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A Quercus-Madeira, fundada a 28 de janeiro de 1995, é o Núcleo Regional da Associação Nacional de Conservação da Natureza (Quercus), uma das principais organizações não-governamentais de ambiente em Portugal, e é constituída pelos sócios residentes no Arquipélago da Madeira. O Núcleo Regional da Quercus na Madeira, tal como os restantes núcleos desta Associação, organiza-se internamente numa Assembleia de Núcleo, que reúne pelo menos uma vez por ano os associados residentes, e numa Direção de Núcleo, eleita em Assembleia de Núcleo e composta, no mínimo, por presidente, tesoureiro e secretário. A Quercus-Madeira tem como objetivos os que decorrem dos Estatutos da organização em que se insere, destacando-se os de alertar e apoiar os cidadãos em relação às disfunções ambientais, fomentar e promover a educação cívica e ambiental, defender e promover a conservação dos valores naturais, e desenvolver estudos que contribuam para o conhecimento e a defesa dos valores do património natural e cultural. Decorrente da sua Declaração de Princípios, a Quercus norteia a sua intervenção cívica e política pelos valores da independência e da autonomia, sendo uma organização apartidária, liberta de qualquer tutela económica, religiosa ou racial, e consubstanciando a sua ação no lema “Pensar Globalmente, Agir Localmente”. A Quercus-Madeira, como toda a estrutura nacional da Associação, aborda as mais variadas áreas essenciais à sustentabilidade ambiental, tendo dado particular atenção à educação ambiental, à gestão dos resíduos, à escassez e qualidade da água, à conservação da natureza, ao ordenamento do território, à poluição, à eficiência energética e à energias renováveis. A origem do Núcleo Regional da Quercus na Madeira está diretamente associada à vontade de um grupo alargado de alunos que, no ano letivo de 1994/1995, frequentava o 3.º ano do curso de Biologia na Universidade da Madeira. Estes jovens, que tinham vontade de se organizar e constituir uma associação de defesa do ambiente, fizeram-se sócios da Quercus e constituíram o Núcleo Regional. A reunião preparatória que resultou no pedido formal à Direção Nacional da Quercus para a constituição de uma estrutura regional na Madeira ocorreu a 27 de outubro de 1994. Face à vontade subscrita por 15 alunos da licenciatura em Biologia e ao apoio do professor Jorge Paiva, a Direção Nacional autorizou a constituição do Núcleo Regional da Madeira a 28 de janeiro de 1995. A primeira Direção da Quercus-Madeira foi eleita a 15 de fevereiro de 1995 numa Assembleia de Sócios do Núcleo que decorreu no Colégio dos Jesuítas, Universidade da Madeira, tendo Hélder Spínola sido eleito Presidente, Maria Cristina de Matos Niza Secretária, Dília Maria Góis Gouveia Menezes tesoureira, e Odília Maria Freitas Garcês e Irene Gomez Câmara vogais. A apresentação pública da constituição da Quercus-Madeira ocorreu a 12 de abril de 1995, numa sala do Ateneu Comercial do Funchal, tendo suscitado uma forte curiosidade por parte da comunicação social regional. A Quercus-Madeira, sem sede, abriu um apartado na estação de correios e começou por usufruir de algum apoio logístico da própria Universidade da Madeira: dispunha de um armário para o seu arquivo, utilizava as salas para reuniões e fazia uso dos serviços de telecópia da instituição para contatos com a comunicação social. Em maio de 1996, com a eleição do primeiro Reitor da Universidade da Madeira, foi perdendo este apoio, passando a manter o seu arquivo em casa dos dirigentes e estabelecendo contactos com a comunicação social via serviço de telecópia dos Correios de Portugal. À medida que a Quercus na Madeira vincava a sua discordância com as opções que considerava desviadas da sustentabilidade – nomeadamente o atraso na aprovação dos Planos Diretores Municipais e outros instrumentos de ordenamento do território, a gestão da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos, que estava a criar problemas de contaminação das águas subterrâneas, os despejos de terras para dentro das ribeiras e diretamente para o mar e a falta de medidas para evitar os efeitos sobre a saúde pública da aplicação de materiais contendo amianto –, foi dando a conhecer o seu trabalho e atraindo novos sócios. Passado o primeiro ano desde a sua fundação, este Núcleo Regional deixou de ser um projeto de um grupo de estudantes de Biologia para passar a integrar elementos de outras proveniências da sociedade madeirense. Efetivamente, aquando da constituição de uma nova direção, a 27 de fevereiro de 1997, a maioria dos dirigentes eleitos já não pertencia ao grupo inicial de fundadores. No início de 1997, a Quercus-Madeira, ainda sem sede própria, passou a contar com um espaço na Escola da APEL para manter o seu arquivo e fazer as suas reuniões de trabalho. A utilização deste novo espaço resultou dos contactos estabelecidos entre a nova Secretária da Direção da Quercus-Madeira, Carina Martins Nunes, e o diretor da escola, Mário Casagrande (1930-2009). Um ano depois, também este espaço ficou indisponível e até ao ano 2000 a Quercus-Madeira funcionou sem sede, fazendo as suas reuniões em cafés, na casa dos dirigentes ou em espaços solicitados à Câmara Municipal de Machico. No ano 2000, fruto de uma colaboração que vinha a ser mantida com a Câmara Municipal de Machico, foi estabelecido um protocolo para a constituição de um centro de educação ambiental que passou a ser também a sede da Associação. A Quercus-Madeira passou assim a ter sede fixa num antigo quiosque, onde iniciou também a dinamização do novo Centro de Educação Ambiental de Machico. Em 2004, o Centro de Educação Ambiental e a sede da Quercus-Madeira passaram a funcionar no Mercado Municipal de Machico. A partir de 2011, por indisponibilidade da autarquia local, o Centro de Educação Ambiental de Machico cessou funções, mas a sede da Quercus-Madeira manteve-se no local. A Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza é uma Organização Não Governamental de Ambiente que se formalizou a 31 de outubro de 1985, mas que já desenvolvia atividade desde finais de 1984. A sua constituição resultou da união de esforços entre vários ativistas e associações ambientalistas, que sentiram a necessidade de uma organização mais forte e de âmbito nacional dedicada à conservação da natureza. A base da sua fundação foi determinante na definição do tipo de estrutura interna que adotou, a qual, além dos órgãos nacionais, é marcada pelas existência de Núcleos Regionais espalhados de norte a sul do país, incluindo os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Os primeiros Núcleos Regionais da Quercus foram constituídos a partir da integração de associações locais de defesa do ambiente previamente existentes, algumas que participaram na fundação da Associação e outras que se juntaram mais tarde. Numa segunda fase, já na década de 90 do século XX, e à semelhança do que aconteceu na Madeira, a organização local dos sócios deu origem a Núcleos Regionais nascidos dentro da própria Quercus. O facto de os Núcleos Regionais da Quercus constituírem estruturas democráticas, com dirigentes eleitos pelos seus sócios, e possuírem autonomia de funcionamento, proporcionou a esta Associação uma grande agilidade de atuação que é, em grande medida, responsável pela forte implantação e influência em todo o território português. Apesar de estes Núcleos Regionais possuírem autonomia estatutária para definir a sua estrutura organizativa, nomeadamente criando delegações na sua área geográfica, são muito raros os exemplos de concretização dessa faculdade. O Núcleo Regional da Madeira chegou a aprovar, em outubro de 1995, a criação de uma Delegação no Concelho de Santana, mas, à semelhança de tentativas para o Estreito de Câmara de Lobos e para o Porto Santo, essas estruturas acabaram por não vingar. A Quercus possui como órgãos sociais a Assembleia-Geral, a Mesa da Assembleia-Geral, a Direção Nacional, o Conselho Fiscal e a Comissão Arbitral, possuindo ainda um Conselho de Representantes que reúne os membros da Direção Nacional e os presidentes dos Núcleos Regionais. Se os Núcleos Regionais permitem à Quercus uma forte implantação geográfica, os órgãos nacionais, em particular a Direção Nacional, apoiados em estruturas como os grupos de trabalho e os projetos nacionais, garantem uma atuação global coerente e sólida. Ambas as estruturas, nacionais e regionais, na sua ação concertada, completam um modelo de organização que consubstancia de forma eficaz o lema: “Pensar Globalmente, Agir Localmente”. Apesar de a Quercus ter atualmente uma intervenção muito diversificada, abrangendo áreas temáticas como a gestão dos resíduos, a qualidade do ar, a eficiência energética, as energias renováveis, a qualidade e escassez dos recursos hídricos, entre muitas outras, a preocupação predominante dos seus fundadores centrou-se essencialmente nas questões associadas à conservação da natureza. Esse foi justamente o motivo para a adoção do nome Quercus, o nome científico do género a que pertencem os carvalhos, sobreiros e azinheiras, que são as árvores predominantes do coberto vegetal primitivo do território continental português, e do símbolo da organização, uma folha e uma bolota de carvalho-negral (Quercus pyrenaica). Os dirigentes da Quercus são eleitos para mandatos de dois anos de entre os sócios da Associação e exercem os seus cargos de forma não remunerada. Tendo em conta as estruturas nacionais e regionais definidas estatutariamente, o número de dirigentes necessários para completar todos os cargos é superior a 80. Além dos dirigentes, o funcionamento da Associação requer também a ocupação de outros cargos, nomeadamente na coordenação de grupos de trabalho e de projetos. Entre 1995 e 2000, 0 presidente do Núcleo Regional da Quercus na Madeira foi Hélder Spínola, biólogo e um dos fundadores deste núcleo, que mais tarde, entre 2003 e 2009, foi também presidente da Direção Nacional desta Associação. A segunda Direção do Núcleo foi eleita a 27 de fevereiro de 1997, tendo Hélder Spínola sido acompanhado por uma equipa maioritariamente constituída por sócios não pertencentes ao núcleo de fundadores: Carina Martins Nunes, como Secretária, Élvio Duarte Martins de Sousa, como Tesoureiro, e Élia Maria Basílio Rodrigues, Idalina Perestrelo Luís, Joselino Humberto Henriques Silva, Maria Conceição Andrade Silva, Odília Maria Freitas Garcês e Ysabel Margarita Amaro Gonçalves, como vogais. Idalina Perestrelo Luís foi a segunda presidente da Quercus-Madeira, tendo iniciado funções a 5 de agosto de 2000, por nomeação da própria Direção do Núcleo, e sido eleita para o cargo a 28 de outubro de 2000. Desde 2000, e ao longo dos sete mandatos sucessivos para os quais foi eleita, Idalina Perestrelo Luís foi sempre acompanhada na Direção do Núcleo por Elsa Maria Freitas Araújo, como vice-Presidente. A partir de outubro de 2013, Elsa Araújo passou a ser a Presidente do Núcleo Regional da Quercus na Madeira. Desde 1995, o Núcleo Regional da Quercus na Madeira envolveu-se em inúmeras atividades com o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade ambiental e para uma mudança de paradigma na sociedade madeirense. À semelhança da matriz que caracteriza a ação nacional da Quercus, toda a atividade do Núcleo Regional foi marcada por duas formas principais de atuação, os projetos e a intervenção pública, em ambas abrangendo os mais diversos temas ambientais. A mudança de atitudes e comportamentos para com os valores ambientais foi um dos objetivos em que a Quercus-Madeira apostou desde início, tendo desenvolvido várias iniciativas e projetos com esse fim. Nesse âmbito, destaca-se uma parceria com a Câmara Municipal de Machico e a criação do Centro de Educação Ambiental de Machico (CEAM), cuja abertura oficial, em julho de 2000, contou com a presença do Presidente da Direção Nacional da Quercus. Ao longo dos seus 13 anos de funcionamento, o Centro de Educação Ambiental dinamizado pelo Núcleo Regional da Quercus desenvolveu largas centenas de ações de sensibilização, em particular nas escolas da Madeira, tendo abordado temáticas tão diversas como a defesa do património natural, os incêndios florestais, o ordenamento do território, a redução, reutilização e reciclagem de resíduos, a gestão sustentável dos recursos hídricos, e a eficiência energética, entre muitos outros. Além de palestras e debates, a Quercus-Madeira dinamizou, através do CEAM, atividades de reflorestação e manutenção no Parque Ecológico do Funchal, editou publicações, preparou exposições e promoveu passeios a pé. De entre os vários recursos de divulgação e educação ambiental publicados pela Quercus-Madeira é de particular realce a revista Raízes, uma publicação periódica que lançou o seu primeiro número em outubro de 2001. Ao longo de sete anos e de 34 números, a revista Raízes apresentou em capa uma grande variedade de temas, como o património malacológico do Porto Santo e dos seus ilhéus, a fauna cavernícola de Machico, a avifauna da lagoa do Lugar de Baixo, as florestas da ilha da Madeira, a qualidade ambiental das ribeiras e o problema dos incêndios florestais. Associados a estes e outros temas, muitos foram os cidadãos que deram o seu contributo voluntário na preparação de conteúdos, em particular profissionais da área da biologia, mas também juristas, professores e estudantes, entre outros. Um dos temas a que o Núcleo Regional da Quercus na Madeira tem dedicado especial atenção tem sido a gestão de resíduos, não só ao nível da educação e sensibilização ambiental, nomeadamente com o projeto Ponta de Sol Mais Brilhante em 2004 e 2005, mas também através da implementação de projetos iminentemente práticos. Exemplo disso foi a recolha de pilhas usadas, um projeto nacional da Quercus que o Núcleo Regional estendeu à Madeira logo no início de 1995, reunindo mais de 10 quilos de pilhas, as quais se juntaram, em 1998, às 11 toneladas recolhidas em todos os Núcleos da Associação para serem encaminhadas para reciclagem em França. Ainda em 1998, com a ajuda de algumas dezenas de jovens voluntários, esta estrutura regional da Quercus fez um levantamento exaustivo da quantidade e do tipo de resíduos existentes nas praias e calhaus da Madeira, tendo encontrado um litoral pejado de lixo com origem na própria ilha. A disponibilidade de bebidas em embalagens retornáveis, como forma de prevenir a produção de lixo, foi um assunto constante nas preocupações da Quercus-Madeira, que insistiu sempre na fiscalização e cumprimento da Lei. Em fevereiro de 2009, a Quercus trouxe à Madeira mais um projeto pioneiro, tendo, primeiro em parceria com o centro comercial Dolce Vita e depois com os hipermercados Continente, iniciado a recolha seletiva de rolhas de cortiça para posterior reciclagem no âmbito do projeto Green Cork, cujos lucros são utilizados para a reflorestação. Nos primeiros dois meses, o projeto Green Cork conseguiu reunir na Madeira mais de meia tonelada de rolhas de cortiça. Ainda na mesma área, uma das batalhas em que a Quercus-Madeira mais investiu foi a oposição à opção pela incineração como destino final dos resíduos sólidos urbanos produzidos no Arquipélago da Madeira. Em 1998, assim que o governo regional anunciou a intenção de construir uma central de incineração, a Quercus-Madeira promoveu uma petição para que o projeto não fosse concretizado, tendo recolhido mais de 700 assinaturas, que foram entregues na Assembleia Legislativa da Madeira. Quando, em janeiro de 1999, o Governo Regional da Madeira iniciou a discussão pública do estudo de impacte ambiental da obra de Ampliação e Remodelação da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos da Meia Serra, o Núcleo Regional da Quercus foi a única organização que se opôs a este projeto. A 22 de Agosto de 1999, a Quercus-Madeira organizou a iniciativa Ar Puro que, junto à igreja do Rochão, na Camacha, reuniu cidadãos e representantes de partidos na sensibilização para os perigos decorrentes das emissões de uma central de incineração. A 7 de dezembro de 1999, ao início da noite, devido à queda de um muro que ameaçava ruir já há algum tempo, ocorreu uma derrocada de resíduos do aterro sanitário da Estação da Meia Serra para o interior da lagoa de arejamento dos lixiviados, provocando uma enxurrada que desceu ao longo da ribeira da Cerejeira, destruiu por completo uma habitação e danificou três viaturas no sítio do Ribeiro Serrão. O sobressalto causado por esta calamidade terá estado na origem do ataque cardíaco que vitimou, no decorrer dessa mesma noite, um residente, o senhor José Arnaldo das Neves Vieira, com 39 anos, que, ao longo desse ano, vinha colaborando abertamente com a Quercus-Madeira por uma solução diferente para a gestão dos resíduos. Este facto levou a um envolvimento maior da população da Camacha, em particular dos moradores dos sítios do Ribeiro Serrão e Rochão, que, juntando-se à Quercus, se manifestaram contra o projeto à entrada da Estação a 27 de dezembro de 1999, reunindo perto de uma centena de pessoas. A manifestação repetiu-se a 2 de janeiro de 2000, envolvendo cerca de 300 pessoas. Nesse dia, as barreiras metálicas e a Brigada de Intervenção Rápida da Polícia de Segurança Pública, liderada no local pelo próprio comandante regional da PSP, não foram suficientes para demover a população de entrar na Estação para constatar in loco a estabilidade dos resíduos depositados no aterro e o que estava a ser feito para garantir a sua segurança. Apesar destas iniciativas, o projeto foi avante e a incineradora foi inaugurada em 2004. Possuindo o Arquipélago da Madeira um património biológico extraordinariamente importante, a conservação da natureza foi outra área onde o Núcleo Regional da Quercus mais interveio. Além dos contributos que deu na divulgação do património natural insular, a Quercus-Madeira agiu inúmeras vezes na tentativa de alterar o curso de algumas ações que entendia serem lesivas à biodiversidade. Desde a sua fundação, insistiu na retirada do gado ovino, caprino e bovino que pastoreava em regime livre nas serras da Madeira e impedia a regeneração da vegetação, deixando as serras escalvadas e à mercê dos processos erosivos, pondo em causa a biodiversidade e a segurança das populações pelo risco de aluvião. Também por insistência do então Vereador do Ambiente da Câmara Municipal do Funchal, Raimundo Quintal, mentor da criação do Parque Ecológico do Funchal, onde implementou essa medida, o Governo Regional da Madeira acabou por aceitar a retirada do gado das serras, tendo dado por concluído esse processo em 2003. Outra ameaça à biodiversidade que a Quercus-Madeira sempre combateu foi o flagelo dos incêndios florestais, tendo desenvolvido o projeto Vigilância Contra Fogos Florestais em 1997 e 1998 e, nos anos seguintes, criado uma rede informal de vigilância com mais de 100 voluntários no âmbito do projeto De Olhos na Floresta. Para minimizar o problema dos incêndios florestais, esta Associação insistiu constantemente numa estratégia para a Madeira apostada na prevenção, na vigilância e numa primeira intervenção rápida e eficaz. Em 1999, em colaboração com a Câmara Municipal de Machico, a Quercus-Madeira elaborou a candidatura do projeto Recuperação da Floresta Laurissilva das Funduras ao programa LIFE Natureza, projeto que foi submetido em nome da Direção Regional de Florestas e obteve um financiamento europeu superior a meio milhão de euros. A execução do projeto teve início em janeiro de 2000 e decorreu até ao fim de 2003, tendo a Quercus-Madeira assegurado a implementação das medidas de educação ambiental que ficaram à responsabilidade da Câmara Municipal de Machico. A Quercus-Madeira também se mobilizou várias vezes para tentar evitar a concretização de alguns projetos no coração da floresta Laurissilva. Por exemplo, no início do século XXI, quando o Governo Regional avançou com a asfaltagem da estrada do Fanal, entre a Ribeira da Janela e o Paul da Serra, a Quercus, além das intervenções públicas, procurou, sem sucesso, que a UNESCO, que em 1999 reconheceu o estatuto de Património Natural Mundial à floresta Laurissilva, negasse essa pretensão. Ainda assim, a contestação à asfaltagem levou a que, a partir do Fanal e até ao Paul da Serra, a largura da estrada fosse reduzida. Já em 2008, unindo esforços com a Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal e com um conjunto alargado de cidadãos, a luta foi contra a pretensão do Governo Regional da Madeira de viabilizar a construção de um teleférico no Rabaçal, na cabeceira da ribeira da Janela, em plena floresta Laurissilva, tendo pedido a intervenção da UNESCO e da Comissão Europeia, às quais enviou uma petição com mais de 5000 assinaturas. Adicionalmente, em Março de 1999, estas duas associações de defesa do ambiente interpuseram em Tribunal uma ação judicial a pedir a nulidade da Declaração de Impacte Ambiental favorável assinada pelo Secretário Regional do Ambiente. Devido a esta forte contestação, a construção do teleférico não avançou e a Declaração de Impacte Ambiental acabou por caducar por ter sido ultrapassado o prazo da sua validade, situação que levou o Tribunal Administrativo e Judicial do Funchal, em setembro de 2011, a encerrar o processo. Ao longo do tempo, a Quercus-Madeira alertou para inúmeras situações e opções que constituíam ameaças ao ambiente: Contestou as ações de abate ao Pombo Trocaz (Columba trocaz), espécie protegida e exclusiva da Madeira, , iniciadas pelo Governo Regional em 2004; opôs-se, a partir de 2002, à construção de um Radar Militar no Pico do Areeiro, em Sítio da Rede Natura 2000, junto ao único local no mundo onde nidifica a Freira da Madeira (Pterodroma madeira), uma ave marinha fortemente ameaçada; alertou insistentemente para as consequências negativas sobre os ecossistemas marinhos costeiros decorrentes dos despejos de terras provenientes de obras públicas e privadas; colocou na ordem do dia os perigos para a saúde pública decorrentes da inalação de fibras de amianto, presentes em materiais utilizados na construção de inúmeros edifícios no Arquipélago da Madeira; insistiu na necessidade de melhorar os transportes públicos de modo a garantir uma alternativa válida ao transporte individual e reduzir a poluição dentro da cidade do Funchal; defendeu uma maior aposta na eficiência energética e nas energias renováveis; pressionou inúmeras vezes para o cumprimento da Lei no que diz respeito à realização de análises e divulgação dos resultados relativos à água para consumo humano; insistiu na necessidade de serem adotados e respeitados os instrumentos de ordenamento do território previstos na legislação portuguesa, em particular os Planos Diretores Municipais, os Planos de Ordenamento da Orla Costeira e a Reserva Ecológica Nacional; cooperou com a organização internacional Save the Waves na contestação contra a destruição das ondas para a prática de surf no Jardim do Mar; cooperou com a Sociedade de Desenvolvimento Ponta Oeste numa solução para a preservação da Lagoa do Lugar de Baixo na Ponta do Sol; e, entre muitas outras iniciativas, tentou impedir o avanço de projetos turístico-imobiliários sobre o litoral.   Hélder Spínola (atualizado a 11.10.2016)

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azevedo, antónio bon de sousa schiappa de

Regente florestal de formação, desempenhou importantes funções silvícolas no distrito do Funchal nos finais do séc. XIX e início do séc. XX. Nasceu em Lisboa em 1870, no seio de uma família distinta, sendo o seu avô materno o Ten.-Gen. Pedro Paulo Ferreira de Sousa, primeiro barão de Pernes. Foi para a ilha da Madeira em finais do séc. XIX, onde casou com uma madeirense, filha de José António de Almada, passando a viver no Funchal. Desempenhou um importante papel na área florestal, tanto na ilha da Madeira como na ilha do Porto Santo. Na primeira, foi responsável pela preservação das manchas de floresta natural que se encontravam ameaçadas na época; na segunda, foi responsável pelos primeiros trabalhos de reflorestação daquele espaço, que estava há séculos desprovido de um coberto florestal. Fruto da riqueza existente na floresta indígena da Madeira e do Porto Santo, iniciou-se, após a descoberta destas ilhas, um processo de delapidação do coberto florestal existente com os objetivos de exploração de madeira e carvão, implementação de áreas agrícolas e constituição de pasto para os animais que, de forma asselvajada e desregrada, se alimentavam em zonas serranas. Deste modo, o coberto florestal indígena foi bastante afetado e delapidado na ilha da Madeira, chegando mesmo a desaparecer na ilha do Porto Santo. A falta de técnicos e de pessoas conhecedoras da flora e da floresta madeirense, bem como das consequências da sua devastação, fez com que esta situação se perpetuasse e agravasse durante séculos. A situação na ilha do Porto Santo ainda era mais grave, piorando consideravelmente em meados do séc. XVIII e levando quase à completa desertificação da Ilha. O conhecimento e os principais estudos sobre a floresta madeirense pertenciam, nessa época, a naturalistas estrangeiros que, por diversos motivos, passavam na Madeira ou iam até esse arquipélago atraídos pela riqueza da sua flora e fauna e dos inúmeros endemismos existentes. Segundo Rui Carita, os naturalistas estrangeiros que mais se evidenciaram na época com trabalhos de divulgação da fauna e flora desse território foram o reverendo inglês Thomas Lowe, que preparou os álbuns com que a Madeira participou na célebre exposição internacional de Londres, em 1851, e que forneceu as informações a Charles Darwin, e o padre alemão Ernesto Schmitz, que, tendo-se radicado no Funchal em 1874, depois se naturalizou português e foi o fundador do primeiro museu de história natural da Madeira. A crescente importância que a floresta ia adquirindo, assente no seu papel imprescindível na captação da água, quer de regra, quer de consumo, e na sustentação dos solos, levou, desde os meados do séc. XIX, à criação de departamentos governamentais que se debruçaram sobre os trabalhos de reflorestação e preservação da floresta das ilhas da Madeira e Porto Santo. Nos finais desse século, a Madeira passou a possuir técnicos portugueses habilitados nessa área, sendo o mais notável o regente florestal António Bon de Sousa Schiappa de Azevedo, que focou a sua ação principalmente na ilha do Porto Santo. A erosão e desertificação nesta ilha era de tal forma grave que Schiappa de Azedo, escolhendo o cume do pico Castelo para iniciar, em 1921, o seu trabalho de reflorestação, teve que armar o terreno e constituir muretes em pedra para suporte e sustentação da pouca terra que existia na encosta, conseguindo assim solo e condições para plantar árvores. Tratou-se de uma obra notável, visível no terço superior da encosta do pico. Para este trabalho, Schiappa de Azevedo utilizou nas suas plantações essencialmente o Cupressus macrocarpa e o Pinus radiata. Após a sua morte, o seu trabalho foi continuado, tendo-se arborizado a parte alta do pico Castelo utilizando a metodologia de plantação por si desenvolvida. Na ilha da Madeira, os frondosos Cupressus macrocarpa que se encontram na ribeira das Cales junto àquela que se tornaria a estrada regional n.º 103 foram mandados plantar também por Schiappa de Azevedo, tendo infelizmente algumas destas árvores sido afetadas de forma irreversível pelo grande incêndio de 2010, que devastou toda aquela zona. António Bon de Sousa Schiappa de Azevedo possui uma estátua com o seu busto no pico Castelo em homenagem ao trabalho efetuado no combate à desertificação e à reflorestação naquela ilha. A estátua foi inaugurada em julho de 1957. Fig. 1 – Fotografia do busto de Schiappa de Azevedo existente no cimo do pico Castelo no Porto Santo. Fotografia de Manuel António Filipe.   António Bon de Sousa Schiappa de Azevedo faleceu no Funchal a 17 de dezembro de 1926.   Manuel António Marques Madama de Sousa Filipe (atualizado a 10.10.2016)

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arquitetura militar

A consciência da necessidade de fortificação das ilhas atlânticas com vista às alterações do quadro estratégico do Atlântico Norte foi tardia, ao contrário do que sucedeu no Norte de África, onde uma população islamizada nunca aceitou de bom grado a presença portuguesa, obrigando à rápida construção de estruturas defensivas. No entanto, o termo arquitetura militar envolve outros pressupostos, inclusivamente teóricos, pelo que a sua incipiente instalação na Ilha, ao longo do séc. XV e perante a inexistência de um inimigo imediato, dificulta a escrita sobre o tema. Claro que se construíram estruturas defensivas, como a torre do Capitão, em Santo Amaro, no Funchal ou a torre dos Esmeraldos, na Lombada da Ponta do Sol, mas foi principalmente por questões de prestígio (Arquitetura senhorial). Mesmo o pedido de construção de uma fortaleza feito à infanta D. Beatriz, em 1475 e a construção do chamado baluarte do Funchal (a fortaleza e palácio de São Lourenço), em 1540, resultaram mais em edificações senhoriais do que militares, numa época em que já se começava a equacionar outro tipo de construções, mas não a entendê-las totalmente. Nos meados do séc. XV, começou a ser introduzido em Portugal armamento de fogo, o que, a par das novas bestas com tração mecânica, por exemplo, alterou os pressupostos das construções defensivas. A utilização de armamento de fogo pesado obrigou ao reforço das antigas muralhas com sapatas e, progressivamente, foram desaparecendo as altas torres de menagem, alvos facilmente reconhecíveis à distância e também facilmente derrubáveis. A primeira fortificação construída na Madeira, pedida em 1528, determinada em 1529, mas só levantada entre 1540 e 1541, dirigindo a obra o pedreiro Estêvão Gomes, era uma fortificação de transição, não sendo ainda aquilo que se denominaria posteriormente “fortificação moderna”, “regular”, divulgada pelos novos tratados internacionais. O baluarte do Funchal implicou a construção de uma torre semioval, assente nos afloramentos rochosos da praia, ostentando os emblemas e as armas reais, articulada com uma muralha a correr sobre o chamado altinho das fontes de João Dinis, que envolvia as casas do capitão. Ao lado das fontes, o baluarte ou fortaleza tinha um torreão-cisterna que, flanqueando a muralha, protegia a aguada dos navios e a população na praia do Funchal. A fortaleza do Funchal e a organização geral defensiva militar mostrou-se assim totalmente incapaz perante o ataque corsário francês de outubro de 1566. A fortaleza foi atacada por terra, onde não possuía qualquer proteção e, não sendo possível movimentar as pesadas bocas de fogo em direção ao mar, não resistiu ao ataque, sofrendo a cidade um pesado saque de cerca de 15 dias a que quase nada escapou. A partir de então, a atenção da corte de Lisboa virou-se para as ilhas atlânticas e, logo na armada de socorro enviada à Madeira, terá viajado um arquiteto militar altamente habilitado, o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), ligado à família dos arquitetos do mosteiro da Batalha, alguns militares continentais para reverem a organização das companhias de ordenanças e das vigias, ainda vindo alguns meses depois, dois técnicos militares italianos para o apoiarem. Data desta época a instalação em Lisboa de uma provedoria das obras reais, que passou a controlar a documentação expedida para o vasto império ultramarino português e à qual ficaria depois ligado o arquiteto mor do reino. O novo mestre das obras reais da Madeira, Mateus Fernandes, recebeu, nos primeiros dias de 1567, ordens várias, enviadas pela provedoria das obras, em Lisboa, entre as quais o Regimento das Vigias, datado de 22 de abril de 1567. Este documento serviu de ensaio ao regimento geral promulgado em todo o reino a 10 de dezembro de 1570. O Regimento das Vigias de 1567, dirigido ao capitão do Funchal, mandava montar vigias em todos os portos, “calhetas, praias ou pedras, em que parecesse que os inimigos poderiam desembarcar” (ARM, Câmara Municipal..., Registo Geral, tomo 2, fl. 142v.). Este regimento avança ainda com outras diretivas respeitante à artilharia, tendo sido a base de muitos dos pequenos fortes ou fortins depois levantados pela Ilha. Assim, no reconhecimento que o capitão e os restantes elementos deveriam fazer dos lugares para “guarda do mar”, “surgidouros e desembarcadouros”, também deveriam ser contemplados os lugares “para guarda da terra” (Id., Ibid., fls. 109-112v.). Nesses lugares, deveriam ser levantadas estâncias para colocar artilharia, cuja praça deveria ser “chã e calçada como convém”, para que o pessoal depois ali em serviço se pudesse movimentar bem e as “rodas dos reparos estarem sempre enxutas, sem humidade de água ou lama” (Id., Ibid.). Deveria ainda ser montada uma casa sobradada para a pólvora, tal como uma guarita para observação e vigia. Em março de 1567, Mateus Fernandes recebeu a visita e o apoio de dois arquitetos italianos, Pompeo Arditi (c. 1520-1571) e Tomás Benedito (c. 1520-1567), ambos de Pézaro, que lhe entregaram um primeiro regimento de fortificação para o Funchal, datado de 14 de março desse ano. Estes italianos, com quem o mestre das obras reais já teria contactado no Norte de África, ficaram na Ilha cerca de um mês e seguiram depois para os Açores, onde aquele último reformulou e dirigiu a nova fortaleza de S. Brás, em Ponta Delgada. Com esta colaboração, o mestre das obras do Funchal levantou uma planta da cidade, algo que poderá também ter feito antes, hoje na Biblioteca Nacional do Brasil e imaginou uma enorme fortaleza para o morro da Pena, a descer até à praia do Funchal, ocupando toda a zona velha, conforme a entendemos no começo do séc. XXI, ou bairro de Santa Maria Maior. Fortaleza da Pena-1567. Arquivo Rui Carita.   A fortaleza do morro da Pena previa a construção de um importante complexo fortificado sobre esse morro, descendo parcialmente sobre o bairro de Santa Maria com dois núcleos defensivos abaluartados, sendo a fortaleza parcialmente rodeada por fosso e tendo o total do conjunto uma dimensão que só veio a ter paralelo em Portugal durante o séc. XVII e com as guerras da aclamação de D. João IV. Mateus Fernandes ultrapassou francamente a sua época com um planeamento desta envergadura, o mais antigo que conhecemos em Portugal e que poderia recolher no seu interior toda a população da cidade do Funchal em caso de perigo. A existirem algumas semelhanças, somente com a fortaleza de S. Filipe, planeada dez anos depois para Setúbal pelo italiano Jacomo Palearo, el Fratin (c. 1520-1586) e levantada sob a direção de Filipe Terzi (1520-1597), ou com a congénere da Ribeira Grande, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, em princípio, projetada pelo mesmo Filipe Terzi, sendo que nenhuma delas tinha a dimensão da delineada para a do Funchal. O planeamento compreendia dois núcleos abaluartados: um sobre o morro da Pena e outro na baixa do bairro de Santa Maria, que desapareceu totalmente com a construção da monumental fortaleza. O núcleo mais alto, sobre o morro, era dotado com dois terraplenos, tendo o de cima quatro baluartes pentagonais e o de baixo dois baluartes retangulares, com canhoneiras a flanquearem as muralhas de união dos dois terraplenos. Indicam-se no projeto as diferenças de altura das várias áreas para o leito da ribeira de João Gomes, que chegavam aos 140 palmos, ou seja, quase 30 m. Um corredor murado sobre a ribeira ligava os dois núcleos, com canhoneiras a flanquearem os muros a norte e a sul, utilizando-se a ribeira ainda como fosso. O núcleo inferior possuía uma enorme esplanada, delimitada por um baluarte pentagonal e dois meios baluartes. Mas o planeamento não foi aceite em Lisboa, optando-se por um esquema mais tradicional e reduzido para a futura fortaleza de S. Lourenço, articulado com panos de muralhas (Muralhas do Funchal). D. Sebastião enviou, assim, um novo regimento de fortificação, em 1572, no qual a cidade era envolvida, na frente mar e ao longo das ribeiras de João Gomes e de São João, por panos de muralhas que fechariam nos morros da Pena e de São João com pequenas posições fortificadas. A fortaleza central da cidade foi ampliada com o planeamento feito por Mateus Fernandes para o núcleo superior do morro da Pena, mas reduzida a menos de um terço das dimensões iniciais. Ficou com dois baluartes pentagonais gémeos virados a norte e um quadrangular, a proteger a zona ocidental, mantendo a nascente o baluarte joanino de 1541. Mais tarde, por volta de 1600, veio a ser dotada de um novo baluarte pentagonal, projeto de Jerónimo Jorge (c. 1570-1617), para proteger a porta. Como apoio da fortaleza principal, foi executada uma pequena estância fortificada, a ocupar a foz das ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes, a futura fortaleza de S. Filipe da Pç. do Pelourinho, havendo um pano de muralha a unir ambas, mas do qual quase nada ficou. A cidade considerada por D. Sebastião era já um pouco maior do que a de D. Manuel, isto é, o limite oriental passou da ribeira de Santa Luzia para a de João Gomes. No entanto, o primitivo bairro de Santa Maria do Calhau continuou a não ser considerado cidade, só vindo a possuir o seu troço amuralhado alguns anos depois e num outro enquadramento histórico. No verão de 1582, face à ameaça das armadas de D. António, prior do Crato, com base no arquipélago dos Açores, Filipe II mandou avançar, das Canárias, o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598). As primeiras preocupações do conde de Lançarote foram para a segurança interna e externa da Ilha, começando por visitar as duas fortalezas com o mestre das obras reais Mateus Fernandes, inteirando-se do seu estado e das suas necessidades. Conforme informa a 18 e 26 de junho, a fortaleza velha era essencialmente um bom palácio residencial, mas encontrava-se cercada de edificações muito próximas e mais altas, pouco valendo, assim, como defesa. A nova ainda se encontrava em piores circunstâncias, pouco havendo a fazer para melhorar as suas condições, pois não só estava mal localizada como também se encontrava mal construída. Perante o conflito que opunha as forças de Filipe II às de D. António, prior do Crato, com franceses e ingleses, envolvendo muitas centenas de homens de parte a parte, a pequena estância “nova” da Pç. do Pelourinho do Funchal era mínima para as necessidades e a de S. Lourenço também oferecia muitas reservas face ao seu envolvimento. As fortalezas e o seu autor, o mestre das obras reais Mateus Fernandes, receberam as mais duras críticas dos governadores e técnicos desses finais de século, dado não estarem previstas para fazer frente a um conflito como o que se desenrolava. O problema de ampliação da muralha do Funchal à frente mar foi resolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), quando, em 1585, tomou posse da capitania do Funchal, determinando o prolongamento da muralha para nascente. Este troço de muralha ao longo do calhau chegou parcialmente ao séc. XXI, confrontando com o que é, no começo do segundo milénio, a entrada do hotel levantado no antigo arsenal de Santiago ou de S.ta Maria Maior. As obras do novo troço de muralha confinavam com os arrifes por de baixo da antiga igreja de Santiago Menor, justificando a construção de uma fortaleza nessa baixa. A fortaleza de Santiago deve ter tido projeto de Mateus Fernandes, mas terá sido reformulado depois por Jerónimo Jorge, enviado de Lisboa em 1595, até então a trabalhar nas obras de S. Julião da Barra e do forte do Bugio.   Penha de França. Arquivo Rui Carita.   Desde a união das duas coroas que se discutia no Funchal a muralha poente e a edificação de uma fortaleza no Pico dos Frias, “padrasto”, ou seja, mais alto que toda a cidade e, inclusivamente, com comandamento sobre a fortaleza de S. Lourenço, tendo sido elaborado, de imediato, um projeto da autoria de Mateus Fernandes (Fortaleza do Pico). A situação foi ultrapassada pelo governador Cristóvão Falcão de Sousa, que após tomar consciência das necessidades da defesa do Funchal, em finais de 1601, enviou a Lisboa o sargento-mor da cidade, Roque Borges de Sousa, com uma planta da nova fortificação, por certo, a que fora executada por Mateus Fernandes, pois só nessa altura voltou à Ilha o fortificador Jerónimo Jorge. Regressado o sargento-mor ao Funchal, logo a fortaleza foi levantada, mas somente em madeira, encontrando-se já guarnecida nos inícios de 1602 e sendo passada a pedra e cal ao longo do século. Durante a mesma centúria, ainda seria levantada a bateria da Alfândega (Reduto da Alfândega), constituída por um baluarte triangular avançado ao mar, construído sobre a cortina da cidade e a fortaleza do Ilhéu, no meio do porto do Funchal, ambas com projeto e direção do mestre das obras reais Bartolomeu João, (João, Bartolomeu). Consolidava-se, assim, uma rede de fortalezas modernas, constituídas por conjuntos de baluartes pentagonais, de paredes inclinadas e reforçados nos cunhais, como a fortaleza do Pico, quase de traçado regular, sendo a artilharia colocada nas esplanadas dos mesmos. As novas fortificações adaptavam-se ao terreno e às restantes estruturas defensivas, como os muros da cidade, podendo ser apenas quase estâncias de tiro e formando um conjunto articulado, cruzando fogos obrigatoriamente entre si. O centro de comando era a fortaleza de S. Lourenço e, dada a sua localização, a do Pico funcionava como cidadela ou seja, de recurso e refúgio para o caso de invasão da baixa da cidade. A defesa e a fortificação da Madeira foram revistas várias vezes no séc. XVII, mas os elementos produzidos não chegaram até nós. Nos finais da centúria, por exemplo, deslocaram-se à Madeira o capitão de engenheiros António Rodrigues Ribeiro e o engenheiro Manuel Gomes Ferreira, mas apenas sabemos que teria sido então executado o portão dos Varadouros, datado de 1689. Mais tarde, em 1705, Manuel Gomes Ferreira, citaria que haviam feito um levantamento quase total das costas da Ilha, mas do qual nada conhecemos. Tudo leva a crer que estes trabalhos tivessem ido com os seus autores para Lisboa e aguardassem aí despacho favorável, perdendo-se no curso do tempo. A primeira grande campanha de obras de fortificação do séc. XVIII decorreu no governo de Duarte Sodré Pereira, um fidalgo mercador que tomou posse a 29 de abril de 1704. Como ficou exarado no demolido forte novo de S. Pedro (Forte novo de S. Pedro), na praia do Funchal e onde se construiu mais tarde o campo do Almirante Reis, o governador mandou levantar esse forte, juntamente com os de Machico (Fortes de Machico), Santa Cruz (Fortes de Santa Cruz) e Ribeira Brava (Fortes da Ribeira Brava), que se guarneceram de artilharia, tendo-se concluído todos os trabalhos em 1707. A data é referente ao forte novo de S. Pedro, pois a campanha geral de obras só foi terminada entre 1708, data limite das lápides e 1711, ano das últimas nomeações para os mesmos fortes. As estruturas levantadas não se afastam especialmente das do século anterior, embora tenham definido um novo modelo de fortificação triangular de uma só bateria, em que o lado virado a terra, em algumas, aparece dotado de torreão de gola, como no de S. Bento da Ribeira Brava, datado de 1708, ou no de S. João Batista do Porto Moniz, mais tardio, datado de 1758 (Forte do Porto Moniz). Nos finais do séc. XVIII procedeu-se a novo estudo de defesa da Ilha, determinado por D. Maria I, com data de 11 de junho de 1797, como vem referido na cartografia então levantada, pois não conhecemos registos no governo local. Para cumprir o plano determinado por D. Maria I, deslocou-se no ano seguinte para a Ilha o major do regimento de artilharia da corte, Inácio Joaquim de Castro, nomeado cavaleiro da Ordem de Cristo a 4 de dezembro de 1778, depois governador da ilha de São Miguel, nos Açores e da torre de S. Julião da Barra, em Lisboa. A instabilidade política dos anos seguintes não permitiu qualquer obra de fortificação e o que fora proposto em nada alterava o que estava feito. Os acontecimentos dos inícios do século seguinte, com a saída da corte para o Brasil, as ocupações inglesas do Funchal e mesmo a terrível aluvião de 1803, não só alteraram profundamente estes estudos como os levaram a outras resoluções, onde houve que equacionar não apenas a defesa imediata contra um ataque exterior. Com a referida aluvião, ocorrida a 9 de outubro, foi destacada para o Funchal uma equipa de engenheiros militares chefiada pelo brigadeiro, de origem francesa, Reinaldo Oudinot (1747-1807) e da qual fazia parte o então tenente Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), cujo primeiro trabalho foi o levantamento da planta do Funchal e dos estragos causados pela aluvião, porventura a melhor peça cartográfica efetuada na Madeira até essa data. A equipa foi para a Madeira, essencialmente, para colmatar os estragos da aluvião de 1803, mas num curto espaço de tempo alargou o trabalho à reforma da carta topográfica da Ilha e à defesa do Funchal, não só das intempéries, mas também numa perspetiva militar propriamente dita. Ao longo do ano de 1805, em abril, por exemplo, o brigadeiro Oudinot e Paulo Dias de Almeida ainda executaram as plantas da nova bateria das Fontes, que representa toda uma outra forma de entender a defesa e a arquitetura militares. A ideia já não era construir fortificações adaptadas ao terreno, mas grandes esplanadas capazes de receber as novas bocas de fogo, muito maiores do que as anteriores, necessitando assim de todo um outro campo de manobra. A bateria das Fontes veio a receber grande parte da guarnição da fortaleza e palácio de S. Lourenço, que a partir dos últimos anos do século anterior passara, essencialmente a palácio. Mais tarde, em 1824, sob a direção do brigadeiro engenheiro Raposo, o então tenente-coronel Paulo Dias de Almeida planeou uma estrutura idêntica de bateria rasante para a frente da velha fortaleza de Santiago, integrada então no novo molhe do cais do Funchal e que o mar rapidamente destruiu. Nos anos seguintes, Paulo Dias de Almeida dirigiu uma ampla campanha de obras militares nos pequenos fortes e vigias, desde o Funchal até Machico, motivada pela possibilidade de desembarque dos absolutistas, o que veio a acontecer a 22 de agosto de 1828, na baía daquela vila. A mais importante estrutura defensiva desta área era o forte novo do Porto Novo (Fortes do Porto Novo e Caniço), reforçado com forças mercenárias inglesas, porém, a explosão do paiol do mesmo levou à debandada das forças liberais, entrando os absolutistas no Funchal sem qualquer resistência. Os meados do séc. XIX assistiram à emergência dos engenheiros militares, aliás, e ao longo de décadas, à frente do governo português, verificando-se o mesmo, embora apenas pontualmente, na Madeira. Mas o seu domínio revelou-se essencialmente nas obras públicas, sendo necessário esperar pelos alvores da Primeira Grande Guerra para se fazerem obras especificamente militares no Funchal, de certa forma improvisadas, com as novas baterias de costa da antiga Q.ta Vigia e a bateria da Cancela, que dotadas com material do século anterior, pouco efeito tiveram nos dois bombardeamentos alemães sofridos pela cidade. Os trabalhos levados a efeito, tal como os seguintes, de 1940, com o deflagrar da Segunda Grande Guerra, no entanto, não se enquadram já bem na área da arquitetura militar, mas sim na da defesa. Nos finais do séc. XX houve um especial interesse pela arquitetura militar na ilha da Madeira, dadas as caraterísticas, de certa forma inovadoras, que a mesma possuía. Assim, foi objeto de uma exposição, efetuada nas comemorações nacionais do Dia de Portugal no Funchal, em 1981 e, no ano seguinte, remontada na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa e, ainda depois, na Casa do Infante, no Porto e em Vila Viçosa. Em sequência e dentro do processo autonómico, muitas dessas edificações, já então sem específico interesse militar, vieram a transitar para a tutela da RAM.       Rui Carita (atualizado a 10.10.2016)

Arquitetura História Militar Património

andrade, osvaldo da conceição vieira de

Oficial do exército português. Nasceu no dia 6 de fevereiro de 1891, tendo recebido o batismo a 18 de abril do mesmo ano, na igreja paroquial de São Pedro, concelho e Diocese do Funchal. Era filho legítimo de António José de Andrade, natural da vila de São Vicente, negociante e proprietário, e de sua mulher Juliana Teodolinda Vieira, natural da freguesia de São Pedro, Funchal, que haviam contraído matrimónio a 6 de outubro de 1887. Era neto paterno de Francisco José de Andrade e de Silvéria Teresa de Jesus; e neto materno de Manuel Vieira e de Joana Constância Vieira. A 13 de maio de 1936, casou-se com Jeannette Albertine Tellapier, na 2.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa. Em 1917, tomou parte, como aspirante a oficial de artilharia, na revolta militar de 5 de dezembro, liderada por Sidónio Pais. Pouco depois, a 31 de agosto de 1918, já alferes de artilharia, partiu para França integrado no Corpo Expedicionário Português (CEP). Incorporado no 11.º Corpo de Artilharia Inglesa, participou na tomada de Lille e na de Tournai, em outubro e em novembro de 1918, respetivamente, tendo regressado a Portugal a 21 de março de 1920. Anos mais tarde, cooperou de forma ativa na preparação do golpe militar de 28 de maio de 1926, liderado pelo Gen. Gomes da Costa, que pôs fim à Primeira República; e em setembro de 1931, esteve envolvido, segundo relatório da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, datado de 1935, no movimento de revolta militar: chegou a estar a postos para sair com um destacamento para a revolução, mas isso acabou por não suceder. Ao longo da carreira, desempenhou distintas e importantes missões de serviço, tendo sido ajudante de campo do ministro de Guerra Cor. Fernando Freiria e do Gen. Passos e Sousa durante o período em que este foi governador militar de Lisboa. Aquando da sua morte, encontrava-se na situação de reserva, prestando serviço na Secretaria do Ministério da Guerra. Foram vários os louvores registados na sua caderneta militar e também várias as condecorações com que foi galardoado. Em 1920, recebeu um louvor pela competência e o empenho evidenciados durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1922, foi agraciado com o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Cristo. Em 1925, quando era tenente de artilharia de campanha, foi condecorado com a medalha de prata de serviços distintos da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha, com a legenda “Revolta Militar de Lisboa, 18-IV-1925”. No ano seguinte, numa altura em que já ascendera a capitão de artilharia, foi-lhe atribuído o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Avis e, em 1930, o grau de oficial da mesma Ordem. Não obstante, o seu processo do CEP contém uma advertência, posteriormente riscada, segundo a qual teria sido punido com a pena de repreensão por ter agredido e insultado o clarim no dia 5 de março de 1919, aquando da distribuição de uma refeição. Além do distinto percurso militar, destacou-se noutras áreas. Enquanto residente na ilha da Madeira, foi redator do jornal O Direito e, posteriormente, do Diário de Notícias, periódico onde trabalhou alguns anos. Mais tarde, em Lisboa, foi um dos fundadores e diretores da Casa da Madeira, fundada a 18 de março de 1931, cuja primitiva direção era presidida por Daniel Rodrigues de Sousa. A propósito desse grémio, Osvaldo de Andrade concedeu uma longa entrevista ao Diário de Notícias do Funchal, publicada na primeira página do jornal, a 27 de março de 1931, na qual deu a conhecer o novo organismo e os seus desígnios. Nos anos seguintes, permaneceu na direção da Casa da Madeira, tendo sido reeleito primeiro secretário para os biénios 1935-1936, 1937-1938 e 1939-1940. Por outro lado, em 1933, integrou, juntamente com Carlos Meireles da Silva Carvalho, inspetor de saúde, e Manuel Gonçalves Monteiro, subdiretor da Alfândega de Lisboa, a comissão administrativa que substituiu os corpos gerentes da Cruzada das Mulheres Portuguesas, após divergências no seio daquela associação. Durante as cerca de três décadas que morou na capital, visitou a Madeira numa única ocasião, em janeiro de 1948, na companhia da esposa, para uma vilegiatura de algumas semanas – efeméride que não deixou de ser noticiada pela imprensa periódica local, como foi o caso do Diário da Madeira. Morreu em Lisboa, na sua residência, na manhã do dia 17 de janeiro de 1951, vítima de doença prolongada.   Ricardo Pessa de Oliveira (atualizado a 22.09.2016)

História Militar Personalidades

alterações climáticas

As alterações climáticas apresentam-se nos alvores do séc. XXI como um dos temas que mais atenção tem recebido por parte da comunidade científica, decisores políticos e económicos. Esta importância advém não só da magnitude dos impactes negativos que lhes têm sido associados ao nível dos ecossistemas e atividades económicas, como também da magnitude dos impactes potenciais previstos em função de projeções climáticas produzidas. As mudanças climáticas são um processo comum ao longo da história geológica da Terra, sendo mesmo interpretado como uma norma e não como a exceção. Vários registos fósseis permitem inferir mudanças profundas nas condições paleoambientais, onde se identificam oscilações climáticas que contemplam tanto períodos quentes e húmidos, aos quais se associa a expansão das massas florestais, como períodos frios, caracterizados pela expansão das massas de gelo continentais e calotes polares. Esta oscilação climática bastante pronunciada é evidente em escalas temporais da ordem dos milhares ou milhões de anos. Se a escala temporal for reduzida para a ordem das centenas de anos, então essas variações assumem uma oscilação muito menos significativa, como é possível inferir a partir da análise de registos históricos, onde apenas é possível identificar, no caso das plantas, mudanças fenológicas com base nos registos da época das colheitas, induzir impactes associados através da arte, como no caso da pintura durante a Pequena Idade do Gelo na Europa (séc. XV a séc. XVIII), ou através dos anéis de crescimento de árvores (dendrocronologia). Mas foi o registo contínuo do comportamento dos elementos climáticos  (v.g.: temperatura, precipitação, humidade relativa, etc.) que permitiu identificar mudanças climáticas a escalas ainda mais finas que o século. Foi com base nos registos efetuados (séries climáticas), numa parte significativa do globo terrestre durante o séc. XX, que foi possível confirmar as tendências de aquecimento climático na segunda metade deste século, determinado por um aumento da temperatura média. Identificado como “aquecimento global”, vários são os impactes que lhe são associados, nomeadamente a fusão dos gelos dos glaciares continentais e calotes polares, maior intensidade e frequência dos paroxismos climáticos (ciclones tropicais, precipitações intensas, secas prolongadas), alterações nas rotas de espécies migratórias, modificações na distribuição de animais e plantas, redução do número de dias com cobertura nivosa, bem como a antecipação da fusão da cobertura nivosa, entre outros. Esta tendência climática, evidente a partir dos anos 70 nas análises de tendências climáticas, tem sido relacionada com o aumento da concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera, uma consequência da intensificação e expansão de atividades humanas que dependem energeticamente do consumo de combustíveis fósseis, cuja combustão é responsável pela libertação de grande quantidade de gases com efeito de estufa para a atmosfera (v.g.: dióxido de carbono). Além de ter sido considerada estatisticamente significativa, esta tendência climática teve já reflexos, nomeadamente em termos fenológicos, promovendo uma antecipação da época de floração e frutificação nas plantas. O impacte das mudanças climáticas nas ilhas da Macaronésia Apesar das diferenças em termos de magnitude e direção nas mudanças climáticas projetadas, é expectável que os impactes associados às mudanças climáticas sejam inflacionados por sinergias entre fatores em pequenas ilhas habitadas, nomeadamente devido às consequências do uso do território pelas atividades humanas. O grau de vulnerabilidade destes territórios depende muito dos respetivos atributos geográficos e do domínio em análise. No caso de alguns arquipélagos da Macaronésia (Madeira, Canárias), o seu caráter insular e posicionamento foi determinante para explicar o seu papel como refúgios para elementos florísticos relacionados com a flora paleotropical, que aqui sobreviveram às crises climáticas plio-pleistocénicas, responsáveis pela sua extinção nos territórios continentais próximos, uma dinâmica confirmada por estudos filogenéticos e registos fósseis. Estes arquipélagos mantiveram condições ambientais adequadas à permanência de vegetação perenifólia de folhas largas, já extinta no território europeu desde o final do Pliocénico (Piacenziano – 3,6-2,6 Ma), devido a um processo de degradação climática iniciada no final do Miocénico. Na verdade, um clima quente, húmido e sem estações bem definidas, que permitiu a presença de flora paleotropical na Europa ocidental até ao Miocénico (23-5,3 Ma), deverá ter persistido até ao Pliocénico médio (4,1 Ma) nos arquipélagos atlânticos, uma inferência suportada na presença de registos fósseis em depósitos marinhos mio-pliocénicos nas Canárias orientais, nomeadamente gastrópodes marinhos de águas pouco profundas atualmente associadas a latitudes tropicais. O arrefecimento climático associado aos reajustes na circulação oceânica e atmosférica decorrentes do encerramento definitivo do istmo do Panamá (2,5 Ma) deverá ter implicado algumas mudanças espaciais, e talvez florísticas, na organização dos tipos de vegetação neste grupo de arquipélagos atlânticos, sem que no entanto possam ser comparadas com as alterações que ocorreram nesse período nos territórios continentais Europeu e Norte Africano. É precisamente neste período, marcado pela formação de calotes polares no hemisfério Norte, que se define a influência da cintura de altas pressões subtropicais, reforçando a estacionalidade das condições climáticas no sentido da mediterranização do clima devido a uma redução e concentração dos totais pluviométricos, suportando a definição de um regime climático estruturado em função de uma estação seca. O vigor desta estação seca terá sido menor nas ilhas oceânicas, principalmente nos arquipélagos mais setentrionais, onde a posição latitudinal (arquipélago dos Açores), o predomínio de massas de ar húmido, e as condições orográficas (ilha da Madeira) garantiram valores de precipitação anual mais elevados comparativamente aos territórios continentais. As condições orográficas terão sido mesmo determinantes no caso dos arquipélagos da Madeira e Canárias, pela presença de barreiras montanhosas perpendiculares aos ventos dominantes de nordeste. As massas de ar húmido, impelidas contra as ilhas durante a estação mais seca pelo impulso gerado pelos ventos Alísios, deveriam garantir valores de humidade relativa elevados, principalmente nas vertentes a barlavento, onde, à semelhança do padrão climático registado ao longo do séc. XX, seria muito frequente a formação de nevoeiros. Aliás, é neste enquadramento topográfico que se encontram as manchas mais significativas de laurissilva na ilha da Madeira e algumas ilhas do arquipélago das Canárias (Tenerife, La Gomera, La Palma). A favorecer a permanência desta flora esteve ainda o facto de o rigor do inverno, traduzido no registo de temperaturas negativas que promovem a formação de geada ou a ocorrência de precipitação no estado sólido, apenas tocar ligeiramente os picos mais elevados das ilhas (ilha do Pico nos Açores, maciço central na ilha da Madeira, pico Teide na ilha de Tenerife e maciço do Roque de los Muchachos na ilha de La Palma – Canárias). Poderá, no entanto, ter sido mais importante nos períodos mais frios, como na Pequena Idade do Gelo, provocando mesmo uma significativa contração da floresta de planifólios e formações termófilas de caráter mediterrâneo durante o último máximo glaciário (18-11,6 Ka), em paralelo com a expansão de comunidades dominadas por urzes, zimbro e teixo (nas Canárias verifica-se a expansão de Pinus canariensis), um cenário suportado pela análise de sequências sedimentares de fundos marinhos. Esta variação das condições climáticas pode ainda ser inferida a partir de depósitos costeiros, onde a alternância de fácies permite diferenciar: i) períodos mais frios e secos, caracterizados pela acumulação de areias eólicas de origem marinha, disponibilizadas num contexto de nível do mar mais baixo; ii) períodos mais quentes com alguma humidade, onde se identificam processos de pedogénese (construção de solo), embora muitas vezes incipientes, e restos vegetais, indicando condições ecológicas adequadas à colonização vegetal; iii) períodos de grande aridez, identificados por níveis de calcretos (precipitação de carbonatos). Todas estas variações climáticas permitiram, no entanto, que nestes arquipélagos atlânticos tivessem subsistido elementos florísticos com afinidade à flora paleotropical, como sejam alguns taxa associados à laurissilva, como fanerófitos perenifólios de folha larga, e pteridófitos, os quais estão incluídos no registo fóssil do território europeu, principalmente na Península Ibérica, onde terão permanecido até mais tarde, comparativamente à restante Europa. Um dos últimos momentos em que as mudanças climáticas implicaram significativas alterações ao nível dos ecossistemas ocorreu há cerca de 18.000 anos, e ficou conhecido por último máximo glaciário, tendo-se caracterizado por um período de arrefecimento muito pronunciado. Neste período, o território continental europeu registou um aumento significativo de glaciares de montanha, e registou uma redução significativa das florestas caducifólias temperadas, ao passo que se verificou um aumento significativo de vegetação associada a ambientes frios. Os arquipélagos atlânticos, dada a sua condição insular, beneficiaram do efeito suavizante do oceano, pelo que o processo de arrefecimento não terá sido tão pronunciado. No entanto, é expectável que tivessem ocorrido ajustes espaciais na representatividade dos tipos de vegetação presentes nas ilhas, no sentido de uma expansão dos tipos de vegetação mais tolerantes ao frio, como sejam os dominados por espécies como as urzes, o teixo, o zimbro e a sorveira. Mudanças climáticas na ilha da Madeira Nos registos históricos produzidos após a ocupação das ilhas no séc. XV é possível detetar o reflexo atenuado de mudanças climáticas, que no território continental europeu produzem impactes significativos. Na ilha da Madeira, a um avanço registado no período das colheitas nos sécs. XV e XVI, associado a um período mais quente, sucede um período mais frio e húmido nos sécs. XVII e XVIII, com o consequente atraso no período das colheitas. Esta oscilação corresponde à transição entre o período quente da Alta Idade Média e o período identificado como Pequena Idade do Gelo, sendo este último período caracterizado pela frequência de invernos muito rigorosos e longos, bem como verões muito curtos. Em termos de tendências climáticas no séc. XX, a análise das séries climáticas do Funchal, uma das estações com registo mais longo no arquipélago da Madeira, permite verificar alguma coincidência temporal ao nível das tendências climáticas identificadas para territórios europeus para o mesmo período. O padrão identificado mostra um aumento mais significativo da temperatura média a partir de 1975, suportado principalmente por uma diminuição da amplitude térmica diária, já que a temperatura mínima sofre um aumento superior ao registado pela temperatura máxima. Verifica-se mesmo um aumento do número de dias com temperaturas superiores a 25 °C no verão, bem como um aumento do número de noites tropicais (temperatura mínima superior a 20 °C). Ainda que não se identifique uma tendência clara em termos de precipitação, é identificado um aumento do número de verões sem registo de precipitação. Estas tendências climáticas, nomeadamente as associadas ao comportamento da temperatura média, que parecem configurar uma situação de tropicalização do clima, podem ter reflexos ao nível da saúde pública, nomeadamente pela ocorrência de doenças associadas aos ambientes tropicais, como é o caso de registos de dengue, cuja ocorrência no início do séc. XXI é consistente com esta suposição. Projeções climáticas para a ilha da Madeira feitas no começo do séc. XXI As projeções climáticas criadas para a ilha da Madeira estão baseadas no modelo Clima Insular à Escala Local (CIELO), um modelo climático construído para regionalizar (downscaling) parâmetros climáticos para o contexto de pequenas ilhas montanhosas, a partir dos resultados produzidos por modelos oceano-atmosfera de larga escala, como os modelos Hadley Centre Coupled Model, versão 3 (HadCM3) ou CSIRO Atmospheric Research, Australia (CSIRO_MK3.6), os quais suportam as projeções climáticas em cenários de emissão de gases com efeito de estufa (Special Reports on Emission Scenarios – SRES). Dadas as incertezas que subsistem em termos de comportamento futuro dos vários parâmetros que servem de base à criação destas projeções, são consideradas várias situações, identificadas como cenários possíveis: A1B, A1T, A1Fl, A2, B1 e B2. Cada cenário climático está associado a um determinado cenário de emissão de gases com efeito de estufa, que por sua vez está ancorado em parâmetros sócio-demográficos, económicos e tecnológicos precisos. Isto porque a dinâmica de emissão de gases com efeito de estufa está muito associada à variação em termos de consumo de combustíveis fósseis, o qual é condicionado pela dinâmica ao nível dos referidos parâmetros. Esta relação é a base da teoria que apresenta o aumento da concentração de gases com efeito de estufa como fator determinante para o fenómeno de aquecimento global identificado no final do séc. XX e início do séc. XXI, sendo este aumento o reflexo da dinâmica económica e demográfica, das condições sociais e do desenvolvimento tecnológico pós-Revolução Industrial. No caso da ilha da Madeira, as projeções climáticas, regionalizadas pelo modelo CIELO, baseiam-se no modelo de larga escala HadCM3. Em termos de precipitação, os cenários projetam um decréscimo dos valores anuais na ordem dos 20 a 35%, com perdas mais acentuadas na face Sul da Ilha. Em termos absolutos, as perdas mais elevadas são projetadas para os topos da Ilha, e podem atingir os 800 mm. Estes valores médios escondem, no entanto, tendências contraditórias ao nível estacional. Os cenários projetam um aumento dos valores de precipitação no período de verão, particularmente importantes na face Norte da Ilha no âmbito do cenário A2. Apesar de este aumento projetado para o verão não permitir superar o decréscimo previsto para o inverno, outono e primavera, revela-se como importante do ponto de vista ecológico, pois ocorre no período em que a disponibilidade de água representa uma limitação importante para as funções dos ecossistemas da Ilha. Ao nível da temperatura projeta-se um aumento em todos os cenários (v.g.: A2: 2,4-3 °C; B2: 1,6-2.2 °C), um aumento que se prevê mais pronunciado nas áreas costeiras da face Norte da Ilha. No inverno o aumento projetado para a temperatura média está estruturado principalmente pelo aumento mais significativo da temperatura mínima, promovendo uma redução das amplitudes térmicas diárias, sendo este aumento previsto mais significativo nos topos da Ilha. Estas projeções desencadearão um processo de reajuste dos sistemas naturais, o que certamente terá reflexos nos recursos naturais, principalmente em pequenas ilhas, como é o caso da ilha da Madeira, com reflexos importantes nas sociedades cujas atividades dependem da exploração destes recursos. No caso da ilha da Madeira, os reflexos podem ocorrer em vários domínios, de forma direta ou indireta: i) na disponibilidade de recursos hídricos, fortemente dependente das condições climáticas; ii) no aumento da vulnerabilidade à ocorrência de paroxismos climáticos, como o aumento da frequência e intensidade de eventos de precipitação intensa, favorecendo um aumento da suscetibilidade à ocorrência de episódios de aluvião; iii) pela subida do nível do mar, com importantes reflexos na área costeira, principalmente devido à concentração das áreas urbanas e infraestruturas ligadas ao turismo em áreas de baixa altitude junto mar; iv) o aumento da vulnerabilidade à proliferação de doenças tropicais (dengue, malária, febre do Nilo Ocidental), pela possibilidade de ocorrer a instalação de vetores, com implicações na saúde pública e na atratividade do destino turístico; v) devido a mudanças nas florestas nativas da Ilha, não só por fatores internos, associados às exigências ambientais das espécies que as constituem, como por fatores externos, como o aumento do risco meteorológico de incêndio florestal; vi) a extinção/extirpação de espécies endémicas por alterações nos habitats. Todas estas alterações, com múltiplas relações com diferentes sectores, podem promover um “efeito cascata”, provocando um impacte muito forte no equilíbrio da Ilha. Ao nível dos recursos naturais, os recursos hídricos, as florestas nativas e a biodiversidade mereceram já especial atenção ao nível da definição de medidas de mitigação de impactes e adaptação a novas condições, dadas as vulnerabilidades identificadas. Impactes previstos nos recursos hídricos Tendo em conta a redução prevista dos totais pluviométricos anuais e o possível reforço da irregularidade ao nível do regime pluviométrico, é de esperar uma redução dos recursos hídricos disponíveis. Esta previsão é reforçada pelo facto de a redução prevista de totais pluviométricos ocorrer principalmente nos sectores de maior altitude, sectores onde ocorre preferencialmente o processo de recarga do sistema aquífero da Ilha. Esta previsão, com potenciais problemas no abastecimento, desencadeou a necessidade de definir planos de adaptação. Estes impactes poderão ser mais significativos se for considerado o importante contributo da precipitação oculta para o balanço hídrico da Ilha, o qual pode sofrer uma redução devido a uma alteração na posição e intensidade dos centros barométricos que determinam o padrão climático da Ilha. Refira-se a ação do anticiclone dos Açores, motor responsável pela frequência dos ventos Alísios, e um fator determinante para a formação de nevoeiros de origem orográfica na face a barlavento da Ilha, responsáveis pela ocorrência do tipo de precipitação mencionada. Impactes previstos na distribuição da flora endémica A flora endémica, nomeadamente as espécies exclusivas de distribuição mais restrita, pode apresentar maior suscetibilidade às mudanças climáticas projetadas, sofrendo alterações mais significativas na sua distribuição. Além de estarem associados a condições ecológicas específicas, a elevada suscetibilidade é reforçada pela elevada fragmentação e perturbação dos seus habitats, resultantes do padrão de uso do solo vigente durante séculos nas suas áreas de distribuição potencial. É expectável que as espécies endémicas, cuja distribuição atual está resumida a um reduzido número de populações constituídas por poucos efetivos nos topos das ilhas, figurem como o tipo de endemismo que apresenta susceptibilidade mais elevada aos impactes das mudanças climáticas, podendo verificar-se a extinção de condições adequadas à sua ocorrência. Entre os endemismos que mais se associam a esta descrição está o ameixieiro de espinho (Berberis maderensis Lowe), a sorveira (Sorbus maderensis (Lowe) Dode), a arméria da Madeira (Armeria maderensis Lowe) ou a urze da Madeira (Erica maderensis (Benth.) Bornm). [caption id="attachment_11692" align="aligncenter" width="807"] Fig. 1 – Área de ocorrência potencial, para as condições climáticas dos começos do séc. XXI, dos endemismos Berberis maderensis (A) e Sorbus maderensis (B).Fonte: FIGUEIREDO, 2013.[/caption] São espécies que apresentam uma reduzida área de ocorrência potencial nos começos do séc. XXI (fig. 1), e os modelos preveem que em cenários climáticos futuros deixem de estar reunidas as condições adequadas à sua presença na Ilha, o que, aliado à sua atual restrição geográfica nos cumes da Ilha e reduzido número de populações de poucos indivíduos, pode configurar uma combinação deletéria de fatores, favoráveis à sua extinção. Impactes previstos nas florestas nativas Os impactes das alterações climáticas podem acarretar mudanças ao nível da área ocupada e composição florística das comunidades vegetais, pois os diferentes organismos, árvores ou arbustos, terão respostas diferenciadas perante as alterações das condições ecológicas derivadas. Dada a resiliência que massas florestais adultas apresentam em relação a mudanças ao nível das condições ambientais, é possível que os impactes das mudanças climáticas projetadas se manifestem primeiro em termos de vulnerabilidade a pragas e doenças, e só depois sejam percetíveis em termos de alterações de distribuição de algumas plantas, sem que a estrutura seja de imediato especialmente afetada. Segundo A. Figueiredo, e considerando apenas as projeções para dois cenários climáticos (A2 e B2), as alterações na área de distribuição potencial dos diferentes tipos de florestas presentes na Ilha (florestas e micro-florestas) variam conforme o cenário considerado, podendo mesmo apresentar tendências opostas. [caption id="attachment_11698" align="aligncenter" width="673"] Fig. 2 – Área de ocorrência potencial da laurissilva do til para as condições climáticas e começos do séc. XXI (A) e para o cenário A2 (B). Fonte: FIGUEIREDO, 2013.[/caption] Segundo o autor, os modelos prevêem um aumento da área adequada à ocorrência do zambujal, principalmente na face Sul da Ilha, e da área adequada à ocorrência da laurissilva mediterrânea (laurissilva do barbusano), resultado de uma expansão em altitude na face Norte, superando a perda prevista para os sectores de menor altitude no lado Sul da Ilha. Apesar de os resultados dos modelos apontarem para um aumento da área potencial de ocorrência destes bosques, a verdade é que vários fatores podem condicionar esta previsão. Ambos os tipos de bosque estão na atualidade reduzidos a pequenas manchas limitadas a enclaves, o que limitará certamente a possibilidade de se reinstalarem nas áreas envolventes, a maior parte associadas a uso agrícola ao longo de séculos. Ou mesmo colonizarem novas áreas, dado o reduzido número de áreas-fonte de propágulos disponíveis. Mesmo considerando a importância da área agrícola afetada pelo abandono, o que poderia ser um fator favorável, desconhece-se a capacidade que as espécies estruturantes destes bosques apresentam em termos de competição com espécies exóticas invasoras, com algumas das quais apresentam uma sobreposição muito significativa em termos de áreas previstas como adequadas à sua ocorrência. No caso da laurissilva do til, também designada por laurissilva temperada, a floresta nativa que ocupa maior área no começo do séc. XXI, as alterações na sua distribuição, nomeadamente uma redução da área potencial, podem significar perdas importantes, dado o papel relevante ao nível do fornecimento de serviços (turismo, biodiversidade, proteção dos solos, balanço hídrico). A perda significativa da área adequada à ocorrência deste tipo de bosque, no âmbito dos resultados obtidos para o cenário A2 (fig. 2), está prevista para os sectores de menor altitude, enquanto se verifica uma expansão da área adequada a esta floresta nos sectores de maior altitude da Ilha, nomeadamente nas cabeceiras dos vales que se instalam nos maciços montanhosos e na bordadura norte do Paul da Serra. Esta expansão para sectores de maior altitude determinará certamente uma redução da área potencial dos urzais de altitude, reduzidos a pequenas manchas no início do séc. XXI. A avaliação dos impactes das mudanças climáticas na distribuição dos organismos na ilha da Madeira, nomeadamente das plantas, deve ter em conta o facto de que grande parte dos habitats foi de alguma forma perturbado pelas atividades humanas. Assim, a distribuição das espécies está certamente enviesada pela fragmentação de habitats, uso do solo, etc., o que favorece um aumento da incerteza nos resultados dos modelos. Como a área profundamente alterada pelas atividades humanas constituirá um obstáculo à ocupação de novas áreas pela vegetação nativa, ajustando-se a um novo padrão climático, será benéfico considerar possíveis cenários de mudança no uso do solo, tendo em conta tendências observadas no final do séc. XX e início do séc. XXI, permitindo uma interpretação mais adequada dos resultados dos modelos, considerando a sua importância para a definição de medidas de mitigação e adaptação a novas condições climáticas.   Albano Figueiredo Miguel Sequeira (atualizado a 14.09.2016)

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alfenim

Tradicional em alguns países, a confeção de alfenim está documentada em Portugal desde os sécs. XV e XVI e sabe-se da sua presença em festas e romarias populares. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido um espaço-chave da sua divulgação para outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul. Durante os sécs. XV e XVI, o fabrico de alfenim ocupou muitos madeirenses e foi uma importante fonte de receita das famílias. Nos inícios do séc. XXI, não há qualquer referência ao fabrico habitual de alfenim na Madeira. Palavras-chave: açúcar; Brasil; doçaria; festas do Divino Espírito Santo; tradições populares.   “Alfenim” é um nome que provém do termo árabe “fanid”, com origem no persa “panid”, com o significado de branco. No latim, aparece como “alphanicum”, “alfenid”, “alpenid” ou “alfanix”; no italiano, como “penito”; no espanhol, como “alfeñique” (sendo, no México, “alfenique”); em francês, como “penides”, “épénide”, “penidon”, “penoin”; popularmente, é conhecido como “peningue”. O primeiro registo do termo na Madeira é de 1469, com a grafia “alfinij”. No séc. XVI, aparece referido em Gil Vicente e em Jorge Ferreira de Vasconcelos. Naidea Nunes refere que, na Madeira, “alfenim” aparece na documentação com as designações: “alfinij” (1469), “alffiny” (1488), “alfenjm” (1490, 1517), “alfenj” (1498), “alfeny” (1517), “alfynjm” (1523), “alfenij” (1579), e conclui que é “um termo muito antigo, do árabe fânid, que em catalão teria a forma affenic, adquirindo, em castelhano, a forma alfenique, que surge nas Canárias com a grafia alfinique (1540)” (NUNES, 2003, 159). O Nordeste do Brasil, uma das mais importantes regiões açucareiras do país, foi durante muito tempo terra de alfenim, tendo depois perdido a importância nesse domínio. Segundo Naidea Nunes, “no Brasil, o termo alfenim apenas existe no Nordeste, onde foi conservado, provavelmente por se tratar da primeira região açucareira brasileira. Nos restantes estados do Brasil, como podemos ver, apenas encontrámos as denominações rapadura mole, puxa e puxa-puxa ou rapadura puxa-puxa, para denominar o mesmo conceito” (NUNES, 2010, 56). Todavia, a arte do alfenim espalhou-se por todo o Brasil e, nos começos do séc. XXI, persiste nos estados da Paraíba, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, de Minas Gerais, do Ceará, de Pernambuco, de Goiás e do Rio Grande do Norte. Esta tradição encontra-se em Pirenópolis, associada às festas do Divino, e na cidade de Montanhas, no estado do Rio Grande do Norte, ligada às festas do dia de Reis, bem como noutras localidades, como a cidade de Goiás, onde as doceiras realizam pequenas esculturas em forma de flores, pássaros, peixes e chapéus. Gilberto Freyre, em Açúcar. Uma Sociologia do Doce…, documenta a presença do alfenim no Nordeste do Brasil como um vestígio da doçaria portuguesa de influência árabe. À data da primeira publicação do livro, em 1932, a tradição do fabrico de grande parte desta doçaria estava em vias de desaparecer. No entanto, nos começos do séc. XXI, por força das tradições em torno das festas do Divino, o costume de fabrico do alfenim persiste em muitas localidades brasileiras. Na Sicília, conserva-se a tradição dos doces de alfenim e de maçapão, principalmente no dia de Todos os Santos, em que as crianças recebem, como alegado presente dos antepassados, várias figuras de açúcar. A tradição do alfenim encontra-se também no México, com a elaboração de caveiras para o Dia dos Mortos, a 1 de novembro, em que se combinam elementos indígenas com costumes europeus. Os nauatles faziam figuras, normalmente caveiras, como oferenda aos seus mortos. Com a chegada dos Espanhóis, surgiram as figuras de caveiras em alfenim. A esta figuração, as freiras juntaram as cenas relacionadas com a época natalícia. Assim, o alfenim assume várias formas: caveiras, ataúdes, anjos, cruzes, miniaturas de animais ou de fruta, pratos com comida, canastras com flores, etc. Esta tradição persiste no México, tanto na Cidade do México como nos estados de Puebla e Oaxaca. Além disso, na cidade de Toluca, v.g., celebra-se, a 2 de novembro, a festa do alfenim. A produção de alfenim está também documentada na Argentina, na Bolívia, na Colômbia, no Peru e no Equador. Em Portugal, a confeção de alfenim está documentada desde os sécs. XV e XVI e sabemos da sua presença em festas e romarias populares. Ganhou importância no quotidiano da sociedade portuguesa a partir da divulgação do açúcar, desde meados do séc. XV. A Madeira, como espaço de produção de açúcar, especializou-se na arte da doçaria, domínio em que transpôs o seu perímetro, chegando aos Açores, às Canárias e ao Brasil. A partir do séc. XV, tanto em Portugal como em importantes cidades europeias, o consumo e a divulgação do açúcar passarão pela confeção de manjares nobres, sob a forma de doces – como o alfenim, a alféola (um doce semelhante ao caramelo), conservas e cascas de fruta cristalizada. Na Madeira, ficou célebre a doçaria conventual que fez as delícias de Ingleses, de Franceses e de flamengos. A par disso, o fabrico das figuras de alfenim fez de muitas mulheres madeirenses autênticas escultoras da doçaria. O alfenim fazia parte da mesa da Coroa e das casas nobres, e era, no séc. XVI, servido à nobreza em salvas de prata por ocasião das festas do Divino em todo o espaço português, tradição que teve continuidade na Madeira, nos Açores, e que chegou ao Brasil. Das mesas do reino, o alfenim passou às das ilhas e delas ao Brasil, acompanhando o processo de expansão da cultura da cana sacarina e do fabrico do açúcar. No Atlântico, o alfenim foi primeiramente produzido na Madeira, afirmando-se como o doce mais nobre, servido na casa das famílias importantes, e usado como dádiva nas festas do Divino. A oferta de doces está relacionada com uma atitude de gratidão ou mesmo de empatia. É uma tradição muçulmana que os Portugueses assimilaram. Vasco da Gama ofereceu alfenim madeirense ao samorim de Calecute. As freiras do Convento de S.ta Clara presenteavam os visitantes com alfenim e com outros doces. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido, como já ficou dito, um espaço-chave da sua divulgação para outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul. São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes doces. Já em 1455 Cadamosto menciona a feitura de “muitos doces brancos perfeitíssimos”, aludindo certamente ao alfenim (ARAGÃO, 1981, 37). A primeira referência documental a esta arte da doçaria data de 1469, quando se diz que esta atividade era indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava “molheres de boas pesoas e muytos pobres que lavraram os açuquares bayxos em tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de que am grandes proveytos que dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas partes onde vam”. Durante os sécs. XV e XVI, o fabrico de alfenim ocupou efetivamente muitos madeirenses e foi uma importante fonte de receita das famílias. Esta era fundamentalmente uma indústria feminina e de fabrico caseiro, mas sabe-se que havia homens que exerciam o ofício de doceiro ou confeiteiro, pois a sua atividade estava regulamentada nos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa. A atividade estava vedada a estrangeiros e mestres de açúcar – apenas os “vizinhos e naturaes da ilha” podiam fazer conservas, alfenim e confeitos. De acordo com um documento de 9 de março de 1490, “em toda essa ylha nom posa fazer nemguem conservas, alfenim, comfeytos nem outra nenhüa fruyta daçucaar soomente os vizinhos e naturais da dyta ylha” (MELO, 1973, 198-199, 241). Em 1494-1495, a Casa Real portuguesa recebeu 71 arrobas de confeitos; entre estes, havia 29 arráteis de alfenim. A crónica de Damião de Góis apresenta D. Manuel como um grande apreciador da doçaria madeirense: “Nas vesporas do Natal consoava publicamente em sala, com todo o Estado de porteiros de maçareis darmas trombetas, atabales, charamellas, e em quanto consoava davam de consoar a todolos senhores, fidalgos e cavalleiros, e escudeiros que estavam na salla, na qual se ajuntavam naquelle dia todos os que andavam na Corte por saberem o gosto que el-Rei levava em fazer este banquete, que todo era de frutas verdes e dasucar, e de conservas, que lhe traziam da ilha da madeira, depois desta consoada” (GÓIS, 1911, 92). Desde o séc. XVI, no Japão, aparecem referências ao fabrico de alfenim (aruheitou) e outras doçarias, como confeitos (komfeiton). A primeira referência ao alfenim é de 1569; no decurso das centúrias seguintes, há notícias do seu consumo, tendo sido sempre, ao longo dos séculos, um dos doces nanbam, de oferta em momentos especiais. Tenha-se em conta que ficou célebre o alfenim madeirense que Vasco da Gama levou para oferecer ao samorim de Calecute. Pela rota da Índia deverá ter chegado ao Japão a arte da confeitaria madeirense, onde persiste nos começos do séc. XXI. Os estudos de Miyo Arao reforçam a ideia da influência portuguesa na confeitaria de Tóquio e estabelecem uma ponte com a Madeira, tendo em conta que muitos dos doces produzidos na Madeira aparecem na culinária do Japão. Além disso, não se pode esquecer que, nos sécs. XVI e XVII, a Madeira era um dos principais centros produtores de alfenim e daí deverá ter partido a técnica de fabrico que, depois, se vulgarizaria noutros espaços, como o Japão. A fama alcançada pela arte da doçaria madeirense está testemunhada na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa. O facto mais memorável é referido pelos cronistas. Jerónimo Dias Leite diz que “leuou muitos mimos e brincos da ilha, de conseruas, e ho sacro palacio todo feito de asucar e hos Cardeaes hião todos feitos de alfenij […] ho que foi tudo metido em caixas embrulhadas com algodão, que forão mui seguros e sem quebrar” (LEITE, 1947, 37). Escreve Gaspar Frutuoso: “E tão generoso foi, que, tendo seu filho Manuel de Noronha, Bispo que foi de Lamego, em Roma, que servia de secretário do Papa Leão, despachou da ilha um criado seu, por nome João de Leiria, homem muito honrado, prudente, e gentil-homem, o qual mandou a Roma visitar o Papa com um grande serviço, que, além de um cavalo pérsio, que lhe mandou de muito preço, que levava de cabresto um mourisco muito gentil, homem e alto de corpo, vestido em uma marlota de girões de seda; levou mais muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio, todo feito de açúcar, e os cardeais iam todos feitos de alfenim, dourados a partes, que lhe davam muita graça, e feitos de estatura de um homem, o que foi tudo metido  em caixas emborulhados [sic] com algodão, com que foram mui seguros e sem quebrar até, dentro, a Roma, coisa que, por ser a primeira desta sorte que se viu em Roma, estimou-a muito o Papa, e cada uma peça por si foi vista pelos cardeais e senhores de Roma, sendo presente o Papa, que louvava muito o artifício, por ser feito de açúcar, e muito mais louvava o Capitão que lhe tal mandava, largando muitas palavras perante todos em louvor deste ilustre Capitão” (FRUTUOSO, 1979, 248-250). Mas sobre esta embaixada, segundo Luciana Stegagno Picchio, não consta qualquer documento na Cúria Romana, ao contrário do que aconteceu com outras. Terá sido mera invenção dos cronistas, para exaltar a figura do capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara? Atente-se na situação, a ter acontecido. Seriam 72 os cardeais feitos em alfenim e em tamanho natural, o que poderia significar mais de 5000 kg de açúcar. Por outro lado, deve ter-se em conta o próprio processo de fabrico das figuras e a dificuldade em transportá-las intactas até Roma. Será que podemos afirmar que a dita embaixada madeirense nunca existiu e que os testemunhos de Jerónimo Dias Leite e de Gaspar Frutuoso são pura invenção? Em 1550, D. Isabel Mendonça, mulher do referido capitão-donatário, tinha a seu cargo o abastecimento da Casa Real, tendo enviado para Lisboa, em 1551, 105 arrobas de conserva, 24 arrobas de fruta seca e 8 arrobas de alfenim. Em 1567, Pompeo Arditi dá conta da “conserva de açúcar” que se fazia no Funchal, “de ótima qualidade e muita abundância” (ARAGÃO, 1981, 130). Em finais do séc. XVI, Gaspar Frutuoso dava conta de “ricos e esquisitos manjares de toda sorte, como os sabem muito bem fazer as delicadas mulheres da ilha da Madeira, que (além de serem comumente bem assombradas, muito formosas, discretas e virtuosas) são estremadas na perfeição deles e em todolas invenções de ricas coisas, que fazem, não tão somente em pano com polidos lavores, mas também em açúcar com delicadas frutas” (FRUTUOSO, 1979, 264). Esta tradição perpetuou-se na Ilha para além dos tempos áureos da produção açucareira local (segundo Hans Sloane, em 1687, o madeirense produzia o “açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil” (ARAGÃO, 1981, 158)). Outro testemunho a atestar a abundância deste doce na Madeira é o facto de, a 29 de julho de 1593, o chamado fogo do céu, que queimou parte da cidade do Funchal, dando origem às ruas da Queimada de Cima e Queimada de Baixo, ter queimado alfenim, que havia sido feito com 5000 pães de açúcar. Nos inícios do séc. XXI, não há qualquer referência ao fabrico habitual de alfenim na Madeira (embora ainda haja quem se lembre das pombas do Divino, por ocasião das festas do Espírito Santo). No entanto, em algumas ilhas dos Açores e em alguns estados do Brasil a tradição do alfenim continua viva, alimentada pela persistência das festas em honra do Divino Espírito Santo.    Alberto Vieira (atualizado a 28.09.2016)

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