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mendes, josé alberto reynolds

O Gen. José Alberto Reynolds Mendes nasceu no Funchal a 9 de abril de 1939, filho de João Gregório Mendes e de Cândida Assunção Reynolds Mendes; casou-se em 1967 com Maria de Fátima F. P. Pereira Reynolds Mendes e teve três filhos, Paulo José (1967) e os gémeos Alexandra Sofia e Alberto Sérgio (1968). Frequentou o Liceu Nacional do Funchal e ingressou na Academia Militar como cadete, em 1957. Em julho de 1960 concluiu na mesma Academia o curso de Infantaria e ficou colocado em Mafra, na Escola Prática deste ramo do Exército. No ano seguinte, frequenta na mesma Escola um curso sobre métodos de instrução, na qualidade de aspirante tirocinante. Ainda em 1961, é promovido a alferes, e, após um tempo de serviço no Regimento de Infantaria 2, em Abrantes, é mobilizado para servir na Região Militar de Angola (RMA). A 20 do mesmo mês parte do Aeroporto Militar de Figo Maduro em direção à Base Aérea 9 de Luanda como comandante do pelotão da Companhia de Caçadores 89. Depois de ter sido promovido a tenente, é colocado no Batalhão de Infantaria 19 no Funchal a 13 de abril de 1963. De 11 de junho a 6 de julho do mesmo ano, no Centro de Instrução de Operações Especiais, de Lamego, frequenta o curso de Instrutores e Monitores de Operações Especiais. A 24 de julho de 1964, mobilizado pelo Batalhão de Caçadores 5 de Campolide, segue de novo para Luanda, onde prestará serviço na Região Militar de Angola. Em 1966, habilita-se com o curso de Instrução de Comandos, é promovido a capitão e agraciado com a medalha de mérito militar de 3.ª classe, sendo louvado como “oficial de excelsas virtudes”, “extremo sentido de disciplina e de missão, elevadas qualidades de iniciativa, decisão, coragem e determinação” (“Nota de óbito”), e passa a comandar a 6.ª Companhia de Comandos até 1 de setembro de 1967, data em que regressa à metrópole. A 5 de Março de 1968, é-lhe conferida a medalha de mérito, que dá origem, a 5 de março de 1968, à condecoração com a Cruz de Guerra de 3.ª classe. De 23 de setembro a 4 de outubro do mesmo ano, conclui o estágio de Ação Psicológica no Instituto de Altos Estudos Militares de Pedrouços. No ano seguinte, a 22 de fevereiro, parte para Luanda e integra as tropas de reforço à Guarda Nacional na RMA. Mantém-se nesta comissão até 1973 e habilita-se com o Curso Geral do Estado-Maior. Nesta data recebe a medalha de prata de comportamento exemplar. Em fevereiro de 1975, é nomeado chefe da 2.ª Repartição do Comando Geral da Polícia de Segurança Pública. Parte para Macau, onde, em 1980, frequenta o curso da Criminal Information Research School/Drug Enforcement Administration/EUA e aqui, no posto de major, desempenha as funções de chefe de Divisão de Operações e Informações do Comando das Forças de Segurança. Depois das campanhas de Angola e das comissões especiais em Macau é condecorado, em 1984, com o grau de cavaleiro da Ordem de Avis (comendador). Frequenta, em 1986, o curso do Colégio de Defesa da NATO, em Roma, onde, após graduação e promoção a coronel, foi Conselheiro de Estudos, entre 1987 e 1990. Uma vez promovido a brigadeiro, exerceu o cargo de subdiretor do Instituto de Defesa Nacional, e foi colocado, em 1996, como comandante da Zona Militar e comandante operacional da Madeira, tendo terminado este desempenho em 1998. Passou à situação de reserva em abril deste mesmo ano, por limite de idade. Em 2003, participa no fórum da Military Review, revista profissional do exército dos EUA, sediada em Fort Leavenworth, Kansas, com um estudo intitulado “Guerra Assimétrica, Riscos Assimétricos”. O estudo consiste numa análise sobre os diversos níveis de terrorismo existentes nos começos do séc. XXI e em previsões sobre os seus efeitos nas organizações de defesa, nas alianças internacionais e nas áreas de informações, operações e logística. Este estudo foi publicado na versão brasileira da mesma revista (vol. LXXXIII, 2.º trim., pp. 46-54. Com a patente de major-general, Reynolds Mendes atinge a reforma em julho de 2004. Foi ainda diretor do Gabinete de Gestão do Litoral do Governo Regional da Madeira. Na sua obra poética, publicada sob o pseudónimo de Marco Reynolds, a escrita revela-se uma necessidade moral de participar no mistério da vida, na intangibilidade dos afetos e no contraditório da existência humana: a sua dupla face, em busca dum estado de ser. Observa a matriz sanguínea e telúrica que define o poeta, amador da vida, do amor e da terra de origem, a “Ilha-Mãe”, onde “vale a pena reencontrar” (-se) (MENDES, 2009, 36). A fusão dos vários espaços onde se move remete para uma situação de duplicidade em que o homem-cívico, imbuído dum espírito de missão, se coliga ao homem-emotivo, sensível aos sortilégios do amor. Há um sentimento de promissão dirigido a uma vontade de resgate da mulher amada e do solo “depredado” que permanece em todos os seus livros, consolidando-se a última vertente em Ilha-Mãe – Ilha-Pátria. Sendo a Ilha a terra do regresso e da esperança, são as memórias do seu tempo em África que o levam a auscultar, em Ofício Prestante, os caminhos imperfeitos, ainda que aliciantes, da pátria: a pátria que refere como “lágrima de Deus” e “ubérrimo ventre”. “Não tomes nas tuas mãos pálidas/o meu esplendor de ébano selvagem/O que digas perder-se-á nas brumas/de África/e assaz tardará o sol a aquecer-nos/Não tomes no peito o amor/antes que chegue o tempo maduro da vinha nas encostas” (MENDES, 2005, 78). José Alberto Reynolds Mendes morreu em Lisboa, em 2016. Outras distinções profissionais recebidas pelo Gen. José Alberto Reynolds Mendes: medalha das expedições das Forças Armadas Portuguesas – Macau, 1976-80; medalha de mérito militar de 2.ª Classe, 1979; medalha de prata de Serviços Distintos, 1985; medalha de ouro de comportamento exemplar, 1988; medalha de mérito militar de 1.ª classe, com distintivo branco do exército espanhol, 1991; medalha de mérito militar de Avis (cavaleiro, oficial, grande oficial), 1995; medalha de ouro de Serviços Distintos, 1998. Vários louvores individuais provenientes de entidades militares e Conselho de Governo da Madeira. Obras de José Alberto Reynolds Mendes: Gestação de Uma Nova Face (1970); “Guerra Assimétrica, Riscos Assimétricos” (2003); Gestação da Face e Outros Poemas (2005); Ofício Prestante (2006); Ilha-Mãe – Ilha-Pátria (2009).   Irene Lucília Andrade (atualizado a 01.02.2018)

História Militar Personalidades

pescas

O mar é uma constante no imaginário lusíada. Foi com o mar que se cumpriu Portugal e, durante muito tempo, no dizer do poeta, o mar foi português. Isto foi dito porque os portugueses se lançaram, no séc. XV, à sua conquista, batendo as barreiras do medo que atormentavam desde a antiguidade os potenciais navegantes do Atlântico. A economia das ilhas não se resumiu aos produtos trazidos pelos colonos europeus, pois elas também dispunham de recursos marinhos e terrestres. Quanto ao primeiro aspeto, é necessário ter em conta que os insulares, pela forma de assentamento ribeirinha, se assumiram como exímios marinheiros e pescadores, tendo, por isso mesmo, extraído do mar um grande número de recursos com valor alimentar. A atividade piscatória nos principais portos e ancoradouros cativou a sua atenção pela abundância de peixe e mariscos, mas raras vezes satisfez as necessidades das populações. O Atlântico, próximo das ilhas e da costa africana, era considerado, desde a antiguidade, como um espaço privilegiado de pesca, descoberto pelos cartagineses, no séc. VI a. c.. Desta forma, aquilo que os portugueses buscavam não era só novas terras, mas acima de tudo riquezas no mar e em terra. Tenha-se em atenção, por exemplo, que os primeiros frutos do reconhecimento da costa africana estão no mar – o óleo e a pele de lobo-marinho provenientes das expedições posteriores à de 1436 ao Rio do Ouro, tal como o documenta Gomes Eanes de Zurara. Note-se ainda que alguns autores fazem eco da riqueza em peixe dos mares da Madeira, como prova a expedição que João Gonçalves Zarco fez para o reconhecimento da costa sul da ilha. Depois disso, múltiplos visitantes testemunharam essa riqueza. Cadamosto, em meados do séc. XV, refere que a ilha é rica “em garoupas, dourados e outros bons peixes” (ARAGÃO, 1981, 36). Em 1698, o governador D. António Jorge de Melo refere que “o peixe é muito bom e não caro, que remedeia muito a terra” (NASCIMENTO, 1930, 15). Em 1853, Isabella de França acrescenta a esta ideia de riqueza piscícola a descrição de alguns peixes, como a abrótea, o atum, o chicharro, o congro, o cherne, a garoupa, o pargo, a raia, o salmonete e a tainha. Diversos autores referem a abundância de peixe nas costas das ilhas. Deste modo é cada vez maior o conhecimento do peixe disponível à volta da Ilha, muito evidente na lista de A. Biddle, de 1910, e nos diversos estudos científicos que entretanto se fizeram. A área marítima definida pela costa ocidental africana, entre o Cabo Aguer e a entrada do Golfo da Guiné, era muito rica em peixe, sendo frequentada pelos vizinhos da Madeira e das Canárias, bem como pelos pescadores algarvios e andaluzes. Todavia, o balanço das capturas dos madeirenses e dos açorianos não foi suficiente para colmatar a carência dos mercados, uma vez que havia necessidade de importar peixe salgado ou fumado da Europa do norte. A descoberta do Atlântico é um ato simultâneo com a da Ilha. Os portugueses demandam a sul, à procura das terras, míticas e verdadeiras, já debuxadas nos mapas. João Gonçalves Zarco decide fazer o reconhecimento da costa madeirense: este momento merece ser referenciado, não só por ser o primeiro encontro com a costa, mas também pelas revelações que lhe permitem o batismo dos diversos acidentes da costa. Na primeira busca, conseguiu boas oportunidades de abordagem e de fixação, enquanto, na segunda, a fauna marinha move a sua atenção. Um bando de garajaus deu nome a uma ponta: a Ponta do Garajau. Os lobos-marinhos que, no dizer do cronista, “era enquanto, e não foi pequeno refresco para a gente, porque mataram muitos deles, e tiveram na matança muito prazer e festa” (FRUTUOSO, 1873, 40), deram nome à Câmara de Lobos. No ano imediato, tratou-se do assentamento e reconheceu-se a terra que ficara no desconhecimento: a Ponta do Pargo, assim chamada pelo facto de aí terem pescado um pargo enorme: “e o maior que até aquele tempo tinham visto, pela razão do qual peixe ficou nome aquela Ponta a do Pargo” (Id., Ibid., 69). O facto de a toponímia da costa revelar algumas associações à fauna marinha é revelador do interesse que os navegadores depositavam nesta riqueza e do empenho com que a observavam: Porto das Salemas (Porto Santo), Baixa da Badajeira (Madeira), Porto do Pesqueiro (Madeira). Os mares da Madeira eram ricos em variedades e quantidades de peixe, como confirmam inúmeros visitantes estrangeiros. Em 1853, Isabella de França refere o chicharro, o peixe-espada, o gaiado, o atum, a abrótea, o pargo, o cherne, a garoupa, a tainha, o salmonete, a pescada, e o congro. A sua apreciação destes peixes faz-se pela sua aparência, e não pela degustação, pois deverá tê-los visto na praça ou nos portos das localidades por onde embarcou. A respeito do atum, tece o seguinte testemunho: “O atum é feio e escuro, de cerca de seis pés de comprido, carne avermelhada e grossa. É um espectáculo dos mais ridículos ver o campónio regressar a casa com a cabeça do atum na extremidade do bordão. A pesca do atum não corre sem perigo, pois já se tem visto puxar um homem pela borda fora” (FRANÇA, 1970, 117). Já em 1817, o governador Lúcio Travassos Valdez informa do envio, pelo mercador João Baptista Gambaro, estabelecido em Câmara de Lobos, de dois barris de atum, conservado de diversas formas (cozido, salgado e seco), que poderia ser uma alternativa ao bacalhau estrangeiro no abastecimento às embarcações. Desta forma, durante muito tempo, a disponibilidade do peixe estava limitada aos sistemas de conservação disponíveis. O peixe fresco era um privilégio quase só das zonas ribeirinhas e com portos de pesca. Aos demais, ficava o peixe salgado ou seco. Foi assim até que se começou a desenvolver a indústria de conservas, fundamentalmente de atum, em princípios do séc. XX, no Porto da Cruz (1909), no Paul do Mar (1912), em Pedra Sina (1939), no Penedo do Sono, em Porto Santo (1944), no Machico (1949). Atente-se que, na Madeira, o incremento da congelação só aconteceu a partir de 1972, sendo a primeira unidade criada em 1966, pela empresa Somagel. Por outro lado, a revelação e a descoberta do mar ganharam interesse devido à possibilidade de fruição das riquezas piscícolas. Mas a atenção do europeu ao mar não se orienta apenas neste sentido. O mar é a sua via de comunicação e para se servir dela é preciso conhecê-la, perceber os sistemas de correntes e ventos, compreender os acidentes da costa, os baixios, etc. É neste contexto que os portugueses iniciam uma ação pioneira que irá permitir o melhor conhecimento do mar e das suas possibilidades e recursos. As pescarias e as viagens de navegação e de descoberta ao longo da costa africana confundem-se. Os madeirenses pescavam nas costas da Berberia, um dos melhores bancos de peixe do Atlântico, como se conclui duma reclamação dos pescadores, em 1596, sobre o tributo que pagavam a João Gonçalves de Ataíde pelo peixe que de lá traziam. A pesca foi, a par da atividade agrícola, uma ocupação das gentes insulares ribeirinhas. Aliás, num espaço como a Madeira, onde a orografia condicionou a circulação terrestre, o mar é a via fundamental que liga os vários núcleos de povoamento que, por esse motivo, no início, se anicham no litoral. O mar foi o meio de comunicação mais usual e importante da comunidade insular, verificando-se a valorização da construção naval; ela surge, não apenas com a finalidade de assegurar o fornecimento de embarcações de cabotagem, mas também para dar apoio à navegação atlântica, no reparo das embarcações fustigadas pelos acidentes ou pelas tempestades oceânicas. Os estaleiros de construção e reparação naval proliferavam nas principais ilhas do meio insular, sendo esta atividade transformadora regulamentada e apoiada pelas autoridades locais e centrais, que, por exemplo, asseguravam as licenças necessárias para o corte das madeiras e definiam as dimensões e a capacidade das embarcações a construir. Os estaleiros de reparação e construção naval da Madeira situar-se-iam no Funchal, principal porto da Ilha, e em Machico, sede da capitania do norte, onde as madeiras eram abundantes. A construção de embarcações para a pesca está testemunhada desde o início da ocupação da Ilha. João de Barros refere mesmo que João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz fizeram duas embarcações no Porto Santo, certamente com troncos de dragoeiro, tal como refere Frutuoso. Ao contrário do que acontece no início do séc. XXI, a pesca não era uma atividade exclusiva de alguns núcleos do sul; na verdade, alargava-se a toda a Ilha, apesar de se ter evidenciado mais na vertente sul. Para o ano de 1889, existe referência a 2158 pessoas ocupadas na atividade da pesca, para um total de 493 embarcações, 338 das quais estavam empenhadas na faina do atum e 121 na do gaiado. A presença dos grandes cetáceos está também testemunhada na Madeira desde muito cedo. Em 1595, foi capturada a primeira baleia na zona; sabe-se que outra rendeu 64.000 réis em 1692, enquanto uma terceira, já em 1899, ficou por menos de metade, isto é, 30.000 réis. Em 1741, Nicolau Soares pretendia estabelecer uma fábrica de transformação de baleia na Madeira, mas a resistência das indústrias da Baía, temerosas da concorrência, impediu-o de levar por diante tal objetivo. A indústria em questão só terá lugar após a Primeira Grande Guerra, conhecendo-se três fábricas: Garajau, Ribeira Janela e Caniçal. A conserva de peixes torna-se numa realidade, nos primeiros anos do séc. XX, altura em que surgem a fábrica da Ponta da Cruz, de João A. Júdice Fialho (1909), a fábrica do Paul do Mar, de António Rodrigues Brás (1912), transferida em 1928 para a Praia Formosa, a fábrica de Pedra Sina, em S. Gonçalo, de Maximiano Antunes (1939), a fábrica de Machico (1949), de D. Catarina Andrade Fernandes Azevedo, Francisco António Tenório e Luís Nunes Vieira, e a fábrica do Porto Santo (1944). A partir daqui, o pescado da Ilha passará a ter dois destinos – o consumo público e a indústria de conservas –, o que veio permitir um aumento das capturas. Até então, o único destino era o consumo público, sob a forma de fresco ou salgado. Tenha-se em conta o interesse nas salinas em Câmara de Lobos e na Praia Formosa, de que existem testemunhos desde o séc. XVIII, mas que nunca adquiriram grande dimensão e interesse. É evidente a preocupação das autoridades no sentido da preservação deste recurso marinho. Assim, em 1547, a vereação acusa alguns pescadores de cana de usarem foles e redes, mantado a “criação de peixe” e o “peixe miúdo”, proibindo tal ação com a pena de 500 reais. Esta determinação passou a postura, sendo a pena de 1000 reis, que subia para 2000 réis, no caso de o visado ser pescador. A medida voltou a ser recordada em 1623. Ao longo dos tempos, continuamos a assistir a esta manifestação de interesse pela preservação deste recurso, que se alarga, em épocas posteriores, ao combate ao sistema de pesca através de bomba. Os aparelhos usados na armação da pesca na primeira década do séc. XX são referidos por A. Loureiro. Também se defendeu a indústria por meio de regulamentos que delimitavam a forma da pescada quanto às redes a usar e que, no séc. XIX, restringiam o uso abusivo de bombas, testemunhadas no norte da Ilha e na Ponta de Sol, situação que levou a uma portaria de 1877, recomendando ao governador medidas contra essa prática. O pescado chegava mais ao Funchal, onde tinha escoamento imediato e um preço mais favorável. Deste modo, sucedia que as diversas localidades da vertente sul, embora dispondo de núcleos piscatórios, se debatiam quase sempre com a sua falta, pelo facto de os pescadores preferirem a sua venda na cidade. As autoridades municipais foram portanto forçadas a tomar medidas. Em Machico, os pescadores da vila estavam obrigados a venderem aí 1/4 do pescado, passando, em 1640, para 1/3; no ano de 1638, esta limitação de saída era total, sobretudo na época da Quaresma, em que o consumo de pescado aumentava. Por outro lado, em 1751, não obstante recomendar-se que a venda do pescado fosse feita primeiro à população local, podendo as sobras ser depois levadas ao Funchal, refere-se o privilégio dado a algumas embarcações para o fornecimento, fora desta regra, ao convento de S. Francisco, ao juiz dos Resíduos e às capelas do Funchal. Já na Ponta do Sol, a Câmara proibiu, em 1704, a sua venda para fora do concelho e, em 1727, obrigava os pescadores a irem todos os dias ao mar, sob pena de 2000 réis. Idêntica obrigação existia em Machico para o ano de 1679, onde os pescadores preferiam o serviço de barqueiros ao da pesca. Atente-se que, em 1674, na Ponta de Sol, o arrais de um barco foi preso por não trazer peixe do mar. Mesmo assim, o Funchal não estava devidamente abastecido de pescado, necessitando de importar arenque salgado de Inglaterra. A prova disso está no facto de o foral de 1516 isentar os ingleses do pagamento do dízimo. Em 1768, o governador e Cap.-Gen. Sá Pereira, em carta ao conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, testemunha sobre uma representação dos moradores da Madeira, “sobre o promover-se a pescaria tão útil, e tão necessária aqui para que este povo possa livrar-se da miséria, a que está reduzido por falta de alimento, obrigado a sustentar-se de carnes, e peixes salgados, e corruptos, que aqui introduzem os Ingleses com grave prejuízo dos seus habitantes” (SANTOS, 2010, 368). Em 1771, o mesmo governador, no capítulo 26 do regimento dado ao Porto Santo, penaliza os moços indigentes, obrigando-os a dedicarem-se à agricultura ou às pescas. Já em 1783, o corregedor organiza um regulamento para as pescas nas ilhas da Madeira e Porto Santo – o Estabelecimento das Pescarias das ilhas da Madeira e Porto Santo –, que não teve efeito. Finalmente, em 1792 foi autorizado o estabelecimento de uma Fabrica de Pescaria, e Salinas, a ser instalada na Praia Formosa. E em novembro de 1822 foi formada uma Sociedade Piscatória na Madeira, com intuito de promover as pescarias, vindo, para o efeito, pescadores de Sesimbra para ensinar aos madeirenses as artes da pesca. Tais carências levavam a Ilha a importar peixe seco e salgado de Lisboa, do Algarve, das Canárias, de Santa Cruz da Berberia, de Cabo Verde, da Irlanda, da Escócia, da Noruega, da Suécia, da Dinamarca, do norte de França, da América do Norte e da Terra Nova. Os ingleses eram quem mais abastecia a Ilha deste peixe importado, muitas vezes com qualidade duvidosa, pois foram insistentes as reclamações sobre a venda de peixe podre. De acordo com informações da imprensa do Funchal, a partir do último quartel do séc. XIX, são frequentes as referências ao abastecimento do Funchal com peixe, lapas, caramujos e carne das cagarras das ilhas Selvagens. Os proprietários das ilhas organizavam campanhas temporárias com trabalhadores para a caça e a pesca, retornando ao Funchal com elevadas quantidades de produto salgado ou seco para venda na cidade. A faina da caça às cagarras e aos coelhos e da pesca ocorria entre os meses de agosto e outubro. No retorno, os trabalhadores enchiam a embarcação que os trazia de volta com caixas de lapas, caramujos, engodos, barris de salga de coelhos, cagarras, e peixe, sacos de penas de cagarra e óleo de cagarra. O peixe era fundamentalmente o atum, a cavala e o gaiado, que descarregavam no Funchal ou em Câmara de Lobos. Em 1907, sabemos da safra de 13.000 gaiados que foram vendidos no Funchal a 240 réis ao kg. Já em 1912, a safra foi de 16.000 gaiados, havendo problemas entre os pescadores e a firma proprietária quanto à distribuição dos quinhões. Os mares das Selvagens eram, assim, ricos em pescado, alcançando o imposto do mesmo, no primeiro quartel do séc. XX, valores elevados, apenas suplantados pelo Funchal e pela Câmara de Lobos. A faina nestas paragens era sempre complicada, acontecendo, por diversas vezes, naufrágios e situações de falta de mantimentos, indo, muitas vezes, as embarcações arribar à ilha vizinha de Tenerife. Desta forma, em novembro de 1916, os pescadores regressados ao Funchal mandaram celebrar uma missa de ação de graças na igreja de S. Gonçalo, por não terem sido vítimas de qualquer desastre. A pesca e a venda do peixe fresco, resultante desta faina, ou seco e salgado, por importação do estrangeiro ou de produção própria na Ilha, estavam sujeitas a apertadas medidas de controlo que consideravam a salvaguarda da saúde e a sanidade públicas e também a especulação dos vendedores. Aqui é clara uma evidência: em terra banhada pelo mar, onde o peixe abunda, o peixe da safra local era limitado e parece que a faina era pouco atrativa para os homens do mar, que preferiam dedicar-se à função de barqueiros nas ligações costeiras. Desta forma, são insistentes as reclamações das vereações municipais, quanto à sua falta como à coação dos pescadores para irem ao mar. Em 1847, foram estabelecidas isenções de direitos à entrada de peixe salgado, para suprir problemas de fome. Sabemos que, no ano imediato, a sua importação foi de 6464 arrobas, na sua maioria da Terceira, de Portimão e de Lisboa. A venda do pescado era feita na praça, de acordo com condições estabelecidas pelas posturas. Estava proibida a revenda do peixe fresco ou salgado sem licença dos oficiais da câmara. O peixe que sobrava de um dia para outro era salpresado e, depois de mostrado aos almotaceis, poderia ser vendido. Todo o peixe deveria ser aí vendido a preços tabelados e a todos os que o procuravam, de modo a evitar o uso abusivo dos mais ricos que, através dos seus escravos, procuravam tirar o peixe à força às vendedeiras. A carência de peixe é uma constante na Ilha, acusando a vereação, em 1547, de os madeirenses não quererem ir pescar, pois “onde devem de ir pescar quatro vezes na semana muitas vezes não vão senão uma e isto porque a tal preço dão o peixe que assim se remedeiam com um dia de trabalho na semana como se todos os dias trabalhassem [...]” (COSTA, 1998, 404). Desta forma, os homens-bons da Ponta Sol, em 1782, assistiam, no Calhau, à distribuição do peixe. As praças para a venda do peixe existiram em todos os municípios, sendo uma forma de regular e fiscalizar a venda do pescado. Na sua falta, o peixe vendia-se em locais determinados pela câmara, como sucedia em 1856, na Madalena do Mar. Temos notícias das praças da Ponta de Sol, em 1840, a qual foi reformada em 1931, do Porto Moniz, em 1894, de S. Vicente, em 1896, e do Porto Santo, em 1889. A do Funchal existe desde o séc. XV, tendo sido ampliada em 1730. Sabemos ainda que, desde 1546, existia no Funchal uma rua do peixe, que pode estar associada a este espaço público de venda. A partir de 1840, temos o mercado do peixe de S. Pedro, reformado em 1880 e 1889, e em 1940 integrado no mercado dos lavradores. A lota aparece no arquipélago da Madeira em 1953, no Funchal, seguindo-se outras em Câmara de Lobos, Machico, Santa Cruz, Paul do Mar, Porto do Moniz, Porto Santo, Caniçal, Ribeira Brava e Calheta. A lota passa a substituir o calhau como espaço de primeira venda da safra, por leilão ou contrato. Os funcionários municipais, almotaceis e guardas-mores da saúde tinham especial cuidado na fiscalização do pescado fresco ou seco que se vendia na Ilha. O pescado salgado ou seco importado, nomeadamente pelos mercadores ingleses, não era apresentado para venda nas melhores condições, obrigando, inúmeras vezes, os funcionários da saúde a intervir, gerando alguns conflitos com esta comunidade. Em 1634, os comerciantes ingleses Roberto Veloni e Diogo Dom são acusados por colocarem à venda, em lojas suas onde empregavam vendedeiras, peixe (bacalhau e sardinha) em más condições. Em 1813, repete-se esta situação, com a casa inglesa Murdoch Yuille Wardop & Comp a reclamar uma indemnização pelo pescado lançado ao mar pelo guarda da saúde. Nesta mesma data, o bispo, em visita à Camacha, refere o uso na alimentação de arenques e cavalas salgados que, trazidos pelos ingleses, se apresentavam muitas vezes em má qualidade e deitavam um mau cheiro. A Madeira importava pescado seco e salgado de diversos portos nacionais e estrangeiros. Torna-se difícil entender a razão desta importação de peixe seco ou salgado, tanto mais que os mares da Ilha eram ricos em peixe. Para além de poder ser uma imposição desta comunidade inglesa, com domínio quase total do mercado da Ilha, poderão ser outras as razões para esta valorização do pescado importado, ainda que de má qualidade pelas condições de acondicionamento. Em 1827, Alfred Lyall afirmava que “há grande abundância de peixe, de grande variedade e de muitas espécies, normalmente muito bom, mas talvez inferior em sabor e firmeza na sua carne, quando comparado com o dos nossos mares” (SILVA, 2008. 111). A necessidade de assegurar a subsistência dos colonos obrigou ao aproveitamento dos recursos disponíveis no meio com valor alimentar, como foi o caso da pesca, uma atividade das populações ribeirinhas. O peixe foi também um dos recursos mais valorizados no início da ocupação da Ilha. A prova disso está no imposto lançado, o dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca. No Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, este era cobrado pelos Jesuítas que, desde a segunda metade do séc. XVI, tiveram assento na Ilha. O mareante e o barqueiro, tal como o pescador, assentaram morada na zona ribeirinha pelo apego ao mar, junto do burburinho do calhau, onde poderiam ouvir o marulhar das ondas. A zona do calhau, depois Corpo Santo, acolhia o maior número de marinheiros, barqueiros e pescadores, cuja influência foi dominante nesta área citadina. Em Machico, Santa Cruz, Ribeira Brava, Calheta e na ilha do Porto Santo havia igualmente uma comunidade de homens do mar com morada fixa junto ao calhau ou aos ancoradouros. O grupo de madeirenses com ligação ao mar era elevado, mas parece existir uma predileção pela atividade ligada ao transporte costeiro, em detrimento da pesca. Os municípios instavam os homens do mar para irem à pesca, mas estes preferiam outros serviços mais remunerados. Em 1889, temos, em toda a Ilha, 2158 indivíduos associados a 493 barcos (127 de 4 remos, 200 de 2 remos e 121 canoas). Destes, como já referido em cima, 338 estavam dedicados à faina do atum e 121 ao gaiado, assumindo estas duas espécies uma importância dominante nas pescarias. A pesca ocupava, em 1914, mais de 1500 pescadores com 537 embarcações; já em 1931 existiam 1500 pescadores, que usavam 24 embarcações a motor e 508 à vela ou a remos. A partir de 1853, os governadores civis atuaram no sentido da valorização dos portos de pesca do arquipélago com diversos melhoramentos. O desenvolvimento de algumas indústrias no séc. XX levou à sua valorização. Em 1908, Vicente de Almeida D’Eça refere os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Aldonça, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, São Jorge, Ponta Delgada, São Vicente, Seixal, Porto do Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara de Lobo e Porto Santo. Em 1909, Adolfo Loureiro assinala os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, S. Jorge, Ponta Delgada, S. Vicente, Porto Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara Lobos e Porto Santo. Esta situação é também testemunhada por Orlando Ribeiro, em 1947, quando esteve na Ilha em estudos, afirmando em 1949 que “nas encostas da Madeira a cada abrigo correspondia um porto de pesca” (RIBEIRO, 1985, 104). Os mares da Madeira, embora não tão ricos como os do continente, apresentavam uma variedade significativa, pois podia-se pescar desde moluscos (lapas e caramujos), a crustáceos (caranguejo) e peixe (alfonsinho, bodião, boga, castanheta, chicharro, cavala, chicharro, mero, moreia, pargo, peixe espada preto, sardinha, salmonete, solha, tunídeos). São ainda assinalados diversos pesqueiros, isto é, espaços marinhos próximo à costa, onde este pescado aparece com abundância: Pedras, Cabeço Baixinho, Cabeço do Moinho, Largo do Mesinho, Pé da Poita, Pedra Lage, Pedra do Marracho, Pedra do capitão, e Canto do Porto.   Direitos e tributos O pescado estava sujeito a diversos tributos sendo, no início, considerado como uma renda dos capitães, que auferiam, pela sua exploração, o foro e o dízimo. A 26 de setembro de 1433, o infante D. Henrique recebeu das mãos de D. Duarte a posse vitalícia das ilhas da Madeira, de Porto Santo e das Desertas. Ainda nesta data, a Coroa, a pedido do infante D. Henrique, concedeu todo o cuidado espiritual das ilhas à ordem de Cristo, reservando para si o foro e o dízimo do pescado. Este dízimo foi abolido a 5 de abril de 1808, por ordem de Beresford, aquando da ocupação inglesa da ilha da Madeira. No Porto Santo, a referida abolição ocorreu em 1832. O dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca, no Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, era cobrado pelos Jesuítas. Temos dados sobre a arrecadação deste rendimento para os anos de 1759 a 1761. Já da receita da diocese sabemos que, em 1517, era de 200$000 réis, subindo, em 1581, para 363$600 e, em 1583, para 454$500. Este tributo foi abolido, na Ilha, por alvará de 20 de outubro de 1803, situação que só teve efeito durante quatro meses. Entretanto, os pescadores estabeleciam, entre si, alguns compromissos com o valor da faina. Assim, no Caniçal, existiu o quartão, que era o mesmo que um quarto, a parte que cada pescador do Caniçal tirava do seu quinhão da pesca para o pároco da freguesia, como forma de custear as despesas de serviço religioso, em seu benefício, durante o ano. Eram reservados ainda outros quartos – para as festas da Senhora da Piedade, de S. Sebastião, do Espírito Santo e do Santíssimo Sacramento. A par destes, existiram outros tributos de cariz social, como o socorro que apoiava os companheiros doentes, e o quinhão morto para acudir a qualquer desastre, do qual, no fim do ano, entre 25 de dezembro e 1 de janeiro, era distribuído o sobrante entre todos, sendo conhecido como a ajuda do pão-da-festa ou passadia. Em 1937, surgiu a Associação de Socorros Mútuos dos Pescadores da Madeira, que em 1953 deu lugar à Casa dos Pescadores, com instalações em Machico e Câmara de Lobos (1939), no Paul do Mar (1944), no Funchal (1950) e no Caniçal (1954). Em 1817, na tabela dos direitos ad valorem cobrados no Funchal, temos a indicação da sua cobrança sobre o peixe fresco, com sal ou de conserva, relativamente às seguintes espécies: atum, chicharro, carapau, lampreia, salmão e sardinha. Em 1954, o imposto ad valorem, de 3 % sobre o pescado, rendia à câmara do Funchal 115.000$000 escudos. O imposto de pescado era uma receita do Estado e da Câmara Municipal. No reinado de D. Maria, foi determinado, por alvará com força de lei, de 20 de junho de 1787, que fossem levantados os impostos sobre o pescado, porque haviam contribuído para a situação de decadência a que tinham chegado as pescarias do Reino e das ilhas adjacentes. O imposto sobre os barcos de pesca e pescarias (1830/1843), foi criado por decreto de 9 de novembro de 1830, sendo substituído, em 10 de julho de 1843, por outro imposto, de 6 % sobre os lucro da venda do pescado fresco, nomeadamente sobre as partes ou quinhões, excetuando apenas as comedorias, as caldeiradas, as restomengas e as carnadas; a sua coleta foi atribuída à Junta do Crédito Público. Pela lei de 10 de julho de 1843, só eram obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercessem a sua indústria em água salgada e somente naquela parte dos rios até onde chegassem as marés vivas do ano. Pelo decreto de 3 de dezembro de 1891, foram criados, na dependência do Ministério dos Negócios da Fazenda, diversos postos fiscais, com a missão especial de cobrar o imposto de pescado. Este imposto, cobrado pela Guarda Fiscal, era também conhecido como dízimo, e só foi abolido por decreto-Lei n.º 237/70, de 25 de maio. Sobre a cobrança do imposto de pescado encontramos as seguintes informações: em 1921, era de 59.257$96 escudos, sofrendo uma quebra significativa, no ano imediato, para 4346$48; em 1933, era de apenas 1259$52.   Peixe à mesa Por fim, importa verificar qual a importância que os recursos marinhos assumem no quotidiano e na alimentação dos madeirenses. A dieta dos madeirenses baseava-se no aproveitamento dos recursos disponíveis com valor alimentar, isto é, a caça e pesca e os derivados da atividade pecuária, como a carne, o queijo e o leite. A pesca terá sido importante na atividade das populações ribeirinhas, que usufruíam de uma grande variedade de mariscos e peixe. Através dos livros de receita e despesa, podemos acompanhar o dia a dia da mesa conventual, onde é regular a presença de carne e peixe, frescos ou salgados. No convento da Encarnação, a mesa dos sécs. XVII e XVIII era farta. O pão corria todos os dias à mesa, acompanhado de carne ou peixe. O peixe comia-se às quartas, sextas, sábados e dias prescritos pela Igreja. Poderia ser bacalhau, atum sardinha, arenques, pargos e chicharros. Mas nem sempre foi assim, uma vez que, por diversas vezes, foi manifestada a dificuldade no abastecimento de peixe aos conventos, o que fez com que estivessem isentos da obrigação da abstinência. A abstinência da carne era geral na altura da Quaresma, o que elevava o consumo de pescado. As pastorais determinavam regras sobre o consumo de carne e peixe pelos fiéis. Assim, a carne não podia ser misturada com o peixe e todos aqueles que estavam sujeitos ao jejum só podiam servir-se da carne ao jantar, sendo exceção os domingos, onde o consumo estava facultado. Daqui resulta a tradição popular do consumo da carne aos domingos. A mesa do mundo rural e da gente pobre é pouco conhecida. O pouco que se sabe resulta do testemunho de alguns estrangeiros. Esta servia-se quase só do que a terra dava, isto é, frutas, passas de uvas, figos passados e inhame. Consumia-se algum peixe fresco ou seco, pescado na costa, mas a carne e o pão parecem ser uma raridade. Esta frugalidade está presente em todos os testemunhos de autores estrangeiros. Assim, na segunda metade do séc. XVIII, George Forster destaca que “os camponeses são excecionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne” (FORSTER, 1986, 72), mais o milho americano, o inhame e a batata-doce, que era o principal ingrediente na alimentação do camponês. A isto juntava-se o consumo de peixe fumado ou em salmoura, importado pelos ingleses, que servia de conduto ao inhame, à batata e ao pão. O peixe consumido era o bacalhau dos Estados Unidos e o peixe seco, salgado ou em salmoura do Norte da Europa, destacando-se o arenque de fumo ou de salmoura, muito apreciado pelo povo como conduto para o pão e as batatas. Esta situação ainda perdurava na década de 50 do séc. XX, altura em que as capturas de pescado de cerca de duas toneladas eram ainda incipientes para satisfazer o consumo e as indústrias de conservas. No Funchal, existia uma praça onde este era vendido aos interessados de acordo com uma lista de prioridades. Primeiro, deveriam servir o capitão, depois os conventos e os oficiais da governança e, finalmente, o povo. Em 1732, o bispo tinha um barco que provia às suas necessidades de pescado. Na Ponta de Sol, em 1782, um homem bom do concelho assistia a esta distribuição do pescado. A generalização das praças e dos mercados do peixe nos demais concelhos só aconteceu muito mais tarde: no Porto Santo, em 1889, no Porto Moniz, em 1894, e em S. Vicente, em 1896.   Ciências do mar O mar não foi valorizado apenas como recurso económico. Já a partir do séc. XVII se regista o seu valor científico com os diversos estudos realizados. A passagem pelo Funchal de alguns cientistas ingleses propiciou uma primeira descoberta de muitas das raridades da fauna marinha nos mares madeirenses. Tenha-se em conta as expedições de Hans Sloane (1687) e James Cook (1768 e 1772). No decurso do séc. XIX, redobrou o interesse pela Ilha por parte de súbditos ingleses residentes ou de passagem pelo Funchal. Destes, podemos destacar os estudos de Richard Lowe (1833-1846), interrompidos com a sua morte num naufrágio em 1874. James Yate Johnson seguiu-lhe o encalço e publicou alguns estudos até à sua morte em 1900. O empenho dos madeirenses no estudo da fauna marinha poderá ser assinalado com os estudos de João José Barbosa du Bocage. O primeiro apelo neste sentido foi feito por José Silvestre Ribeiro quando, em 1850, criou o Gabinete de História Natural, que desapareceu com a sua saída, em 1852. A aposta no estudo e na divulgação dos recursos marinhos só aconteceu mais tarde, com a criação do Aquário do Museu Municipal, que foi aberto ao público em 1951. A publicação do Boletim do Museu Municipal, desde 1945, e os estudos de Adão Nunes, de Adolfo César de Noronha e de Günther Maul vieram a revelar quão rico é o património marinho madeirense.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

Biologia Marinha História Económica e Social

prostituição

Define-se como troca de favores sexuais por dinheiro. Sendo o Funchal uma cidade portuária, cedo se tornou visível a prática desta atividade na ilha da Madeira. “Junto ao mar” se alimentava o negócio, sobretudo à conta das embarcações de passagem que aportavam à baía, havendo registos de “molheres”, “mancebas” e “meretrizes” desde o séc. XV. Por outro lado, documentos oficiais permitem-nos verificar a importância desta atividade para o entorno do porto. Apenas alguns exemplos: a propósito das estimativas das receitas para a construção da cerca do Funchal, em 1493, foi determinado que “toda a molher de partido que for achada na ylha paguara trecentos reaes e pode valer por anno seys mil rs” (SILVA, 1995, 705). Por esse tempo, estariam contabilizadas cerca de 20 meretrizes no Funchal e, em 1495, numa representação à Câmara, pedia-se que a mancebia “fosse tirada junto do mar, porque os de fora saltavam com as mancebas, faziam arruído e se acolhiam aos batéis e a justiça não os prendia” (ABM, Vereações, n.º 1301, fl. 78). As vereações da Câmara Municipal do Funchal referem ainda o facto de “ali terem acontecido mortes de homens”, o que indicia alguma violência naquele meio. Das outras referências a “mancebia”, destaca-se o facto de os homens bons terem dedicado algum tempo, nestas reuniões, a procurar o melhor lugar para a instalação de uma mancebia, mercê feita por El-Rei a Martim Mendes. É então decidido, na vereação de 12 setembro de 1496, que “Martim Mendez de Vasconcelos ffaça mancebia em Valverde, na rua Direita”, e “que a dicta rrua sse tape da banda da rua e lhe faça as portas contra a rribeira e que ffaça as casas na dicta mancebia” (COSTA, 1995, 540). Por outro lado, há referência a algumas casas que agasalhavam os escravos e que também funcionavam como antros de prostituição, ou lugares de jogo, ou de “desonestidades”. Aliás, roubos, furtos, jogos ilícitos e prostituição faziam parte do quotidiano dos escravos forros. No foral da capitania do Funchal, datado de 6 de agosto de 1515, o Rei D. Manuel estabeleceu, com clareza, que todo aquele que fosse apanhado na “mancebia com armas, assim de dia como de noite, perdesse as armas e pegasse de pena 500 reis, e que todo o homem casado que se provasse ter mancebia ‘theuda e mantheuda’ pagasse a quarentena de metade da fazenda que tivesse” (SILVA e MENESES, 1984, III, 158). Giulio Landi, na sua Descritione de l’Isola di Madera (1530), associou-lhe três pragas – ratos, pulgas e meretrizes. A Ilha parece, então, por este tempo, estar conotada com falta de higiene e desregramento de costumes: Giulio Landi conta de uma velha cortesã ali existente e de relações escandalosas entre uma mulher branca e um escravo negro. Nas posturas da Câmara, aprovadas em meados do séc. XVI (por volta de 1550), fica estabelecido que “nenhuma mulher solteira que ganhar dinheiro por seu corpo publicamente não viva entre as casadas sob pena de quinhentos reis viverão nos lugares limitados convém a saber Beco detrás da cadeia a Rua que vai ao longo da Ribeira da ponte da cadeia até à travessa de Pero Gonçalves cavaleiro e no cabo do calhau na Rua do Monteiro e Rua adiante e nos becos de Joham Seraiva e de dom Joam”, o que indicia alguma preocupação em preservar as famílias do contacto com esta prática, delimitando os locais das “mancebias”, muitas vezes designando o lugar de residência ou de serviço das prostitutas (ABM, Posturas, liv. 1685, fls. 10-14). As mulheres que se dedicassem à prostituição incorriam num pecado de tal modo grave que o sacramento da confissão não o absolvia. A devassidão conduzia à excomunhão, conforme o texto das Constituições Synodaes do bispado do Funchal: “ainda que as mulheres públicas por seus maus costumes, e impenitentes corações se não hajam de absolver, são todavia obrigadas pelo dito tempo da Quaresma a confessar inteiramente todos seus pecados, dos quais os confessores as ouvirão, declarando-lhes que não vão absoltas, e admoestando-as que se apartem do estado de condenação em que estão, e se convertam ao Senhor e não cumprindo assim, incorrerão nas ditas penas postas aos não confessados” (BARRETO, 1585). A questão da luxúria voltará a colocar-se, ao longo dos séculos, de forma mais ou menos evidente. Rui Carita cita uma ordem do prelado diocesano, datada de 1725, segundo a qual todo aquele que se “entregava ao vício”, muitas vezes pela miséria – e incluem-se aqui outros grupos para além das “meretrizes” da cidade, i.e., os escravos e escravas (“pretos e pretas cativos”), assim como as amas dos expostos –, estava obrigado a pagar 1050$000 réis “de condenação, cada uma [cada mulher] pelo seu trato”. A queixa da Câmara contra esta ordem de D. Fr. Manuel Coutinho, também citada pelo já referido autor, acrescenta que, para poderem pagar tal condenação, “era-lhes forçoso fazerem mais ofensas a Deus, como muitas declararam no palácio episcopal ao escrivão da câmara” (CARITA, 1999, 250). Um alvará de setembro de 1726 mostra a preocupação do bispo relativamente à entrada de “mulheres suspeitas” na Ilha, ordenando ao meirinho geral, escrivão de armas ou qualquer outro oficial que notificasse da resolução todos os capitães e proprietários de embarcações, sob pena de excomunhão e 50 cruzados. As Constituições Synodaes do Bispado do Funchal preconizavam três admoestações para as mulheres que publicamente viviam mal. Se não se emendassem, a pena podia ir até ao desterro. Sabe-se que, ao longo do séc. XVIII, com a cidade do Funchal cada vez mais aberta ao mundo, a prostituição aumentou. Houve, então, algum cuidado na delimitação das ruas públicas, sempre muito concorridas, numa cidade muito frequentada por marinheiros. Não sendo a prostituição exclusiva da cidade, era, porém, na baixa que mais prostitutas se encontravam, sobretudo nas ruas “da área do calhau”. Nas vereações de novembro de 1725, era “determinado a todas as mulheres mundanas e públicas, que se achassem a morar no centro da cidade, pelo muito escândalo que dão a esta República”, que se deslocassem para “o Valverde”, um quarteirão acima da R. do Bom Jesus. Sabe-se, ainda, de “furtos e desonestidades” num “bequinho” entre o beco do Forno e a ribeira, denunciado pelo P.e Manuel Rodrigues Faleiro, cura da Sé, em 1707. Sabe-se, ainda, que no beco da Malta “assistem as mulheres públicas” e se praticam “atos torpes” (CARITA, 1999, 250). Rui Carita refere, ainda, situações de ações que, nomeadamente ao longo do séc. XVIII, nos indicam uma das formas de angariação de clientes. Afirma o autor que uma das formas de se intrometerem com os passantes era cuspirem-lhes em cima, sobretudo quando aqueles não lhes prestavam a atenção desejada. Apresenta, como exemplo, o caso de Domingos Caetano Pereira de Melo (1776), que, à custa do processo que resultou do facto de ter ferido algumas mulheres com a sua espada, teve de “se passar” para Lisboa e daí para Espanha. Para que pudesse regressar à Ilha, duas das queixosas, cujos nomes são omitidos, de forma a que “pelo nome não percam”, comprometeram-se a perdoar-lhe as ofensas corporais, mediante determinada quantia (Id., Ibid., 250). De registar a expressão “que pelo nome não percam”, usada para que os nomes não figurassem nos documentos oficiais, o que nos leva a colocar duas hipóteses: a vergonha e/ou a mancha de quem os escrevesse ou o facto de as ditas queixosas não serem identificadas como “meretrizes”, sendo elementos da sociedade. Está ainda documentada a atitude paternalista do Gov. João António de Sá Pereira (1767-1777): em abril de 1770, pede ao vigário Bentos Gomes de Jardim “a diligência de reduzir ao matrimónio” Isabel de Melim, natural do Porto Santo, mas a levar uma vida dissoluta no Funchal, adiantando, para o efeito, 40$000 réis. Igual procedimento tem relativamente a Josefa Joaquina Rosa de Almeida, que “levava uma escandalosa vida e depravado procedimento”, presa na cadeia do Funchal e transferida para Santana, “para sossego daqueles que lhe frequentam a comunicação”, dadas as “muitas visitas” que recebia. Ainda relativamente ao séc. XVIII, um documento de um processo decorrido no Tribunal Eclesiástico fornece uma das muito poucas informações sobre os preços praticados: assim, quando se acusa um frade foragido das Canárias de procurar prostitutas, menciona-se o montante de um tostão atirado à prostituta em pagamento dos serviços, enquanto, um pouco mais adiante, se refere o valor de cinco tostões prometidos a uma escrava, caso ela aceitasse manter relações com o dito frade. Estes dados permitem verificar que as quantias atribuídas ao pagamento do ato variavam substancialmente de acordo com o estatuto da destinatária (TRINDADE, 2012, 106). Mais para o fim do século, a atitude da Igreja madeirense parece alterar-se: D. José da Costa Torres, num documento avulso de 1796, propõe a angariação de fundos para construção de um recolhimento de prostitutas, um lugar “em que possam viver cristãmente fazendo penitência de seus pecados, e ocupando-se em trabalho honesto. […] uma boa obra, muito meritória e agradável a Deus” (Id., 1999, 203). Este bispo do Funchal (1784-1796) apela à Rainha, no sentido de mandar retirar da Madeira o Corr. António Rodrigues Veloso de Oliveira, sob vários pretextos, entre os quais a sua falta de esforços para reprimir a prática da prostituição na cidade do Funchal. Nas devassas de 1794, 1795 e 1813 são acusados 18 crimes de prostituição, todos cometidos por mulheres, sendo um outro pecado contra o 6.º mandamento, “não cometerás adultério”, a mancebia, praticado por 143 mulheres e 152 homens. Em 1813, duas devassas são claras quanto ao “grandíssimo número de públicas e escandalosas prostitutas” (Id., Ibid., 139). Uma outra questão surge ligada à prostituição: a colonização do Brasil. No princípio do séc. XVII, eram organizados embarques de pequenos grupos de jovens órfãs para casarem no Brasil e, deste modo, povoarem o espaço. Não sabemos, contudo, se havia jovens madeirenses nestas condições. Sabemos, apenas, que a Coroa terá apoiado um recolhimento para apoiar estas donzelas à chegada, evitando que a incerteza do futuro que as esperava as fizesse cair na indigência e na prostituição. O assunto “Brasil” volta a ser tratado no séc. XIX, num momento difícil, “uma crise medonha”, numa reunião da Junta Geral do Distrito, no dia 4 de maio de 1854, pela voz de António Gil Gomes. Nesta “malfadada terra sem governo que lhe dê vida”, onde se verificam “cenas dolorosas e de amarguras por que têm passado os Madeirenses, que desconsolados gemem no seu drama de agonia desde a fatal época de 1852”, apresenta algumas propostas no sentido da “salvação comum […] a salvação desta bela porção do território português, à qual estamos presos pelos vínculos mais sagrados”. A primeira proposta é de carácter moral e reporta-se ao tráfico da escravatura branca, “esse tráfico de sangue”. O deputado acusa a “vergonha das vergonhas” da emigração ilegal e refere-se especificamente a mulheres e ao Brasil, assim: “que trafica escandalosamente com as mulheres, convertidas em objetos comerciáveis, fazendo das cidades uns lupanares de abominável devassidão, como nós temos presenciado no nosso Funchal que deve ser limpo desta praga, e como temos notícia de estar acontecendo no Brasil onde a beleza da mulher imigrante é posta em hasta pública, para fins de brutal sensualidade!” (ABM, Governo Civil, liv. 269, fls. 98-101v.). Na verdade, e mesmo durante o séc. XX, sobretudo no princípio, a emigração clandestina foi um dos motores da prostituição de madeirenses no Brasil. Uma monografia sobre gentes de Gaula que embarcaram para a terra prometida indica-nos casos de moças que, para pagarem a passagem, se fizeram criadas de servir, e que sobreviveram graças à prostituição exercida nas baiucas e pensões da cidade de Santos (FREITAS, 2000, 248). Outros documentos, assim como notícias de jornal, dão conta de casos de prostituição em terras de acolhimento de emigração. É o caso de uma nota publicada no Diário de Notícias de 30 de julho de 1889, referente à colónia portuguesa das ilhas Sandwich, em que se transcreve o Luso Hawaiano, jornal que se publicava em Honolulu, que apresentava a “decadência moral” da comunidade, a perda de todas as noções de moralidade e o lançamento na prostituição das filhas pelos pais. Na Ilha, ao longo do tempo, continuou a ser à volta do porto que a prostituição se operava com maior relevância, sobretudo nas alturas de crise económica. Dizia-se que, na Madeira, havia gente a morrer de fome. Em 1847, muitos mendigos da cidade foram recolhidos, à força, num armazém da Fazenda Nacional, sito à R. dos Medinas, para onde também tinham sido afastadas as prostitutas por ordem da Câmara, de 1838. Sabe-se, porém, dos poucos resultados deste afastamento, na medida em que há registos de que elas continuaram a escandalizar as boas famílias, nomeadamente no teatro, que estavam proibidas de frequentar. Vários autores, efetivamente, relacionam o aumento do número de meretrizes com os momentos mais dramáticos da história do arquipélago: as primeiras décadas do séc. XVIII, quase todo o séc. XIX e os primeiros decénios do séc. XX. Por outro lado, e para além da necessidade de sobrevivência – um dos grandes móbiles da prostituição –, às crises económicas costumam juntar-se outras, nomeadamente de ordem moral e social, bem patentes na quantidade de expostos nas misericórdias e conventos e no engrossar das fileiras de mendigos e prostitutas. De acordo com António Loja, citado por Rui Nepomuceno, “as instituições ruem”, referindo-se ao momento da crise vitivinícola, o mesmo acontecendo em outros momentos. Essa é também a interpretação de Rui Nepomuceno, que associa falências, despedimentos, assaltos, furtos, violência ao aumento do número de prostitutas na Ilha (NEPOMUCENO, 1994, 209). Nas Pastorais do bispo Manuel Agostinho Barreto, prelado do Funchal entre 1877 e 1911, é clara a preocupação com este problema. Aí se critica o “vício que emurchece a flor da vida, arrancando a pudicícia da alma e o verniz das faces” e se afirma serem poucos aqueles que “estigmatizam a escandalosa e pública prostituição, os fundos golpes dados na moral dos esposos e dos filhos, a purulenta relaxação dos costumes” (BARRETO, 558). Depois da aluvião de 1856, as meretrizes começaram a estabelecer-se em ruas que, dantes, pertenciam a famílias ilustres da cidade, ou, mesmo, à Escola Lancastriana – as ruas do Ribeirinho de Baixo e dos Medinas. As crianças são, neste tempo, uma preocupação: “Acossados pela necessidade e dificuldade da existência, os proletários impelem os filhos para a rua muito antes que estes estejam preparados para o conflito da vida; e o resultado é a vagabundagem, a mendicidade e a prostituição em uma proporção assombrosa e deplorável” – pode ler-se no Diário de Notícias de 17 de agosto de 1889, sob o título “Protecção e educação ás creanças”, tema desenvolvido na rubrica “Assuntos gerais” (“Protecção e educação ás creanças”, DN, 17 ago. 1889, 1). O mesmo diário, datado de 5 de janeiro de 1896, num artigo sobre “Hygiene publica”, dirigido ao visconde de Cacongo, e a propósito da necessidade de melhorar as ruas da cidade, refere alguns dos “vícios sociais e físicos” da “população infeliz” do Funchal: “o crime da embriaguez, a prostituição, a escrófula e o raquitismo” (“Hygiene publica”, DN, 5 jan. 1896, 1). A questão sanitária é um dos aspetos que, desde o séc. XVI, preocupa as autoridades civis e religiosas. O contágio e a propagação de doenças como a sífilis tornam-se, desta forma, um problema de saúde pública. Parece, assim, que esta preocupação é a verdadeira razão pela qual surge, pela mão de Pina Manique, em Lisboa, a 27 de abril de 1781, a obrigatoriedade da inspeção das meretrizes. Na Madeira, porém, apesar das recomendações de Mouzinho de Albuquerque, em 1843, e do Cons. José Silvestre Ribeiro, em 1846, só em 1854 estas mulheres estão obrigadas a vigilância médica. A preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis foi, deste modo, uma constante, conforme se pode inferir das informações seguintes: a 5 de novembro de 1834, a Câmara terá recebido da parte do prefeito da província a decisão de pagar ao Hospital da Misericórdia o tratamento das mulheres públicas entre 21 de outubro e 4 de novembro daquele ano; em 1836, no dia 8 de março, o Governo mandou entregar 1:000$000 réis à Comissão da Misericórdia do Funchal, para ajudar o curativo das meretrizes afetadas por doenças venéreas, assim como os pobres que as tivessem apanhado, sugerindo mesmo que a referida Comissão se socorresse de subscrições para angariar os meios que fossem necessários para evitar a propagação das doenças (ABM, Governo Civil, liv. 1, 2.ª repartição). Em Lisboa, são produzidos regulamentos, em 1858 e 1865, que servirão de modelo a outras cidades do país. Esta regulamentação parece indiciar uma relativa compreensão pública pelas razões que teriam levado muitas mulheres à prostituição – sempre entendida como uma atividade feminina. O discurso legislativo, “tolerante”, reúne preceitos morais, preocupações sanitárias e um esforço de regular a atividade. É assim que, desde meados do séc. XIX, a prostituição, reconhecida como profissão, é permitida em casas “toleradas” – casas autorizadas pelo Estado, sujeitas a periódicas inspeções sanitárias. No entanto, há vozes que se levantam, não propriamente contra a regulamentação desta atividade, mas contra o imposto do consumo: nesse Estudo Offerecido à Comissão do Protesto Nacional na Reunião Popular Realisada em 9 de Outubro de 1906, fala-se na (falta de) lógica da moral oficial que consente, regula e tributa a prostituição, um “vício, e dos mais perigosos”, explicando o autor que o Estado considera esta prática um mal necessário, impossível de erradicar (LIGA DE DEFESA DOS INTERESSES PÚBLICOS, 1906, 18). Na Madeira, a 13 de fevereiro de 1908, o Diário de Notícias anuncia um crime de morte perpetrado contra M.ª Virgínia dos Passos, “mulher de fáceis costumes”, procurada na sua residência por mais de um homem. O teor da notícia lança algumas pistas sobre um dos motivos pelos quais algumas mulheres enveredavam pelo caminho da prostituição: “Dado o primeiro passo errado, a desgraçada não teve mão em si, deixando-se arrastar no caminho vicioso e desregrado que a levou à prostituição e à morte”. Consta que terá tido um filho, “fruto dos amores ilícitos da mísera, e que ela enjeitou para a freguesia da Ribeira Brava” (DN, 13 fev. 1908, 2). Vivia na mais completa miséria. Em 1900, o Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade de Lisboa segue o Regulamento de 1865 e inicia uma série de outros regulamentos para outras cidades do país. Conhece-se a referência a um para a cidade do Funchal, datado de 22 de março de 1886, que há de ser revogado por um novo, também específico, assinado pelo governador civil, o Cor. José Maria de Freitas, em 1931, e confirmado a 1 de julho de 1944. Este Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal está dividido em 7 capítulos e 76 artigos: “Toleradas”, “Registo”, “Cancelamento”, “Casas de tolerância”, “Inspeções sanitárias”, “Disposições penais” e “Disposições gerais”. O texto começa por definir o que são meretrizes: todas as mulheres que habitualmente e como modo de vida se entregam à prostituição. De entre estas, havia aquelas que se achavam inscritas no registo policial, denominadas toleradas, podendo viver em domicílio próprio ou em comum com outras, sob direção de uma “dona da casa”. Estas “casas” não poderiam ficar situadas nas proximidades das igrejas, das escolas, dos jardins públicos, das residências das “pessoas honestas”, nos largos, praças ou ruas de muito trânsito ou, ainda, em rés do chão ou lojas. Entre outras restrições, como ausentar-se de casa por determinados períodos ou mudar de casa sem informar o comissariado de polícia, estavam proibidas de sair à rua vestidas de forma indecente, abrir janelas para a rua, permanecer à porta ou à janela de casa, escandalizar o público com palavras, gestos, ou atos e provocar quem passasse, atentando ao pudor, demorar-se para além do tempo necessário nas tabernas, botequins ou em quaisquer outros estabelecimentos. O artigo 10.º deste regulamento reporta-se à interdição de ter, em casa, filhos ou menores com mais de dois anos, assim como de receber menores de 18 anos. Muitas vezes, quando isto acontecia, havia denúncia e eram instaurados processos às “diretoras das casas”. No arquivo do Tribunal da Comarca do Funchal, um processo de 17 de outubro de 1925 dá conta, ao presidente do Tribunal da Tutoria da Infância da Comarca do Funchal, de um caso destes, em que, nos termos do § 4 do art. 4.º e do art. 12.º do dec. n.º 10.767, de 15 de maio, se prova que a menor de 14 anos, Antonieta Corrêa, filha de Sara Correa, moradora à rua Alferes Veiga Pestana, n.º 49, frequenta a casa de passe de que é diretora Filomena de Freitas, de 65 anos, viúva, sita à rua Latino Coelho, n.º 4 desta cidade, levada por Maria das Neves, mais conhecida por “barbuda”. A participação foi feita por uma concorrente, Amélia Augusta, que acusou Filomena de Freitas de consentir a entrada, na mesma casa, de menores de 16 anos. Um outro processo dá-nos conta de uma denúncia similar. Da análise destes processos se infere o nível socioeconómico destas meretrizes, a avaliar pelo das diretoras. São analfabetas, pelo que são as testemunhas presentes no Tribunal que assinam as declarações e as duas têm, apensos aos processos, atestados dos regedores das suas paróquias de residência, afirmando a sua extrema pobreza, isentando-as de pagar os 200 escudos de multa a que foram condenadas, por se terem provado os factos. As toleradas estavam impedidas de exercer a prostituição em hospedarias, lugares públicos ou em casas clandestinas, não obstante termos encontrado, na Matrícula das Meretrizes, observações como: “Hotel Benfica”, “pensão Moderna” ou “foi viver para casa particular, sob proteção de um indivíduo”. Percebe-se, pois, que a grande preocupação deste controlo apertado era a transmissão de “moléstia sifilítica, ou venérea” (art. 14.º). As meretrizes eram, então, inscritas num livro do comissariado da polícia, voluntária ou coercivamente, depois de realizado um interrogatório acerca da sua identidade – nome, filiação, naturalidade, estado, profissão anterior, instrução, sinais característicos, causas da prática da prostituição, devendo estes dados ser assinados pela própria ou por duas testemunhas, no caso de esta não saber escrever. No entanto, vistos os livros, não encontramos qualquer referência à profissão anterior ou às causas que terão levado estas raparigas para a prostituição. Quanto à instrução, na linha das “Observações”, há, a lápis, a inscrição “analfabeta”. Nenhuma das meretrizes assina a sua matrícula, sendo todos os verbetes assinados pelo comissário da polícia. Fora desta inscrição, deveriam ficar as menores de 18 ou de 21 anos, quando reclamadas pelos pais, maridos ou tutores. Por este regulamento se sabe da existência de casas de regeneração, entendidas como lugares onde são internadas as menores de 21 anos de nacionalidade portuguesa. Um processo judicial datado de 1935 dá conta de um caso destes: uma menor de 17 anos confessou frequentar casas suspeitas “a fim de ter relações com homens para ganhar a sua vida”. Na sentença pode ler-se que, “de acordo com o art. 7.º foi aconselhada a procurar vida honesta e prometendo a mesma deixar de ser prostituta e ir viver para casa de sua mãe e que se voltasse ao exercício da prostituição seria julgada como desobediente e mandou que a mesma fosse posta em liberdade” (ABM, Juízo de Direito da Comarca do Funchal, Autos Crime de Corpo de Delicto, 1935, 1.ª vara, 1.ª secção). No livro das meretrizes, encontramos, entre 1914 e 1924, 21 mulheres com idades inferiores a 18 anos. Não conseguimos apurar a razão pela qual puderam ser matriculadas com idade inferior à que a lei preconizava. Quanto às estrangeiras, deveriam ser repatriadas e, caso regressassem e continuassem a atividade, deviam ser presas e julgadas como desobedientes. A verdade, porém, é que se encontram muitas estrangeiras nas listas de meretrizes que residem nas casas toleradas, sobretudo espanholas e francesas que nos parecem ser “cabeças de cartaz” das casas. São, muitas vezes, governantes e têm, na generalidade, idades superiores às portuguesas. Um olhar sobre as fotografias que alguns livros ainda possuem, apesar de muitos retratos terem desaparecido, sido descolados ou cortados – situação para a qual não encontramos explicação –, permite-nos também perceber que se trata de mulheres com um outro tratamento e com uma forma de vestir mais cuidada e, quiçá, mais arrojada: decotes maiores, plumas e adereços diferentes das portuguesas. Num universo de 792 inscritas, 73 são estrangeiras, sobretudo espanholas, 43, e francesas, 19. Esta inscrição era gratuita, assim como um livrete sanitário atestando o bom estado de saúde da tolerada. Um dado deste regulamento faz-nos acreditar que, em alguns casos, a situação destas mulheres podia ser alterada e os registos cancelados ou suspensos: em caso de casamento, de ausência do país, de reclamação por parte de algum parente, de menoridade, de prova do abandono da prostituição, de mudança de residência ou de passagem a “teúda e manteúda”, quando se tornavam exclusivas de um determinado homem, réplicas das verdadeiras esposas, muitas vezes com o conhecimento das mesmas, a quem era montada casa e de quem tinham filhos. Já há indicações desta situação nas devassas das visitações, nomeadamente a que foi feita à freguesia de Santa Maria Maior, em 1813 (ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, Devassa…, 1813). Qualquer destas situações era suscetível de ser alterada e, se a mulher recaísse na prostituição, seria reinscrita, coercivamente, sem mais formalidades. Um outro aspeto destas regras diz respeito às casas de tolerância, divididas, por lei, em três: casas sob a direção de uma dona da casa; casas em que as toleradas viviam em comum; casas de passe, onde as toleradas iam exercer a prostituição. Essas casas podiam ser sujeitas a inspeções frequentes, de forma a verificar as condições higiénicas, “a mobília e os utensílios indispensáveis ao bom regime e asseio” (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art. 22.º). Nessas casas, estava proibida a venda de bebidas alcoólicas. Entre 1888 e 1937, há registo, nos livros da Polícia, de 56 casas toleradas, com alvará, com o número de meretrizes que as dão como residência, fora outras casas, de menor dimensão, que têm o nome da dona da casa. Note-se que as casas mais importantes tinham nomes, sendo assim identificadas nos livros de registo: Casa da Varanda, Casa dos Envergonhados, Casa Nova, Casa Americana, Casa Encarnada, Palácio de Cristal, Casa do Cevada (ABM, Polícia de Segurança Pública, Registo de Alvarás de Casas Toleradas, liv. 47). As infrações eram punidas com multas pecuniárias que iam desde 10$00 a 100$00, podendo mesmo ir até à cassação das licenças e dos alvarás de funcionamento das casas. Para as casas de tolerância abertas sem as respetivas licenças, a multa ascendia aos 300$00. As casas eram dirigidas por uma governante que, em muitos casos, ia mudando de casa, o mesmo acontecendo com a maioria das mulheres que, geralmente, não permaneciam muitos meses no mesmo lugar. As “donas de casa”, ou “diretoras”, como aparece nos processos do tribunal, tinham a obrigação de zelar pela segurança das “suas toleradas”, não podendo explorá-las com empréstimos de dinheiro a juros ou com contratos que, de algum modo, as prejudicassem; não permitindo o acesso a “estranhas” ao serviço da casa ou de indivíduos alcoolizados; e visavam ainda o respeito pelos restantes habitantes da rua. Por isso, ficavam obrigadas a não consentir em jogos, danças, canto, toques de qualquer instrumento ou qualquer divertimento suscetível de produzir ruído, a não permitir o acesso a menores de 18 anos, de ambos os sexos, sob qualquer pretexto. Um dado interessante é relativo ao facto de ter de ser comunicada à polícia a tomada de criadas da parte das “donas” das casas: estas tinham de estar devidamente identificadas e não podiam ter menos de 45 anos de idade (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art. 61.º). O estabelecimento dos preços era, também, objeto de regulação, quer por parte do aluguer dos quartos das toleradas, quer dos serviços prestados, havendo, para o efeito, “em cada quarto uma tabela bem visível com os preços por visita ou dormida, sobre os quais não poderá ser exigida maior importância” (Ibid., art. 35.º). Todas as toleradas eram sujeitas a inspeções médicas. Uma ficha com fotografia ficava arquivada no dispensário, em dia, sendo nelas anotadas as informações relativas à saúde destas mulheres: baixas ao hospital, tratamentos, análises, etc. Eram obrigatórias e gratuitas, ficando apenas dispensadas as toleradas grávidas de sete ou mais meses, as convalescentes de doenças não contagiosas, as criadas e as donas das casas de tolerância que já tivessem completado 45 anos de idade. Podiam, ainda, ser solicitadas inspeções ao domicílio, custando, em 1944, 50$00 por cada mês de visitas, e 5$00 por cada visita do médico a casa, em caso de doença. Há informação de um dispensário ou posto médico, situado na R. Júlio da Silva Carvalho, que, no mesmo documento – um processo do Tribunal Judicial do Funchal (n.º 638/1935) –, aparece localizado na R. do Carmo. De referir que uma das testemunhas deste processo de agressão de uma tolerada, “pensionista do chamado Palácio de Cristal, à Rua dos Medinas”, a uma outra, tolerada também, era um criado do posto médico onde se deu a agressão, “por ocasião da Inspeção Sanitária feita semanalmente às meretrizes” (Tribunal Judicial do Funchal, proc. n.º 638/1935). Do registo policial, percebemos que a algumas meretrizes era concedida a possibilidade de serem revistadas no seu domicílio, pagando, para isso, 11$25, em selos constantes da respetiva folha. Quando grávidas, ficavam isentas de “revista” e os filhos eram entregues à ama geral dos expostos, que os dava a criar, conforme deliberação da Câmara; e.g., em sessão de 2 de julho de 1896, a filha da meretriz Maria Lasly, nascida a 23 de junho de 1896, “foi dada a uma ama para criação”, sendo este apenas um dos casos referidos (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, n.º 1385). Uma multa de valor semelhante, acrescida de pena de prisão, acontecia quando qualquer mulher “não prostituída” ia para uma casa de tolerância “com falsas promessas de ser empregada noutro mister”. Nestes casos, a mulher era enviada à terra da sua origem e quem a recebera ou, de alguma maneira, tivesse sido responsável por tal facto, pagaria as despesas, a multa e a pena de prisão estabelecida pelo Código Penal, sendo, para esse fim, remetida ao juiz competente. O mesmo acontecia a qualquer indivíduo que procurasse lançar “no caminho da prostituição, qualquer mulher por coisas independentes da sua vontade, ou ainda por outra circunstância” (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art.º 61.º). Estas multas eram enviadas ao Governo Civil do Distrito. Por outro lado, os indivíduos – homens ou mulheres – que auferiam lucros da prostituição eram julgados como vadios e entregues ao Governo. As casas de prostituição estariam concentradas na zona urbana – no Funchal, portanto. Por outro lado, os números oficiais das prostitutas registadas não representariam a totalidade do conjunto. Um estudo da época apresentou uma estimativa de 5276 prostitutas e 485 casas situadas sobretudo em Lisboa, no Porto, em Coimbra e em Évora. No caso da Madeira, e tendo apenas os dados constantes da Matrícula das Meretrizes da Polícia de Segurança Pública, sabemos que, entre 1914 e 1931, foram matriculadas cerca de 760 mulheres, provenientes de várias freguesias da ilha da Madeira, mas sobretudo de Portugal continental, faltando, assim, livros respeitantes aos outros anos, não nos permitindo uma contabilização mais apurada. No dito regulamento, há algumas ruas indicadas como “lugares exclusivamente habitados por toleradas”: R. dos Medinas – quase todas as casas –, Trav. da Malta, R. do Monteiro, Trav. João d’Oliveira, R. do Ribeirinho de Baixo, R. do Anadia, R. da Figueira Preta, tendo, de acordo com estudo de Abel Marques Caldeira, algumas dessas artérias desaparecido, por efeito da urbanização (CALDEIRA, 1964, 35). As casas toleradas detinham um alvará, havendo delas registo em alguns livros da Polícia. Dos dados disponíveis, registamos, entre 1918 e 1936, 226 licenças para casas toleradas. Em pleno Estado Novo, houve, então, a necessidade de ordenar, sistematizar e funcionalizar uma atividade com que era necessário conviver, pelo que regressou, ao menos em termos oficiais, o discurso moralista e higienista de Oitocentos. Por outro lado, os pagamentos de licenças, multas e inspeções sanitárias eram mais uma contribuição para o erário público. Isto depois de, nos anos 20, alguns sectores político-sociais se erguerem contra aquilo que consideravam ser a dissolução dos costumes, associando o jogo, a prostituição e o crime. Em 1949, uma lei sobre a propagação das doenças infetocontagiosas (lei n.º 2036, de 9 de agosto) veio impor restrições à prostituição, fechando as casas que podiam ser um perigo para saúde pública e proibindo a abertura de novas casas de prostituição, o que apenas veio contribuir para o aumento da prostituição clandestina. Até 1963, a prostituição era, deste modo, regulamentada, e incluía consultas e exames médicos às prostitutas. Foi a lei n.º 44.579, de 19 de setembro de 1962, que tornou ilegal a prostituição a partir de 1 de janeiro, tendo sido encerrados os bordéis e outros lugares similares. No entanto, a lei teve pouco efeito prático e, no novo Código Penal de 1983, foi parcialmente alterada. O art. 6.º do dec.-lei n.º 400/82, de 29 de agosto, que revogou o art. 1.º do dec.-lei n.º 44.580, fez desaparecer a criminalização das prostitutas. De acordo com a revisão de 2005 da legislação europeia, Portugal foi considerado abolicionista, no sentido em que não apresenta proibição ou regulamentação nesta área, quer para a atividade particular quer para a pública, apesar de existirem restrições alfandegárias controladas pela Polícia: há zonas onde a atividade não pode ser exercida e restrições relativamente aos locais onde a prostituição pode ocorrer, não podendo nenhuma casa ser arrendada para negócio de prostituição, incorrendo os seus proprietários no crime de lenocínio (art. 169.º do Código Penal). A prostituição individual feminina (a masculina só foi reconhecida muito mais tarde) era permitida, apesar de se proibir a sua exploração. Era possível acusar as prostitutas de ofensas à moral e à decência públicas, o que raramente acontecia, e o cumprimento da lei estava na mão das autoridades locais. Geralmente em Portugal, tal como noutros países onde a atividade sexual das mulheres antes do casamento não era bem vista, sobretudo antes dos anos 70, era prática comum os rapazes, muitas vezes acompanhados pelo pai, iniciarem a sua vida sexual com uma prostituta, “evitando que os jovens rapazes caíssem em fantasias e experiências homossexuais entendidas como perversas, viciosas e doentias”, como explicou Isabel Freire (FREIRE, 2013, 57). Nos anos 60, um caso veio abalar a sociedade madeirense. O “caso Sandra”, ainda no resguardo da lei, ficou conhecido como o “ballet rose” do Funchal, envolvendo, segundo testemunhos de indivíduos ligados ao Tribunal Judicial do Funchal, gente da alta sociedade funchalense. Depois de 1974, com a liberalização dos costumes, encontramos referências a prostituição em algumas ruas do Funchal, nomeadamente em prédios abandonados e devolutos: é o caso de uma denúncia na última página do Diário de Notícias do dia 5 de outubro, sob o título “Rua do Sabão: prostituição ao ar livre!”. O que esta notícia nos traz de novo é o facto de (d)escrever o modo de angariar os clientes: “Frente à desembocadura da Rua dos Murças, no esqueleto dum prédio incendiado e seus anexos (sem tapume) recebem os seus clientes, angariados normalmente por menores (rapazitos a quem oferecem uma comissão sobre a receita angariada)”. Por outro lado, descreve a falta de condições e higiene verificada “nos covis imundos de lixo desse prédio derrubado, onde fazem ‘o leito do amor’ com palha e cartões de caixas que antes embalaram mercadorias que não o seu corpo”. Em 1995, 1998 e 2001, a lei foi alterada, de forma a abranger a prostituição infantil e o tráfico humano. O mês de março de 1998 traz a lume uma série de informações sobre pedofilia na Madeira: estudos, denúncias, ligações a redes pedófilas estrangeiras; questões sociais; envolvimentos de personalidades da Ilha. Por entre as páginas de jornais, alguns relatos permitem localizar em Câmara de Lobos a origem de grande parte das crianças que se prostituem no Funchal, muitas com idade inferior a 12 anos e com conhecimento dos pais. As causas apresentadas ligam-se, sobretudo, a fatores de ordem socioeconómica: famílias numerosas, má gestão do orçamento familiar, consumismo excessivo, falta de valores. Dos locais assinalados para a prática ou o aliciamento dos jovens, destacam-se: o Funchal, algumas artérias e jardins da cidade, Câmara de Lobos, o bairro da Nogueira, na Camacha, e o Caniçal. Encontraram-se referências a boîtes ou casas de alterne, que o tempo foi fechando: o Fugitivo, o Campolide, o Royal, o Mambo, o Executive Club. Explica Lília Bernardes, num artigo sobre as noites da Madeira, que a realidade da prostituição tem novos contornos: “Faz-se em apartamentos com contactos por telemóvel. Mas a rede está montada” (BERNARDES, DN, 19 ago. 2009). Faz-se com madeirenses e com gente do mundo inteiro. A atividade é, ainda, exercida em diversos lugares da cidade: em determinadas ruas e praças, em casas de massagens e bares, em discotecas, residenciais e pensões que, de forma mais ou menos discreta, servem de bordéis. Em 2013, a resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira n.º 24/2013/M (publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, 1.ª sér., n.º 176, de 17 de dezembro de 2013) vem deliberar sobre a prostituição e a abolição da escravatura do séc. XXI, no seguimento do 63.º aniversário da Convenção das Nações Unidas para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração de Outrem (1949). Num dos considerandos, afirma-se com clareza que “em Portugal, e, em especial, na Região Autónoma da Madeira, a prostituição é um fenómeno de dimensão nacional e transnacional que vitimiza, por forma dramática, muitas mulheres e crianças, havendo múltiplas redes de tráfico atuando no território nacional”. Sendo manifestamente reconhecido que as principais causas da prostituição são a pobreza e a discriminação social das mulheres e das crianças, mais vulneráveis, deliberou-se a tomada de medidas de apoio às prostitutas e às vítimas de tráfico para efeitos de exploração sexual, nomeadamente linhas de atendimento, criação de redes de apoio e abrigo, adoção de estratégias de integração social das vítimas de prostituição.   Graça Alves (atualizado a 15.02.2018)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

radiodifusão portuguesa / rdp - madeira

A 28 de maio de 1941, o Diário de Notícias da Madeira, citando o Diário dos Açores, com uns dias de atraso, compreensível para a época, anunciava na 1.ª página que “um emissor regional da Emissora Nacional está a ser instalado na cidade de Ponta Delgada”. O matutino da rua da Alfândega acrescentava que “a Madeira também espera igual melhoramento’’. Estava então em marcha um plano do Ministério das Obras Públicas e Comunicações “para remodelar amplamente os serviços de radiodifusão”, que incluía a Madeira entre as terras que vão ser dotadas com um emissor regional. ‘‘Embora ainda nada conste sobre essa instalação” – adianta a notícia –, “é de admitir que ela venha a ser um facto palpável num próximo futuro, tanto mais que a Madeira representa um alto valor no quadro dos domínios da soberania portuguesa” (“Um Emissor…”, DNM, 28 maio 1941, 1). Só que o futuro, que se desejava breve, tardou 26 anos. Na costa norte, com o auxílio de grandes antenas, era possível ouvir a Emissora Nacional e o Rádio Clube Português com alguma qualidade, o que não acontecia no sul e sudoeste. Face à deficiente eletrificação nos concelhos rurais, os poucos aparelhos de rádio (telefonias) aí existentes eram, em muitos casos, alimentados por baterias de automóveis. Mais tarde, com a regionalização da Empresa de Eletricidade da Madeira (EEM), através do dec.-lei n.º 31/79, de 24 de fevereiro, ‘‘são lançadas as grandes obras com vista à completa eletrificação da ilha da Madeira’’ que só se veio a atingir nos anos 80. Sem rádio nem televisão, e com imensas carências de múltipla ordem, nomeadamente ao nível da rede rodoviária, a Madeira sentia-se limitada pela sua secular insularidade. A chamada “pérola do Atlântico” dividia-se de forma vincada em cidade e campo; dê-se como exemplo o aeroporto, inaugurado apenas a 8 de julho de 1964, com uma pista de 1600 metros e sem capacidade para receber voos intercontinentais. A grande porta dos madeirenses era o mar, mas o alargamento do porto só ficou concluído em 1961, 48 anos depois de ter sido criada a Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal, a 13 de agosto de 1913. A Emissora Nacional de Radiodifusão (EN), inaugurada oficialmente a 4 de agosto de 1935, instalou o Emissor Regional da Madeira a 22 de outubro de 1967, quase 26 anos depois do início da radiodifusão nos Açores que ocorreu a 28 de maio de 1941. Um ano antes, fora publicada a primeira Lei Orgânica da EN (dec.-lei n.º 30.572), que consagrou a criação dos emissores regionais do Porto, Coimbra e Faro. O Funchal ficou esquecido durante quase três décadas até que, finalmente entrou em funcionamento um emissor de 1 kW em onda média (OM), na frequência de 1332 quilociclos por segundo, na Escola do Tanque, na freguesia do Monte, para a cobertura da cidade durante um período experimental. Rui Ivo Nunes Pereira foi o primeiro diretor (designado por Intendente), tendo sido empossado, em Lisboa, com mais de dois anos de antecedência, a 28 de maio de 1965. A abertura da primeira emissão coube ao locutor Virgílio Gonçalves. Os estúdios ficavam na rua dos Netos, n.º 27, havendo dois pequenos períodos diários de emissão: de segunda-feira a sábado das 11.30 h às 14.00 h e das 19.00 h às 23.00 h; e aos domingos, entre as 12.00 h e as 23.00 h. Na altura, o país ouviu pela primeira vez a reportagem em direto da passagem do ano na Madeira. A 24 de março de 1968, assistiu-se à transmissão do primeiro relato de um jogo futebol (entre o Marítimo e o Lusitânia dos Açores) por Artur Agostinho e Armindo Abreu, no Estádio dos Barreiros, a contar para a Taça de Portugal. Em 1969, teve lugar a ampliação dos estúdios e entrou em funcionamento uma Central Técnica, procedendo-se ao aumento da potência para 10 kW, na Estação do Monte. Fez-se a primeira emissão em frequência modelada (FM) (na frequência de 96.0) para o Funchal com um emissor de 50 W, instalado nos estúdios. Em 1971, alargou-se ligeiramente o tempo de programação, normalmente preenchido com gravações vindas em bobinas do Serviço de Intercâmbio de Lisboa, passando-se a emitir um espaço regional de produção própria, apresentado por Armindo Abreu, entre as 10.00 h e as 11.30 h, de segunda a sexta-feira. Em 1974 a EN consegue outro estatuto, abrindo-se a antena entre as 07.00 h e as 24.00 h. No dia 25 de abril de 1974 (o dia da Revolução dos Cravos), e igualmente no dia seguinte, o responsável pelo Emissor Regional da Madeira da EN, revelando incerteza ou desconfiança sobre o que se passava na capital, mas que já se refletia bastante nas ruas do Funchal, não aderiu prontamente ao Movimento das Forças Armadas (MFA), para o que lhe bastava transmitir em cadeia com a emissão a nível nacional. Em consequência dessa tomada de posição, e depois de os funcionários terem enviado um telegrama ao MFA, alertando para a situação, verificou-se o afastamento do Intendente, António Vermelho Corral, substituído pelo locutor de 2.ª classe Duarte Manuel da Câmara Brito Gomes (Duarte Canavial), conforme noticiou, na abertura, o Diário Sonoro das 20.00 h do dia 27 de Abril. Tempos depois, no decorrer do chamado Verão Quente de 1975, período de grande tensão política entre a esquerda e a direita, houve um atentado bombista no centro emissor do Monte, a 22 de agosto, que provocou a interrupção da emissão em OM durante dez dias. A 7 de outubro, os estúdios são ocupados durante cerca de quatro horas por um grupo que se intitulou de “retornados” (portugueses regressados das antigas províncias ultramarinas) que exigia uma emissora livre, fora do controlo de fações esquerdistas, e a readmissão dos locutores Armindo Abreu, Duarte Canavial e Juvenal Xavier; horas depois, deu-se uma contrainvasão por um grupo do Sindicato da Construção Civil, que ficava nas traseiras do prédio do Emissor Regional. O Comando Militar da Madeira ordenou a desocupação das instalações, garantindo a sua vigilância durante um mês. A 2 de dezembro de 1975, o governo de Pinheiro de Azevedo nacionalizou a rádio “no território continental” (decreto-lei n.º 674-C/75) e foi constituída uma empresa pública de radiodifusão (EPR), depois denominada Radiodifusão Portuguesa, EP (RDP), com o objetivo de “reconduzir a atividade de radiodifusão às dimensões e características de um serviço público que sirva o povo e a Revolução”. Por não haver qualquer referência às ilhas adjacentes por parte do legislador (era ministro da Comunicação Social Almeida Santos), não são abrangidos pelo diploma o Posto Emissor do Funchal e a Estação Rádio da Madeira. A 24 de maio de 1980, a delegação da Madeira tornou-se um Centro Regional (dec.-lei n.º 155/80), funcionando como representação descentralizada, dotada de autonomia de gestão e financeira. Segundo o artigo 6.º, o diretor era nomeado pelo conselho de gerência da RDP, precedendo acordo do governo regional que, por sua vez, através do departamento competente, poderia propor, também, a sua exoneração. A 1 de julho de 1982, com a inauguração do centro emissor do Arieiro, atingiu-se a cobertura total do arquipélago em OM (10 kW) e em FM (5 kW). Em 1983, principiaram as emissões em estereofonia. Data de 1984 a construção de um estúdio que possibilitou o desdobramento da programação em OM e FM. Em 1986, ocorre a ampliação da rede de FM com a estação do Paul da Serra, estendendo-se o sinal a parte da costa oeste. Com a instalação da estação do Porto Santo, em 1987, reforçou-se a penetração nesta ilha e também na costa norte da Madeira. Com a entrada em atividade de um estúdio auto-operado, em 1988, foi criado o 2.º Canal, com a designação de Super FM, que emitia entre as 10.00 h e as 02.00 h. Em 1989, prossegue a ampliação da rede de FM com a estação de Gaula (300 kW). Em 1990, houve novo aumento da potência do Monte para 500 W e do Paul da Serra para 200 W. Em 1991, arrancaram as obras do novo centro de produção do Funchal, na rua tenente-coronel Sarmento, num terreno com 1 265 m2 que fora adquirido em 1977. Em 1992, leva-se a efeito a ampliação da rede de FM do Canal 2, através das estações do Cabo Girão, Ribeira Brava, Pico do Facho (Machico) e Achadas da Cruz. Em dezembro, o mesmo sucedeu com a rede de FM do Canal 1, com as estações do Cabo Girão e do Monte. Em 1993, coloca-se um novo feixe hertziano em direção ao Pico do Arieiro e amplia-se a rede de FM do Canal 1, a partir do centro emissor do Monte e das estações do Paul da Serra, Achadas da Cruz, Ponta do Pargo, Pico do Facho (Machico), Porto Santo e Ribeira Brava. Em 1994, são montadas as estações de Gaula e da Encumeada. A abertura de um novo centro de produção era uma grande aspiração do Centro Regional da Madeira, sob a direção de Manuel Correia. A rádio pública funcionava num edifício da baixa da cidade, sem qualidade e sem condições, que sofreu uma série de obras de adaptação para se obter uma maior funcionalidade. O processo iniciou-se em maio de 1987, quando a RDP apresentou uma candidatura ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) para a edificação do novo centro. Em dezembro de 1988, a Comissão das Comunidades Europeias aprovou a concessão de um financiamento para o projeto, da autoria dos arquitetos Pedro Santos Costa e José Calheiros, celebrado a 9 de abril de 1990 (a primeira pedra foi lançada a 1 de setembro) e concluído no início de 1991. O edifício compunha-se de dois elementos contíguos de quatro e cinco pisos, interligados por uma galeria e terminando numa torre na zona oposta à entrada, para a colocação de antenas de feixes hertzianos. A área total de construção correspondia a 2985 m2. O centro foi equipado com três estúdios auto-operados, dois convencionais e um de média produção, além de uma central técnica de programas automática, programável e de comutação digital. A inauguração do primeiro centro de produção de rádio em Portugal construído de raiz registou-se a 14 de abril de 1993. A 28 de maio de 2011, e uma vez que se tinha efetivado, em 2004, a incorporação da RTP e da RDP na Rádio e Televisão de Portugal, a rádio transferiu-se para o edifício do Centro Regional da Televisão. A 5 de dezembro de 2012, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, “legítima representante dos cidadãos da Madeira e do Porto Santo, recomenda ao Governo da República que a verba referente à alienação das antigas instalações da RDP-M, à rua Tenente Coronel Sarmento, no Funchal, que se encontram encerradas desde 28 de Maio de 2011, reverta inteiramente em favor do reequipamento da RTP-M e da RDP-M”. A resolução n.º 2/2013/M da Assembleia Legislativa da Madeira foi publicada no Diário da República, I Série, n.º 6, de 9 de janeiro de 2013. A rádio do Estado mudou de residência pela terceira vez, passando a coabitar com a televisão, em Santo António. Com o aparecimento da televisão, a rádio deixou de ser a protagonista dos serões que reuniam a família à sua volta, embora na Madeira, onde as novidades demoravam muito mais tempo a entrar na moda, a sua idade da fama tenha sido mais prolongada, atingindo e porventura ultrapassando os anos 80 do séc. XX ainda com considerável vigor e penetração no tecido social. O transístor das grandes vozes foi perdendo audiências, mas continuou a ser uma força fundamental e indispensável no campo da nova informação, sobretudo pela sua inegável mobilidade e rapidez. Com o mundo novo da internet, a rádio mundializou-se, globalizou-se, deixou a aldeia e ganhou outra gama de ouvintes, que redescobriu a intimidade de um som antigo. No caso tipicamente madeirense, devido à orografia bastante acidentada que dificulta a propagação das ondas, a RDP teve de transformar-se, lançando uma vasta rede de emissores de FM para garantir a cobertura, que é assegurada na sua totalidade por 31 frequências MHz: Antena 1 (13 frequências): 90.2 (Ponta do Pargo), 92.0 (Massapez), 93.1 (Encumeada/Pico do Facho), 95.5 (Pico do Arieiro), 96.7 (Cabo Girão), 98.5 (Gaula), 100.5 (Porto Santo), 101.6 (Caniço), 101.9 (Paul da Serra), 104.3 (Achadas da Cruz), 104.6 (Monte/Santa Clara/Funchal), 105.4 (Calheta), 105.6 (Ribeira Brava); Antena 2 (5 frequências): 99.0 (Caniço), 99.4 (Cabo Girão), 102.4 (Funchal), 103.3 (Porto Santo), 106.3 (Gaula); Antena 3 (13 frequências): 89.3 (Caniço), 89.8 (Monte/Santa Clara/Funchal), 90.8 (Encumeada/Pico do Facho), 91.3 (Gaula), 93.3 (Paul da Serra), 94.1 (Pico do Arieiro), 94.6 (Ponta do Pargo), 94.8 (Cabo Girão), 95.7 (Massapez), 96.5 (Porto Santo), 103.1 (Ribeira Brava), 105.0 (Achadas da Cruz), 107.5 (Calheta). Mesmo com toda esta substantiva rede de emissores por vales e serras, a rádio deparou com uma grande e intransponível “parede” à sua transmissão com a construção, a partir de 1989, de 116 túneis rodoviários, que atingiram uma extensão de quase 80 km. Em setembro de 1997, o Serviço Técnico da RDPM, chefiado por Paulo Brazão, elaborou um estudo técnico-científico para a cobertura radiofónica do túnel da via rápida entre o Funchal e a Ribeira Brava. O projeto contemplava spotes (pequenas antenas de emissão) e traçados de cabos radiantes, capazes de difundir vários programas de FM e comunicações de um ou mais operadores. A administração da RDP autorizou a sua instalação nos túneis de Santa Clara, do Cabo Girão e da Ribeira Brava. Depois de autorizado pela Câmara Municipal do Funchal, em 22 de outubro de 1999, teve início a instalação desse sistema, que começou a funcionar a 5 de maio de 2000, sendo o túnel de Santa Clara o primeiro a possuir este tipo de cobertura no país. Alguns programas da rádio pública, sobretudo das décs. de 80 e 90 do séc. XX, têm um lugar especial no baú das recordações dos madeirenses que os ouviam: “Quotidiano”, “Duche da Manhã”, “Interferências de Verão”, “Quatro Linhas”, “AZERT” e a radionovela “Neto Herói”.   Estação Rádio da Madeira CSB 90 A Estação Rádio da Madeira (ERM), que teve origem no Rádio Clube da Madeira, calou-se definitivamente no dia 6 de agosto de 2000; a sua casa, no Pico dos Barcelos, foi demolida em agosto de 2013, encerrando a história de mais de meio século da chamada “emissora do cambado”. O seu fundador, Mário de Sousa Portela Ribeiro, vivera o aparecimento, em 1930, do Rádio Clube Português (RCP), propriedade de Botelho Moniz, onde exercera o cargo de diretor técnico; a mulher, Isabella Ferreira, fora locutora nas emissões da noite em inglês, em 1936, no início da Guerra Civil em Espanha. Contudo, divergências com Botelho Moniz fizeram-no partir para a Índia em 1940, regressando à Madeira depois da Segunda Guerra Mundial. Influenciado pelo facto de a Emissora Nacional não ser ouvida nas melhores condições, Mário de Sousa Portela Ribeiro pôs em marcha a ERM juntamente com o filho, Manuel Dayrell Marrecas Portela Ribeiro. Começaram pela construção artesanal de um pequeno emissor tecnicamente rudimentar em casa, depois mudaram-se para uma vivenda ali perto. As emissões experimentais dão os primeiros passos no dia 6 de janeiro de 1946, com Portela Ribeiro, Isabella Ferreira e os filhos, Edgar e Manuel. A cabina de locução era forrada com sacas de serapilheira para melhorar as condições de acústica. Mas havia um grave problema – não tinham licença dos Serviços Radioelétricos. Na resolução da situação, empenhou-se o governador do distrito autónomo do Funchal, João Abel de Freitas, que aprovara os estatutos do Rádio Clube da Madeira a 31 de dezembro de 1947, em conformidade com o parecer do Conselho Permanente da Ação Educativa, homologado pelo subsecretário de Estado da Educação Nacional. O Rádio Clube da Madeira tinha como fim “reunir os amadores que se interessam pela radiotécnica, promovendo assim o desenvolvimento da radiodifusão em Portugal”. Segundo a alínea b) do art. 2.º dos Estatutos, um desses fins seria “construir ou adquirir uma estação emissora de amador no Funchal e todas as outras que as circunstâncias aconselharem e permitirem” (ARM, GC, “Estatutos…”, cx. 3, 57, 1947). De início, funcionaria na referida sede do RCM, com 300 W. O alvará foi entregue a 3 de janeiro de 1948 e a tomada de posse sucedeu a 30 de março, na Associação Protetora dos Estudantes Pobres do Funchal. A primeira Assembleia Geral, sob a presidência do capitão Carlos Silva, realizou-se no Ateneu Comercial do Funchal a 14 março de 1948, tendo sido eleita a seguinte direção: Mário Portela Ribeiro, José Rafael Basto Machado, Vasco Paiva Brites, Mário Matos, Carlos Silva, Jaime Albuquerque Gonçalves e Luís Sacadura. Como suplentes, Pedro Pires e Carlos Santos. Em dezembro de 1959, começaram as obras de construção da nova sede, no Pico dos Barcelos. Para financiar o investimento, em grande parte suportado pelas economias da família, surgiu a ideia de transmitir um programa de discos pedidos que ocupava uma grande fatia da programação entre as 10.00 h e as 24.00 h, pagando os ouvintes 2$50 por cada vez que a música tocasse. Chegavam a ser 200 por dia, sendo as mais conhecidas para várias pessoas ao mesmo tempo. O rei dos discos pedidos era o brasileiro Teixeirinha – um gaúcho que não parava de cantar “Coração de Luto” e “Canarinho Cantador”. O auditório pedia cantigas para celebrar aniversários, casamentos e batizados; e muitas vezes os emigrantes dedicavam discos à família. Outra fonte de receita era, sem dúvida, os anúncios publicitários, a 15$00 por cada leitura. A programação procurou ter um papel de relevo na defesa dos interesses locais, com ênfase na divulgação de temas sobre agricultura, a cargo da revista Frutas da Madeira e da Junta Nacional dos Lacticínios. A história da Estação Rádio da Madeira CSB 90, comprimento de onda de 202 m e frequência de 1484 quilociclos por segundo, foi marcada por vários diferendos familiares entre Mário de Sousa Portela Ribeiro e os filhos. Mais tarde, com a legalização das rádios locais e a consequente distribuição de novas licenças, a ERM, que já possuía a frequência 96.0, motivou o interesse de José Paulo Ribeiro Moura e de Pedro Cirílio Freitas Gonçalves, que adquiriram o respetivo alvará e todos os meios técnicos. Porém, a nova empresa não conseguiu encontrar uma sede no Funchal, pelo que a Rádio Madeira – como era conhecida na sua fase final – acabou por desligar o seu emissor a 6 de agosto de 2000. Ficará lembrada como a estação jovem que abriu os seus microfones a estudantes e a produtores particulares. Na memória permanecerão programas como “Funchal-65”, “Quando o Telefone Toca”, “Comboio da Noite” e “Rádio Totobola” – o mais antigo em Portugal (com início em 1974).   Posto Emissor do Funchal C.S.3U.A. Em 1946, Eduardo António Santos Pereira propôs ao Conselho Diretivo da Sociedade de Concertos da Madeira que se criasse no Funchal uma emissora regional, proposta que foi aprovada por unanimidade, tendo-se dado todos os passos para se obter a respetiva autorização. A Direção dos Serviços Radioelétricos, entidade que concedia a licença para o funcionamento dos postos emissores, sugeriu que, uma vez que se encontrava pendente outro pedido feito no mesmo sentido pela firma Ramos & Ramos, se juntassem, criando-se uma só estação de radiodifusão particular no Funchal e evitando-se a dispersão de despesas. A 4 de julho de 1947, o projeto mereceu a aprovação do ministro das Comunicações; seria a primeira estação de rádio devidamente autorizada. Assim – depois de um período experimental –, em 28 de maio de 1948, às 18.00 h, com a presença de autoridades civis e militares da Madeira, eram oficialmente lançadas para o éter as palavras: “Aqui Funchal, Posto Emissor C.S.3U.A. a transmitir na frequência de 1529 quilociclos dos seus estúdios no Teatro Baltazar Dias” (CLODE, 2000, 154). Nascia assim o Posto Emissor do Funchal C.S.3 U.A. (PEF). No entanto, segundo a imprensa do dia 30, a data e a hora desta primeira emissão não foram as referidas. Com efeito, O Jornal (antecessor do Jornal da Madeira) escrevia que “fazendo parte das comemorações da data gloriosa da Revolução Nacional, realizou-se ontem às 12 horas a inauguração solene do Emissor Regional do Funchal, propriedade da Sociedade de Concertos da Madeira e da firma Ramos & Ramos” (O Jornal, 30 maio 1948,). Para o Diário de Notícias, a cerimónia teve lugar no dia 29, “integrada no programa comemorativo da data do 28 de maio, constituindo, sem dúvida, um dos números de maior audiência para o público” (“O acto inaugural…”, DN, 30 maio 1948, 6). Após a cerimónia, houve a transmissão de um concerto por Wera da Cunha Teles (canto), Lizetta Zarone (piano) e Pedro Lamy dos Reis (violino), professores da Academia de Música da Madeira. A insuficiente cobertura da Madeira pela Emissora Nacional, que “a maioria das vezes, transmitia mais ruídos do que novidades” (CLODE, 2000, 153), provocava o descontentamento dos ouvintes. Era preciso fazer alguma coisa para acompanhar a evolução da nova tecnologia da rádio. Impunha-se congregar esforços, conhecimentos e técnicas. Corriam então os primeiros meses de 1947. Um encontro de quem se dedicava à música e à sua divulgação (William Edward Clode e Luís Peter Clode) com quem estava ligado pelo saber e pelo comércio à eletrotecnia (Herculano Ramos e Arlindo Ramos) propiciou o nascimento do Posto Emissor de Radiodifusão do Funchal. Um técnico de rádio e rádio amador de reconhecido mérito nacional e internacional (João Higínio Acciaioly Ferraz) deu uma apreciável colaboração a esta iniciativa, à qual se juntou também, com entusiasmo, um apaixonado homem de teatro (Mário Basílio de Abreu), que foi o primeiro locutor. A primeira locutora do PEF, Maria Guida Gonçalves Câmara, era estudante da Escola Industrial e Comercial António Augusto Aguiar tendo sido “notada pela sua bela dicção” numa festa de alunos no Teatro Municipal. Guida Câmara “achava mais difícil falar ao microfone do que em palco em frente de toda a gente” (ANA MARIA, 1952, 14). Durante três anos, estúdios e emissor (este com a potência de150 W) estiveram localizados num dos camarins do Teatro Baltazar Dias. As emissões eram às terças, quintas e sábados das 20.00 h às 23.00 h, e aos domingos das 16.00 h às 19.30 h. Em 1952, os estúdios foram transferidos para a rua Fernão de Ornelas e a potência aumentou para 500 W. A 27 de abril de 1958, assinalou-se a primeira transmissão direta de um relato de futebol do Continente para a Madeira, por Joaquim Santos: tratou-se do encontro entre o Futebol Clube do Porto e o Club Sport Marítimo, no Estádio das Antas, para a 2.ª mão dos quartos de final da Taça de Portugal. Em 1959, o PEF instalou-se na rua da Ponte São Lázaro, subindo a potência para 1 KW e emitindo do centro instalado no Livramento, na freguesia do Monte. Em Lisboa já tinham começado as emissões regulares da RTP e o PEF tornou-se seu acionista, sendo depois eleito Presidente da Assembleia Geral. Em 1964, foi outorgada a escritura pública da Sociedade. Em 1967, formou-se a primeira estação de FM com 250 W, matrícula CSB 220, na frequência de 91.9 MHz, colocando-se o emissor no mesmo local dos estúdios. Com o aumento da potência para 1 KW (quatro vezes mais), saltou no quadrante para 92.0 MHz Em 1972, abriu novo centro nas Encruzilhadas (Santo António), onde foi montado o emissor de OM, substituído por outro de 10 KW em 30 de abril de 1987. O emissor de FM esteve no sítio da Barreira (Santo António), com a potência alterada para 2 KW. A 23 de abril de 2013, operou-se a concentração destes emissores no Chão da Lagoa. No seu Estatuto Editorial, constante do art. 34.º da lei 54/2010, o PEF, sob a direção de Teresa Clode, John Ramos, Luís Clode e António Ramos, define-se como “uma rádio privada, independente de quaisquer poderes políticos, económicos ou sociais, inspirando a sua atividade no quadro de valores e princípios da doutrina cristã”. Segundo o ponto 4 do mesmo Estatuto, “procura informar de forma isenta, rigorosa e pluralista, com respeito pelos princípios da ética e da deontologia, privilegiando os factos, os temas e as questões próprias da Região Autónoma da Madeira ou os que a ela se referem, sem prejuízo da restante informação de caráter nacional e internacional” (“A Rádio”, Posto Emissor do Funchal). Dezenas de programas enriqueceram a sua existência, como: “A Semana Passada Aconteceu”, “Enciclopédia Sonora”, “Paralelo 32”, “Vamos Todos Cirandar”, “Meia Hora dos Estudantes” e “Ao Cantar do Galo”. Membro da Associação de Rádios de Inspiração Cristã, o PEF passou a ser uma sociedade por quotas, com um capital social de 115.500 euros, distribuído pelo Seminário Maior de Nossa Senhora de Fátima (50.000), a Diocese do Funchal (50.000), Maria Francisca Teresa Clode (15.000) e a Sociedade de Concertos da Madeira (500).   Das rádios piratas às rádios locais A Rádio SOLMAR – Cooperativa de Radiodifusão CRL, fundada por Luís Ornelas Vasconcelos, surgiu como primeira “rádio pirata” da Madeira a 16 de junho de 1987, tendo o seu Conselho de Administração informado o diretor regional dos Serviços de Radiocomunicações, a 14 de outubro desse ano, de que passava a emitir na frequência de 88.8 MHz, todos os dias, com caráter experimental, utilizando um equipamento da marca RVR, modelo PTX 20. A 9 de janeiro de 1988, a SOLMAR solicitou o licenciamento de uma estação de radiodifusão em FM e estereofonia. Com um pequeno emissor de 15 W, emitiu inicialmente entre as 19.00 h e as 24.00 h e depois entre as 08.00 h e as 24.00 h, na freguesia do Imaculado Coração de Maria, no concelho do Funchal. Mas, por imperativos legais, as emissões terminaram a 24 de dezembro, durante o XI Governo Constitucional de Cavaco Silva, que mandou encerrar todas as «piratas» – um movimento que acabara com o monopólio do Estado. Escreveu-se uma breve história somente com 18 meses, porque a SOLMAR foi excluída dos concursos. Com a lei n.º 87/88, de 30 de julho (a lei da rádio), foram legalizadas as rádios locais, cabendo à Região Autónoma da Madeira 13 frequências. A 6 de março de 1989, são atribuídas apenas 8, 3 das quais para o Funchal – Estação de Rádio/Jornal da Madeira (88.8), Clube Desportivo Nacional/Rádio Clube (106.8) e Estação Rádio da Madeira FM (96.0) – e 5 aos concelhos rurais de Câmara de Lobos (Grupo Desportivo do Estreito/Rádio Girão 98.8), Machico (Rádio Zarco 89.6), Ponta do Sol (Rádio Sol 103.7), Ribeira Brava (Rádio Brava 98.4) e Santa Cruz (Rádio Palmeira 96.1). Em 2000, foram legalizadas as 5 restantes: Rádio S. Vicente (89.2), propriedade dos Bombeiros Voluntários de São Vicente e do Porto Moniz; Rádio Porto Moniz (102.9) da Associação de Desenvolvimento da Costa Norte da Madeira-IPSS (ADENORMA); Rádiourbe (91.6/Calheta), da Empresa de Produção e Comércio de Publicidade Lda.; Rádio Santana (92.1), da Empresa de Radiodifusão e Publicidade Lda; e Rádio Praia (91.6/Porto Santo), da Betamar Lda/Grupo Porto Santo Line. A Estação Rádio da Madeira, que já transmitia em OM desde 6 de janeiro de 1947, arrancou com as emissões em FM a 1 de setembro de 1989. Seguiram-se a Girão, no dia seguinte (a primeira fora do Funchal); a 6, a Jornal da Madeira; e a 9 de dezembro, o Rádio Clube. A 30 de maio de 1990, foi a vez da Rádio Zarco e da Rádio Palmeira; e a 15 de janeiro de 1993, da Rádio Brava e da Rádio Sol. A lei “sobre o exercício de atividade de radiodifusão” estabelece, no seu art. n.º 2, que a mesma pode ser exercida, também, por entidades privadas ou cooperativas. No entanto, o art. n.º 3 proíbe essa atividade aos “partidos ou associações políticas, organizações sindicais, patronais e profissionais, bem como autarquias locais, por si ou através de entidades em que detenham participação de capital”. Aprovado em 31 de maio de 1988, o concurso público para a atribuição das frequências foi lançado em janeiro de 1989. Passados 25 anos, observavam-se várias alterações em relação ao panorama inicial. A Girão, do Grupo Desportivo do Estreito, foi adquirida, em setembro de 1997, pelo Diário de Notícias e pela TSF, sendo autorizada a alteração da frequência 98.8 para 101.0. Com o decorrer das emissões, a Rádio Diário/TSF, verificando que a cobertura do Funchal, através de uma frequência de Câmara de Lobos, não tinha a qualidade desejada, vendeu a 101.0 ao Rádio Clube e comprou a 96.0 à Estação Rádio da Madeira, tendo sido alterada para 100.0. A Comunicamadeira-SGPS, SA adquiriu a totalidade do capital social do operador Brum Pacheco e Filhos, Unipessoal, Lda e a SPN-Sociedade Produtora de Notícias, Lda., detentora da Rádio Popular da Madeira (101.0), em Câmara de Lobos. A frequência 98.4 (ex-Rádio Brava) mudou para a Girão, que se tornou a Rádio Festival do Grupo RMV (Ramos, Marques & Vasconcelos, Lda.), dono da Zarco, Palmeira e Sol. Numa nova vaga de concursos, Manuel Pedro da Silva Freitas, utilizando a denominação Rádio Girão, de que foi diretor e um dos seus fundadores, ganhou a Rádio Santana FM (92.5), com o objetivo de colocar estrategicamente a antena no Pico do Arieiro (concelho de Santana) e deste modo chegar ao Funchal e a Câmara de Lobos. A Rádio do Clube Desportivo Nacional (106.8) passou para o Rádio Clube (Madeira), Lda., com a denominação de Rádio Clube, pertencendo a totalidade do capital social à Comunicamadeira que tem uma participação no Grupo RMV e assim atinge o limite das seis licenças. A 11 de maio de 2001, principiam as emissões da Rádio Porto Moniz e a 14 da Rádio S. Vicente, com microcoberturas para Boaventura e Ponta Delgada (99.2). A Rádiurbe, cujo capital social pertencia à SOSOL, passou para o Grupo AFA (AFAVIAS - Engenharia e Construções, SA), que fundou a Rádio Calheta a 10 de agosto de 2001, com três microcoberturas para Ponta do Pargo e Fajã de Ovelha (107.1), Paul do Mar e Jardim do Mar (104.3) e a zona baixa do concelho (102.7). No ano seguinte, este Grupo comprou a Santana FM, fundada por Manuel Pedro da Silva Freitas, que havia formado uma sociedade com Filomena Pereira Pestana Figueira de Freitas e João da Silva de Azevedo Freitas, que era titular do alvará desde 1 de setembro de 2001. A Santana FM, de 4 de maio de 2002, possui uma microcobertura para o Arco de São Jorge, São Jorge e Ilha (105.5 MHz).   Rádio Renascença Por causa da necessidade da ocupação legal de duas frequências na Madeira, propriedade da Rádio Renascença, as suas emissões – RR (88.0) e RFM (93.6) – tiveram início, a 19 de julho de 2010, através do centro emissor do Pico da Silva, na Camacha. Para o presidente do Grupo r/com, Cón. João Aguiar Campos, foi o culminar de um projeto antigo, “que vai permitir servir melhor os madeirenses que querem acompanhar as emissões da Renascença” (“Madeira: Renascença…”, Diário Digital, 21 jul 2010). Acrescente-se que o Posto Emissor do Funchal e a Rádio Jornal da Madeira já transmitiam, em simultâneo, alguns programas da Emissora Católica Portuguesa.   TSF-Madeira 100 FM A Rádio DIÁRIO-TSF, mais tarde TSF-Madeira, abriu os microfones no Funchal, no dia 4 de novembro de 1977, sob a direção do ex-jornalista da RDP-Madeira António Ivo Caldeira. Posteriormente, a Telefonia Sem Fios passou a ser dirigida por Ricardo Miguel Oliveira, também diretor do Diário de Notícias do Funchal, tendo como sócios José Bettencourt da Câmara, membro executivo do Conselho de Gerência da Empresa do Diário de Notícias, Lda., e Carlos Alberto Batalha de Oliveira, que possui a participação total no capital social da Rádio Comercial dos Açores, Lda., em Ponta Delgada. A Notícias 2000 FM – Atividade de Radiodifusão Sonora, Lda. – possui o alvará para a cobertura local desde 6 de março de 1989, estando o serviço de programas registado sob a denominação Rádio Notícias TSF Madeira, frequência 100.00 MHz, no concelho do Funchal. Em 2015, os estúdios estavam integrados nas instalações do Diário de Notícias. A emissão da TSF é preenchida, na segunda década de 2000, com produção regional e simultâneos com a TSF nacional, desenvolvendo um projeto centrado mais no jornalismo do que no entretenimento.   Juvenal Xavier (atualizado a 17.13.2017)

Sociedade e Comunicação Social

quotidiano e sociabilidades

Tudo o que se prende com o quotidiano da sociedade madeirense tem de ser encontrado de forma indireta na documentação, tendo em conta que, no que respeita a épocas recuadas, faltam testemunhos que nos permitam descobrir como as pessoas ocupavam as 24 horas do dia e os escassos anos de vida que as condições sociais e materiais da sociedade do seu tempo lhes propiciavam. Um dos recursos mais comummente usados são os diários pessoais e os retratos do quotidiano traçados por visitantes, alguém que, em busca de um clima ameno capaz de curar as suas doenças ou de passagem fugaz rumo a outros destinos, em missão política ou científica, fica impressionado com a realidade com que se depara, diferente da sua. Mas em que medida estes testemunhos referentes à nossa sociedade são fiéis? Muitos destes testemunhos resumem-se quase só ao espaço urbano, sendo raros os que apontam para um retrato, ainda que fugaz, do mundo rural, pois que a sua observação era feita de passagem e apenas durante os percursos, mais ou menos estabelecidos, pelo interior da Ilha. No Funchal, a presença era mais demorada, mas circunscrevia-se às quintas, depois aos hotéis, às casas, quase sempre mais abastadas, aos clubes, casinos e cafés e, raras vezes, se cruzavam com a maioria da população funchalense; apenas uma parte da sociedade e do quotidiano de alguns que, certamente, não se confundiam com a maioria dos madeirenses. São poucos os testemunhos de madeirenses sobre a sua realidade quotidiana e espelham, quase sempre, uma leitura a partir da sua posição social. Neste quadro, importa refletir sobre o quanto o olhar apresentado por Horácio Bento de Gouveia, considerado o retratista da vivência madeirense, a partir de 1948, com a publicação de Ilhéus, depois renomeado para Canga, em 1975, poderá ser o retrato fiel do mundo rural madeirense ou apenas um olhar enviesado de um filho de senhorio, das bandas de Ponta Delgada. Perguntamos, assim, em que momento esta personagem se alheia da sua posição social e se integra, de forma participante, no quotidiano dos caseiros e demais homens do meio rural madeirense. A Madeira estava longe dos progressos da Revolução Industrial e o analfabetismo dominante conduzia aqueles que atuam no processo produtivo, uma intervenção apenas por força da tradição e nunca fruto de uma sabedoria acumulada e vivenciada. A orografia da Ilha tanto dificultava qualquer tarefa produtiva como condicionava a criação de condições que favorecessem a valorização do magro resultado do trabalho do madeirense, por falta de vias de comunicação e de meios de transporte adequados. A situação não favorecia qualquer mudança, nem tão pouco o progresso técnico e o conhecimento batiam à porta de muitos destes protagonistas. Havia muito pouco para inventar no quotidiano deste ilhéu, que se pautava quase sempre pelo ritmo das estações do ano, do calendário religioso e de um ou outro acontecimento de índole política, cuja repercussão era mais acentuada no meio urbano. Ao madeirense que foi obrigado a construir a sua casa e sustento sobre um penhasco e a viver em permanente sobressalto à beira do abismo, faltaram tempo e meios para que o quotidiano se pudesse dividir entre os momentos de lazer e de trabalho e que, entre ambos, fosse visível uma interação. O descanso e o trabalho são repartidos e definidos pela própria natureza, como o nascer e o pôr do sol, a chuva e o tempo soalheiro. As tarefas são árduas, os meios técnicos reduzidos e pouco eficazes, pelo que não sobrava tempo para além daquele indispensável e imposto com a chegada da noite ou algo de anormal que acontecesse e obrigasse a uma paragem forçada. A Igreja impôs o seu ritmo do tempo através do relógio do campanário dos templos, que ecoava por todos os recantos da Ilha. Definiu a regra para o ócio e para o lazer, impondo-o relativamente ao encontro do ritual de evocação dos santos e dos passos mais significativos da intromissão do ritual religioso na vivência e quotidiano. É o preceito religioso de que o domingo é “o dia do Senhor” que implica esta paragem semanal, mas que impõe a obrigação de longas caminhadas do seu local de assentamento até às igrejas e capelas para que o ritual seja cumprido. Depois, serão as festas dos oragos a definir outras paragens, quase sempre na época estival, após as colheitas, momentos em que o trabalho é menor e a natureza impõe uma pausa para descanso das terras à espera de novo momento de lavra e sementeira. Na cidade, por exemplo, as procissões dos Passos do Senhor, do Corpo de Deus e do Santíssimo Sacramento são consideradas um misto de manifestação de fé, espetáculo e diversão para todos os madeirenses e motivo de espanto para os forasteiros. Fora do controlo da Igreja, estavam os carnavais, tempos de grande folia e liberdade, aos quais apenas a política conseguiu impor regras. Os desfiles de Terça-feira de Carnaval ficaram célebres e transformaram-se num momento de grande animação da cidade. A isto juntam-se os saraus e bailes em diversos clubes e associações que atraíam as classes mais abastadas, na medida em que o Carnaval do povo era na rua. Tudo é uma imposição que amordaça o ilhéu a um quotidiano e a uma forma de vida, deixando pouco ou nenhum espaço para descobrir o ócio e o lazer. Na verdade, nesta sociedade pré-industrial, trabalho e lazer misturavam-se nas atividades de colheita e plantação. O trabalho fazia parte do ritmo e ciclos das estações e dos dias, sendo alterado por pausas para repouso, descanso, jogos, competições, danças e cerimónias, que, em momento algum, constituíram um tempo determinado para o lazer. São muitos os estrangeiros que testemunham esta situação. Quanto nos embrenhamos na Ilha, no sentido de estabelecer os ritmos que pautaram o lazer, a primeira ideia que importa reter é a da necessidade de diferenciar os ritmos que comandam o quotidiano nos espaços urbano e rural. No meio rural, tudo acontece de forma cadenciada e de acordo com os ritmos da própria natureza e da intervenção formal do homem, melhor dizendo da Igreja, através do calendário religioso. As estações do ano, as atividades do campo e as festividades religiosas moldam e expressam o quotidiano do homem rural. Já a cidade estava sujeita a outros fatores que determinavam um compasso distinto para o quotidiano. Para além disso, no caso do Funchal, pelo facto de ser uma cidade portuária, esses ritmos estarão, muitas vezes, alinhados de acordo com o movimento do porto. Em muitos aspetos, o porto comanda a vida do burgo. A cidade vive de olhos postos nele e na linha do horizonte. Qualquer movimento que a retina alcançasse gerava, de imediato, um burburinho desusado nas ruas e no calhau. Em pouco tempo, as ruas da cidade ganhavam outra animação, com a chegada dos forasteiros e os residentes em permanente rodopio. O porto dominava quase por completo as expectativas dos funchalenses e das lojas comerciais que se anichavam nas proximidades da alfândega e do cais. São os barcos de comércio que movimentam o calhau e o cabrestante com a carga e descarga de produtos que se trocam por vinho ou outras riquezas da terra. São os navios das rotas coloniais, que ligam as capitais europeias às principais cidades das colónias respetivas, com passageiros em trânsito e turistas de temporada, que trazem o movimento e animação ao comércio e às ruas da cidade. São as esquadras militares que fazem aumentar as expectativas do negócio, nas lojas ou nas casas de diversão e ainda transportam a animação para as ruas, com demonstração ou desfile das suas fanfarras. São os navios de expedições científicas que fazem desembarcar cientistas sedentos de descobertas no campo da botânica e demais ciências e que por isso se embrenham, no pouco tempo de estadia, pelo interior da Ilha, em cavalgadas de descoberta dos segredos infindáveis que esta natureza, quase virgem, lhes reservava. Parece que todos eles alteram a pacatez do quotidiano do burgo e arredores. Na visão de muitos visitantes, a cidade acorda para um burburinho inusitado. As lojas de comércio, os cafés, os restaurantes, os hotéis abrem as suas portas para os receber e, muitas vezes, venerar. As casas das vilas e quintas arejam os seus quartos para receber os novos hóspedes. Os carreiros e quadrilhas de cavalos andam em permanente rodopio para poder satisfazer a demanda de serviço. É nesta altura que a animação se volta para os espaços interiores das quintas e vilas. Os salões de dança, os clubes e os casinos são os locais mais usuais para quebrar a monotonia e o tédio desta sociedade e daqueles que permanecem por longas temporadas. Desta forma, a presença destes navios e forasteiros trazia a vida ao burgo, dando novo colorido à cidade e aos arredores. Os salões de dança, os clubes e os casinos serão o meio mais usual de quebrar a chamada monotonia e o tédio. Tudo isto até que, na linha do horizonte, se vislumbre um outro navio com novidades, mais gentes e a tão desejada animação para o burgo. Será assim, para estes, o ritmo quotidiano de uma sociedade portuária como o Funchal. Contudo, para quem vivencia este quotidiano desde o momento que vê a luz do dia as impressões são distintas. O quotidiano não para, dia e noite. Apenas diminui o movimento de pessoas e viaturas. É certo que o Funchal se constituiu, desde o séc. XV, como uma cidade portuária. Abriu as portas do calhau às gentes e aos produtos de fora, franqueou as casas do burgo, das quintas e das vilas da encosta e fez construir altaneiras torres avista-navios e mirantes, com o propósito de alcançar o mais distante da linha do horizonte e de reencontrar, de novo, o barco que traz a mercadoria de que necessita, ou os porões vazios e disponíveis para o embarque do seu açúcar, vinho ou outro produto qualquer. Ao longo do processo histórico do espaço atlântico, apercebemo-nos que as ilhas passaram de escalas de navegação e comércio a centros de apoio e laboratórios da ciência. Os cientistas cruzaram-se com mercadores e seguiram as rotas delineadas pelos aventureiros e descobridores desde o séc. XV. Juntaram-se, depois, os turistas, que afluíram desde o séc. XVIII em busca de cura para a tísica pulmonar ou à descoberta da sua natureza. A Madeira pode muito bem ser considerada uma das mais destacadas salas de visita do espaço atlântico, pois foi, desde os primórdios da ocupação europeia, um espaço aberto à presença quase assídua de forasteiros. A chamada hospitalidade madeirense, que muitas vezes se confunde com servilismo, é considerada uma constante da História que os aventureiros, marinheiros, mercadores, aristocratas, políticos, artistas, escritores e cientistas nunca se cansam de assinalar. Na verdade, na perspetiva de quem chega, todos os inusitados mimos podem ser considerados como hospitalidade, mas para quem está e tem de oferecer os seus préstimos e serviços é apenas uma questão de oportunidade e de sobrevivência. Os momentos de lazer, diversão ou ócio são definidos pelos acontecimentos, já programados anualmente, por força do calendário litúrgico (as festas do santos populares e dos oragos das freguesias, o Natal, o Carnaval e a Semana Santa), aos quais se juntam as efemérides relacionadas com alguma data significativa, como o nascimento, a morte e a aclamação dos monarcas, e, também, por força destas circunstâncias, algumas eventuais festividades ou acontecimentos que mobilizam toda a cidade e a Ilha. A visita do Rei D. Carlos, em 1901, foi um dos acontecimentos mobilizadores de toda a sociedade madeirense, dando azo a múltiplas manifestações populares com desfiles, espetáculos, bailes e banquetes associados a luminárias e decorações nas principais artérias próximas do cais da cidade. Todos, residentes e forasteiros, participaram a seu modo nestes eventos. Entretanto, entre 29 de dezembro de 1922 e 4 de janeiro de 1923, celebraram-se as Festas do quinto centenário do descobrimento da Madeira, também com espetáculos, recitais, desfiles, desfiles, iluminações e decorações, jogos hípicos e desportivos, no Campo de Almirante Reis. Outro momento de grande interesse foi as Festas das Vindimas, celebradas em 1938 e 1940, no Campo de Almirante Reis, onde as tradições e cantares populares fizeram, pela primeira vez, parte do programa, por iniciativa de Carlos Maria dos Santos. Outros momentos aconteceram na Ilha que implicaram uma grande mobilização popular e, por isso, a quebra da rotina diária. Assim, entre fevereiro e maio de 1931, aconteceram as Revoltas da Farinha e da Madeira que atraíram multidões ao centro do Funchal, facilmente manipuladas para assaltos a moagens ou para “gritar vivas” ao novo Regime. As manifestações públicas, desde desfiles, procissões e fanfarras de música, estavam franqueadas a todos os presentes, na cidade e no meio rural, que, muitas vezes, vinham de propósito para assistir a tais eventos. Já os espetáculos, os bailes, as receções e banquetes estavam limitados a um grupo restrito da sociedade e aos forasteiros. O movimento desusado de passageiros, em trânsito e turistas, obrigou as autoridades a cuidar das ruas e praças da cidade, de forma a criar as condições de conforto adequadas a estes transeuntes. O calcetamento das ruas principais e, depois, a melhoria dos espaços públicos, como as Praças da Rainha (em frente ao Palácio de S. Lourenço), da Constituição (que posteriormente se tornou parte do espaço da Restauração) e da Académica (posteriormente Campo de Almirante Reis), criaram as condições espaciais para inúmeras manifestações de diversão. Alguns estrangeiros queixam-se do tédio permanente das estadias no Funchal, por falta de locais de diversão, pela má qualidade dos músicos e pela pouca variedade dos repositórios musicais. Disso se queixava, em 1853, Isabella de França: “Não posso dizer muito em louvor da música destes bailes, porque só há uma no Funchal e o público não fica mais bem servido do que noutro monopólio qualquer. Outra consequência é que, durante a temporada, se tocam sempre os mesmos números. São eles, como em toda a parte, uma ou outra quadrilha, por mera formalidade, e muitas polcas, valsas, mazurcas, etc. - tantas quanto possível” (FRANÇA, 1969, 173). Outros ainda, como Dennis Embleton, em 1882, apontavam a pouca veia musical dos madeirenses. Talvez por isso a presença de uma banda a bordo de um navio de passagem era motivo de interesse e curiosidade, providenciando-se a sua participação em bailes oficiais ou organizados pelos clubes. Em 1853, a banda de um barco americano foi convidada a atuar num baile no Palácio de S. Lourenço, como conta de novo Isabella de França: “Na mesma sala dos quadros tocava a banda do navio americano surto no porto e cujo comodoro tivera a gentileza de a ceder para aquela ocasião. A música, de que o instrumento mais importante era o bombo, devia soar bem no mar alto mas ensurdecia muito debaixo de um teto” (Id., Ibid., 203). A noite era um momento importante para o convívio e animação nas casas das principais famílias da Ilha e da comunidade britânica. Todos, nos seus solares apalaçados do espaço urbano ou quintas dos arredores da cidade, dispunham de amplos aposentos servidos com sala de jantar e de dança para muitos convidados. Entre estes, contavam-se sempre estrangeiros de diversas nacionalidades, que ocupavam o tempo de estadia na Ilha, pulando de festa em festa. Estes saraus eram marcados por grande animação de música e dança para servir os diversos convidados em que se incluíam sempre muitos forasteiros. Disso nos dá conta de novo Isabella de França: “A reunião não teve muita concorrência, mas incluiu várias nações. Havia uma dama russa, três ou quatro alemães, além de ingleses, franceses e portugueses. Depois do chá, houve música nacional, para nossa distração: machete primorosamente tocado, viola e cavaquinho (machete de seis cordas em vez de quatro, peculiar ao Porto). Estes instrumentos foram todos bem tangidos e harmonizaram-se na perfeição em músicas que lhes são próprias. Gostei bastante” (Id., Ibid., 182). O quadro dos espaços de lazer completava-se com os cafés e restaurantes, lojas comerciais e quiosques. Assim, de acordo com um roteiro de 1910, as ruas do Aljube e praças da Constituição e da Rainha reuniam o maior número de cafés, restaurantes e lojas de venda de artefactos da Ilha. A entrada da cidade era, assim, servida pelos cafés do Rio, Mónaco, Golden Gate e Restaurante Central, que estavam de portas abertas para receber todos os que desembarcavam no cais. Em muitos destes cafés e clubes (Ritz Café, Kit Cat, Theo’s Capitolio, Club Restauração, Club Inglês, Monte Stranger Club), a música ao vivo marcava presença para gáudio de forasteiros e de muitos residentes a quem estavam franqueadas as portas. Muitos dos hotéis da cidade ofereciam, igualmente, aos seus clientes animação musical com a organização de saraus dançantes animados por orquestra própria. Era este ambiente de animação que se oferecia, na déc. de 30, aos hóspedes e a alguns residentes, nos hotéis Savoy, Atlantic, Continental, Miramar e Golden Gate. Para além de toda esta animação de rua que acontecia de forma calendarizada ou eventual e que concentrava as atenções de todos, temos, ainda, que considerar aquela que acontecia em recintos fechados e que não permitia a entrada de todos. Neste caso, temos as representações dramáticas, os espetáculos, saraus dançantes e concertos de música. Durante muito tempo, as representações dramáticas foram públicas e abertas a todos, pois faziam-se nas igrejas e durante as procissões religiosas. A Misericórdia do Funchal celebrava o seu dia, a 1 de julho, com representações de comédias e autos retirados da Bíblia. O mesmo sucedia em muitas das igrejas e conventos da Ilha. Já o séc. XIX pode ser considerado o grande momento do teatro, do circo e da ópera. Surgiram novas casas de espetáculo que mantiveram uma atividade permanente, trazendo à Ilha personalidades de destaque do belo canto, concertos, récitas, festas de beneficência, circo e teatro. A aposta das autoridades foi sendo, no entanto, adiada e mantinha-se a insistente reclamação da imprensa e dos forasteiros pela falta de uma casa de espetáculos. O Funchal era uma cidade cosmopolita que fervilhava com forasteiros de passagem ou doentes em busca da cura para a tísica, como referimos anteriormente. Alguns lamentavam-se, mesmo assim, mencionando que as diversões eram poucas; a falta de teatro, de ópera ou de outras diversões europeias eram substituídas pelos passeios a pé ou de barco e pelos piqueniques. Perante isto, foi preocupação de vários governadores, desde José Silvestre Ribeiro, avançar com este projeto. Todavia, só na déc. de 80, a pertinácia de João da Câmara Leme venceu a inércia das autoridades centrais. Assim, em 25 de fevereiro de 1880, constituiu-se a Companhia Edificadora do Teatro Funchalense, mas a decisão da sua construção, por parte da Câmara, só ocorreu em 9 de fevereiro de 1882, tendo este aberto as suas portas ao espetáculo cinco anos depois com o nome de Teatro D. Maria Pia. Com a República, passou a ser chamado, em 1911, “Manuel de Arriaga”, mas, face à recusa do mesmo, ficou como “Teatro Funchalense” até à sua morte, em 1917. Já na déc. de 30, com Fernão Ornelas, presidente da Câmara do Funchal, passou para “Baltasar Dias”, como forma de homenagear o maior dramaturgo madeirense do séc. XVI. Os momentos mais destacados de representações teatrais, no Funchal, aconteceram nas décs. de 20 e de 30, tendo sido nesta última década que começaram as chamadas “Revistas” que deram muita animação à cidade. A partir dos anos 30, o Teatro passa a funcionar como uma sala regular de projeção de cinema. A arte cinematográfica havia vencido as artes dramáticas. Tudo aconteceu, em 1863, com o cosmorama universal, o antecedente do animatógrafo. Note-se que a primeira apresentação do animatógrafo ocorreu, na Madeira, em 1897. A partir dessa, outras experiências se seguiram com o cinema mudo, que foi ganhando a adesão do público. Os filmes eram exibidos a par de outros espetáculos musicais. Só a partir de 1907 ocorre o lançamento do cinema em termos comerciais. A sua popularidade levou à construção de pavilhões e novas salas de projeção que vieram juntar-se ao Teatro Municipal e ao Teatro Circo. No primeiro quartel do séc. XX, as sessões de cinema intercalam com os espetáculos de variedades, mas, paulatinamente, o fascínio do cinema acaba por conquistar o público. No primeiro quartel do séc. XX, o Funchal estava servido por diversos espaços para o cinema (Cine Jardim, Almirante Reis, Victoria, Pavilhão Paris, Sallão Central, Salão Ideal, Salão Teatro Variedades, Teatro Águia de Ouro, Teatro Canavial, Teatro Circo) que atraíam a atenção dos entusiastas da sétima arte, certamente um público urbano. Aos poucos, esta animação chegou ao meio rural, com a criação de casas de espetáculos: Teatro Gil Vicente em S. Vicente (1931), Salão Cultural de Câmara de Lobos (1931) e Cinema da Ponta de Sol (1932). A animação e o lazer encontraram novas formas de expressão para as elites locais. Os clubes de diversão e de recreio são uma realidade a partir da déc. de 30 do século XIX. Entre estes, destacaram-se o Clube União (1836-1879) e o Clube Funchalense (1839-1899). Este último ficou célebre pelos bailes e soirées, afirmando-se, ainda, como um dos principais espaços de receção aos visitantes. Algumas das homenagens prestadas a personalidades de passagem tinham lugar aí. Assim, em 1885, a Câmara do Funchal homenageou Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, que estavam de visita à cidade, com um baile neste clube. Outros clubes animaram a cidade, como o Clube Recreio Musical (1900), Turt Club (1900), Sports Club (1910), Clube Republicano da Madeira (1911), Club Naval Madeirense (1917), Clube Recreio e Restauração, Novo Clube Renascença, Clube Funchalense, Commercial Rooms. Em todos, a animação e a diversão eram constantes. Mas quem afluía a estes espaços, muitas vezes, reservados? Quem teria condições materiais e tempo disponível, nesta época, para o ócio? Aos clubes e aos hotéis, juntam-se os casinos como locais privilegiados de diversão e de jogo. O Casino da Quinta Vigia (1895), sobranceiro ao porto, era um dos mais visitados e conhecidos pelos saraus dançantes que se faziam todos os dias. A música tinha uma expressão elitista, nos concertos à porta fechada, nos bailes dos casinos e nas quintas, e uma outra, popular, através de filarmónicas que desfilavam ou tocavam em espaços públicos para todos. A primeira banda de música surgiu, no Funchal, em 1850 e ficou conhecida como a Filarmónica dos Artistas Funchalenses. A segunda de que temos conhecimento foi a Filarmónica Recreio União Faialense, que surgiu, no Faial, em 1855. A déc. de 70 marca o incremento de novas bandas em toda a Ilha: Câmara de Lobos (1872), Calheta (1874), S. Jorge (1877), Camacha (1873) e Ribeira Brava (1875). O interesse por este tipo de música ganhou a adesão da população madeirense. Na cidade, os desfiles e os assaltos de Carnaval não dispensavam a sua presença, os domingos e os dias festivos contavam com exibições no passeio público e as tradicionais romarias ganharam mais animação. Deste modo, o período de finais do séc. XIX e princípios do seguinte é definido por um aumento do número de bandas em toda a Ilha. Neste período, assinalam-se mais no Funchal (1898, 1913, 1920, 1923, 1933), em Câmara de Lobos (1910), Calheta (1923), na Ponta do Pargo (1911), em Santana (1926), no Arco de São Jorge (1933), na Camacha (1887, 1922), na Ribeira Brava (1912) e no Campanário (1923). Desta forma, estamos perante uma significativa divulgação da cultura musical no espaço rural, fazendo com que o colorido sonoro das notas não se fique apenas pelo rajão, braguinha ou machete. As festas dos oragos das freguesias tornaram-se os principais palcos de atuação, não havendo festa sem um ou mais coretos que, à sua volta, acolhiam inúmeros populares de ouvido bem atento às novas marchas populares que o reportório das bandas ia revelando. Ao visitante de passagem ou de estadia temporária restavam, ainda, outras diversões. As atividades desportivas são assinaladas no decurso do séc. XIX e afirmam-se, de forma clara, na primeira metade do séc. XX, como a corrida de cavalos, o futebol, o ténis, o criquet e o bilhar. Este último foi o mais popular de todos e transformou-se numa das principais atrações dos clubes de receio da cidade. Por fim, para os mais destemidos, restava, ainda, a caça à codorniz, ao coelho, à galinhola e à perdiz, que tanto poderia ter lugar no Santo da Serra, no Caniçal, no Paul da Serra, ou no Porto Santo e nas Desertas. A prática de diversas modalidades desportivas começa por ser uma criação dos ingleses, para seu usufruto e dos seus hóspedes. Desta forma, em 1875, Harry Hinton está ligado à prática de futebol, na Camacha. O cricket foi, igualmente, uma modalidade de grande impacto, com dois grupos, The Madeira Cricket Club e Excelsior Madeira Cricket Club, de renome, onde se destacavam os ingleses. Outra modalidade de elite foi a esgrima, que atraia muitos praticantes e público à Quinta Pavão, Casino Victoria e Reid’s Hotel. Outra forma de prática desportiva, também de elite, prende-se com o automobilismo, no quadro das festas do fim do ano, entre 1935 e 1937. O Campo de Almirante Reis foi palco de diversos festivais desportivos: em 24 de fevereiro de 1911, teve lugar um para comemorar o fim da cholera morbus; entre os dias 7 e 8 de dezembro desse mesmo ano, realizaram-se os Jogos Olímpicos; a 27 de julho de 1924, conta-se um jogo de futebol entre os banqueiros e os doutores para angariar fundos para o Asilo de Mendicidade e os Órfãos do Funchal. A popularização da atividade desportiva acontece com a República. O futebol acabou por tornar-se na modalidade mais popular e naquela que cativava maior número de adeptos. Talvez tenha sido, de entre todas as modalidades, a mais democrática, por acolher, nas suas fileiras, gentes de diversos estratos sociais. O primeiro clube surgiu a 5 de novembro de 1909, sob a designação de Club Sport Madeira. Nas vésperas da República, foi criado o Clube Sport Marítimo (18 de setembro de 1910) e, depois, o Club Desportivo Nacional (8 de dezembro de 1910), União Futebol Club (1 de novembro de 1913) e o Sports Club Madeira (9 de junho de 1934). Desta forma, em 1925, desaparece o cricket como modalidade por falta de praticantes, mas o futebol havia já conquistado um lugar cimeiro na prática desportiva, fazendo do Campo de Almirante Reis o centro desta modalidade na Ilha. Não sabemos, porque não há estudos sobre a composição social dos dirigentes e dos atletas destes clubes, qual o grau de participação dos diversos estratos sociais, sendo, no entanto, certo que, aos poucos, tal desporto se transformou naquele que abrangeu um leque maior da sociedade de então. Na Madeira, a segunda metade do séc. XIX foi marcada por uma conjuntura difícil para as diversas classes socioprofissionais, mas foi o momento do despoletar de uma consciência das mesmas para o associativismo ou da busca de soluções que propiciassem a assistência e a proteção aos trabalhadores nos acidentes, na doença e na velhice. A tudo isto acresce o filantropismo social de ajuda aos mendigos, crianças e viúvas. Deste modo, a partir de meados da centúria, o mutualismo, o cooperativismo e o associativismo socioprofissional foram a solução capaz de minorar as dificuldades com que se debatia a população. Às associações de classe, juntaram-se as filantrópicas e as de diversão. Foi, então, nessa altura que se generalizou a criação de clubes destinados ao recreio e à distração dos sócios. Constituíam uma forma de quebrar a monotonia do quotidiano e enquadravam-se no espírito de associativismo que marcou o século. Estes clubes primavam pela realização de bailes e soirées que contavam com a participação de residentes e forasteiros. Aliás, era tradição destes clubes receber, nas suas instalações, as personalidades ilustres que passavam pela Ilha. Assim, em 1885, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens foram aclamados no Clube Funchalense e, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram obsequiados pelo Club Sport Madeira. Dos inúmeros clubes que organizaram o folguedo dos madeirenses, entre a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do seguinte, podemos salientar os seguintes: Clube Económico (1856), Sociedade Club Económico (1856), Clube Recreativo (1856), Clube Aliança (1867), Sociedade Clube Funchalense (1872), Clube Restauração (1879), Novo Clube Restauração (1908), Clube Washington (1882), Clube dos Estrangeiros (1897), Clube União (1888), Clube Recreativo Musical (?-1900), Clube Recreio e Instrução (1892), Turf Club (1900), Clube Internacional do Funchal (1896), Stranger's Club-Casino Pavão (1906), The Sports Club (1901), Clube Sports da Madeira (1910), Clube Sport Marítimo (1911), Clube Republicano da Madeira (1911) e Clube Naval Madeirense (1917). De entre todas as atividades de animação do burgo, aquela que podemos considerar mais elitista surge a partir de 1880 com as esquadras de navegação terrestre, uma novidade na diversão que veio animar as ruas da cidade e as amplas quintas dos arredores do Funchal. Estas esquadras acabaram por monopolizar o lazer dos proprietários das principais quintas. Organizaram-se esquadras militares, fardadas a rigor, que, em momentos determinados, realizavam assaltos entre si. Mas estas eram formas de entretenimento das chamadas gentes da sociedade, os boémios de dominó dos subúrbios do Funchal, que viviam em quintas. O seu espírito, porém, é muito anterior, pois, desde a déc. de 40 da referida centúria, sucediam este tipo de confrontos lúdicos, tendo como base as disputas entre miguelistas e pedristas. Aqui, não estamos perante estruturas militares, mas sim de boémios que se juntavam sob a capa do ritual da marinha. Nas quintas, sobranceiras ou não, ao mar ergueram-se os mastros engalanados com “bandeirinhas” e uma peça de fogo. Ficaram célebres as quatro esquadras: Esquadra Torpedeira, Esquadra Submarina, Esquadra Couraçada e Esquadra Independente. O espírito era levado a sério, aparecendo os associados, em atos públicos, fardados a rigor. As atividades resumiam-se a alguns desfiles dominicais e nos dias feriados, passeios a pé, por vezes ao longo da costa, e, acima de tudo, aos assaltos combinados às adegas para o tão esperado repasto. O espírito da marinharia portuguesa em terra era assumido na sua plenitude e conduziu a alguns equívocos, em 1901, aquando da visita do Rei D. Carlos. A partir de 1914, as dificuldades sentidas com a guerra conduziram ao refrear da iniciativa das esquadras até ao seu desaparecimento. Acabou o aparato de rua e o movimento, em torno dos mastros e miradouros, transferiu-se para espaços recatados. As associações de boémios assumem este caráter interior, por vezes fechado e elitista. A grande aposta ficou para a mesa e os jogos de fortuna e azar que ajudavam a passar os fins de tarde e a noite. A Nau sem Rumo, cuja data de aparecimento não está devidamente revelada, ganhou dimensão a partir da déc. de 30 do séc. XX, retomando este espírito das esquadras submarinas de navegação terrestre, agora transferido para dentro de portas e tendo a mesa como palco e o bacalhau como o inseparável amigo. Não dispomos de documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da Nau Sem Rumo. Os primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, mas a Associação existia há muito tempo. Note-se que era costume que a data dos estatutos oficiais não coincidisse com o início de funcionamento. Senão vejamos: o Clube União foi fundado em 10 de março de 1836, mas os seus estatutos só foram aprovados pela Assembleia Geral em 20 de agosto de 1874 e pelo Governo Civil em 7 de fevereiro de 1879. O Clube Funchalense é de 3 de dezembro de 1839, mas os primeiros estatutos são de 18 de dezembro de 1876 e só foram aprovados pelo Governador Civil em 16 de fevereiro de 1877. O mesmo deverá ter sucedido com a Nau Sem Rumo. A História testemunha que o grupo inicial de boémios que, sem rumo, deambulavam pelos bancos da avenida Arriaga rapidamente encontrou a Nau. Durante muito tempo, esta não teve poiso certo, nem a adequada posição de relevo na vida boémia madeirense. Em 1945, parece ter-se encontrado o rumo. A uma sede, juntou-se um novo fulgor para a Nau que a projetaria para uma posição de relevo na sociedade funchalense dos anos 50 e 60, tendo os momentos áureos da tertúlia gastronómica ficado como a única memória herdeira das esquadras de navegação terrestre. Oficialmente, a data de fundação foi atribuída à data do primeiro registo da associação, a 27 de maio de 1935, tal como poderá constatar-se pelo regulamento de 1950, ficando o dia 27 de maio como o «Dia do Aniversário da Nau Sem Rumo». Contudo, a Nau continuou a manter o espírito errante que esteve na sua origem. A primeira sede foi no edifício do posterior Museu da Quinta das Cruzes, partilhado com “os Artistas”, passando, depois, em 1928, com o Almirante Dr. Agostinho de Freitas, para a Rua da Carreira. A partir daqui “vagueou” por algumas ruas da cidade: Rua dos Murças, Travessa do Nascimento e, finalmente, a Rua 31 de Janeiro, onde “varou”, definitivamente, em 1941. A 27 de janeiro de 1945, inaugurou-se a nova sede à Rua 31 de Janeiro, onde permaneceu, em prédio construído por Raul Câmara em 1940. O ato de inauguração foi um momento importante na vida da Associação, contando com a participação das mais importantes individualidades da Ilha. De entre estas, podemos destacar: Dr. Fernão de Ornelas, Presidente da Câmara do Funchal, Dr. Félix Barreira, Secretário-geral do Governo Civil, Comandante João Inocêncio Camacho de Freitas, capitão do Porto, Eng.º António Egídio Henriques de Araújo, Vice-presidente da Junta Geral, Dr. Humberto Pereira da Costa, Diretor da Alfândega e Fernando Rebelo Andrade, Diretor da PIDE. A admissão dos sócios obedecia a requisitos especiais. Sendo esta uma associação de boémia masculina, só eram admitidos candidatos do sexo masculino. As mulheres tinham entrada apenas como convidadas ou na condição de sócios honorários. Esta categoria estava reservada a individualidades que, pelo mérito ou serviços prestados à Nau Sem Rumo, adquiriam esta possibilidade, mediante proposta do Almirante e do Conselho do Estado Maior a apresentar em reunião deliberativa.   Festas e arraiais Os arraiais são a componente mais evidente das festas e romarias madeirenses: Nossa Senhora do Monte, Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada, Nossa Senhora do Loreto, Nossa Senhora do Rosário, Senhor dos Milagres, entre muitos outros. A devoção popularizou-se ao longo dos últimos cinco séculos, de modo que estas romarias são momentos de grande movimentação das gentes, primeiro a pé, pelos caminhos íngremes que ligavam a Ilha de norte a sul. Para apoio destes romeiros, abriram-se caminhos e construíram-se casas de romeiros junto dos templos de devoção. Havia, entre todos, um espírito de solidariedade para com estes. O bispo, nas suas visitações, recomendava ao município a recuperação dos caminhos e proibia os pastores de manter o gado na serra sobranceira. Esta é, pelo menos, a ideia que retemos da romaria da Ponta Delgada. Os moradores acolhiam os romeiros, dando-lhes, por vezes, guarida. Depois, com o avanço da rede de estradas, a partir da déc. de 40, estes deram lugar aos excursionistas e às filas intermináveis de “horários” e “abelhinhas”, como eram designados alguns transportes públicos. A abertura de estradas facilitou o contacto e acabou com o isolamento, mas, em contrapartida, veio retirar o bucolismo aos romeiros, que calcorreavam a Ilha de norte a sul para honrar o santo de sua devoção ou para retribuir a graça concedida. Não mais se ouviu ecoar as cantorias dos romeiros. O rajão, o machete e as castanholas emudecerem e, nas serras da Encumeada e do Paul, apenas se ouvirá o murmúrio do vento. A tradição ainda testemunha a vivência dos romeiros, como é o caso do folclore, que preservou muitos dos seus despiques e cantorias. O folguedo ou arraial no espaço vizinho da igreja/capela do orago é efémero. Dura 48 horas. Mas, para que isso aconteça, há todo um trabalho engenhoso e arte na criação das flores ou dos tapetes para a procissão. Os enfeites, de alegra-campo e loureiro, contrastam com o garrido das flores e o vermelho da Cruz da Ordem de Cristo que flutua nas bandeiras. O progresso trouxe a ambiência feérica da luz e da cor, fazendo-os prolongar pela noite fora. A luz elétrica, a partir da déc. de 40, veio revolucionar o arraial. Para além da oferta de um variado conjunto de barracas de comes e bebes, onde se destaca a espetada, encontramos aí a feira para venda dos produtos da terra ou de fora. Este é um momento de encontro, devoção e partilha da riqueza arrancada à terra. A festa do orago era um momento importante na vida das gentes da localidade. Ao divertimento e devoção juntam-se os contratos, negócios e, mesmo, as aventuras. Afinal, o arraial era um momento único em que todos se encontravam irmanados pela devoção ao santo padroeiro. A romaria de Ponta Delgada assume especial significado. Primeiro, porque o lugar se situa lá longe, na encosta norte, obrigando o madeirense ao grande esforço de calcorrear a Ilha para expressão da sua devoção. Depois, pela dimensão que assumiu em toda a Ilha, uma vez que, no princípio de setembro, todos estavam virados para o norte, por serem aí as terras das vindimas e onde estas movimentavam mais pessoas. As longas caminhadas por entre as montanhas reforçam o caráter lúdico destas manifestações e apresentavam-se como momentos de grande animação, de encontro de gentes, de troca de amizades. A devoção ao senhor Bom Jesus começou por ser particular e resultou da origem de um dos principais povoadores do lugar de Ponta Delgada. Foi Manuel Afonso Sanha, oriundo de Braga, quem para ali levou o culto ao Senhor Bom Jesus, ao construir, em 1470, nas suas terras, uma capela da mesma invocação. O culto ao senhor Bom Jesus espalhou-se rapidamente por toda a Ilha. A sua invocação em momentos de dificuldade e a necessidade de agradecer a benesse alcançada através do "pagamento da promessa" conduziram paulatinamente à sua afirmação. Assim, nos sécs. XVI e XVII, é manifesta a importância desta romaria no calendário religioso da Ilha, levando o bispo a recomendar medidas no sentido de reparar os caminhos que de toda a Ilha davam acesso ao local de Ponta Delgada. Na Madeira, o calendário das festas é estabelecido de acordo com o ano litúrgico e agrícola, sendo no primeiro que esta realidade tem a sua máxima expressão. Enquanto as primeiras celebram os principais momentos da vida da igreja e dos santos, as segundas demarcam o período das colheitas de um determinado produto, que cativava a vinda das gentes da Ilha ou da localidade em que têm lugar. As últimas são de criação recente, tendo algumas surgido nas duas últimas décadas do séc. XX, como as festas da cereja, vindimas, do pero e da maçã, enquanto as primeiras remontam aos primórdios da ocupação da zona. Os iniciais povoadores da Madeira, maioritariamente do Norte de Portugal, trouxeram impregnadas no corpo as tradições religiosas e festividades do calendário litúrgico. Foi desta forma que se delinearam os arraiais e romarias, que preenchem o tempo de lazer ao madeirense, expressos na afirmação dos santos populares (S.to António, S. João, S. Pedro) e importantes romarias (Bom Jesus, Braga/Ponta Delgada; Nossa Senhora do Loreto, Itália/Arco da Calheta; Nossa Senhora dos Remédios, Lamego/Quinta Grande), a que se vieram juntar as festividades genuinamente madeirenses (Nossa Senhora do Monte, Senhor dos Milagres, Nossa Senhora do Rosário). Estas últimas emergiram, de um modo geral, envoltas num misto de lenda e fervor religioso, o que contribuiu para a sua perpetuação e transmissão às gerações vindouras. Para o madeirense, o momento festivo mais importante e de maior significado é sem dúvida o Natal, que se demarca como o ponto de chegada e partida do calendário litúrgico. A prova disso está patente na afirmação de que o Natal madeirense é a Festa. Num lugar secundário, surgem as restantes festividades que têm lugar ao longo do ano, com particular incidência na época estival; note-se que a sua maioria tem lugar nos meses de junho a setembro. O clima favorece essa concentração na época estival e era preocupação da Igreja concretizá-las antes das primeiras chuvas, de modo a que fosse numeroso o grupo de romeiros. Assim sucedia, em meados do séc. XIX, com a romaria do Santo da Serra, deslocada da data habitual por causa do medo das primeiras chuvas de setembro. Mas aqui é necessário distinguir as romarias das demais festas aos oragos. Enquanto estas últimas assumem uma dimensão vivencial restrita à localidade, as demais são vividas por toda a população. Há um misto de devoção na igreja e os folguedos ou arraial, no espaço circunvizinho. As promessas, com todo o seu ritual martirológico, a ação intercessora junto do santo são os elementos devedores desta manifestação. A romaria, para além do tradicional pagamento da promessa ao patrono, expressa em valor pecuniário ou numa homenagem fervorosa, é um momento decisivo para o encontro das gentes da Ilha, aproveitado por muitos para o estabelecimento de contratos, troca e venda de produtos e, por vezes, uma fugaz aventura amorosa. Deste modo, as principais romarias da Ilha demarcavam o ritmo de vida dos nossos avoengos e atuaram como mecanismo unificador da vivência religiosa e do quotidiano, dada a dispersão populacional, resultante da orografia da Ilha. Em face disto, para além da sua importância na expressão da religiosidade do madeirense, destacam-se como momentos de afirmação de uma excessiva sociabilidade que conduzira a definição uniformizadora deste modo de ser que carateriza o madeirense. Estas romarias tinham lugar na época estival, após as colheitas da cana-de-açúcar, do cereal ou do vinho, o que permitia essa ventura, por terra e por mar, ao encontro do orago protetor. Estas festividades estavam devidamente calendarizadas: em agosto era a festa de Nossa Senhora do Monte; em setembro, Nossa Senhora do Loreto, no Arco da Calheta, e o Bom Jesus da Ponta Delgada; e, em outubro, encerravam-se as romarias, com o Senhor dos Milagres, em Machico. Para além das casas de acolhimento, conhecidas como as casas dos romeiros, estas manifestações deixaram marcas na toponímia da Ilha, estando os caminhos dos romeiros, o curral dos romeiros, a atestar essa frequência. As dificuldades de comunicação, nomeadamente na vertente Norte da Ilha, não impediram que os romeiros afluíssem em grande número às festividades do Senhor Bom Jesus. Desde o séc. XVII que este santuário ao norte ficou a marcar a nova aposta da reforma tridentina, ganhando uma dimensão particular na religiosidade do madeirense. Deste modo, no primeiro domingo de setembro, a pequena povoação de Ponta Delgada recebia inúmeros romeiros do sul e do norte, que para ai se dirigiam a cumprir as suas promessas. A sua passagem era anunciada pelos cantares e músicas apropriadas que davam ao Norte da Ilha uma animação inaudita. A própria igreja tomou algumas medidas no sentido de facilitar esse movimento, aconselhando as autoridades municipais sobre os necessários cuidados na manutenção dos caminhos ou punindo os proprietários de gado com excomunhão, pois, conforme refere o bispo, em 1706, sucediam-se, por vezes, desastres mortais, devido à queda de pedras provocadas pelas cabras que pastavam nos precipícios sobranceiros aos caminhos do lado de São Vicente e Boaventura. A partir da segunda metade do séc. XIX, o emigrante regressado do Havaí, Demerara, Brasil, Venezuela, África do Sul e Austrália reforça a animação destas festividades, dando-lhe uma nova dimensão; este era o festeiro que, reconhecendo a proteção do santo, lhe prestava a sua farta homenagem. Estas passaram a ser o momento para a visita aos familiares ou o regresso dessa promissora aventura; a animação festiva passou para o exclusivo controlo do emigrante, dependendo o seu brilhantismo da disponibilidade financeira: é o emigrante quem paga as despesas dessa realização, assumindo, aqui, este ato uma forma de devoção ao santo patrono do sucesso alcançado. A ostentação da riqueza amealhada manifesta-se, por vezes, no número de lâmpadas acesas, no fogo queimado, nas bandas de música e, mais recentemente, nos conjuntos de ritmos modernos. Na verdade, a realidade passou a ser outra e ao madeirense são oferecidas inúmeras formas de diversão que colocam em plano secundário as festas e romarias: primeiro, a rádio (1948), depois a televisão (1972) e as hodiernas formas de diversão urbana com as discotecas (1973). Uma breve incursão ao processo histórico da Ilha revela-nos que os nossos avós não reservavam a sua alegria apenas para as festividades religiosas. O madeirense, na sua labuta diária, soube manter-se em perfeita harmonia com o meio que o rodeava, expressando uma natural alegria, patente nas danças e cantares que animaram o seu quotidiano. Todos os momentos eram aproveitados, sendo o árduo trabalho amenizando com os diversos cantares – canção da erva, da ceifa, dos borracheiros, entre outras – repetidos nas romarias. O ritmo desses cantares foi trazido pelo batuque dos escravos africanos que vieram para a Ilha, desde meados do séc. XV, para o trabalho na safra do açúcar. Muitas destas manifestações surgem na Ilha com os primeiros colonos, resultando a sua variedade da sua múltipla origem. Dominante é, porém, a presença das manifestações rituais do norte de Portugal, local de origem do maior grupo de povoadores: as danças e os nomes das principais romarias têm aí a sua origem. Assim sucedeu com a devoção do Senhor Bom Jesus e com a Nossa Senhora dos Remédios que se implantou na Quinta Grande. A par disso, os santos populares mantêm a tradição lusíada, o mesmo acontecendo com as demais festividades que demarcam o calendário litúrgico: Corpus Christi e Natal. Não é fácil definir a data precisa em que as principais romarias madeirenses tiveram o seu início, pois faltam-nos comprovativos. As romarias que chegaram ao séc. XXI – Monte, Loreto, Ponta Delgada, Rosário e Machico – são muito antigas, ligando-se aos principais povoadores. Os venerados são os seus principais intercessores. Marcadamente rurais, as romarias desviavam os romeiros do burburinho urbano e conduziam-nos ao encontro da natureza. Eram elas que estabeleciam o ritmo de vida e quotidiano das gentes, atuando como elos de ligação e convergência das diversas freguesias. Neste contexto, alguns dos contratos tinham como prazo a data dos santos populares ou as mais destacadas romarias. Note-se que o S. João foi, durante o séc. XV, a data de início dos mandatos no município funchalense, mantendo-se a tradição nos Açores até época tardia. Gaspar Frutuoso refere, a este propósito, que em São Roque do Faial se realizava, a 8 de setembro, uma das mais importantes romarias da Ilha, na qual, para além da imprescindível devoção e folgares, se aproveitava o momento para a troca de produtos numa feira improvisada. Aliás, esta tradição de associar as feiras e mercados às romarias não é novidade, tendo sido trazida pelos colonos oriundos do norte de Portugal, onde eram frequentes. Em 1853, Isabella de França descreve-nos, de forma sucinta, a romaria de Santo António da Serra através da animação e devoção do arraial e da presença dos romeiros, que descreve como uma "palhaçada". Deste modo, as romarias, para além da dimensão religiosa, destacam-se como momentos de afirmação de uma excessiva sociabilidade, definidora do modo de ser que define o madeirense. Com o tempo, algumas das romarias, como esta de São Roque do Faial, ficaram esquecidas e outras apareceram a disputar a sua posição, pois apenas as do Monte, Ponta Delgada, Loreto e Machico continuaram a pautar o ritmo das festividades e devoção madeirenses. A romaria de Nossa Senhora do Monte, a 15 de agosto, foi, sem sombra de dúvida, a maior festividade da Ilha, atraindo a devoção de todos os madeirenses, mercê da eficaz proteção que lhes deu quando estes a solicitaram. Ao longo do séc. XVII, o madeirense colocou-se sob a sua proteção, implorando a sua intercessão para fazer cessar a seca (1627 a 1695) ou a peste (1686). Em 1803, em face da aluvião que assolou a cidade, recorreu-se mais uma vez à sua proteção, passando, a partir de então, à condição de padroeira menor da cidade. Tais condições favoreceram a perpetuação e afirmação do seu culto e a sua passagem à diáspora madeirense: desde o planalto de Cubango, em Angola (1885), às ilhas do Havaí (1902), passando, mais tarde, pelos EUA, África do Sul e Austrália, esta festa manteve-se como um dos poucos elos à terra de origem. Em síntese, o madeirense fez transbordar a sua alegria nessas manifestações festivas, distribuídas ao longo do ano. O período estival era definido como o momento de maior atividade no campo e na cidade; era a época das colheitas que ocupava todos sem exceção e que quase paralisava o burgo. Esta situação é muito antiga e tem origem no período de interrupção das atividades administrativas e judiciais, para que as gentes se pudessem dedicar inteiramente às colheitas. Já nas Sete Partidas de Afonso X de Castela e, depois, nas Ordenações Régias, ficou estabelecida a paragem por um período de dois meses. Os vereadores abandonavam a vereação e iam para o campo fazer as suas colheitas; na realidade, toda a animação estava aí, onde se concluía a safra do açúcar e se iniciavam as ceifas que depois davam lugar às vindimas. O verão era sinónimo de redobradas canseiras, para uns, e mudança de atividade, para outros. Todavia, este movimento apresentava ocasiões propícias ao lazer; era nessa época que se realizavam as tradicionais romarias, cujo roteiro coincidia, amiudadas vezes, com o processo de transmigração da mão de obra braçal para as colheitas. Essas atividades agrícolas eram sempre acompanhadas de folias, com ativa participação dos senhores, escravos e jornaleiros. Lembremo-nos que inúmeras manifestações do nosso folclore têm aí as suas origens. Era também no período estival que tinham lugar as festividades mais representativas que se realizavam na Ilha: primeiro, a procissão do Corpus Christi no Funchal, com participação das gentes de toda a Ilha, e, depois, as romarias das freguesias rurais. Estas últimas eram, segundo Isabella de França “o único divertimento da gente do campo” (FRANÇA, 1969, 132). A sua realização estava ordenada de acordo com o calendário religioso e agrícola, estabelecendo um roteiro em toda a Ilha; primeiro as da vertente sul a culminar a safra do açúcar e o período da ceifa, depois as do norte a concluir as vindimas. A dança e o canto eram os aspetos mais fulgurantes destas manifestações lúdicas dos dias santificados e dos oragos, únicos momentos de repouso para as gentes da Ilha. Era a Igreja quem estabelecia os momentos de lazer e de trabalho, sendo os primeiros definidos como os domingos e dias santificados. Nestes dias, livres e escravos estavam libertos do trabalho e disponíveis para orar a Deus. Apenas havia permissão para se fazer um conjunto limitado de ofícios e de tarefas. Ao madeirense, restavam ainda as festas civis, consideradas no segundo caso, estabelecidas pelo capitão e demais autoridades da Ilha. Comemorava-se o nascimento de um príncipe, a coroação de um rei ou o regresso à Ilha do capitão. Estas eram as festividades profanas, de raiz urbana sem data estabelecida, que consistiam em jogos de canas, touradas e lutas corpo a corpo em que participavam gentes de toda a Ilha. Mas, aos poucos, essa tradição foi-se perdendo e essas manifestações deram lugar a outras, como o teatro e a ópera. Apenas o clero tinha a possibilidade de passar um período de férias. Tal como o referem as constituições sinodais do Funchal de 1578, o beneficiado ou ecónomo tinha direito a quarenta dias de ausência aos ofícios para sua "recreação", enquanto o bispo poderia ausentar-se por dois meses do seu episcopado. Esta situação foi estabelecida nos primórdios do catolicismo, tendo sido confirmada pela sessão XXIV do Concílio de Trento.   Férias e descanso Um outro aspeto a ter em conta na diferença entre as férias desses tempos e aquelas que hoje conhecemos tem a ver com a exposição do corpo desnudo que não era admitida nesta sociedade; a indumentária não serve apenas pela moda, mas também pela necessidade de cobrir o mais possível o corpo. Às interdições estabelecidas pela Igreja relativamente à exposição e higiene do corpo vieram juntar-se as posturas camarárias proibitivas dos banhos na praia e ribeiras do Funchal, Machico e Porto Santo; de acordo com a postura da Câmara do Funchal de 26 de julho de 1839, estava proibido aos funchalenses o banho de mar nus, só se permitindo em calças ou camisa até abaixo do joelho. Os seus infratores sujeitavam-se a uma pesada coima de mil réis. Mais tarde, ao invés, tornou-se moda o topless e as praias de nudismo. Diz-se que os primeiros que se banharam nas águas límpidas da Ilha foram João Gonçalves Zarco e seus companheiros quando, em 1420, se refugiaram nas águas refrescantes do mar, para fugir ao calor infernal do incêndio que se ateou na floresta da Ilha. Mas o banho foi a preceito, com todas as vestes que traziam no corpo. Já em 1850 se referia, nos anais do município da Ilha do Porto Santo, que as suas praias eram propícias aos banhos de mar, mas que não atraiam forasteiros por falta de condições, estando os naturais limitados pelas posturas. Na realidade, a sua revelação como uma estância balnear é do nosso século. Num texto de Giulio Landi, de cerca de 1530, pode ler-se que os naturais do Norte da Ilha da Madeira tinham por hábito “ir à praia” (ARAGÃO, 1981, 84). Não sabemos se com isso o autor se referia ao ir a banhos ou a um mero passeio para desfrutar da aragem marinha e contemplar o imenso mar.   Assistência e saúde Uma das vertentes que pautou a intervenção da Igreja nas ilhas foi a prestação de serviços de assistência aos cristãos e cativos. Para isso, existia um conjunto variado de instituições que foram criadas de acordo com as necessidades dos diversos núcleos populacionais. As cidades portuárias ficaram servidas de hospitais, que davam o necessário apoio aos marinheiros e demais gentes de passagem. Por outro lado, os problemas resultantes da fome, mendicidade e peste levaram à criação de inúmeras instituições de beneficência por iniciativa de particulares, que depois passaram para a alçada da igreja. Na Madeira, é de referir o empenho de Zargo em fazer construir, em 1454, um hospital junto à capela de S. Paulo, mas não sabemos se o seu desejo foi por diante. A isto, juntam-se referências a outros dois hospitais de iniciativa de particulares, sendo um na Rua de Boa Viagem. A partir de 1485, com a bula de Inocêncio VIII Iniunctum Nobis, a estrutura assistencial ganha uma nova forma. De acordo com esse espírito, a coroa criou, em 1498, o hospital de Lisboa, que veio a congregar todos os menores aí existentes. O mesmo espírito foi seguido em todas as vilas do reino, por autorização papal de 23 de outubro de 1501, expresso na carta régia de 4 de maio de 1507. De acordo com as ordenações régias, cabia aos bispos a sua superintendência. É neste contexto que surgem idênticas instituições nas ilhas. Na Madeira, existiu, primeiro no Funchal (1507) e depois em Machico, Calheta, Santa Cruz e Porto Santo, o hospital da Misericórdia. A função assistencial completa-se com as confrarias, autênticas associações de solidariedade social e espiritual, sendo os irmãos recrutados pela sua situação socioprofissional ou pela sua devoção ao santo patrono. É de salientar o caso da dos pescadores, que, na Ilha, não tiveram o mesmo patrono, e a dos mesteres, como a de S. Jorge (1562) e de S. Miguel, de S. Crispim e de S. Crispiniano (1572). Realçamos, ainda, as confrarias ligadas às misericórdias, onde os irmãos tinham assegurado a sua assistência hospitalar e espiritual. O Funchal, cidade portuária, estava aberta ao contágio das doenças. Deste modo, para precaver a urbe desta infeção estabeleceram-se espaços onde as mercadorias e passageiros suspeitos eram mantidos em quarentena. Este espaço situava-se, primeiro, em Santa Catarina, tendo sido depois transferido para a outra ponta da cidade, no chamado Lazareto. A vereação da cidade estava atenta aos anúncios de peste nas principais áreas de ligação à Ilha. Porém, isto era considerado pouco numa terra onde a importação de géneros é fundamental, sendo, ao mesmo tempo, a principal via de transmissão de doenças contagiosas e dermatológicas. Deste modo, em 1787, o governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho avançou com a casa da saúde, com o objetivo de vistoriar os navios entrados e os produtos alimentares de importação à venda no mercado local. As condições de vida no Norte da Ilha não eram diferentes das do resto do seu território, sendo a sua evolução igualmente pautada por um significativo progresso. Uma das medidas mais importantes a ter em conta nesta época prendia-se com a prevenção. As condições sanitárias das habitações e, acima de tudo, dos aglomerados como a Vila não eram as melhores. Neste último caso, a época invernosa tornava as ruas da Vila num palco de imundice, sendo constante o apelo à limpeza das regadeiras e ao seu calcetamento. As melhorias significativas nas condições de vida dos munícipes são apenas visíveis a partir da déc. de 30. A cobertura de palha cede lugar ao barro e adiciona-se, nas proximidades, um novo compartimento, que depois passará a fazer parte dos planos da casa. Note-se que, quer na construção da retrete quer do palheiro para gado, o médico municipal deveria informar da sua conveniência e localização. A Câmara assumiu o compromisso de pagar todas as despesas com os doentes pobres, que incluíam os medicamentos, o transporte ao hospital da misericórdia no Funchal e a diária do período de internamento. Para que isso acontecesse, o doente deveria ser acompanhado de um atestado de pobreza passado pela Câmara. A vereação sentia-se obrigada a apoiar as famílias pobres através de subsídios fixos ou eventuais. Noutras circunstâncias, as famílias pobres eram acudidas com milho ou então géneros alimentícios de mercearia. Às crianças reservava o município dedicados apoios. Primeiro, com o apoio e acolhimento indispensáveis à sobrevivência das crianças expostas. Depois, no apoio às mães solteiras ou àquelas que não tinham posses para alimentação dos filhos recém-nascidos. As crianças expostas surgem neste período nas mais diversas circunstâncias. Ao município, mediante verba concedida pelo governo civil, estava atribuído o encargo de assegurar a sobrevivência destas crianças. Após o batismo, eram entregues a uma ama, sendo conhecidas pelo número de registo no livro de expostos. Nem todas as crianças que nasciam no seio de famílias constituídas tinha assegurada a sua sobrevivência. Ameaçada pelo estado de miséria, tal sobrevivência só poderia ser assegurada mediante um apoio do município para a lactação. Este subsídio poderia ir até dois anos e contemplava os filhos de mães solteiras ou outras que viviam em estado de pobreza ou a quem tinha secado o leite. Este subsídio era atribuído caso a caso mediante requerimento dos interessados à vereação. A Vereação estava responsável pela gerência deste apoio, podendo retirá-lo a quem não oferecesse as condições exigidas.     Alberto Vieira (atualizado a 15.12.2017)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

olimpismo

A primeira referência histórica do olimpismo madeirense é Sebastião Herédia, filho do visconde da Ribeira Brava, notável desportista que se distinguiu em diversas modalidades, ficando o seu nome ligado ao nascimento do desporto português. Representou o Sporting Clube de Portugal (atletismo, natação e râguebi) e o Clube Internacional de Football (esgrima). Porém, foi o ciclismo uma das modalidades que praticou com maior projeção, tendo ficado ligado aos primórdios do ciclismo em Portugal. O seu nome foi apontado para a primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna (Atenas, 1896), bem como para a edição de Paris, em 1900, e de Estocolmo, em 1912. Porém, só em Amsterdão, em 1928, já com 52 anos de idade, Sebastião Herédia teve a sua primeira e única participação olímpica, numa edição em que, curiosamente, também participou o seu filho Sebastião Branco Herédia (pentatlo moderno) e o seu primo António Herédia (vela). Entre o final da Primeira República e o advento da democracia e da autonomia, o desporto madeirense ficou praticamente confinado às amarras da insularidade e do isolamento. A construção do aeroporto da Madeira e o consequente alargamento das possibilidades de ligação mais rápida e regular com o resto do país vieram atiçar a vontade dos madeirenses em marcar presença nas provas desportivas nacionais. A participação olímpica, todavia, sofre um interregno de 56 anos, que só termina com a participação do nadador Paulo Camacho em Seul, em 1988. A partir daí, ocorreram participações olímpicas em badminton, judo, luta, vela, basquetebol (paralímpico), atletismo (olímpico e paralímpico), futebol, ginástica, ténis de mesa e canoagem. João Rodrigues (vela) era, em 2016, o mais olímpico atleta madeirense, com seis participações consecutivas.     Francisco J. V. Fernandes (atualizado a 15.12.2017)

Sociedade e Comunicação Social