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Em termos de contabilidade, devemos considerar a Conta do Ano Económico, a Conta de Gerência e a Conta Geral de Administração Financeira do Estado (CGAFE), que engloba as duas. Ao nível das diversas operações orçamentais, podemos, ainda, definir as contas ordinária, extraordinária, dos serviços autónomos e uma exceção, a chamada “conta excecional”, resultante da guerra, que existiu nos períodos de 1914-15 e de 1927-28, tendo sido criada pela Lei n.º 372, de 31 de agosto de 1915. A CGAFE é o resultado da execução do orçamento. De acordo com a constituição de 1822, estas deveriam ser apresentadas para aprovação em Cortes, juntamente com o orçamento do ano seguinte. Na Carta Constitucional de 1926 e na Constituição de 1838, alude-se ao mesmo, sendo referido como o balanço geral da receita e despesa do tesouro público. Por lei de 18 de setembro de 1844, foi determinado que a Conta deveria ser submetida a parecer do Tribunal do Conselho Fiscal de Contas. A partir do ato adicional à Carta de 1852, ficou definida a separação entre a Conta e o orçamento. Durante a República, não tivemos qualquer alteração, o que só veio a ocorrer com a Constituição de 1933, que determinou que a sua submissão ao Parlamento deveria ser acompanhada de relatório e decisão sobre a mesma exarados pelo Tribunal de Contas (TCo). A CGAFE foi substituída, a 21 de novembro de 1936, pela Conta Geral do Estado. De acordo com a lei de 20 de março de 1907, existiam dois tipos de conta: a Conta do Ano Económico e a Conta de Gerência do mesmo. Enquanto a primeira ficava aberta por um período de cinco anos, a segunda deveria ser encerrada a cada ano e ser o registo de todas as operações financeiras realizadas. Esta segunda conta deveria igualmente ser publicada no prazo de quatro meses após o final do ano, enquadrada na CGAFE, que englobava as duas. Como já referido, a partir de 1936, esta Conta passou a designar-se Conta Geral do Estado (CGE). Com o Dec. n.º 3519, de 8 de maio de 1919, somos confrontados com a falta de cumprimento desta determinação que estabeleceu normas, no sentido de simplificar o processo, reduzindo para dois anos o período em que as contas dos anos económicos estariam abertas e o alargamento do prazo de publicação da conta para sete meses. Mesmo assim, não foi solução, e, em novo decreto, com força de lei, n.º 18381, de 24 de maio de 1930, estabeleceram-se novas regras, no sentido de obviar esta situação. Assim, o ano económico ficaria aberto apenas por 45 dias e acabava-se com as duas contas, passando a figurar apenas a Conta de Gerência. Em 1935, alargou-se o prazo da sua publicação para 12 meses e, no ano seguinte, insistiu-se na prioridade que deveria ser dada à publicação da CGE. A publicação regular das contas iniciou-se com as do ano económico de 1833-34, mas a agitação política levou, por vezes, ao não cumprimento desta ordem, como sucedeu nos anos económicos de 1845-46 a 1859-1950. Antes disso, deveremos assinalar a apresentação de três contas à Câmara dos Deputados juntamente com o orçamento respeitante aos anos económicos de 1926, 1832 e 1832-33. A partir de 1850, juntaram-se à Conta do Tesouro as contas dos Exercícios, as dos Ministérios e a da Junta de Crédito Público. Como já referido, a CGE surgiu, a 21 de novembro de 1936, para substituir a CGAFE, sendo o resultado da execução financeira do orçamento. A conta é preparada pela Direção-Geral de Contabilidade, que deveria apresentar, até 15 de março de cada ano, os mapas de execução e publicar a conta até 31 de dezembro do ano seguinte. Esta, depois de parecer do TCo, é apresentada à Assembleia para votação. A Constituição de 1976 refere, a exemplo da de 1933, que a submissão ao Parlamento deveria ser acompanhada de relatório e decisão sobre a mesma, exarados pelo TCo, e acrescenta o prazo de 31 de dezembro para a sua apresentação à Assembleia. A partir de 1977, a lei determinou a publicação mensal de contas provisórias, o que, em 1991, passou a ter uma periodicidade trimestral. A Conta da Região é a conta das regiões autónomas, tendo surgido para o ano fiscal de 1976. De acordo com a Lei n.º 98/97, de 27 de agosto, o Governo Regional é obrigado a submeter, à Secção Regional do TCo, esta Conta, que, depois de julgada, é submetida à aprovação da Assembleia Legislativa Regional, conforme lei n.º 28/92, de 1 de setembro. A Conta da Região assinala a execução orçamental da Região Autónoma da Madeira (RAM) e apresenta, detalhadamente, os valores constatados em agrupamentos como as Receitas e as Despesas do Arquipélago. Dados da Direção Regional de Orçamento e Contabilidade permitem identificar a evolução favorável das receitas, tanto as correntes como as de capital. Em 1977, o total de receitas correntes era de 8932 milhões de euros, sendo que o total de receitas de capital cifrava-se em 232 mil euros, fazendo com que a receita total se quantificasse em 9374 milhões de euros. Em 1981, o total de receitas de capital aumentou para 44.348 milhões de euros, um crescimento de cerca de 191 vezes quando comparado com o valor verificado em 1977. Ainda no mesmo ano, foi igualmente notória a evolução das receitas correntes, já que no seu total somaram o valor de 26.325 milhões de euros. Em 1985, a receita total atingiu o valor de 139.023 milhões de euros, e, no ano seguinte, o valor quase duplicou, passando para 252.542 milhões de euros, muito por conta de as receitas de capital terem passado de 32.955 milhões de euros, em 1985, para 130.162 milhões de euros, em 1986, quase igualando o valor da receita total do ano anterior. Todavia, cabe destacar que as receitas correntes aumentaram, neste período, em 14.211 milhões de euros. Para a déc. de 90, os montantes verificados foram reflexo de um aumento das receitas da RAM, tendo especial destaque o ano de 1990, em que a receita total assumiu o valor de 733.975 milhões de euros. Este valor justifica-se pelo montante assumido pelas receitas de capital, que no seu total foi de 500.346 milhões de euros, valor que atingiu tais proporções devido a um passivo financeiro assumido pela RAM de 439.473 milhões de euros. Em 1991, embora inferior à do ano anterior, que não constitui um bom elemento de comparação por conta da excecionalidade verificada, a receita total foi superior à de 1989, devido ao aumento das receitas correntes, impulsionado pelo incremento das receitas fiscais. A partir de 1995, a receita total da RAM superou os 700 milhões de euros, assumindo, nesse ano, o valor de 703.678 milhões de euros, sendo que o valor das receitas correntes foi de 337.777 milhões de euros e o das receitas de capital de 214.729 milhões de euros. Em 1996, a receita total foi de 822.373 milhões de euros, sendo que no ano seguinte o valor diminuiu para 765.446 milhões de euros, voltando a aumentar, em 1998, para 782.498 milhões de euros. No início do novo século, as receitas da RAM atingiram valores nunca antes verificados. Em 2001, a receita total da RAM foi de 1105.302 milhões de euros, aumentando no ano seguinte para 1129.110 milhões de euros e tomando o valor de 1167.048 milhões de euros em 2003. As receitas correntes em 2001 foram de 545.424 milhões de euros, tendo-se verificado um aumento das mesmas em 2002 e 2003 para 671.637 e 672.472 milhões de euros, respetivamente. As receitas de capital, pelo contrário, reduziram de 2001 para 2002, na medida em que no primeiro ano as mesmas somavam o valor de 364.151 milhões de euros e no segundo diminuíram para 271.664 milhões de euros. 2008 marca a primeira década do século no que concerne à receita total, que se cifrou em 1317.770 milhões de euros, ano em que as receitas correntes foram de 931.883 milhões de euros e as receitas de capital de 385.887 milhões de euros. Os anos seguintes foram marcados por diminuições constantes. A partir de 2009, inicia-se uma tendência que é caracterizada pelo decréscimo das receitas totais, sendo que, para esse ano, o valor das mesmas foi de 1074.878 milhões de euros. Em 2010, com uma receita total de 1201.411 milhões, é claro o aumento em relação ao ano anterior, situação que não se verificou em 2011, com uma diminuição para 1076.962 milhões de euros. Em 2012, a receita total cifrou-se em 1597.936 milhões de euros, um aumento significativo relativamente ao do ano anterior, ocasionado pelo valor assumido pela rubrica das receitas advindas de passivos financeiros, de 635.070 milhões de euros. Em 2013, os dados provisórios apontavam para um valor das receitas totais de 2492.607 milhões de euros. Para o mesmo ano, as receitas correntes eram de 1091.643 milhões de euros e as receitas de capital de 1400.964 milhões de euros. No que diz respeito à estrutura da receita, cabe destacar o peso que as receitas fiscais foram assumindo ao longo do tempo. Para 1977, as receitas fiscais eram de 6721 milhões de euros, representando 75,2 % das receitas correntes e 71, 7% das receitas totais. O ano seguinte deu início a um período que se prolongou até 1981, caracterizado pela diminuição da proporção das receitas fiscais nas receitas totais. Note-se que, em 1981, as receitas fiscais representaram 21,6 % do total das receitas e 67,7 % das receitas correntes, sendo que as mesmas mantiveram uma percentagem relativamente baixa no que concerne à receita total em 1982 e 1983, com 28,7 % e 31,0 %, respetivamente. 1989 é um ano de destaque para as receitas fiscais, já que as mesmas ascenderam aos 155.862 milhões de euros, o que se traduziu em 92,3 % das receitas correntes e 55,4 % das receitas totais. A déc. de 90 apresentou receitas orçamentais com um peso superior a 40 % das receitas totais, com exceção de 1990, ano em que a receita fiscal representou apenas 23,8 % das receitas totais. De destacar o ano de 1992, em que as receitas fiscais foram de 293.702 milhões de euros, cerca de 61,0 % da receita total desse ano. No novo século, a proporção das receitas fiscais nas receitas totais aumentou significativamente. Esta situação é identificada com maior realce no período compreendido entre 2008 e 2013. Em 2008, as receitas fiscais foram de 786.249 milhões de euros, e, embora nos anos seguintes o valor absoluto das mesmas tenha sido inferior, tomando os valores de 643.499, 682.954, 666.690 e 651.970 milhões de euros em 2009, 2010, 2011 e 2012, respetivamente, o impacto nas receitas totais foi superior em algumas ocasiões. Isto porque, se em 2008 as receitas fiscais representavam 59,7 % das receitas totais, em 2009 a proporção aumentava para 59,9 %. Em 2010, a proporção diminuía para 56,8 %, voltando a aumentar no ano seguinte, representando 61,9 %. As previsões para 2013 deixavam antever um aumento do valor absoluto das receitas fiscais, já que a estimativa apontava para um valor a rondar os 847.255 milhões de euros, substancialmente superior ao verificado no ano anterior. Todavia, e apesar do aumento do valor da mesma, a sua influência na receita total decresceu para 33,99 %. Cabe destacar que, desde 1977 até 2012, para cada um dos anos em apreço a receita fiscal apresentou-se sempre superior à receita fiscal do ano imediatamente anterior, com exceção de 1994, 2003, 2007, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013. Nesse espaço temporal, o valor mais elevado da receita fiscal, considerando os dados definitivos, foi constatado em 2008, ano em que foi verificada, de igual forma, a maior receita total, que ascendeu aos 1317.770 milhões de euros. No que concerne à componente de capital, as receitas associadas à mesma ganharam uma importância relativa bastante significativa, já que, enquanto em 1977 representavam aproximadamente 2,5 % da receita total e assumiam o valor de 232.000 mil euros, em 2012, o valor absoluto ascendia aos 703.562 milhões de euros, com um peso de 44,0 %. Não obstante, é de ressaltar que a conjuntura com a qual a RAM se viu confrontada a partir de 2008, com a crise financeira, e especialmente desde 2012, ano em que foi assinado o PAEF-RAM – Programa de Ajustamento Económico e Financeiro da RAM, deturpou, em certa medida, os pesos das receitas de capital nas receitas totais verificados em anos anteriores. Se foi notável o aumento das receitas da RAM, a evolução das despesas foi semelhante. Em 1977, a despesa total da RAM rondava os 7490 milhões de euros, passando no ano seguinte a ser de 16.827 milhões de euros, ultrapassando o dobro do ano anterior. O total da despesa aumentou anualmente até ao fim da déc. de 80, com exceção de 1984, ano em que tomou o valor de 106.213 milhões de euros, e de 1987, ano no qual a despesa total foi de 224.099 milhões de euros. Na déc. de 90, sobressai o valor verificado em 1990, em que a despesa ascendeu aos 728.808 milhões de euros. Contudo, e apesar de em 1991 se ter verificado uma diminuição do total da despesa para 392.018 milhões de euros, o período entre 1991 e 1996 apresentou um crescimento anual da mesma, tomando o valor de 816.206 milhões de euros no último ano considerado. No início do séc. XXI, a despesa total assumiu um valor nunca antes verificado, de 1100.651 milhões de euros. Não obstante o facto de em 2001 se ter atingido tal patamar, nos três anos seguintes foram constatados aumentos de tal variável, chegando, em 2004, a ser de 1306.510 milhões de euros. Os anos seguintes são caracterizados por uma diminuição da despesa total, quando comparada com a constatada em 2004, salvo em 2008, em que foi atingido um novo máximo de 1317.102 milhões de euros. 2012 marca um novo máximo da variável de 1533.094 milhões de euros, sendo que os dados provisórios de 2013 permitem vislumbrar um aumento significativo, que situa a despesa total em 2368.748 milhões de euros. A estrutura da despesa total modificou-se parcialmente ao longo dos anos em apreço, embora continue a ser maior o peso das despesas correntes, comparativamente com o das despesas de capital. Em 1983, as despesas correntes representavam, aproximadamente, 52,55 % da despesa total, sendo de cerca de 62,12 % em 2012, enquanto o peso das despesas de capital variou de 33,33 % para 37,79 % no mesmo período. Analisando as componentes que conformam cada um dos agregados da despesa, é possível constatar o peso significativo das despesas afetas ao pessoal. As mesmas cresceram cerca de 24,43 vezes entre 1983 e 2012, chegando a tomar o valor de 375.070 milhões de euros, o seu valor mais elevado, em 2009. Relativamente às despesas de capital, a rubrica que se apresenta com maior relevância é aquela que diz respeito às aquisições de bens de capital, embora em 2012 se tenha verificado uma situação na qual a despesa referente aos ativos financeiros, e que em si engloba as operações financeiras com a aquisição de títulos de crédito e com a concessão de empréstimos e subsídios reembolsáveis, foi superior à referente às aquisições de bens de capital. Não obstante, não é possível subestimar a evolução desta última rubrica, já que em 1983 a mesma tomava o valor de 2.422 milhões de euros, enquanto em 2012 o mesmo era de 217.947 milhões de euros, o que representa um aumento de cerca de 89,99 vezes. Em 1983, representava 2,18 % da despesa total, e em 2012, 14,22 %. Para efeitos da análise efetuada anteriormente, foram consideradas as despesas e as receitas orçamentais executadas afetas ao subsector do Governo Regional da Madeira, por permitir uma análise temporal mais ampla. O saldo efetivo, que reflete a diferença entre as receitas e as despesas efetivas, permite verificar a relação entre ambas as variáveis. Entre 1977 e 2012, o saldo foi negativo, com exceção dos anos: 1977, com 1896 milhões de euros; 1989, com 167 mil euros; 1992, com 1694 milhões de euros; e 2005, 2006 e 2007, com um saldo de 1302, 1070 e 1105 milhões de euros, respetivamente. Os valores deficitários mais importantes, pela expressividade que assumiram, foram os constatados nos anos: 2012, com as despesas a superarem em 491.703 milhões de euros as receitas; 2008, quando o saldo efetivo foi de -255.113 milhões de euros; e 1990, em que o diferencial entre as receitas efetivas e as despesas efetivas foi de -220.349 milhões de euros. O saldo efetivo calculado não inclui a utilização do produto da emissão de empréstimos, nem os encargos com a amortização da dívida pública.   Alberto Vieira  Sérgio Rodrigues (atualizado a 30.12.2016)

Economia e Finanças História Económica e Social

berredo, antónio pereira de

O governador António Pereira de Berredo ficou cativo em Alcácer Quibir e participou depois na Invencível Armada, onde foi cabo de 10 galeras. No entanto, embora fosse  um militar experiente, teve grandes problemas com o pessoal do presídio do Funchal, sobretudo devido às dificuldades de pagamento, a que se acrescentam vários pequenos problemas com corsários ingleses e franceses. Os problemas do presídio de S. Lourenço ficaram patentes na visitação do Santo Ofício, a primeira que ocorreu na Madeira e que o governador acompanhou de perto, mas de que não resultaram especiais processos. Data da sua vigência como governador a instalação da fundição em S. Lourenço. Palavras-chave: corso; governo filipino; Invencível Armada; organização militar; Santo Ofício. O reinado de Filipe II (1527-1598) foi marcado, na sua última fase, pelo desastre da Invencível Armada, funesto acontecimento que deixou profundas marcas na Península Ibérica e comprometeu ainda mais a manutenção e a defesa do Império português, então em franco declínio. O Rei, ainda príncipe, tinha-se casado em 1553 em Inglaterra, mas, com o falecimento da Rainha Maria Túdor (1516-1558), não foi possível juntar as duas Coroas. A situação religiosa da Inglaterra era uma profunda afronta ao catolicismo hermético da Península Ibérica, pelo que Filipe II queria, a todo o custo, representar a voz e o poder capazes de abater o foco protestante que ali se instalara e pretendia difundir-se. Essas razões, bem como a atuação dos corsários ingleses, principalmente de Francis Drake (1540-1596) e de John Hawkins (1532-1595), que constantemente atacavam a navegação portuguesa e espanhola no Atlântico e ambas as faixas costeiras do mesmo oceano, levavam a que a Inglaterra fosse uma das preocupações da Coroa filipina. Aumentava o poderio naval inglês e o refúgio de D. António, prior do Crato (1531-1595) (Crise sucessória de 1580), em Inglaterra, a partir de 1585, que ainda aumentavam mais os receios da Coroa filipina. Por outro lado, o suplício infligido à Rainha católica Maria Stuart da Escócia (1542-1587), que a Rainha Isabel (1558-1603) mandou executar a 8 de fevereiro de 1587, deu ao Monarca ibérico o pretexto final para uma intervenção alargada contra o poderio britânico. Neste quadro, o Rei organizou a mais poderosa Armada do séc. XVI, crendo-a invencível, mas à qual o destino, e não só, reservou um estrondoso fracasso. Em maio de 1588, concentrou-se em Lisboa uma Armada que possuía 130 naus, cujo comando foi entregue ao duque de Medina-Sidónia (1550-1615), que não tinha grande experiência marítima, encontrando-se nos restantes postos de comando nobres sem quaisquer conhecimentos de guerra naval. A Armada largou a 27 de maio de 1588, com nevoeiro e mau tempo, para o canal da Mancha, onde defrontou uma Armada inglesa mais ligeira e com navios muito mais manobráveis. Na noite de 6 para 7 de agosto, após uma semana de desgaste, os ingleses, aproveitando ventos fortes e desfavoráveis para os grandes galeões ibéricos, lançaram uma série de pequenas embarcações carregadas de combustível inflamado. Esta ação obrigou os principais navios da Armada ibérica a dispersar e provocou incêndios noutros, fracionando todo o conjunto. Aproveitando a situação, os pequenos e rápidos navios ingleses infligiram uma memorável derrota à dita Invencível Armada. O cronista Pero Roiz Soares, em Lisboa, refere que “desta maneira se perdeu tão grande máquina, sem se salvar quase nada, nem dela tornar galeão, nau, nem navio, nem coisa que prestasse” (SERRÃO, 1979, 36-37). A Madeira concorreu com pessoal para esta aventura, embora não haja na documentação madeirense coeva dados sobre a mesma participação. Em Ensaios Históricos da Minha Terra: Ilha da Madeira, escreveu Artur Alberto Sarmento (1878-1953) que D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), descendente de Zarco (Melo, D. Francisco Manuel de), nas suas Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa (1660), refere a participação do galeão S. Filipe, com 28 peças de artilharia, nesta Armada, sob o comandado de Manuel Dias de Andrade (1580-1638), que foi depois mestre-de-campo, aditando que a guarnição era composta por grande número de madeirenses. Referia ainda este autor que muitos nobres da Ilha embarcaram na Armada, como António Gonçalves da Câmara, filho de João Fogaça de Eça (c. 1550-c. 1620) (Eça, João Fogaça de), que fora governador da Madeira, mas que não tinha os seus nomes tão presentes como desejava (SARMENTO, 1946, 177). No entanto, a ação do S. Filipe e de Manuel Dias de Andrade refere-se ao desastre da Armada portuguesa de D. Manuel de Meneses (c. 1540-1628), relatado na “Epanáfora Trágica” de 1627 (MELO, 1660, 153-272). Não conhecemos diretamente as implicações deste desastre na Madeira. No entanto, uma informação dos livros do cabido da Sé atesta o facto de se ter passado por um mau momento na Ilha. Assim, em 1589, ordenou o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) a transferência “desta cidade para a serra, de toda a prata e demais ornamentos da Sé, por esperar a chegada dos ingleses que tinham ido a Lisboa. E foi a prata para Nossa Senhora do Monte e por não parecer estar segura, a tornaram a trazer aqui e foi para o Estreito de Câmara de Lobos com os ditos ornamentos. E depois para a vila da Calheta em seis arcas encoiradas e dali se tornou a trazer. E se despendeu em tudo com as bestas, carretos, fretes e outras despesas com a ida e a vinda e conserto das arcas ao todo” 3$495 reis (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fl. 178v.). Desta Armada de triste memória, foi para a Madeira o novo Gov. António Pereira de Berredo (c. 1550-c. 1614), que tinha ficado cativo em Alcácer Quibir e participara depois na “armada da perdição, onde fora cabo de dez galeras” (NORONHA, 1996, 49). Este experiente militar tinha prestado serviço como fronteiro em Tânger, onde estava em 1573, quando ali perdeu a vida o Cap. Rui de Sousa de Carvalho e ele uma vista, sendo depois comendador de Arganil e da Castanheira, na Ordem de Cristo. Era filho de António Lopes Homem e de Maria Pereira, sua mulher, sendo o pai figura próxima do secretário Miguel de Moura (1538-1600), que viria depois a integrar o Conselho de Regência (1593-1598) e que sucedeu ao cardeal e arquiduque Alberto de Áustria (1559-1621) quando este saiu para se tornar governador dos Países Baixos. Não descortinámos, no entanto, os ascendentes familiares aos quais foi buscar o apelido Berredo. António Pereira de Berredo assumiu Governo da ilha da Madeira por patente de 30 de dezembro de 1590, tomando posse a 21 de agosto do seguinte ano de 1591. A carta vem transcrita com a data de posse na Câmara Municipal do Funchal, como “Carta de El-Rei Nosso Senhor a Esta Camara sobre o Geral Antonio Pereira”, informando: “Eu mando ora Antonio Pereira do meu concelho para ora me servir de geral dessa Ilha e superintendente das coisas da guerra dela” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 3, fl. 183v.), sendo o registo da provisão do capitão geral na Provedoria da Fazenda da mesma data. As coisas não lhe correriam muito bem no Funchal, como largamente se haveria de queixar para Lisboa a 29 de abril de 1592. Primeiro, todos os seus haveres tinham sido tomados por corsários, daí que os 2000 cruzados com que fora dotado para o Governo não lhe tenham chegado para as despesas. Depois, chegado à fortaleza, descobriu que os soldados do presídio não eram pagos há mais de um ano, acabando por fazer face às suas necessidades com roubos à população, pelo que pouco lhe obedeciam. Nesse aspeto, acabavam por ter a cobertura do Cap. João Carrião Pardo, situação a que a frouxidão do desembargador António de Melo, que tomara posse a 17 de agosto de 1591 e que desempenhava igualmente as funções de provedor da Fazenda, não ajudava. O governador, que já então não gozava de muito boa saúde, o que também se passava com sua mulher, Mariana de Portugal, queixava-se amargamente para Lisboa da situação do presídio, dos capitães castelhanos e portugueses. Refere numa carta que, em todo o tempo que fora militar, “não houve algum que me perdesse o respeito e que hoje, sem fundamento, me têm assim maltratado” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 104), e que se sentia tão desconsiderado, que temia francamente o futuro. Cita então um fidalgo recentemente chegado ao Funchal, Simão de Atouguia (1552-?), neto de João Fernandes de Amil e sobrinho de Manuel de Amil, tesoureiro das fortificações e depois escrivão de guerra, com quem já teria tido problemas em Tânger, e o próprio capitão castelhano João Carrião. Deste capitão, diz o governador que tinha sofrido “alguns desatinados termos e muitas desordens, a que se com brevidade não acudira, seriam causa de muitos males”. E acrescenta: “Este capitão não entrou nesta fortaleza, nem tratou de mim em coisa alguma e confesso a Vossa Majestade, que me receio dele pela grande natureza que tem de fazer conluios e folgar com novidades” (Ibid.). Por outro lado, dava as melhores referências do tenente do presídio, Luís de Benevides, embora com a situação vigente dos pagamentos pouco o pudesse ajudar. Em face da situação, o governador propõe nesta carta “que destas duas companhias se fizesse uma só, e sendo assim, nesta fortaleza se podiam alojar, e seria menos gasto, e os donos das casas que ora servem de quartel receberiam nisso grande esmola e mercê” (Ibid.). Nesta carta, o governador conta também o sucedido com a Armada que se deslocava para a Índia e que incluía o célebre galeão S. Pantaleão. Os navios tinham passado na Madeira um pouco dispersos, o que levou a que uma urca fosse tomada por três navios ingleses. Na urca, seguia Gaspar de Figueiredo, ouvidor-geral da Índia, que os corsários colocaram em terra, na ilha do Porto Santo. Os corsários tinham tentado negociar com o governador da Madeira a vida do ouvidor e do mestre dessa urca, tal como as mercadorias e a restante gente que seguia no navio, ameaçando levar tudo para o Norte de África (Berberia, como se cita) se não acedessem aos seus pedidos. O governador recusou-se a negociar, com base na gente do Porto Santo, que se encontrava em armas, pronta a defender a ilha, e por ter sido informado de que essas naus inglesas deveriam fazer parte dos navios de Francis Drake e do conde de Cumberland (1558-1605), que em 1589 saqueara a vila Horta nos Açores e que António Pereira conhecia da Invencível Armada. A carta termina por, mais uma vez, solicitar a “mercê de licença para me poder ir a minha casa” (Ibid.), no que não foi atendido. A 5 de setembro do mesmo ano de 1592, o governador voltou a escrever para Lisboa, dando conta da maneira como se resolvera o assunto dos corsários ingleses no Porto Santo e das aquisições de pólvora e de mosquetes. A pólvora destinava-se aos exercícios de barreira efetuados todos os domingos e controlados pelo governador, sargento-mor e capitães entertenidos, ou seja, sem comando de companhia (Comando militar). Nesta carta, descreve alguns incidentes ocorridos na Madalena do Mar, onde se fizera um exercício de fogo de barreira no dia 28 de agosto. O governador tinha ido acompanhado de Lisboa pelo Cap. Pero de Faria, adjunto para assuntos militares que, na Madalena, tinha tentado prender os vários negligentes do serviço de vigias e alardos. Os populares tinham então apedrejado o Cap. Pero de Faria e um dos seus criados, o qual “feriram muito mal, de cima dumas rochas, onde se fizeram fortes” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 105). Esta carta dá ainda parte do movimento de navios no mar da Madeira, com a passagem de vários navios do porto de Marselha, que tinham ido comerciar açúcar em Cabo de Gué (Marrocos) e que haviam informado da presença de cerca de 12 navios ingleses também nesse comércio. O governador tinha apresado, a 23 de agosto, um desses navios de Marselha, uma setia, barco comprido, afilado de boca aberta, de velas e remos, extremamente rápido. Para que não pudesse sair do porto, apreendera-lhe as três velas grandes, pensando que assim não se poderia fazer ao mar. Apesar dos pedidos, Lisboa manteve o governador e as duas companhias do presídio. Assim, D. António Pereira, como começa a ser referido, teve de reformular a Junta Militar criada pelo conde de Lançarote, D. Agustín de Herrera y Rojas (1537-1598) (Lançarote, conde de), também chamada sala de Governo, dividindo-a ao meio e só reunindo com dois capitães de cada vez. Este órgão era formado pelos quatro capitães das ordenanças, para além do comandante da guarnição da fortaleza, nessa altura o Cap. Luís de Benevides, dada a saída em finais de 1588, ou princípios de 1589, do Cap. Juan de Aranda. Este órgão não tinha sido muito desenvolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da), se é que este alguma vez o reuniu. Efetivamente, parece que teria tido razões para isso, pois com o novo governador estes elementos acabaram por se envolver em intrigas várias, que incluíram o próprio D. António Pereira e que levaram a uma alçada do licenciado Pero de Alfaro, e depois a outra, presente no Funchal a 29 de agosto de 1594, presidida por Miguel de La Plaza. A primeira alçada derivou de queixas e arbitrariedades dos capitães castelhanos com os pagamentos recebidos pela Fazenda, mas a segunda deve ter-se deslocado à Ilha também motivada pelo escândalo causado pela visitação de 1592, que envolvera alguns dos militares da guarnição castelhana, embora por razões que posteriormente seriam consideradas ridículas. O Funchal foi visitado pela primeira vez por um oficial do Santo Ofício, Jerónimo Teixeira Cabral (c. 1540-1614), depois bispo de Angra e, sucessivamente, de Miranda e de Lamego, visitação que ocorreu em 1591. A visitação envolveu um prolongado processo contra os cristãos-novos e acabou por envolver também um quantitativo populacional importante, principalmente do Funchal. Assim, acabaram por se ver envolvidos com a Inquisição muitos dos militares do presídio castelhano estacionado na fortaleza de S. Lourenço, inclusivamente alguns dos oficiais superiores, como o Ten. Alonso de Segura, natural de Castelo Branco, da companhia do Cap. Luís de Benevides, e o próprio Cap. João Carrião Pardo, da outra companhia. Nesta visitação, foram ainda envolvidos os soldados Alonso de Vila Real, natural de Castro Monte; Belchior Simões; Francisco de Velasco; Garcia Sanches, das Astúrias; Jerónimo Lopes; João Carrilho, de Aguilar de Campo; João de Gambôa, natural de Escoitia, no reino de Biscaia, Guipúscua; João Rodrigues, de Badajoz; e Pedro Sans, todos da companhia de Luís de Benevides. Da companhia do Cap. João Carrião Pardo, foram envolvidos os soldados Afonso Gomes de Segóvia; Francisco Ortiz; Miguel Fernandes; Diogo Lopez, mosqueteiro, natural de Valladolid, e Roque de Penafiel, também de Valhadolid. No entanto, tratou-se tudo de pequenos delitos incluídos nas preposições, geralmente denunciados por camaradas da mesma companhia, que alguns – como Belchior Simões – nem confessaram, acabando todos por ver os seus processos despachados no Funchal. Passando em revista estes processos, ressalta, essencialmente, o isolamento então vivido por esses soldados do presídio castelhano e até uma certa má vontade contra os mesmos por parte da população civil. O principal processo envolve o soldado Pedro Sans, já citado, e uma série de companheiros. Em linhas gerais, estando alguns soldados na igreja do Colégio, no Funchal, a assistir a uma prédica do P.e Lopo de Castanheta, aliás escrivão da visitação, estes murmuraram ao ouvir o pregador referir que os soldados eram maus porque haviam feito mal a Jesus. Teriam então murmurado os soldados que maus eram os soldados romanos, pois eles, castelhanos, eram cristãos e bons, e nunca fariam mal a Jesus. Tal bastou para de imediato serem presos no aljube da Sé. No complicado processo que se seguiu, foram chamadas, ou apareceram a depor, as mais diversas pessoas, algumas das quais, para além de se identificarem, quase não disseram mais nada. Depuseram alguns dos assistentes à cerimónia, como os ourives de ouro Pedro Gonçalves de Negro, cristão-novo, e Manuel Fernandes, cristão velho, o ourives de prata Salvador Rodriguez, de 33 anos, e o alfaiate Simão Gonçalves, entre outros. O processo acabou por ser despachado no Funchal e por não levar a especiais penas. Outro processo, praticamente só envolvendo soldados do presídio, roda à volta de uma partida de dados, jogada na casa da guarda da fortaleza Velha (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), em meados de 1591. O soldado Francisco Velasco, cansado de não ter sorte aos dados, disse num determinado momento, na febre do jogo, que renegaria a sua fé se não tivesse sorte na jogada seguinte. Não teve. Isso bastou para ser acusado do crime de proposição herética, ou seja, renegação da fé, pelos seus camaradas de jogo e para dar origem a mais uma série de processos. A notícia da partida do inquisidor foi dada pelo governador em carta de 29 de abril de 1592. O visitador Jerónimo Teixeira partira a 18 desse mês numa nau escocesa, viagem “bem negociada, da qual o capitão ficou aqui em terra, e é homem conhecido, segundo me dizem, e o preço foi muito moderado porque foi de caminho fazer sua viagem” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 106). Com os pedidos do governador e os casos da Inquisição, que não devem ter deixado de pesar nas preocupações de Lisboa e Madrid, ou com as alçadas que se deslocaram nesses anos à Madeira, voltou-se a tentar colocar em ordem os pagamentos das companhias do presídio do Funchal. Aparecem a receber os quantitativos, em Lisboa, a condessa da Calheta, Maria de Alencastre, na menoridade do filho, Fernando Martins Mascarenhas, mas que não seria o então bispo do Algarve (1548-1628) – que não era menor –, e Rui Dias da Câmara (c. 1542-c. 1600), seu primo por afinidade. As letras de câmbio foram passadas por João de Valdavesso Aldamar para Jerónimo de Aranda, pagador do exército. No ano seguinte, 1593, há mandados do Cap.-Gen. João da Silva (1528-1601), 4.º conde de Portalegre, para Jerónimo de Aranda fazer diversos pagamentos, nomeadamente ao Sarg.-mor Pedro Borges de Sousa e a António Bocarro. Nestes anos, há igualmente registo de pagamentos pontuais a diversos soldados que devem ter acabado o seu serviço na Madeira. Encontrámos elementos sobre Diogo de Naba, Garcia de Gusmão, que, porque culpado duma morte, não teve direito a soldo algum, e Fernando de Torres. Um dos pagamentos mais interessantes foi o que se fez a António Bocarro, de 1.600$000, recebido por Manuel Bocarro a 8 de janeiro de 1592 e sancionado por mandado do Cap.-Gen. João da Silva. Ora o quantitativo é francamente elevado para ser um simples soldo, devendo tratar-se de uma obra de empreitada e envolver mesmo aquisições importantes de material. A família Bocarro foi uma das principais famílias de fundidores portugueses, tendo tido o seu expoente máximo em Manuel Tavares Bocarro (at. 1625-1652), na fundição de Macau. Descendente de várias gerações de fundidores, o seu avô materno, o fundidor Francisco Dias, era irmão de João Dias e tio de Baltazar Gomes e António Gomes Feo, todos fundidores de artilharia nos inícios e meados do séc. XVI. Este António Bocarro, a ser membro da mesma família, em princípio ter-se-ia deslocado ao Funchal em finais do 1591 para preparar a fundição de S. Lourenço, que sabemos a laborar alguns anos depois, embora, tanto quanto temos conhecimento, esta não tenha chegado a fundir bocas de fogo. O Gov. D. António Lopes Pereira de Berredo, como também depois aparece referido, entregou o Governo a 20 de abril de 1595, data em que tomou posse o novo Gov. Diogo de Azambuja de Melo (c. 1530-1599) (Melo, Diogo de Azambuja de). António Pereira, que, em 1592, no Funchal, se queixava de falta de saúde e desejava voltar para a sua casa no continente, ainda assumiria o lugar de capitão de Tânger, em agosto de 1599, substituindo Aires de Saldanha (1542-1605), que foi nomeado vice-rei da Índia, lugar que ocupou até setembro de 1605, quando foi substituído por Nuno de Mendonça (c. 1560-c. 1633). Em 1613, foi também enviado a Marrocos como inspetor das fortificações e com instruções para reformar parte das mesmas, intento localmente muito pouco aceite. Teria ainda sido nomeado para a Índia com o governo da parte do Sul, a primeira sucessão do Estado e outras mercês, mas nada aceitou, dada a avançada idade. Deve ter falecido em 1614.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

História Militar Personalidades

azevedo, joão da costa e ataíde

João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho (c. 1650-1704) tinha sido capitão de Infantaria dos familiares de Lisboa e mais tarde do terço da Armada, tendo tido patente de governador e capitão-general da ilha da Madeira em março de 1701. Uma das principias preocupações desta época era a das salvas, face a alguma anarquia que havia nas inúmeras armas estrangeiras que entravam no porto do Funchal, que foi um dos assuntos especificamente regulado. Este governador teria tido problemas com o bispo D. José de Sousa Castelo Branco, que o cronista Henrique Henriques de Noronha depois tentou distorcer. Por razões que desconhecemos, veio a ocorrer uma sedição em S. Lourenço, onde teriam tentado assassinar o governador e o juiz de fora da câmara, estando envolvidos um dos capitães de artilharia e o provedor da Alfândega. Foi enviado um desembargador para investigar a situação, mas o governador faleceu antes do desembargador chegar. Palavras-chave: Alçadas; Armadas; Devassas; Relações institucionais; Salvas; Sedição. João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho (c. 1650-1704), de seu nome completo, era filho de Gonçalo da Costa Coutinho – que servira na armada da Costa e tinha participado na fatídica armada de D. Manuel de Meneses (Meneses, João de, e Pereira, Manuel), de 1637 – e de D. Isabel de Ataíde e Azevedo, filha única e herdeira de D. João de Ataíde e Azevedo, capitão de cavalos e comissário da cavalaria da província do Alentejo. O novo governador tinha sido capitão de Infantaria dos familiares de Lisboa e depois do terço da Armada. Teve patente de governador e capitão-general da ilha da Madeira a 1 de março de 1701, tomando menagem a 6 de abril e posse, no Funchal, a 12 de junho desse mesmo ano, substituindo o mestre de campo dos auxiliares de Lisboa, D. António Jorge de Melo (c. 1645-1703) (Melo, António Jorge de). Nesta época, um dos principias assuntos de preocupação dos governadores – e que foi um dos especificamente regulados – era o das salvas, face ao aumento quase exponencial de armadas de outras nacionalidades no porto do Funchal. Nesse quadro, quando o novo governador veio para a Ilha, trouxe, com data de 25 de janeiro de 1700, o regulamento de salvas que tinha sido enviado ao seu antecessor e que, entretanto, não teria sido registado. O regimento começa por referir a obrigatoriedade de salvas, mesmo em relação às embarcações inglesas e francesas, “que por vezes não usam” esse tipo de cumprimento. Responder-se-ia com igual número de salvas aos navios de capitanias reais, com menos uma aos navios almirantes e com menos duas aos restantes. Aos navios suecos e dinamarqueses, que não salvavam com números certos, “pois tanto salvam com um tiro, como com quatro ou seis” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 245v.), responder-se-ia sempre, mas com menos um tiro, caso salvassem com vários. As boas relações entre os governadores e os bispos do Funchal eram essenciais para o funcionamento geral das instituições insulares, como aliás referira um alto funcionário da corte de Lisboa, que pensamos ter sido António de Freitas Branco (1639-c. 1700), madeirense e desembargador da Casa da Suplicação, quando o anterior governador, António José de Melo, solicitara informações “de como se devia portar o governador [...], para fazer bem a sua obrigação, e dos interesses que tinha”. Especificava o informador que o novo governador deveria, logo à chegada, visitar o bispo, com quem, em princípio, deveria manter as melhores relações possíveis, pois nisso “consiste todo o sossego da terra e a sua quietação” (BNP, Coleção Pombalina, cód. 526, fls. 275-282). Deveria mesmo haver uma específica atenção a tudo o que se relacionasse com o prelado diocesano, não permitindo que na sua presença se murmurasse a seu respeito e, no caso de isso acontecer, deveria repreender-se asperamente quem o tivesse feito. Acontece, porém, que terá havido alguma desarmonia entre estas duas autoridades e, tendo o bispo, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740) (Castelo Branco, José de Sousa), solicitado que o governador colocasse homens da milícia das companhias de ordenanças do Funchal às suas ordens, João da Costa de Ataíde recusou-se a aceder ao pedido e, depois de enviar o assunto ao Rei D. Pedro II (1648-1706), teve o seu apoio expresso em alvará régio, emitido a 15 de janeiro de 1703. As posições devem ter-se extremado e para isso deverá ter contribuído o arcediago da Sé do Funchal, António Correia de Bettencourt (1664-1725), sucessivamente promovido por este prelado e irmão do cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de). Assim se explica a defesa do bispo e, acrescente-se, do irmão, que levou Noronha a escrever que, em 1703, D. José de Castelo Branco, “em razão do ofício de bom Pastor, teve algumas dissensões com o governador João da Costa de Ataíde e com o provedor da fazenda real, o desembargador Manuel Mexia Galvão, de cujos procedimentos se queixou a el-rei D. Pedro II”. O Rei enviou então um sindicante ao Funchal, “para que chamando o dito Provedor à Câmara, lhe estranhara corretivamente os seus procedimentos, fazendo-o assim saber ao dito Prelado. Tudo consta da provisão passada a sete de janeiro de 1704” (NORONHA, 1996, 127-128). Ora, o que consta da provisão datada de 7 de janeiro de 1704 não é, contudo, isso – e envolve inclusive algo mais grave: os Noronha passam a estar explicitamente envolvidos nos quesitos a serem investigados pelo desembargador. Em finais de 1703 terá havido uma sedição “no salão da Índia da fortaleza de S. Lourenço”, salão de que não temos qualquer outra informação, “e uma conspiração que intentaram fazer os soldados”, “tentando tirar a vida” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 245v.) ao governador e ao juiz de fora da câmara, então António de Macedo Velho. No atentado ao governador teria estado envolvido o capitão de artilharia António Nunes, que imediatamente a seguir à sedição se ausentou do Funchal (Artilharia), tal como o provedor da Alfândega. Por causa desta sedição, deslocou-se ao Funchal, com poderes excecionais, o desembargador Diogo Salter de Macedo (1654-c. 1730), com provisão passada em Lisboa, a 7 de janeiro de 1704, que se apresentou na Madeira a 9 de junho desse ano (Alçadas). Em prol da correção das suas averiguações, dever-se-ia fazer sair da cidade o governador, João da Costa de Ataíde, “em distância de dez léguas, para que não fosse, com a sua presença e poder, assistindo” às averiguações, interferir nas mesmas. Nas ordens do desembargador vinha expresso: “e na mesma embarcação em que fores tirar esta devassa, voltará o provedor da fazenda Manuel Mexia, por não ser conveniente que fique na Ilha depois da vossa chegada, para se não dar tempo a negociações, e por ser o dito Provedor da Fazenda envolvido em mais suspeições” (Ibid.). As questões em causa terão tido uma significativa gravidade e envolvido também o bispo, pois ficou escrito no regimento do desembargador: “E a queixa contra o Bispo deverá ser queimada, para dela não ficar nada, nem memória, e disso deverá ser dado conhecimento ao Bispo, para o mesmo saber como o Rei e as suas Justiças tratam semelhantes casos” – o que não foi aquilo que Henrique Henriques de Noronha acabou por escrever. Neste caso, havia ainda queixas contra a família Noronha, a que pertencia o arcediago, e contra a família do vigário geral da Diocese, e ainda se encontrava envolvido o juiz de fora da câmara do Funchal, “a quem [os soldados] fizeram uma sátira difamatória” (Ibid.). Os autores do Elucidário Madeirense seguem de perto as opiniões de Noronha, embora não deixando de salientar ter sido este bispo “estrénuo defensor dos privilégios e regalias de que gozava a Igreja” (SILVA e MENESES, 1998, I, 260). Sobre o governador limitam-se a dar a sua posse e falecimento. As ordens dirigidas ao desembargador e corregedor Salter de Macedo foram passadas em janeiro, mas o mesmo só se apresentou na Ilha em junho, pelo que desconhecemos totalmente o que teria conseguido averiguar. Entretanto, já tinha falecido no Funchal o Gov. João da Costa Ataíde, a 8 de março, e já tinha tomado posse Duarte Sodré Pereira (1666-1738) (Pereira, Duarte Sodré). O novo governador tinha sido nomeado em novembro de 1703, “havendo respeito a desobrigar” João da Costa de Ataíde, referindo-se os merecimentos dos anteriores serviços e ainda “por [ser] quem ele é”, conforme vem expresso na carta patente de Sodré Pereira (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fls. 233-253v.), conforme vem expresso na sua carta patente, parecendo que em Lisboa ainda se não havia tido notícia da sedição. No entanto, o Gov. Duarte Sodré Pereira demorou-se algum tempo em Lisboa, decerto por questões oficiais, pois só em março de 1704 foi nomeado para o Conselho de Estado, chegando ao Funchal quando o anterior governador já tinha falecido. O Gov. João da Costa de Ataíde foi sepultado na igreja do Colégio da Companhia de Jesus, como aconteceu sempre que um governador faleceu no Funchal e “foram depois levados os seus ossos a Lisboa” (NORONHA, Ibid., 58). Não se casou nem deixou descendência, sucedendo na casa de seus pais o irmão Gaspar da Costa de Ataíde, sucessivamente capitão de mar e guerra, sargento-mor de batalha, fiscal da Armada, alcaide-mor de Sortelha, que tinha passado à Índia em 1701, por capitão-mor das naus daquele Estado, mas não constando também descendência do mesmo. Duas das irmãs foram freiras em S.ta Clara de Lisboa, outra morreu ainda jovem e D. Leonor Maria de Ataíde casou-se com Sebastião de Carvalho e Melo (c. 1625-1719), sendo avó do futuro ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), sucessivamente conde de Oeiras e marquês de Pombal.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

História Militar Personalidades

artilharia

O armamento pesado de fogo foi fulcral na expansão portuguesa, chegando Portugal a produzir do mais evoluído material de artilharia entre os meados do séc. XVI e os meados do seguinte, não só em Lisboa, mas também no Oriente, nomeadamente Cochim, depois em Goa, Campanel, Jafanapatão e em Macau. Temos poucas informações sobre a sua inicial existência e possível produção na Madeira, que não teria passado de experiência; no entanto, Fernão Lopes de Castanheta refere que, com a chegada das armadas portuguesas ao golfo Pérsico e o desenvolvimento das primeiras instalações construídas, ou seja por volta de 1507, houve que recorrer não só a artífices estrangeiros, mas também a um madeirense, citando-se nos primeiros trabalhos da fortaleza de Ormuz “quatro fundidores de artilharia, dois de artilharia de metal e dois de artilharia de ferro, e três eram gregos e um português mulato e natural da ilha da Madeira” (CASTANHETA, II, 1933, 362). A passagem contínua das armadas portuguesas pelo porto do Funchal, inclusivamente com especialistas de outras nacionalidades, e.g., em 1547, o lendário aventureiro e artilheiro alemão Hans Staden (c. 1525-c. 1579), levou à circulação pela Madeira de todo esse tipo de armamento e de pessoal com o mesmo relacionado. A primeira referência à presença de artilharia na Madeira aponta para o último quartel do séc. XV, citando Gaspar Frutuoso que João Gonçalves da Câmara (c. 1417-1501), 2.º capitão do Funchal, entre outras façanhas bélicas, fez frente a “uma grande armada de castelhanos de muitas velas, com muita gente”, que tentou atacar a praia da vila. Mesmo tendo em conta que se tratava de um cronista açoriano a escrever em Ponta Delgada 100 anos depois dos acontecimentos, e sem nunca ter ido à Madeira, Frutuoso faz notar que “não havendo naquele tempo mais artilharia na terra que um trabuco”, com essa bombarda somente e “com o seu esforço, com que animava a gente”, não só defendeu a Ilha, mas antes “fez muito dano aos navios dos castelhanos e os afugentou, sem ousar nenhum deitar gente em terra” (FRUTUOSO, 1968, 222). Estas bombardas devem ter vindo para a Madeira depois de 1477, quando a infanta D. Beatriz ordenou a montagem dos postos alfandegários, pois existem informações do envio de idêntico armamento para a capitania de Machico, que, mais de 100 anos depois, em 1595, segundo se queixa o mestre-das-obras reais Mateus Fernandes (c.1520-1597), ainda não estava sequer montado. Também há referências a outras bocas-de-fogo na ilha, como a artilharia utilizada, em 1531, nas complicadas questões da Lombada do Arco da Calheta entre elementos das famílias Câmara, Abreu e Esmeraldo (um dos elementos da família Câmara assediou uma das irmãs Abreu, que vivia com a irmã na Lombada dos Esmeraldos, tendo-se as três famílias envolvido em conflito aceso), onde aparecem referidos dois falcões pedreiros e algumas bombardas. Quando do ataque corsário francês de 1566, temos também informação quanto ao equipamento da fortaleza: oito grandes peças de bronze, por certo as enviadas em 1529. O cronista Gaspar Frutuoso refere que algumas delas teriam cerca de 1500 quilos, “145 quintais” e que eram “das maiores que havia no reino”; ainda nesse ataque, existem referências a falcões pedreiros. Um dos pormenores curiosos deste texto de Gaspar Frutuoso é a descrição dos trabalhos de Gaspar Borges, “engenhoso artífice em metais”, que desencravou duas das grandes peças da fortaleza, “grandes e grossas e que nenhumas havia maiores no reino”, como voltou a escrever. No dizer do cronista, os corsários tentaram arrastar as peças para o calhau da praia, mas dado o seu peso e não as podendo levar, deram-lhes a mesma sorte das restantes, “atupindo-as e encravando-as pelos buracos das escorvas” (Ibid., 327-386). A organização da artilharia começou por ter alguma independência, dado ser constituída por artífices especialmente contratados que muitas vezes eram também fundidores e construtores e que, localmente, tinham outras profissões. Nesse quadro, a instituição da Nómina dos Bombardeiros deve datar de 1515; a organização manteve-se mesmo depois de 1675, quando a função passou ao foro exclusivamente militar e os bombardeiros passaram a ser soldados regulares e designados por artilheiros. As primeiras bocas-de-fogo do séc. XVI devem ter sido transportadas em 1529 para o Funchal, com o fim de equipar a futura fortaleza (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), quando era provedor da alfândega Cristóvão Esmeraldo. As designações das várias peças de artilharia (“peças”, no sentido em que na época moderna começam a ser fundidas por inteiro, enquanto até então o eram por partes), como culatra, tubo, etc., também são muito díspares, tendo-se perdido, inclusivamente o significado de algumas designações. Começaram por ser simplesmente bombardas e canhões pedreiros, quando disparavam bala de pedra, passando depois a ter designações de animais mais ou menos fantásticos: e.g., as grandes peças foram nomeadas basiliscos, dragões, serpes, etc., as médias, falcões e falconetes, e as de longo alcance, com tubo mais longo, colubrinas. As de grande calibre e que faziam tiro curvo, quase sempre se designaram por morteiros. A progressiva sistematização da designação através do tamanho e relação do calibre e comprimento do tubo data dos meados do séc. XVII, passando as colubrinas a ser designadas por peças, e as de médio e curto alcance por canhões ou meios canhões e, depois, obuses. Obus. Bartolomeu da Costa. 1770. MM Madeira A reformulação da situação dos bombardeiros, civis de profissões várias, que pontualmente exerciam essa função, aparece a partir de 1640, com a aclamação de D. João IV e a progressiva e lenta constituição dos novos corpos militares permanentes.             Boca de fogo naval inglesa - 1780. GAG2 Funchal     Boca de Fogo inglesa do Porto Santo   A primeira ordem veio logo a 15 de setembro de 1641, com a reforma da companhia do presídio e com a indicação para se proverem as fortalezas “dos necessários artilheiros, para serem todos pagos à maneira das fortalezas do reino” (BNP, Index Geral…, fl. 11). De 1648 foi depois a ordem geral de reforma do material de artilharia existente, ordenando-se ao Gov. Manuel Lopo da Silva que se enviassem para Lisboa todas as peças e falcões das fortalezas da Madeira que estivessem rebentadas, para se fundirem novamente e então serem reenviadas para a Ilha. Em setembro de 1689, foi nomeado o Cap. António Nunes como capitão da artilharia da ilha da Madeira, referindo-se que até então fora condestável dos bombardeiros do Funchal. A artilharia para a Madeira foi sendo enviada de Lisboa, embora sempre com alguma dificuldade, chegando os governadores a optar pela sua aquisição em Londres, como aconteceu, pelo menos com o Gov. Duarte Sodré Pereira, nos primeiros anos do séc. XVIII, de acordo com o que o mesmo escreveu e mandou lavrar nas lápides das fortificações construídas durante o seu governo (Fortes) Este processo manter-se-ia com os governadores seguintes, como José Correia de Sá, que idêntica inscrição mandou colocar na fortaleza de S. Tiago, tendo mandado ir de Londres, em 1767, 50 peças de artilharia para a mesma. A possibilidade de reutilização do bronze das bocas-de-fogo fez com que quase nenhuma peça de artilharia nesse material chegasse ao séc. XXI, ao contrário das de ferro, cujo material não é suscetível de reutilização. Tal facto ocasionou que pelas praias do arquipélago, e.g., como também por outras das ilhas e das costas do Atlântico, etc., existam milhares de antigas bocas-de-fogo de ferro abandonadas, algumas das quais foram reunidas no forte de S. José do Porto Santo ou no do Amparo, em Machico. Segundo as ordenações navais, estas bocas-de-fogo deveriam ser obrigatoriamente lançadas borda fora após 400 tiros, pois a sua manutenção a bordo poderia levar a que, em caso de perigo, pudessem vir a ser utilizadas, o que constituía um perigo maior para a guarnição que para o inimigo. A partir desse número de tiros, o ferro ficava propenso a estilhaçar-se, atingindo toda a guarnição. As peças incapazes para combate eram muitas vezes recuperadas para tiros de salva, utilizando cargas de pólvora muito mais baixas, o que, no entanto, não deixou de causar acidentes, como chegou a acorrer na fortaleza do Ilhéu, a 23 de fevereiro de 1731, quando se deu o rebentamento de uma das peças de ferro, “que se fez em migalhas”, matando um dos artilheiros (ARM, Governo Civil, liv. 418, fls. 17-19). Existe um Livro de Carga da Fortificação das fortalezas da Madeira, entre 1724 e 1733 e, em 1754, o Gov. Manuel de Saldanha de Albuquerque (1712-1771), depois 1.º conde da Ega e vice-rei da Índia, informava existirem 18 peças de bronze, 16 nas fortalezas do Funchal 2 nas de Machico, 125 de ferro “todas de diferentes calibres”, 7 “pedreiros de bronze e ferro para balas de pedra”, todos no Funchal, e 36 peças inúteis “que só servem para salvas”, também no Funchal. Existiam, entretanto mais de 7000 balas de artilharia “de diferentes calibres” nas fortalezas e mais de 20.000 nos armazéns (AHU, Madeira, doc. 47). No Museu Militar da Madeira (Museu Militar da Madeira), instalado na fortaleza de S. Lourenço, existe uma amostragem das mais expressivas peças de bronze de artilharia, quer de fabrico português, como do célebre engenheiro brigadeiro Bartolomeu da Costa (1731-1801), autor da fundição da estátua equestre do Rei D. José, em 1775, quer dos vários arsenais estrangeiros de que o país se subsidiou para a o seu abastecimento.   Rui Carita (atualizado a 05.01.2017)

História Militar

arguim

A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha ficaria dependente da Diocese do Funchal, que para ali nomeava capelão e ouvidor, sendo depois sucessivamente ocupada por Holandeses, Ingleses, prussianos e Franceses, até ser por fim abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios das antigas fortificações, com uma pequena povoação de pescadores-recoletores, sendo objeto de diversas lendas e narrativas. Palavras-chave: comércio; Descobrimentos; escravatura; feitorias fortificadas; tradição oral. Arguim é uma ilha na baía do mesmo nome, situada na extremidade norte da República Islâmica da Mauritânia, na costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprimento por 2 km de largura. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes. A ilha faz parte do Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona protegida, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas. Vista aérea do Banco de Arguim. Arquivo Rui Carita. A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa da costa ocidental de África (África Marrocos). Na sequência da passagem do cabo Bojador, em 1434, as embarcações portuguesas ao serviço do infante D. Henrique (1394-1460) prosseguiram para o Sul, passando ao largo da costa saariana e atingindo a costa da Mauritânia. Estas navegações, que de início se revelaram lucrativas, em virtude de atos de corso e de razias, chegaram ao golfo de Arguim na déc. de 1440; e.g., a caravela de Nuno Tristão (c. 1410-1446) tê-lo-á alcançado em 1441, embora outros navegadores ali tenham passado por esses anos, como Gonçalo de Sintra (c. 1400-1444) e Diniz Dias (há divergências entre os vários cronistas quanto à sua ordem de chegada). Em 1443, voltava àquela área Nuno Tristão, então já acompanhado de um mouro, dado como Sanhaja Berber, que servia de intérprete; aí, adquiriu 28 escravos, que levou para Lagos, no Algarve. É desse ano o pedido oficial de carta de corso do infante D. Henrique ao seu irmão D. Duarte (1391-1438), passando aquele a usufruir de 1/5 das capturas efetuadas – que, em princípio, pertenciam ao Rei –, pedido também posteriormente feito pelo infante D. Pedro (1392-1449). Banco de Arguim. Em 1444, a expedição de Lançarote de Lagos a Arguim, na qual participaram forças da Madeira e, provavelmente, o sobrinho de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), Álvaro Fernandes, conseguiria recolher 240 escravos. As relações da Madeira com estas navegações vão manter-se nos anos seguintes, tendo Álvaro Fernandes e Lançarote de Lagos, em 1446, a explorado a embocadura do rio Senegal e a área de Cabo Verde. Este navegador, que já comandara uma caravela de Zarco em 1444, dirigiu a expedição que em 1447 ultrapassou Cabo Verde e que se supõe ter atingido a ilha de Goreia. As relações da ilha da Madeira com este tipo de comércio e com esta área – Arguim, depois Cabo Verde, Guiné, Angola, etc. – vão manter-se nos anos seguintes. Na Furna de Arguim, como era por vezes chamada esta baía de recifes, ficava a ilha dos Coiros, principal centro de comércio de peles de toda a costa e, para o Sul, localizavam-se as ilhas das Garças, de Naar e de Tider. Serviram as mesmas, com mar bonançoso, para abrigo e repouso das naus. Por ali passaram madeirenses, como os da caravela enviada por Zarco até ao cabo dos Matos, com seu sobrinho Álvaro Fernandes, depois o genro do capitão do Funchal, Garcia Homem de Sousa, e Diogo Afonso, Denis Eanes da Grã, João do Porto e outros. Deve datar de cerca de 1445 a substituição da pirataria, com uma função simultaneamente económica e bélica, pelo comércio pacífico – ou, pelo menos, mais pacífico, dado não ser nessa altura possível fazê-lo sem armas na mão. Em 1444, já se procurava estabelecer o tráfico com os nómadas cameleiros do rio do Ouro, tendo cabido a João Fernandes, um colaborador próximo do infante D. Henrique, beneficiando das informações de Ahude Meimão sobre a localização das principais povoações e o interesse comercial da região, concretizar esses planos. Em 1445, aquele navegador foi responsável pela realização das primeiras operações comerciais com as populações muçulmanas daquela região, promovendo a aquisição de ouro, de goma-arábica e de escravos, em troca de tecidos e de trigo. Em 1447, iniciaram-se as relações com o Suz, em Marrocos – grande mercado de escravos, de ouro e de açúcar –, tentando o infante D. Pedro, ainda nesse ano, estabelecer a paz e manter relações comerciais com o Bori-Mali e com os jalofos, na área da Guiné. Poucos anos depois, por volta de 1454-1455, o italiano Luís de Cadamosto (1432-1488) (Cadamosto, Luís de) explica, nas suas memórias, a propósito do contrato da feitoria de Arguim, que, quando esteve ao serviço do infante D. Henrique, as caravelas costumavam ir armadas de Portugal ao golfo de Arguim, umas vezes quatro, outras mais, “e de noite desembarcavam” e saíam sobre as aldeias costeiras de pescadores, “e faziam correria pela terra”, de modo que prendiam esses “árabes, tanto machos como fêmeas e os traziam a vender em Portugal” (GODINHO, 1956, III, 125-126). Pontão. Antigo embarcadouro. A ilha de Arguim veio a configurar-se como um local privilegiado para o estabelecimento de um posto comercial fixo, dado situar-se numa região esparsamente povoada, mas próxima dos circuitos comerciais percorridos pelas caravanas mercantis que atravessavam o Saara, as quais frequentemente se aproximavam da costa, devido à abundância de sal na região. Sendo um território dotado de um bom porto e de água potável, era facilmente defensável pela vantagem que a sua situação insular oferecia face à previsível hostilidade das populações autóctones, sendo por isso escolhido para centralizar o comércio da costa africana. Entre 1454 e 1455, já se tinha efetuado um contrato por 10 anos, explicando Cadamosto que ninguém podia entrar no golfo para traficar com os locais, “salvo aqueles que entrassem no contrato” celebrado com a Coroa para esse comércio, no qual se incluía a “feitoria na dita ilha, e feitores, que compram e vendem àqueles árabes, que vêm à marinha, dando-lhes diversas mercadorias, como são panos tecidos, prata e alquicéis, que são uma espécie de túnicas, tapetes e sobretudo trigo, do qual estão sempre famintos, e recebem em troca negros, que os ditos alarves trazem da Negraria, e ouro Tiber” (Id., Ibid.). Acrescenta o navegador italiano que o infante fazia então levantar “uma fortaleza na dita ilha, para conservar este comércio para sempre; e por esta razão todos os anos vão e vêm caravelas de Portugal à ilha de Arguim” (Id., Ibid.). O castelo só seria terminado após o falecimento do infante, em 1461, sendo a capitania entregue a Soeiro Mendes de Évora, o vedor da construção, que viria a ter carta de 26 de julho de 1464, de D. Afonso V (1432-1481), a conferir-lhe, a si e aos seus descendentes, a capitania-mor da ilha. Saliente-se, no entanto, que o estatuto comercial de Arguim conheceu variantes. Assim, por volta de 1455, aquando da visita de Cadamosto, a feitoria era administrada por uma sociedade privada, que tinha obtido do infante D. Henrique esse monopólio por um período de 10 anos, provavelmente entre 1450 e 1460. Mais tarde, segundo o cronista João de Barros (1469-1570), Fernão Gomes da Mina (c. 1425-c. 1485), após ter assumido o mercado de exploração do comércio da Guiné, que dominou entre 1468 e 1474, conseguiu também obter o de Arguim, ao preço de uma renda anual de 100$000 réis. A área em torno de Arguim era habitada por berberes e negros islamizados, chamados “mouros” pelos Portugueses, sendo uma importante zona de pesca. Da parte portuguesa, esperava-se intercetar o tráfego do ouro que as caravanas transportavam de Tombuctu para o Norte de África; contudo, foi o comércio de escravos que mais prosperou, recebendo Portugal de Arguim, aproximadamente a partir de 1455, cerca de 800 escravos por ano, na sua maioria jovens negros, feitos prisioneiros durante razias conduzidas no interior do continente pelos líderes tribais da região costeira vizinha. No decurso do mandato de Fernão Soares como capitão e feitor, entre maio de 1499 e dezembro de 1501, obtiveram-se 668 escravos e 12.558 dobras e meia de ouro – moeda que, em 1472, valia 327 reais brancos, na razão 1$896 reais brancos por marco (cerca de 235 g de prata) –, sendo parte deste convertida em escravos, totalizando 840 indivíduos. O feitor seguinte, Gonçalo Fonseca, conseguiria somente 406 escravos em dois anos e meio, mas o que se lhe seguiu, Francisco de Almada, entre 1508 e 1511, ultrapassaria a cifra de 1500 escravos. Em segundo plano estava o importante comércio da goma-arábica, produto que a região produzia em quantidade significativa e com qualidade superior, que se adquiria em Arguim a preços muito atrativos. O território conquistado em Arguim passou então a assumir-se como um centro de comércio, estabelecendo ligações comerciais com os portos de Meça, Mogador e Safim (Safim), em Marrocos. Destes lugares provinham os tecidos, o trigo e outros produtos que, na feitoria de Arguim, eram trocados por ouro e escravos; as mercadorias eram transportadas pela rota que ia de Tombuctu até Hoden. A criação desta feitoria representou um ponto de viragem na expansão portuguesa, assinalando o início da política de construção de feitorias fortificadas, dotadas de uma guarnição militar capaz de as defender contra os ataques dos povos autóctones. Em 1487, foi fundada uma feitoria no interior do continente africano, na localidade de Ouadane (ou Wadan), e, na mesma área, foram feitas outras tentativas de fixação de feitorias, e.g., na região de Cofia e junto à foz do rio Senegal, todas goradas face à hostilidade das populações locais e à dureza do clima. Nos anos de 1505 a 1508, a guarnição do castelo de Arguim era composta de 41 indivíduos, 18 dos quais eram soldados e 5 marinheiros. O comércio da feitoria estava sob o controlo da Coroa, sendo os capitães nomeados pelo Rei, habitualmente para comissões de três anos. Tinham direito a arrecadar 25 % dos lucros do comércio realizado na feitoria, sendo assistidos por um feitor, que arrecadava 12,5 % daqueles, e por um escrivão assalariado, que recebia 20.000 réis na fase inicial dos trabalhos. Em finais de 1555, ou em princípios de 1556, a feitoria de Arguim foi atacada pelo pirata português Brás Lourenço e, em 1569, a guarnição tinha-se reduzido a 30 pessoas. A manutenção da guarnição de Arguim não era fácil, tendo de recorrer-se às vizinhas ilhas Canárias ou à Madeira, como aconteceu em 1513, quando era capitão de Arguim Fernão Pinto (que deve ter sucedido a Francisco de Almada, capitão entre 1508 e 1511, embora o seu nome não conste das listagens geralmente divulgadas, que referem apenas o Cap. Pero Vaz de Almada, em 1514-1515). O mestre do navio enviado às Canárias pelo capitão de Arguim acabou por aportar a Machico, tendo requerido ao almoxarife Antão Álvares a compra de diversos mantimentos – 30 moios de trigo, 20 quintais de biscoito e uma parte de remel (possivelmente o açúcar local) –, deixando como pagamento a João de Freitas (c. 1470-1533), executor das dívidas à Fazenda, seis escravos, marco e meio de ouro, e meia onça de ouro em pó e em pedaços, e tendo sido lavrada quitação com data de 3 de maio de 1513. Três dias depois, o mestre do navio São Miguel Fadigas entregava mais 78 dobras de ouro, em pó e em pedaços, para pagamento de novos mantimentos. Não se conhece qualquer descrição do castelo henriquino de Arguim, nem da sua reformulação na época de D. Afonso V, embora a carta de alcaidaria-mor refira ter havido então obras, nem também das remodelações da déc. de 80 do séc. XV, se bem que se saiba que, ao passar, em 1481, a monopólio régio, sob D. João II (1455-1495), o castelo foi aumentado. Arguim foi perdendo a sua importância ao longo dos anos seguintes, à medida que os interesses comerciais portugueses se transferiam para regiões localizadas a sul (e, depois, para a Índia). Desconhece-se a data em que Arguim passou a estar na dependência da Diocese do Funchal, mas julga-se ter isso ocorrido com o abandono de Safim, em 1541, de cuja Diocese deveria depender, embora não houvesse uma clara definição dos seus limites. A referência a Arguim como pertencente à Diocese do Funchal parece datar da bula do Papa Júlio III, de 1550, que separou da antiga Arquidiocese (Diocese e arquidiocese do Funchal) os territórios das novas dioceses dos Açores, de Cabo Verde, etc., que passaram à jurisdição eclesiástica de Lisboa. A referência à integração da ilha de Arguim na jurisdição do Funchal dá-se com o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), que recebeu a doação de Arguim, do seu castelo e do produto das pescas na costa de Atouguia e que, em 1601, nas Extravagantes que adicionou às anteriores Constituições Sinodais, refere que “dispondo os casos da sua jurisdição nela colocava Ouvidor Eclesiástico” (LEMOS, 1601, título 16, const. 2). Aliás, antes de ser meio-cónego da Sé, o cronista Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) foi vigário de Arguim, em 1567, na ausência do P.e António Fernandes, sinal de que a freguesia já existia e dependia do Funchal (embora pouco tempo ali estivesse, passando rapidamente a Lisboa e aí conseguindo a indigitação para uma futura eleição como meio-cónego da Sé do Funchal).   Voyages en Afrique- Asie-Indes orientales et occidentales-Jean Mocquet-1617 Arguim seria visitada por Jean Mocquet (1575-1617) (Mocquet, Jean), aventureiro francês, em 1601, na sua primeira viagem de recolha de objetos exóticos e curiosos, que lhe permitiu ocupar o boticário régio de Henrique IV (1553-1610) e organizar um gabinete de curiosidades (Colecionismo) nas Tulherias para o seu sucessor, Luís XIII (1601-1643). Jean Mocquet conta nas suas memórias que, na sua primeira viagem, em que visitou o Funchal, seguiu “o desejo que tinha há muito tempo de viajar pelo mundo: quis começar pela África”. Partira de Saint Malo a 9 de outubro de 1601, em La Syréne, que se destinava à Líbia (nome pelo qual se designava a costa marroquina à época e, assim parece, também as ilhas atlânticas e da Mauritânia), e que era um “navio carregado de sal e bem equipado de víveres e munições para a guerra” (MOCQUET, 1830, 27). A embarcação passou por diversas peripécias, chegando a ter de combater com vários corsários; passado o cabo de São Vicente, dirigiu-se ao Norte de África, e depois de dobrar o cabo Branco visitou a velha feitoria de Arguim. Conforme se usava à época (como referido), Jean Mocquet refere-se à região como “Líbia”, contando que “de toda a Líbia vão buscar água ao porto de Arguim”, que se situa sobre uma pequena ponta relevada, a seis léguas de cabo Branco. A fortaleza tinha então alguns soldados portugueses e um capitão. Mocquet menciona que os Portugueses eram amigos dos chefes da região, que não eram todos negros, havendo chefes brancos, mas que eram todos muçulmanos. Faziam comércio de plumas de avestruz e de peixe, “que aqui usam como moeda de troca” (Id., Ibid., 34). Mocquet já não refere o rendoso comércio de escravos e de ouro.     Arguim estava a entrar em franca decadência; embora periodicamente visitada pelos pescadores da Madeira e sob a jurisdição do bispo do Funchal, a sua situação militar era muito precária e a guarnição insustentável. A fortaleza de Arguim teve, em 1612, um projeto de reconstrução, a cargo do arquiteto-mor Leonardo Turriano (1559-1628), e elaborado com base nos dados que este recolhera quando estivera em idêntica função nas Canárias, entre 1588 e 1590, sendo muito provável que se tenha deslocado a Arguim. O projeto, no entanto, não passou do papel: não há registo de qualquer despesa ou movimentação de pessoal nesses anos.     A pequena fortaleza de Arguim acabaria por ser conquistada, em 1638, por forças holandesas e, alguns anos mais tarde, por forças inglesas, sendo posteriormente recuperada pelos Holandeses, até que, em setembro de 1678, foi arrasada por forças francesas, embora depois tenha sido pontualmente reconstruída pelos Franceses. Devem datar de meados do séc. XVII (de cerca de 1665) os dois desenhos flamengos de Johannes Vingboons (1616/1617-1670) que sobreviveram e que parecem representar já a remodelação de Arguim pelos Holandeses. Em 1685, estava quase abandonada, sendo então ocupada por tropas brandeburguesas, transformando-se Arguim na primeira colónia do principado de Brandeburgo. Em 1701, com a incorporação do principado no reino da Prússia, Arguim transitou para o controlo prussiano. Em 1721, perante o desinteresse da Prússia pelas suas colónias africanas, o território voltou à posse da França, momento a partir do qual se fazem muitas representações cartográficas e, inclusivamente, um levantamento planimétrico de Arguim, com Perrier de Salvert, a 8 de março de 1721.   Mapa de Arguim de Gerard van Keulen-1720   A praça seria novamente perdida para os Holandeses no ano subsequente, voltando todavia à posse dos Franceses em 1724, que ali permaneceram até 1728, ano em que abandonaram a ilha ao controlo dos líderes tribais mauritanos. Fez-se explodir a fortificação por ocasião da retirada, pouco devendo ter restado dela. A ilha regressou ao controlo francês nos princípios do séc. XX, quando foi incorporada no então protetorado da Mauritânia; em 1960, com a independência da Mauritânia, Arguim passou a fazer parte do território do novo Estado.       Teatro. A Ilha de Arguim, de Francisco Pestana Durante a sua conturbada história, a ilha foi sempre um dos centros do comércio de goma-arábica e, durante muitos anos, um importante local de caça de tartarugas marinhas e de outras atividades mais ou menos artesanais, em que estavam inclusivamente envolvidos pescadores madeirenses – isso justifica a existência de várias pequenas embarcações, quer no Funchal, quer em Câmara de Lobos, com o nome de Arguim. Embora alguns dos seus proprietários não saibam onde fica, e se tenham limitado a repetir os nomes que já os pais e avós tinham utilizado para as embarcações, subsistem lendas e narrativas populares sobre a ilha – que aparecia e desaparecia, que era o local para onde teria ido viver D. Sebastião, etc. –, que foram inclusivamente objeto de peças de teatro. Na época moderna, a dificuldade de navegação dos navios de algum calado nesta área, em razão dos bancos de areia e dos afloramentos rochosos, é patente no desastre ocorrido em julho de 1816 com a fragata francesa La Méduse, que transportava pessoal para a colónia do Senegal e que encalhou na região, sendo abandonada com grande perda de vidas. O acontecimento ficou imortalizado na obra Le Radeau de la Méduse (A Jangada da Medusa), do pintor francês Théodore Géricault (1781-1824), de 1818-1819. Arguim encontra-se ainda na base da fundação do Convento franciscano da cidade da Baía, no Brasil, como resultado da influência da lenda de S.to António de Arguim: nos inícios do séc. XVII, terá aparecido na costa brasileira, roubada por corsários franceses, uma imagem de S.to António, proveniente da antiga praça africana, pelo que o santo foi eleito padroeiro da cidade (padroado que perderia por proposta dos padres jesuítas, em 1686, passando para S. Francisco Xavier). Em suma: foi em Arguim que se localizou a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha foi sucessivamente ocupada por Portugueses, Holandeses, Ingleses, Prussianos e Franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios da antiga fortificação, tendo uma pequena povoação, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recoletores da etnia imraguen, sendo, para os madeirenses, provavelmente até aos inícios ou meados do séc. XX, um destino de pesca, e permanecendo no seu imaginário como uma antiga lenda. Pesacadores. Arguim. 2006   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017) Imagens: Arquivo Rui Carita

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O governo do Gen. Luís Beltrão de Gouveia e Almeida, nascido por volta de 1750, caracterizou-se por uma intensificação das dificuldades com as forças britânicas, que permaneciam na Ilha mesmo depois do retorno à soberania portuguesa e da assinatura dos acordos de paz com a França (Guerras napoleónicas; Ocupações inglesas). A época marcou o início de uma certa retração económica da Madeira no quadro do Atlântico, de que resultou também um menor interesse na posição estratégica da Ilha, pelo que os interesses ingleses e norte-americanos se transferiram para outros locais, como os vizinhos arquipélagos das Canárias e dos Açores. Acrescia que, com a presença das forças britânicas na Madeira, ficaram patentes uma série de problemas económicos e sociais e os atritos no relacionamento com a Igreja Católica, dificuldades que não deixaram de aumentar durante esses anos. O Gov. Pedro Fagundes Bacelar de Antas e Meneses (c. 1760-1813) (Meneses, Pedro Fagundes Bacelar de Antas e), após quatro anos de difícil governo, sofreu, a 4 de maio de 1813, “um ataque de paralisia” que lhe afetou o lado direito (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 3197-3198), ficando o governo entregue ao velho secretário João Marques Caldeira de Campos (c. 1760-1814), que estava em São Lourenço há 35 anos. A 4 de julho, o governador ainda mandou escrever que estava a recuperar e, optando por um período de recuperação em Lisboa, acabou por ali falecer a 1 de novembro seguinte. O Governo português, então no Rio de Janeiro, já a de 30 de janeiro de 1813 nomeara como governador o Ten.-Gen. Luís Beltrão de Gouveia e Almeida (c. 1750-1814), com patente de governador da Madeira e do Porto Santo por três anos. O tenente-general tinha foro de fidalgo da Casa Real e iniciou o seu notável percurso na Campanha do Rossilhão, para onde fora destacado em 1793, regressando em 1795, depois do que foi promovido a coronel. Em 1799, foi comandar as tropas de São Salvador da Baía, capital do Reino do Brasil, com a patente de marechal, assumindo logo funções de inspeção-geral. Regressado ao continente, foi promovido a tenente-general do Exército em 1805 e, no ano seguinte, nomeado governador da Beira, no âmbito de cujas funções ficava encarregado de mudar o quartel-general da praça de Almeida e o regimento de Penamacor para Viseu, seguindo depois com a corte para o Brasil. Luis Beltrão de Gouveia de Almeida. 1814. A 23 de abril de 1813, o Ten.-Gen. Luís Beltrão foi avisado para comparecer, a 27 seguinte, “às dez horas da manhã”, no paço do Rio de Janeiro, “para dar nas Reais Mãos” juramento de menagem pelo “governo de capitão da ilha da Madeira” (ABM, Governo Civil, liv. 200, fl. 4v.). O novo governador chegou ao Funchal a 7 de agosto – “depois de uma longa, mas feliz viagem” – e tomou posse no dia 10 seguinte na Câmara do Funchal, para a qual já no dia anterior tinha enviado a sua carta régia para transcrição (Ibid., liv. 202, fl. 1). Somente a 22 de março do ano seguinte, demonstrando já algum distanciamento de certas práticas anteriores, entrou como “irmão protetor e presidente” da Confraria de N.ª Sr.ª da Soledade do Convento de S. Francisco do Funchal (ABM, Governo Civil, liv. 235, fl. 7), coisa que os seus antecessores tinham feito quase logo após tomar posse.     Armas de Luís Beltrão de Gouveia de Almeida. 1814.   Chegado à Madeira, o novo governador tratou de montar o seu gabinete, pedindo a presença, como ajudante de ordens, do Cap. Joaquim de Freitas e Aragão, e, tal como os seus antecessores, comunicou imediatamente ao Rio de Janeiro as informações obtidas acerca da situação na Europa. Assim, a 10 de setembro, escrevia que “parece que os soberanos da Europa vão conhecendo à sua própria custa o despotismo da França”. Nessa altura, enviou para o Rio de Janeiro várias “folhas” inglesas, incluindo o periódico Star, de 21 de agosto, cuja leitura permitia depreender que Napoleão pretendia “vir a Espanha, reparar as perdas que fez seu irmão, e erros dos seus marechais”; Luís Beltrão rematava: “Agora, porém, com esta notícia do armistício roto, não lhe falta sarna com que se coce no Norte” da Europa (Ibid., liv. 202, fl. 2). A partir de 1812, desenvolveu-se na Ilha uma forte reação contra a presença inglesa, chegando mesmo, nos inícios desse ano, a pensar-se em enviar o Cor. Alberto Andrade Perdigão ao Rio de Janeiro para expor a situação, aproveitando a Câmara do Funchal a ida do coronel à corte para apresentar ali alguns assuntos e atribuindo-lhe para isso, inclusivamente, um subsídio de 1600$000 réis (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, liv. 1367, fl. 88); todavia, a deslocação não se concretizou. Ao fim de quatro meses na Ilha, a 1 de novembro, Luís Beltrão elaborou o ponto da situação militar insular, apresentando o que denominou por “considerações” para salvar a colónia “das mãos dos Ingleses”, uma vez que estes “já a devoram, com as suas vistas e medidas ambiciosas, enquanto não podem de outro modo” fazer, pois “aspiravam à sua posse absoluta” (ABM, Governo Civil, liv. 202, fls. 5v.-10). Assim, os Ingleses controlavam nessa altura toda a estrutura militar, tal como fizera Napoleão em Espanha e em Portugal, corrompendo mesmo “alguns desgraçados Portugueses”. Como exemplo, apresentava o Ten. Alexandre Teles de Meneses, filho de uma Inglesa “e péssimo Português, vendido aos Ingleses”, que nos anos seguintes não deixaria de criar problemas. O oficial empenhara-se em obter para os comandos ingleses – tanto para Robert Meade (1772-1852) como para Hugh Mackay Gordon (1760-1823) – informações sobre os vários trabalhos de levantamento das costas da Madeira efetuados pelo Cap. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832). Por esse serviço, Teles de Meneses “recebia 30$000 réis por mês, para fornecer as plantas”, entretanto copiadas pelo “paisano” Vicente de Paula Teixeira (1785-1855). Tenente-General Hugh Mackay Gordon-1823. Arquivo Rui Carita.     No “empenho” e no “mistério e na despesa” aí envolvidos, aos quais se uniam a “corrupção e compra dos seus assalariados”, não podia estar outra coisa senão um “interesse oculto” dos Ingleses em possuir todos os elementos necessários a uma mais profunda ocupação e domínio da Madeira (ABM, Governo Civil, liv. 202, fls. 5v.-10).       Charles Stuart-George Hayter-1830. Arquivo Rui Carita   Em relação ao contingente militar da Ilha, que lhes poderia resistir, tinha sido opção inglesa a sua diminuição (com o objetivo de o aumentar posteriormente, caso isso fosse favorável aos Ingleses). Luís Beltrão dava como exemplo a atitude do Gen. Robert Meade, anterior comandante das forças inglesas, que instara junto de Charles Stuart (1779-1845) – futuro conde de Machico e embaixador inglês na corte do Rio de Janeiro – para que se efetuasse um recrutamento de 3000 homens para o Exército de Portugal. Além disso, o governador anterior tinha entregado, lamentavelmente, o comando dos regimentos de milícias aos Ingleses, deixando assim que o comando dos regimentos dependesse deles; num quadro destes, o governador não sabia atempadamente quando se reuniam as milícias, por que o faziam, as ordens que tinham e o destino que se lhes dava. A despesa feita pela Fazenda portuguesa com a tropa inglesa, até ao final do ano de 1812, tinha ascendido aos 85.977$299 réis. A 5 e a 25 de novembro de 1813, Luís Beltrão enviou dois extensos relatórios sobre o “estado da agricultura da Madeira e as formas de promover o seu desenvolvimento”, o tipo de terrenos da Ilha e os aspetos do clima, por vezes sujeito a intensos nevoeiros que tornavam a subsistência difícil, pois “as névoas de S. João tiram o azeite e não dão pão”. A principal questão colocada era a da dificuldade dos caminhos – referindo o governador “que não uso o termo estradas, porque não existem” – a que acresciam os problemas das águas, da reflorestação dos picos da Ilha e do direito de propriedade dos terrenos. Escreve o governador que “todo o terreno desta Ilha, com pouquíssimas, ou talvez nenhumas exceções, tem três donos”: o primeiro dono era o senhor direto (quando havia emprazamento, o que raras vezes acontecia); o segundo era o senhor útil (quando o terreno não caía em comissão, o que também poderia acontecer); o terceiro era o colono, aquele que “cultiva de meias” o terreno (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3281). Estrada Norte da Ilha. Paulo Dias de Almeida. 1828   Curiosamente, e ao contrário do modo de ver do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), em meados do século anterior, Beltrão de Gouveia considera que o colono é o que tira maior benefício do solo, “porque come e cria todo o ano, de que não paga meação, porque só a devem dos géneros da colheita”. Acrescenta, no entanto, que “o colono é quase um servo da gleba, sem o saber e sem o ser por lei”. Como remate, o governador insiste no sistema de levadas (Levadas), sobre o qual deverá incidir um maior investimento insular, inclusivamente sob os auspícios da Fazenda Real (algo que só viria a acontecer algumas décadas mais tarde). Como refere o governador, enquanto a Ilha estiver enfeudada à “prestação à Inglaterra”, ele próprio não se arrisca a uma proposta desse género (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3281). Foi certamente nos inícios da construção do sistema de levadas que Beltrão de Gouveia encomendou a Paulo Dias de Almeida um estudo sobre a possibilidade de uma estrada que atravessasse a Ilha de Norte a Sul, desde a calçada de N.ª Sr.ª do Monte até às planícies das “freguesias do Norte, Porto da Cruz, Faial e Santana”, que o governador enviou a 24 de setembro de 1813, juntamente com um orçamento de 24.254$700 réis, tendo também começado a reunir várias informações sobre as levadas da ilha da Madeira (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 3282-3284), e cuja planta ficou conservada nos arquivos militares (DSI, GEAEM, cota 1337-1A-12-15). Neste contexto, nos inícios de dezembro de 1813, convocava a primeira reunião da Junta de Melhoramentos da Agricultura, estrutura anteriormente concebida, mas que ainda não havia sido possível reunir efetivamente. A principal tarefa de Luís Beltrão de Gouveia foi, no entanto, a de tentar travar a tentativa de implantação, na Ilha, de uma estrutura militar completamente controlada pelo comando inglês. Durante este período, o Cor. Gordon pressionara o governador por diversas vezes, no sentido de obter, para os oficiais que considerava afetos à Inglaterra, os lugares cimeiros nos principais corpos militares. Usando os mais diversos subterfúgios, Beltrão de Gouveia conseguiu sempre furtar-se às nomeações em causa. Nesse quadro de contínuo conflito, em meados de dezembro de 1813, o governador voltava a defrontar-se com o comandante inglês. De facto, tendo sido determinadas as salvas de ordenança pelas fortalezas do Funchal comemorativas do “dia de aniversário de Sua Majestade a Rainha” D. Maria I, o Cor. Gordon não as autorizara na totalidade. Como depois o governador informa para o Rio de Janeiro, encontrar-se-ia doente a mulher do médico inglês Shanthear e, para seu espanto, somente salvou a fortaleza do Ilhéu e metade do que lhe competia (ABM, Governo Civil, liv. 202, fl. 17), não tendo salvado a fortaleza do Pico , como também lhe competia. No final do mês, outro acontecimento veio azedar ainda mais as relações entre o governador e o Cor. Hugh Gordon. O Conselho de Guerra inglês condenara à morte um soldado que assassinara, num ato de insubordinação, um sargento. Ao saber do ocorrido e na iminência da execução, o Gov. Beltrão de Gouveia intercedeu junto do Cor. Hugh Gordon, referindo os inconvenientes de tal atitude, mostrando-lhe que essa execução “ofendia os direitos territoriais do soberano português, lembrando-lhe que Luís XIV expulsara a Rainha Cristina da Suécia, por mandar enforcar o seu secretário, quando se achava viajando naquele país e que no Rio de Janeiro, os senhores almirantes ingleses Curry e Dickson, respeitando o território português, mandavam cumprir as execuções capitais no alto do mar, a bordo de um navio de guerra” (ABM, Governo Civil, liv. 202, fls. 19v.-20). A indicação sobre a Rainha Cristina da Suécia não estaria correta, pois o seu secretário terá morrido noutras circunstâncias (salvo se o governador soubesse de outros pormenores que não sejam do domínio público). A execução, no entanto, acabou por ser cumprida no forte da Penha de França, tendo a ela assistido o Sarg.-mor do Batalhão de Artilharia, António Fernandes Camacho, em representação do comando português. A cerimónia foi feita perante a formatura geral das forças inglesas e do regimento de artilharia português, que, em conjunto, formaram um círculo em torno do local da execução. A sentença foi lida pelo major White, “achando-se armada uma forca, tendo-se exortado o soldado que ia ser enforcado por ter matado com um tiro de fuzil ao seu sargento. Ao meio-dia em ponto se enforcou o dito soldado, estando pendurado por espaço de uma hora”. As forças militares inglesas desfilaram perante o enforcado e só depois o carrasco cortou a corda, tendo o corpo caído para um carro e sido transportado para o Convento de S. Francisco (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 3313-3316). A reação de repulsa a este atropelo dos direitos dos Portugueses foi tal que nos princípios do séc. XX era ainda usual voltar a cara para o lado do mar quando se passava em frente dos muros desta velha fortaleza. Agravava ainda o facto ocorrido serem raríssimas as execuções capitais na ilha da Madeira, não havendo a elas qualquer outra referência nesta época. Os problemas entre o governador e as forças britânicas continuaram a existir e, em fevereiro de 1814, surgiram novas questões envolvendo a chegada ao Funchal de mais uma brigada de peças de artilharia. Londres, em vez de retirar as suas forças da Ilha, quando já se adivinhava o colapso de Napoleão em França, ainda as reforçava com mais armamento. A reação do governador foi protelar, como podia, o despacho do armamento, mandando inspecionar demoradamente todas as embalagens. Disso mesmo se queixou o Cor. Gordon a Londres: “todos” os artigos que chegavam à Madeira, destinados às forças britânicas, eram abertos e “demoradamente” examinados, o que o general entendia ser “contra a Convenção” entre os dois Governos e portanto uma “ofensa ao Governo britânico” (RODRIGUES, 1999, 398). A zona marítima da Madeira continuava, entretanto, a ser um dos palcos privilegiados da guerra de corso que opunha as potências marítimas, lideradas pela Grã-Bretanha, às continentais, lideradas pela França. A 6 de fevereiro de 1814, nomeadamente, entravam no porto do Funchal as naus S. Paulo, espanhola, com graves avarias, e a Magestic, inglesa, sob o comando do Cap. Hayes. O Gov. Luís Beltrão informava, então, que a nau inglesa estava transformada em fragata de guerra e que trazia, aprisionada, a fragata francesa Terpsichore, assim como 320 prisioneiros franceses. A fragata francesa tinha sido tomada no espaço marítimo compreendido entre a Madeira e a ilha de Santa Maria, nos Açores, e fazia parte de um conjunto de três fragatas que tinham tomado uma galera espanhola vinda de Lima, na América do Sul (na galera espanhola viajavam o marquês e a marquesa de Lima, que morreram na viagem). Em maio desse mesmo ano, o governador dava conta de que duas fragatas francesas (provavelmente as do conjunto de que fazia parte a fragata Terpsichore) haviam metido a pique o navio Conde das Galveias e o bergantim Bom Sucesso e Dois Amigos, cujos tripulantes e passageiros acabavam de chegar à Madeira, transportados pela galera portuguesa Comerciante. Esta época marca uma nova tentativa de abertura à Rússia, com a presença habitual de navios daquela nacionalidade no porto do Funchal, tendo-se o governador inclusivamente deslocado, logo em outubro de 1813, ano da sua nomeação, num bergantim russo, o Heleno, comandado pelo Cap. Drack Maschek, com 10 pessoas a bordo, o qual levara 60 dias de São Petersburgo a Portsmoyuth e 20 dias de Portsmoyuth ao Funchal. Em finais de 1812, tinha chegado à Madeira um “cônsul Ruciano”, o cavaleiro de Borel (ABM, Governo Civil, liv. 198, fl. 79v.), o qual em 1815 seria altamente elogiado pelo bispo de Meliapor, D. Fr. Francisco Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828) (Ataíde, D. Fr. Francisco Joaquim de Meneses e), vigário apostólico do Funchal. Em fevereiro de 1814, o governador informava o conde das Galveias, D. Francisco de Almeida de Melo e Castro (1758-1819), no Rio de Janeiro, que o Imperador da Rússia enviara a Henrique Correia de Vilhena Henriques (1769-c. 1830), irmão do visconde de Torre Bela (1768-1821), um magnífico anel de brilhantes em reconhecimento pelos serviços prestados em prol do estreitamento das relações comerciais entre a Rússia e a ilha da Madeira; em anexo à sua carta, envia a transcrição da carta do conde de Romanov, em francês, escrita em nome do Imperador, “mon maître” [“meu senhor”], no dizer do conde de Romanov, datada de 23 de outubro do ano anterior, bem como o anel para Henrique de Vilhena (ABM, Governo Civil, liv. 220, fl. 22v.). As relações intensificar-se-iam nos anos seguintes, com a estadia do futuro conde do Porto Santo, António de Saldanha da Gama (1778-1839), como ministro plenipotenciário na Rússia (que passaria pela Madeira entre finais de 1818 e inícios de 1819). Nos meses seguintes, avolumaram-se na Madeira as notícias das vitórias aliadas na Europa contra as forças napoleónicas, que o governador imediatamente comunicava, primeiro ao conde das Galveias e, em seguida, ao novo secretário de Estado, D. Fernando José de Portugal e Castro (1752-1817), marquês de Aguiar, na corte do Rio de Janeiro. Em abril e maio de 1814, e.g., comunicava ao Rio de Janeiro a entrada do “Exército Aliado do Norte” em Paris, os boatos de paz e as indemnizações de guerra pedidas pelos diversos Estados. Ainda nesse mês de maio, perante a confirmação da queda de Napoleão e o início das negociações de paz, o governador queixava-se da manutenção das forças inglesas na Madeira e manifestava os seus receios em relação às pretensões ocultas da Inglaterra sobre a Ilha (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 21v. e 22). Na sequência das informações recebidas sobre as futuras negociações a realizar em Paris, o Gov. Beltrão de Gouveia sugeria “que Sua Alteza Real tivesse também no Congresso quem o representasse com dignidade e interesse”, pois só dessa forma poderia salvar os seus Estados “de algum sacrifício”, numa provável alusão à situação da Madeira, ocupada por forças britânicas. Os receios do governador eram mais do que justificados, tendo este chegado a sugerir que um dos aliados de Portugal fosse o Imperador da Rússia, que tinha então três navios estacionados no Funchal. O Imperador era, porém, um dos aliados preferenciais da Inglaterra, que esta respeitava mas que também temia. O príncipe regente deveria, assim, fazer-se representar “com toda a sua luz naquele Congresso” por pessoas que o fizessem “com dignidade e muita fidelidade”, assim como interessar “eficazmente na nossa causa o Imperador da Rússia, que tem em vistas um mais intensivo comércio com o Brasil e com esta Ilha” (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 32v.-33). Nessa época, os navios espanhóis voltaram a fazer escala na Madeira, instalando-se novamente um consulado espanhol na Ilha. Entre problemas vários, refira-se a chegada da nau S. Paulo, comandada por D. António Pacaro. A nau arribara à Madeira devido a avarias sofridas no mar alto ao longo de uma viagem de 78 dias, encontrando-se a sua tripulação e passageiros, no total mais de 150 homens, atacados por escorbuto. Parte deles teve mesmo de ser transportada em padiolas para o Hospital da Misericórdia no Funchal. Com vista ao seu restabelecimento, o governador mandou alugar uma casa a Pedro Jorge Monteiro, afastada da cidade; e para o conserto da nau o morgado João de Carvalhal (1778-1837) (Carvalhal, 1º conde de) mandou cortar madeira nas suas vastas propriedades, e “não aceitou [o] preço dela” (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 29v.-30v.). Por outro lado, voltava a assumir um certo protagonismo o consulado norte-americano, cujo cônsul, Diogo Leandro Cathecart, se queixava, nos inícios de junho de 1814, de que a escuna britânica Ecclipse arvorara o pavilhão dos Estados Unidos por baixo do pavilhão inglês. De facto, “no dia 4, aniversário de Sua Majestade britânica, lembrou-se Guilherme Corneille”, comandante da referida escuna, de hastear desse modo as bandeiras. O governador refere que o assunto não tinha sido senão uma brincadeira, mas não deixava de ser uma ofensa à nação norte-americana. Na mesma altura, o cônsul comunica ao governador o interesse de um comerciante residente em Lisboa, Nicolau George Querk, “irlandês de um excelente carácter”, em adquirir alguns terrenos na Madeira, e também os receios que havia sobre as intenções inglesas a respeito da Ilha (ABM, Governo Civil, liv. 220, fl. 36).   George Day Welsh Também por essa altura, o governador informava o Rio de Janeiro de uma nova forma de posicionamento dos Ingleses na Ilha, que até essa data não tinha sido muito notória, mas que não escapara a Luís Beltrão, algo que, segundo o governador, “prova alguns temores que tenho exposto nos ofícios que tenho enviado a V. Ex.ª” (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 30v.-31). O assunto dizia respeito a D. Vicência de Freitas, filha de uma irmã do visconde de Torre Bela e viúva do Ten.-Cor. Francisco Anacleto de Figueiroa (c. 1760-1812), por sua vez primo de D. Antónia Basília de Brito Herédia, mulher de D. António de Saldanha da Gama (1778-1839), então ministro português na Rússia e futuro conde do Porto Santo. D. Vicência contraíra matrimónio com o súbdito inglês George Day Welsh (1776-c. 1830), natural dos Estados Unidos e residente na Ilha pelo menos desde 1808. O casamento ocorrera a bordo de uma nau inglesa, ao largo do Funchal, e segundo o rito anglicano, visto o bispo vigário apostólico do Funchal e o núncio de Lisboa se terem negado a conceder as necessárias licenças. Os nubentes haviam embarcado na nau e, “passadas quatro horas, voltavam ao porto” (Ibid.), casados. Acrescentava Luís Beltrão que “nem o visconde, nem outros poucos parentes aprovavam tal casamento e suas circunstâncias” (Ibid.); no entanto, os outros parentes (pelos vistos, a maior parte), sendo do seu interesse, não se importariam. Acontecia que George Welsh mantinha, por vezes, longas demandas com a vereação camarária, como acontecera em 1812, quando acusou o guarda da bandeira e intérprete da Casa da Saúde, José Joaquim da Costa, de carregar carne salgada em dois navios espanhóis que estavam de quarentena. Como alertava o governador, a comunidade inglesa começava, deste modo, a adquirir um vasto património imobiliário, o que envolvia problemas vários, entre os quais os decorrentes da venda de capelas, v.g., a capela pertencente a Bento da Veiga, fundada em 1580, em cujo terreno, adquirido pelo comerciante Robert Blackburn, teria origem a quinta da Palmeira, desaparecendo a capela. Ora, tais aquisições não se haviam registado até então, e os comerciantes estrangeiros não recusavam agora, inclusivamente, casar-se com elementos das principais famílias locais. Em meados desse ano de 1814, dois acontecimentos vieram, entretanto, possibilitar a alteração da forma de posicionamento do governo da Ilha em relação às pretensões inglesas. Em finais de janeiro, tinha adoecido gravemente o secretário do governador, João Marques Caldeira de Campos, uma das figuras mais importantes da Ilha e o grande apoio dos governadores anteriores. O secretário encontrava-se na Madeira há 36 anos e era um profundo conhecedor dos problemas da Ilha. No ano anterior, aquando da doença de Pedro Bacelar, assumira inclusivamente o gabinete do governador e tinha tido o cuidado de informar a corte do Rio de Janeiro de que essa seria a solução ideal até ser nomeado um novo governador, pois sobre a nomeação de um governo interino não tinha quaisquer dúvidas: “Que Deus nos livre” (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3197). Luís Beltrão não teve outra hipótese senão nomear um novo secretário interinamente, Gaspar Pedro de Sousa e Almada. Infelizmente, a doença era irreversível e a 5 de março o velho secretário falecia, pelo que o governador pediu a nomeação definitiva de Sousa e Almada, a que a corte anuiu a 6 de junho. A comunicação, com data de 10 do mesmo mês de junho, chegou ao Funchal a 9 de agosto de 1814, com uma rapidez muito pouco usual. Às duas horas da madrugada de 28 de junho de 1814, no palácio de S. Lourenço, repentinamente (o que gerou alguma celeuma), o Gov. e Cap.-Gen. Luís Beltrão de Gouveia e Almeida era “atacado de uma fortíssima apoplexia” que o levaria “à eternidade” a 1 de julho. Foi sepultado na capela do Santíssimo da Sé do Funchal (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 38v.). Aparentemente, abria-se uma brecha nas autoridades superiores da Madeira e seria de esperar que o comando inglês aproveitasse de imediato a situação para alargar a sua influência. No entanto, não foi isso que aconteceu, pois o governo interino não autorizou este tipo de manobra por parte do comandante inglês, além de que uma nova convenção, assinada com o Governo inglês, cessara com a paz recentemente assinada.   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

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