc. XX. A personagem Magno Amundsen, um dos alter-egos do autor, faz o seguinte comentário: “um dia […] assisti […] à passagem de uma procissão. Senti um impulso de revolta e nojo, em ver muitos […] de capa e tocha na mão. Cínicos, que ainda na véspera, sábado, tinham-me acompanhado em orgias!” (Martins, 1945, 91). Se a infidelidade conjugal era prática comum dos homens, parece não haver, no universo literário reverberador da sociedade madeirense, exemplos de mulheres casadas que praticassem o adultério até meados do séc. XX. Essa constatação pode indiciar duas atitudes: por um lado, não se impunha à visão masculina dar conta de uma realidade transgressora que não lhe convinha, por outro, é crível que para a mulher insular virtuosa o casamento e a família fossem a base de tudo, a sua razão de ser. Talvez isso explique aquele caso em que uma mulher acolhe, décadas depois, o marido que tinha emigrado para longe sem nunca ter dado uma satisfação ou sinal de vida, sem dinheiro que se visse, como sucede com Artur, da Achada do Castanheiro, no romance Torna-Viagem, de Horácio Bento (Gouveia, 1979, 214-215). Falta referir que, numa sociedade presa a preceitos rígidos, um namoro rompido tinha, quase sempre, consequências vexatórias para as comprometidas que ficavam, por assim dizer, marcadas. Tal situação votava-as ao celibato, condenando-as à condição de “velha menina”, tal como a Emília e a Clara do conto bentiano “Alma negra”. Entre a resignação e a amargura, entre a solidão e a reserva, estas mulheres levavam, muitas vezes, uma existência sem objetivos. Outro destino teriam as viúvas, que sempre tinham filhos ou netos para cuidar. Em Quando Lançaram Meu Corpo ao Mar, Gualdino Rodrigues (n. 1946) recorda o sujeito poético “o rapé e os lenços negros que as viúvas de Câmara de Lobos escondiam” no tempo do Estado Novo (Rodrigues, 1983, 48). Quanto ao aspeto físico das mulheres da sua Ilha natal, posicionando-se provavelmente na ótica do padrão estético eurocêntrico, o poeta José António Monteiro Teixeira (1795-1876) distingue a maioria, criaturas sem graça, da minoria, figuras capazes de rivalizar em primor com as mulheres mais encantadoras do mundo civilizado. Faz, numa nota de rodapé, a seguinte apreciação: “Il faut bien l’avouer: les femmes ne sont pas ce que la nature a fait de mieux dans cette île […]. Il s’y trouve pourtant des dames aussi accomplies au physique et au moral, que les plus parfaites des pays les mieux partagés à cet égard; mais elles ne sont pas en majorité, bien au contraire [Convém reconhecer: as mulheres não são o que a natureza fez de melhor nesta Ilha [...]. Encontram-se, no entanto, senhoras física e moralmente tão dotadas como as mais perfeitas dos países mais beneficiados a este respeito; mas não são a maioria; muito pelo contrário]” (Teixeira, 1861, 110). Essa minoria, abonada, distinta e ilustrada, concentrava-se, no essencial, no Funchal. Em Saias de Balão, o recém-chegado à Ilha Gastão Lencastre escreve ao amigo José que está no continente: “A Madeira, meu caro, é muito linda, e as meninas… não te conto nada: uns amores! Interessantes e instruídas, são de um recato extremo que as torna ainda mais desejadas. Lembram aquelas figurinhas de ‘biscuit’, que se colocam cautelosamente sobre prateleiras, com receio de as quebrar” (Jardim, s.d., 130) Isto é: bem-nascidas, decorativas, frágeis e de tez clara – imagem que não favorece apenas a distinção social, mas também o preconceito étnico. Em sintonia com a elite centro-europeia, a preferência do cavalheiro distinto era para as donzelas e senhoras brancas em detrimento das raparigas trigueiras. Nas narrativas de ambientação madeirense, é nítido o sentido de valorização, quer espiritual, quer físico, agregado à construção da mulher branca. Mesmo na ficção relativa ao séc. XX, a mulher alta e alva é espécie rara de se achar e, como tal, uma tentação irresistível. E.g., no conto “A última luz da candeia de três bicos”, de Elmano Vieira (1892-1962), publicado em 1946, o narrador retrata uma jovem camponesa do seguinte modo: “A beleza da rapariga era apetitosa como um pomo. Alta, branca, corpo modelado em ritmos de escultura, impressionava sobretudo por ser um desses tipos rurais em que se adivinham enxertias de raças finas, porventura vindas de remotas mancebias” (Vieira, 1990, 83). Não será por acaso que, na narrativa de ficção do séc. XX, a estrangeira, bonita e culta (inglesa, alemã ou nórdica) representa o alvo preferencial dos galãs madeirenses. Na verdade, quando os autores privilegiam nos seus enredos as (jovens) mulheres insulares, realçam mais as qualidades morais e espirituais do que as físicas, de que poderá ser exemplo a personagem Maria Germana no romance Margareta, de Horácio Bento, descrita como uma jovem “esbelta”, de “rosto angélico”, com “graça juvenil”, mas “donzela ingénua” (Gouveia, 1980, 68), que deixava adivinhar nela uma “dona de casa extraordinária” (Id., Ibid., 75), ou seja, o oposto da “beleza” física da dinamarquesa Margareta, que, essa sim, “fascinava” (Id., Ibid., 68-69). A exceção confirmando a regra é proposta por Reis Gomes, em duas narrativas de inspiração histórico-lendária, a saber, O Anel do Imperador e O Cavaleiro de Santa Catarina. Em ambos os casos, o que temos é uma jovem madeirense – um tipo de Portuguesa que Reis Gomes idealiza – que se rende a um distinto estrangeiro do centro da Europa. Naturalmente, o contraste de fisionomia é também efeito cénico e simbólico. Em O Cavaleiro de Santa Catarina, cujo enredo se enquadra nos primórdios do povoamento da Ilha, no séc. XV, a futura mulher do lendário cavaleiro (mais conhecido como Henrique Alemão), é “donzela de nobre estirpe e, então, uma morena alegre e buliçosa” (Gomes, 1941, 48). Senhorinha Anes de seu nome, será apresentada ao jovem estrangeiro, “loiro e melancólico” (Id., Ibid., 48), que por ela se apaixona. Em O Anel do Imperador, Reis Gomes anima a imagem romântica da bela Portuguesa morena, ilustrada e casta, rendida à figura de Napoleão Bonaparte, na personagem da jovem madeirense Isabel, espécie moderna de vestal, como sintetiza Paulo Miguel Rodrigues: “de dezassete anos em flor e bem-nascida”, “alta, elegante, de corretíssimo perfil, boca breve e olhos negros”, com um “rosto oval, moreno-mate”, “calma”, sugerindo a “doçura duma bela virgem de Dolci” “formosa”, mas de “penteado simples”, e “culta”, porque lhe “eram familiares os poetas do renascimento” e porque pintava quadros, tocava harpa e sabia falar inglês e italiano, além do francês (Rodrigues, 2011-2012, 89-90). Em todo o caso, será preciso um olhar feminino para alterar essa visão masculina. Espécie de síntese de todas as etnias que coexistiram na Ilha ao longo dos tempos, Irene Lucília Andrade vai reabilitar, no seu romance de estreia Angélica e a Sua Espécie, a figura feminina nativa, esboçando o protótipo moderno da “bela madeirense”: “o rosto de Angélica, ora […] aparecia [a João Sérgio] em molduras de talha exprimindo a nobreza e a plástica serena das figuras de Van Eyck, ora sobre grandes murais exibindo a sensualidade dourada dos perfis egípcios. O azul dos olhos sobre a pele morena e os cabelos escuros evocavam uma semelhança com raças mestiças em que se fundiam várias origens, incluindo as negras africanas e as arianas do Eufrates” (Andrade, 1993, 81). Quanto à mulher feia e pobre, já se sabe: é particularmente difícil a obtenção de uma passagem para o sucesso. E, mesmo quando não era desfavorecida pela natureza e/ou pelo berço, ser simplesmente nativa da Ilha podia também não jogar a seu favor. No romance António e Isabel do Arco da Calheta, embora oriunda da Madeira, uma senhora da corte, Joana de Eça, aia da rainha, via com maus olhos o interesse que o filho, António Gonçalves da Câmara, nutria por uma jovem viúva nobre, Isabel de Abreu, que nunca saíra da Ilha, por desconfiar de que esta seria demasiado acanhada. Passando para um cenário posterior, como em Madeira: Mar de Nuvens, de Carlos Martins, ou em Margareta, de Bento de Gouveia, constata-se que os protagonistas madeirenses aspiram a uma vida mais estimulante do que aquela que o Funchal proporciona, quer do ponto de vista intelectual, quer do ponto de vista do prestígio social, quer do ponto de vista da experiência hedónica, e, por isso, tendem a preferir jovens mulheres do continente ou estrangeiras, desvalorizando as suas conterrâneas, vistas como sensaboronas, previsíveis e provincianas. A esse respeito, faz notar o narrador de Margareta, referindo-se ao protagonista do romance epónimo: “Às raparigas da Ilha verificava ele que lhes faltava espírito como dote expansivo de comunicação de vida interior” (Gouveia, 1980, 185). Com efeito, em múltiplas narrativas de ficção de escritores da Madeira, são vários os testemunhos de uma atração pela beleza e liberdade da mulher continental e cosmopolita, extrovertida e desenvolta, por contraste com os costumes madeirenses e com a mulher insular introvertida. Não admira que os bons partidos do Funchal se tivessem virado para as “gibraltinas”, mais desempoeiradas, quando estas foram levadas para a Madeira durante a Segunda Guerra Mundial. Em contrapartida, o fascínio que os recém-chegados cavalheiros bem-apessoados exerciam junto das melhores famílias funchalenses tinha muitas vezes equivalência na ingenuidade que caracterizava as raparigas bem-nascidas. Desvalorizando os pretendentes da terra, acabavam por ser vítimas da sua sobranceria e do seu deslumbramento pelo forasteiro. Do continente, chegavam de quando em vez à Ilha figuras aperaltadas, entre eles alguns caçadores de dotes, que iam cortejar filhas casadoiras de ricos proprietários. Com o Funchal de meados do séc. XIX em fundo, entra em cena, em Saias de Balão, um tal Gastão de Lencastre que vai esposar Matilde da Cunha, e que, quando o sogro, Luís da Cunha, morre, toma conta dos bens da família para os dilapidar em noitadas, jogo, libações alcoólicas e amantes. Outro exemplo é o de Frederico de Magalhães, em O Último Cais, com quem Constança se casa por amor, sem saber que o marido já contraíra matrimónio em Lisboa. Em ambos os casos, a jovem comprometida é condenada a um triste desenlace: um casamento infeliz com final dramático ou um casamento desfeito que a deixa, para o resto da vida, amargurada. Até meados do séc. XIX, a mulher do povo é praticamente invisível aos olhos dos escritores. As viloas (camponesas), ceifeiras, vendeiras, mulheres de pescadores, lavadeiras, criadas de servir, bordadeiras, curandeiras, bilhardeiras (i.e., coscuvilheiras), devotas ou marginalizadas (as mendigas e as despudoradas), anónimas embrenhadas na luta diária pela sobrevivência, apresentam-se como meros figurinos, ignorantes e boçais, que constituem o pano de fundo, a cor local, conferindo ao enredo uma tonalidade quase sempre bucólica e risonha. Ainda assim, paralelamente às narrativas etnográficas bem-humoradas, não são poucas as estórias de contornos dramáticos de morgados que tentam seduzir jovens viloas; mais engraçadas e raras são aquelas em que estas lhes resistem. Uma das exceções é a protagonista de A Justiça de Deus, de João Augusto de Ornelas (1833-1886), cuja ação se passa na Ponta do Sol de inícios do séc. XIX. O enredo destaca Luísa, uma rapariga séria e caridosa, que enjeita o morgado Lúcio d’Andrade, a encarnação da maldade. Filha da classe trabalhadora que gera consensos, Luísa fará jus à família honrada de que descende, apesar da perseguição do morgado e de este ter mandado assassinar Alfredo, o prometido da camponesa. Por regra, os morgados não encontram dificuldade em conquistar as raparigas do campo, abandonando-as grávidas para se casarem com viúvas ricas ou jovens da sua condição, como exemplifica a peça A Família do Demerarista, estreada em 1858, de Rodrigues de Azevedo (1825-1898), e o conto “À borda d’água”, dado à estampa em 1904, de João Gouveia (1880-1947). A conduta da personagem-tipo do morgado manteve-se na literatura e na sociedade sob a figura do sedutor com ar citadino e bem-falante. E.g., no romance Lágrimas Correndo Mundo, de Bento de Gouveia, uma vendeira de idade avançada na Calheta dos anos 20-30 do século XX avisa o protagonista, João de Freitas, um agente que ali se deslocou para distribuir trabalho em bordado, da má fama que a sua condição tem junto das mulheres da terra: “Vieram pr’aí três caixeiros montados a cavalo como se fossem fidalgos” e “desonraro muitas raparigas da Calheta, aqui há anos” (Gouveia, 1959, 84). Uma suicidou-se, as outras fugiram de casa sem darem mais notícias, porque a sociedade da época não tolerava a uma rapariga a perda da virgindade e a atividade sexual antes do casamento, atos considerados como transgressão moral e desonestidade social. Na sociedade patriarcal, perdoa-se com facilidade a fraqueza de um homem, mas quase nunca a de uma mulher. Todavia, a literatura de ambientação madeirense oferece, pelo menos, duas situações em que um morgado se casa por amor com uma camponesa: o romance Da Choça ao Solar, baseado numa história dita verídica do séc. XVIII e saído em folhetim na imprensa ponta-solense em 1917, da autoria de João Vieira Caetano (1883-1967); e o conto de estilo leve e irónico “Mariana do Passeio”, de Carlos Cristóvão (1924-1998). Em ambos os casos, as narrativas, pontuadas por peripécias, representam uma visão romântica do amor que prevê a possibilidade de uma aliança entre plebeias e morgados e o sentimento de comunidade de destino. Porém, se, no caso da Mariana, o que temos é uma noiva que deixa plantado no altar um lavrador abastado para fugir com o jovem morgado, conseguindo redimir-se, mais tarde, aos olhos dos seus, quando souberam que a sua relação era assumida pelo morgado, no caso de Antónia dos Canhas, o que temos é uma viloa que, depois de reconhecida como morgada, se torna altiva e intransigente nos princípios conservadores da recusa da miscibilidade social e não aceita a relação de filhos dela com plebeus. Voltando à Ilha de meados do séc. XIX, a mulher pertencente à fina-flor funchalense é figura quase icónica de uma Madeira de ambiente romântico. Vive em quintas resguardadas, ajardinadas e opulentas, cultivando o conforto (de gosto inglês), as obrigações morais e as relações sociais. Em finais de tarde, espairece pelo Passeio público da cidade em saia de balão, rodeada de crianças e criadas. Vai às missas dominicais e eventualmente ao teatro e a bailes exclusivos para a alta-roda. Organiza piqueniques e ceias. Nesses saraus, toca piano e machete, recita poesia, fala francês e inglês. Os poetas locais dedicam-lhe versos. Na verdade, como espelha o romance Saias de Balão, essas mulheres da elite vivem na ociosidade e na ignorância dos aspetos práticos, comportamentais e sociais da vida. Submetidas a uma educação doméstica que as forma à obediência passiva e ao preconceito social, tornam-se facilmente vulneráveis ante às adversidades. O mundo aparentemente perfeito em que vivem desmorona-se quando o pai, o irmão ou o marido lhes falha, por morte, doença ou ausência. Tendo recebido pouca educação formal, não sabem depender de si próprias e mostram-se impreparadas para evoluir fora da redoma de vidro em que vivem. Ainda assim, no final do romance, num pormenor simbólico, antevê-se uma mudança significativa na liberdade de ação dessas mulheres, visto a nova indumentária ser menos constrangedora: “Apanhando o vestido – felizmente que a moda das saias de balão já passara; com a tournure era mais fácil uma pessoa mover-se! – Clara dirigiu-se a correr para a livraria” (Jardim, s.d., 304). Ao papel da mulher adstrita ao lar opõe-se o escritor Carlos Martins. Ateu de sólidas convicções, crítico da sociedade insular, mas defensor de um regionalismo cosmopolita, Martins propõe, em Madeira: Mar de Nuvens, num registo individualista com recorte autobiográfico, uma visão cortês da mulher, com o protagonista, Fernando Porto Moniz, alter-ego do autor, que se encanta com o noivado, mas revela desprezo do matrimónio pois, no seu entender, “o casamento mata o amor” (Martins, 1972, 95), deixando no ar a pergunta: “para quê constituir família?” (Id., Ibid., 99). Nesse sentido, o narrador-autor perfila-se como adepto do amor livre e intenso, e da exaltação da virilidade. Segundo essa ordem de ideias parece prosseguir a voz narradora de Um Buraco na Boca, romance experimental de António Aragão (1925-2008) publicado em 1971, considerando, ainda que num tom provocatoriamente sexista, a moderna contraceção tão favorável à mulher como ao homem, porque concebe uma sexualidade sem medo de uma gravidez indesejada: “e continuava apalpando a desviada doçura das mamas de Fernanda: a pílula dá mesmo resultado. ter filhos para quê? ehhhhhh gente: quem começa uma ideia de existir que sirva? porque não tudo mudado?” (Aragão, 1993, 135). Não deixa de ser curioso observar que na narrativa de ficção ambientada no arquipélago da Madeira a figura do padre é raramente posta em causa e não custa imaginar o motivo que conduz o ficcionista a evitar as histórias, de que há ampla memória na Ilha, de padres que tinham filhos. Outro tema que tem sido abordado de forma tímida na narrativa de ficção em análise é o da homossexualidade. Se não faltam exemplos desse tipo de relação na obra romanesca de Bento de Gouveia, o certo é que nela impera uma visão preconceituosa sobre essa preferência afetiva e sexual. É na contística de Maria Aurora Carvalho Homem, designadamente em “Malvasia”, integrado na coletânea A Santa do Calhau, que surgem imagens da homossexualidade e da bissexualidade sem qualquer filtro moralista, numa escrita sugestiva do prazer erótico. Na última década do séc. XX, autoras como Helena Marques, Irene Lucília Andrade e Maria Aurora Homem encenam, a par de figuras de recorte tradicional, personagens femininas fortes, senhoras do seu destino – solteiras, casadas, divorciadas ou viúvas –, mulheres decididas que acabam, nalguns casos, por se realizar. Quer pela opção de vida tomada, quer por traços psicológicos diferenciadores, tais protagonistas distinguem-se na narrativa em que evoluem das figuras consentâneas com o comportamento que a sociedade induz. Nas obras dessas autoras – às quais se poderiam juntar ficcionistas como Maria do Carmo Rodrigues (1924-2014), Lília Mata (n. 1967) e Graça Alves (n. 1964) –, a mulher é muitas vezes tema central ou, pelo menos, ponto de vista para compreender a vida e o mundo, a partir da sua condição. Por exemplo, na contística de Maria Aurora Homem, designadamente nos livros A Santa do Calhau e Para Ouvir Albinoni, de 1995, encenam-se o drama e os anseios de mulheres, aspetos anedóticos dos pequenos meios, o leque de opções que a vida cosmopolita e desafogada oferece, o espírito conformista e egoísta dos homens. Nessas ficções, predomina uma refinada ironia, ou então o sentido trágico da vida. Ainda assim, as referidas escritoras não se fecham nessa perspetiva filosófica e, por via da força que a literatura lhes confere, não se coíbem de imaginar e narrar histórias na ótica de um protagonista. Por vezes, procuram a essência, esbatendo a distinção sexual. Assim acontece, e.g., em Angélica e a Sua Espécie, de Irene Lucília Andrade, em que a instância narrativa, embora referindo-se a uma personagem feminina, descreve a ânsia de evasão que tende a habitar a juventude, independentemente da sua origem geográfica e do seu sexo: “O desejo de evasão, a construção dos ideais, a procura do conhecimento e da alegria, a partilha da liberdade, o vigor das mãos, o brilho dos olhos e o frémito da vontade constituem em cada ser em todos os tempos um desígnio” (ANDRADE, 1993, 31). Até ao séc. XIX, a imagem da mulher madeirense é gerada em mente masculina, ora idealizadora, ora reveladora de preconceitos de classe, de género e até de fisionomia. Em sintonia com o que se passava em Portugal, as vozes femininas que fizeram uso da palavra escrita na Madeira do séc. XIX, tirando raras exceções como a autora de romances históricos Maria do Monte de Sant’Ana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt (1823-1884) e a escritora-viajante Maria Celina Sauvayre da Câmara (1855/60-1929), autora do diário De Nápoles a Jerusalém (1899), acantonavam-se aos temas quase exclusivos das mulheres bem-nascidas e casadas: família, educação, receção mundana, devoção religiosa e obras de caridade. Na segunda metade do séc. XX, esbatendo-se as fronteiras de classe e de género, os textos de autoria feminina criam alguma rutura e abordam mais livremente todo o tipo de temas, quer sociais, quer políticos, quer culturais, quer sexuais. Despontam cenas em que se invertem os papéis de género tradicionais: homens frágeis e mulheres fortes, homens acanhados e mulheres audaciosas. É certo que a mulher-povo não escreveu sobre si própria como a das classes favorecidas; mas, no dealbar do séc. XX, alguns escritores emprestam-lhe a sua voz, e ficamos a saber um pouco mais sobre camponesas, bordadeiras, curandeiras, prostitutas, mulheres de pescador, empregadas em casa particular, comércio ou fábrica, ou mulheres de bairro popular, como as da freguesia de Santa Maria evocadas no livro Dona-Joana-Rabo-de-Peixe, de João Carlos Abreu (n. 1935). A mulher deixa de ser uma figura idealizada, um mero objeto de desejo, torna-se o sujeito do seu corpo e da sua voz, a condutora da própria vida, mau grado as dificuldades que a sociedade ainda lhe coloca. O lugar que a escrita masculina concede à mulher não tem em mente um projeto ou sequer índole emancipatórios, mas tratar-se-á de um subterfúgio para censurar aspetos da realidade com os quais o autor se confronta. Na ficção produzida, os autores descrevem e denunciam, não militam. A escrita feminina também descreve e denuncia, além de enumerar as liberdades que foram sendo adquiridas. Na produção literária passada em revista, predomina um contingente constituído por hommes de lettres colocado perante uma representação numericamente mais reduzida de femmes de lettres. Relação que se inverte a partir de finais do séc. XX, em que as mulheres se apoderam da comunicação textual e da ficção em especial. Mas foi num contexto temporal anterior que se criou o feminino literário insular, com um discurso assente quase exclusivamente na mulher pertencente ou introduzida nas elites, nas classes privilegiadas, silenciando, esquecendo, desdenhando e, por conseguinte, procedendo à subalternização das mulheres do povo. Em termos de representação do género, uma minoria oculta a vivência quotidiana da maioria. O fator insularidade reflete-se no género e na vivência feminina. Conhecer o exterior permite adquirir vantagens competitivas nas relações sociais dentro do espaço insular. Na ficção, este capital é várias vezes referido. Viaja-se para conhecer, para desfrutar e, de regresso, comparar. De fora chegam ou trazem-se novidades e inovações. Faz-se uma apropriação mental diferenciada do exterior, em que a emigração secular desempenha um papel central. Emigram homens e mulheres, povo e senhores, pobres e ricos. A maioria não “torna-viagem”. Nesta mobilidade transoceânica, a mulher vai apagada, porque subsumida em família, ou deixada em terra para posterior oportunidade. Só mais tarde adquire visibilidade, ao protagonizar movimentos sazonais de mão de obra, como ocorre na indústria hoteleira das ilhas do Canal britânicas. Tirando a obra bentiana (vejam-se, e.g., as narrativas “Ana Maria”, incluída em Alma Negra, Margareta e Luísa Marta), a ficção mal aborda esta faceta que caracteriza a mulher assalariada. A mulher camponesa pouca atenção mereceu, salvo exceções raras, sendo uma delas as referências que lhe faz, em 1853, a inglesa Isabella de França (1795-1880) ao descrever a longa lua de mel que passou na Ilha. No período novecentista, com o desenvolvimento da indústria do bordado – introduzida no século anterior por empresários britânicos – aparecem, tanto no campo da Madeira e do Porto Santo, como na cidade, as bordadeiras e, nas fábricas respetivas, as operárias do bordado; umas fazem trabalho ao domicílio e recebem à tarefa, as outras são assalariadas e formam um proletariado insular essencialmente feminino, como ilustra o romance Lágrimas Correndo Mundo, de Bento de Gouveia. É por esta via que a mulher do povo ganha visibilidade. A pertença de classe distingue-a no seio do componente género. Com a Revolução de 25 de abril de 1974, a presença da mulher trabalhadora institucionaliza-se na sociedade insular; do seu seio surgem lideranças políticas, como será o caso de Guida Vieira (n. 1950). A ficção suscita outras questões, como a da fluidez entre o visível e o invisível, o revelado e o silenciado nas relações entre géneros, remetendo-se à mulher responsabilidades fundamentais, mas secundarizadas pelo homem, investido no papel de pai, irmão ou marido. Trata-se de gerir legados materiais e simbólicos. Por um lado, é devida obediência à autoridade paterna (ou ao seu equivalente), no que respeita às regras no mercado matrimonial. Uma mulher constitui um capital reprodutor, sendo o fator estético (mulher alva e mulher trigueira) atributo que se lhe adiciona, assim ainda outro, desta feita ligado ao risco (castidade e adultério ou fidelidade e infidelidade). Para além dos comportamentos reais, existem os entendidos ou assumidos. Na prática, funcionaria uma escala de gradações fluidas. Matrimónio liga-se a património e a regras e práticas de herança de combinações multifacetadas. Mesmo referindo a mulher e a sua opressão, o escritor homem tem uma visão masculina da ordem jurídica da sociedade. A invisibilidade da mulher na gestão de imóveis – que só deixava de o ser se enviuvada – estendia-se a outras vertentes do património menos expostas, por isso negligenciadas. Cabia-lhe preservar, ampliar e transmitir um conjunto de conhecimentos ensinados nos missais, sendo que na esfera do religioso se refletiam aspetos das relações entre os géneros; o padre podia constituir a presença rival suspeita pela insuspeição devida. Era ela que perpetuava o saber-fazer culinário, compilando receitas, escritas à mão e mantidas em encadernação improvisada. Cuidava de enxovais, que se herdavam e ampliavam. Destacavam-se peças da indumentária cerimonial, valorizadas não só pela durabilidade da matéria-prima, mas sobretudo pelo bordado incorporado; atestam-no exemplares destes artefactos integrados em coleções museológicas, confecionados para uso em ritos de passagem (batizado, casamento). Era ainda tarefa feminina, embora discreta, zelar pelas garrafas de vinho tratado – como faz a tia Leocádia no conto ambientado no séc. XIX “Rua da Carreira, ocaso”, de José Viale Moutinho (n. 1945), mulher para quem “o melhor vinho do mundo” (proveniente de uma quinta do Douro) não consegue rivalizar com “os seus melhores Madeiras” (Moutinho, 2007, 48-49) –, que se transferiam de geração; constituíam como que uma reserva de sangue social, em reforço do fisiológico. A lide doméstica organizava-se em torno duma cozinha, em funcionamento quase contínuo. Era um espaço exclusivo de vozes femininas; umas de comando, outras de obediência. Ali se manipulavam substâncias animais e vegetais, com vista à alteração controlada dos seus estados. Apuravam-se sabores, intensificavam-se cheiros. Transformavam-se crus em cozidos, estufados ou assados. Um jogo calculado com os trânsitos entre natureza e cultura. Nestas liminaridades, a mulher dispunha de autoridade, poder e imunidade.     Thierry Proença dos Santos Jorge Freitas Branco (atualizado a 23.02.2018)

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