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leme, luís da câmara

Filho do morgado D. João Frederico da Câmara Leme e de uma das filhas dos viscondes de Torre Bela, D. Maria Carolina Correia Pinto, nasceu no Funchal a 26 de março de 1819, sendo irmão do Ten. D. Jorge da Câmara Leme (1807-1889), que ainda entrara nas lutas liberais, do Ten.-Cor. e governador civil do Funchal D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), e ainda de D. José da Câmara Leme (c. 1823-1883), capitão do estado-maior. Descendiam do ramo dos Câmara da linha de Garcia Homem de Sousa e de uma das filhas de Zarco, descendência que se cruzara, entretanto, com os Leme (Genealogias) e de que a principal figura fora, nos meados e finais do séc. XVII, o Ten.-Gen. Inácio da Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general). D. Luís da Câmara Leme assentou praça em 1836, sendo despachado alferes de Caçadores 5 em 1837 e enviado, a 18 de outubro de 1838, para servir no comando da 9.ª Divisão Militar, com sede no Funchal, ordem assinada pelo então ministro da Guerra, conde do Bonfim (1787-1862), que fora governador da Madeira. Pouco tempo depois, no entanto, terá estado em Lisboa, pois, em 1844, concluiu com distinção a Escola do Exército, sendo promovido a tenente em 1845 e a capitão em 9 de abril de 1851, referindo-se na nomeação definitiva como capitão do corpo do estado-maior, de 4 de agosto desse ano, assinada pela Rainha e pelo duque de Saldanha (1790-1876), que frequentara o curso preparatório da extinta Academia de Marinha e da também já extinta Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho, onde fizera os cursos de Engenharia e Artilharia, tal como frequentara, na Escola do Exército, o curso de estado-maior. É possível que tenha sido mobilizado para Lourenço Marques, mas não conseguimos confirmar a informação, nem a sua estadia em Moçambique, que, a ter ocorrido, teria sido por pouco tempo. Na déc. de 50, entretanto, D. Luís da Câmara Leme entrava decididamente na política. Havendo terminando a legislatura de 1853 a 1856, mandou o alvará de 18 de agosto de 1856 convocar as comissões de recenseamento para procederem à eleição dos quatro deputados que competiam à Madeira. A realização das eleições teria apresentado dificuldades fora do Funchal, mas, em dezembro desse ano, foram eleitos o antigo governador, José Silvestre Ribeiro (1807-1891), D. Luís da Câmara Leme, Sebastião Frederico Rodrigues Leal, então redator do periódico O Funchalense, e António Correia Herédia (1822-1899). D. Luís da Câmara Leme voltaria a concorrer às eleições de 1860, que uma vez mais conheceriam algumas dificuldades de realização. A 7 de janeiro de 1860, e.g., só existiam as nomeações para as comissões do Funchal e do Porto Santo e, no mesmo dia, oficiava-se para a Ponta do Sol, para que fossem tomadas as devidas providências para “a completa liberdade dos eleitores”, colocando-se a hipótese de se ter de enviar uma força armada para o concelho, dadas as manifestações de violência ocorridas (ABM, Governo Civil do Funchal, liv. 8, fls. 114-115). O figurino mudara entretanto, passando a existir círculos e, sendo a primeira vez que tal ocorria, parece ter sido esse o motivo das dificuldades, embora a acusação recaísse quase sempre sobre os Herédia da Ribeira Brava. Vieram a ser eleitos pelo círculo do Funchal Luís Vicente de Afonseca (1803-1878), pelo da Calheta D. Luís da Câmara Leme, pelo de Santa Cruz Luís de Freitas Branco (1819-1881), e pelo da Ponta do Sol António Gonçalves de Freitas (1827-1875). Sendo dissolvido o Parlamento por decreto de 27 de março de 1861 e mandando-se proceder a novas eleições ordinárias de deputados às Cortes, que decorreram a 20 de maio desse ano, foram eleitos os mesmos deputados das eleições de 1860. Em 1853, D. Luís da Câmara Leme servira sob as ordens do Mar. Saldanha, que muito o considerava e de quem se tornaria muito amigo, justificando-se a dedicatória de “súbdito e obrigadíssimo amigo” no seu primeiro grande trabalho de fundo: Elementos da Arte Militar, em que se não assume como autor, mas somente como coordenador, editado em 1862 com “juízo crítico” do Ten. José Maria Latino Coelho (1825-1891), então secretário da Academia Real das Ciências. Este trabalho ainda teve uma II parte, em 1863; e III e IV partes em 1864, recolhendo logo os melhores elogios, como na Gazeta de Portugal, tendo tido edições aumentadas nos anos seguintes. Por estes anos era chefe da 3.ª secção da secretaria da direção-geral de Engenharia e, em 1864, teve a nomeação de subchefe da 3.ª repartição do Ministério da Guerra, sendo promovido a major em 1866. Nos inícios desse ano de 1866 foi nomeada uma comissão par dar parecer acerca do armamento com que deveria ser dotado o exército português, “visto que a época das armas de carregar pela boca tinha acabado como o último tiro de espingarda de agulha do soldado prussiano nos campos de Sadowa” (LEME, Diário de Lisboa, 19 set. 1866). Luís da Câmara foi o redator dessa comissão, que manifestou a opinião de que se adotasse a carabina do sistema Westley-Richards de carregar pela culatra e do cano Whitworth, como sendo o modelo mais perfeito para os caçadores. Em vista disso ordenou o ministro da Guerra que se fizesse um contrato provisório para a compra de 8000 carabinas desse sistema para caçadores e 2000 clavinas para a cavalaria. O “Relatório apresentado a sua excelência o ministro da Guerra…”, datado de 10 de setembro de 1866, saiu no Diário de Lisboa, de 19 do referido mês, sendo reproduzido no dia seguinte na Gazeta de Portugal. Nessa sequência, Luís da Câmara, então chefe interino do gabinete do ministro da Guerra, teve ordem de ir a Londres ratificar esse contrato, a 25 de outubro desse ano, com ordem de embarque e ajudas de custo despachadas por António Maria Fontes Pereira de Melo (1819-1887), também oficial de engenharia. A deslocação a Londres terá corrido muito bem e, a 18 de julho de 1867, foi nomeado para ir estudar na Exposição Universal de Paris, realizada nesse ano, “tudo o que se faz relativo às artes e ciências militares, formulando depois um relatório das suas observações para ser presente ao Governo” (AHM, Processos Individuais, cx. 1097, n/catalog.). O “Relatório a S. Ex.ª o ministro da Guerra…” de 1867, na sequência da visita à exposição de Paris, saiu no Diário do Governo de 24 de dezembro desse ano, continuando nos números seguintes, e foi depois impresso em separado com data do referido ano, mas, por certo, já no ano seguinte. Face aos contatos estabelecidos em Londres e, depois, em Paris, o Maj. Câmara Leme publicaria novo trabalho em 1868, sob o título Considerações Gerais acerca da Reorganização Militar de Portugal, que o confirmava como um dos militares portugueses mais bem informados do seu tempo. Nesses anos, como chefe da repartição de gabinete da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, interessou-se especialmente pela situação económica dos militares, o que granjeou então profunda gratidão e reconhecimento. Entre as várias ações desenvolvidas contam-se os contactos com a congénere Secretaria dos Negócios da Fazenda e o facto de ter levado os militares a seu cargo a aderirem ao Montepio Oficial. Em 1870, quando se deu a revolta de 19 de maio, promovida pelo Mar. de Saldanha, o Maj. Câmara Leme foi chamado ao ministério que o referido marechal organizou, a 22 desse mês, como “antigo deputado da Nação Portuguesa” (AHM, Processos Individuais, 3.ª div., sec. 23.ª, cx. 1097, dec. 22 jun. 1870), tendo sido encarregando da pasta da Marinha e Ultramar, com nomeação datada de 20 de julho, sendo então agraciado com a carta de conselho. Com data de 1 de agosto, ainda seria nomeado interinamente para a pasta das Obras Públicas, Comércio e Indústria, substituindo o marquês de Angeja. O gabinete de Saldanha, entretanto, teria muito curta duração, pois, a 29 de agosto do mesmo ano de 1870, outro golpe levou à queda do ministério, sendo provisoriamente substituído por outro, formado pelo marquês de Sá da Bandeira e o velho marechal teve de aceitar retirar-se para Londres, para onde foi como ministro plenipotenciário e onde veio a falecer com 86 anos, a 20 de novembro de 1876. Nos meados de 1874 era dado por terminado o período legislativo de 1871 a 1874, sendo fixadas para 12 de julho seguinte as eleições, que passariam a partir daí a ocorrer no mesmo dia que no “continente do reino” (ABM, Governo Civil do Funchal, liv. 8, fls. 188v.-189). Nestas eleições foram então eleitos D. Luís da Câmara Leme (irmão do então governador civil), pelo Partido Popular, e Ricardo Júlio Ferraz (1824-1880), pelo Partido Regenerador. Este era sócio da firma açucareira Ferraz & Irmão, sucessora das várias firmas fundadas por seu pai, pelo que juntamente com Câmara Leme viria a apresentar um projeto de lei para a extinção do direito que o açúcar madeirense pagava no continente e nas restantes ilhas – projeto esse que a Comissão da Fazenda veio a aprovar em 22 de março de 1875 pelo prazo de cinco anos. D. Luís da Câmara Leme seria promovido a tenente-coronel em 1874, e a coronel, em 1876. Em 1878 foi eleito par do reino, tomando posse na respetiva Câmara a 10 de janeiro de 1879. Neste ano também exerceu o cargo de governador civil do distrito de Lisboa, sendo promovido a general de brigada em 1883 e reformando-se, como general de divisão, a 4 de junho de 1884. General de divisão reformado, do conselho de Sua Majestade, ministro de Estado, par do reino, deputado, sócio correspondente da Academia Real das Ciências e da Sociedade Literária Almeida Garrett, etc., tratou sempre com conhecimento das questões ligadas aos militares, com que também se salientou na imprensa, em artigos dispersos por vários jornais e revistas militares. Câmara Leme foi um propagandista acérrimo da responsabilidade ministerial e das incompatibilidades entre cargos políticos e, nos últimos tempos, já alquebrado pelos anos mas ainda com admirável lucidez de espírito, renovava em quase todas as sessões legislativas o seu antigo projeto de lei nesse sentido, fazendo sempre largas considerações sobre o assunto, para provar a conveniência da sua aprovação, que nunca viu realizada, e cujas principais linhas ainda veio a publicar em 1893. Nos últimos anos, e quando já muito afastado da política partidária ativa, a sua voz era ainda ouvida no Parlamento com atenção e respeito. A oficialidade do exército português, que sempre lhe consagrou a maior veneração pela defesa dos seus interesses ao longo de muitos anos, cotizou-se, nos finais do século, para lhe oferecer uma comenda especialmente executada num dos melhores ourives da capital. Para esse efeito foi aberta subscrição, que num curto espaço de tempo excedia os 8.000$000 réis. O Gen. D. Luís da Câmara Leme aplicou então metade dessa quantia em esmolas para as viúvas pobres dos oficiais do exército, ficando o resto para custear a comenda. Faleceu em Lisboa, a 27 de janeiro de 1904, sendo cavaleiro da Ordem da Torre e Espada e da de N.ª S.ra da Conceição de Vila Viçosa e comendador da de S. Bento de Avis, em 1866; tal como das de Cristo e de Santiago da Espada; de S. Maurício e de S. Lázaro, de Itália; grã-cruz de Isabel “a católica” e de Carlos III, de Espanha; grande oficial da Legião de Honra, de França; e da de Leopoldo, da Bélgica. Era ainda condecorado com as medalhas militares de ouro de bons serviços, e de prata de comportamento exemplar. Elemento especialmente combativo, já se encontrava envolvido, em finais de 1838, num processo por desacato no passeio público de Lisboa, cujos contornos não conseguimos determinar corretamente, mas que sugere que Câmara Leme era já um nome de certa importância, dado ter sido especificamente nomeado pelo então ministro da Guerra. A referência consta da documentação do seu processo individual e, em princípio, teria sido a razão para o conde do Bonfim lhe passar ordem, a 18 de outubro desse ano, para que regressasse “a servir às ordens do comandante da 9.ª Divisão Militar” no Funchal (Ibid., Processos Individuais., 3.ª div., sec. 23, cx. 7, n.º 9, Minuta de ofício…, 1867). O seu espírito combativo e de defesa da classe militar é referido numa carta de Lisboa, de 15 de março de 1869, do diplomata Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901) para o irmão, o então Cón. D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880), onde refere estar em causa a nomeação de governador civil do Funchal para D. João Frederico da Câmara Leme. Escreve o diplomata Agostinho de Ornelas, que era o ministro do Reino, que tinha “muita repugnância a aceitar” a nomeação do “João Câmara, porque o Luís tem feito e faz aqui uma guerra terrível ao Ministério, procurando excitar contra ele os militares que estão geralmente descontentes com as reformas que feriram os seus interesses” (GOMES, 1997, 98-99). Pelos meados da déc. de 40, D. Luís era dado como muito próximo da célebre artista Emília das Neves e Sousa (1820-1883), filha do açoriano Manuel de Sousa, tal como o irmão mais velho de D. Luís, um dos “bravos do Mindelo” (Leme, D. Jorge da Câmara). A “bela Emília” fez a sua estreia nos palcos de Lisboa em 1838, data dos referidos desacatos no passeio público de Lisboa do então Alf. Câmara Leme, e teria sido a primeira grande vedeta feminina a surgir em Portugal, tendo atuado, inclusivamente, no Brasil. Um texto anónimo, Emília das Neves, Documentos para a sua Biografia, por um dos seus Admiradores, editado em 1875, é atribuído a Câmara Leme. Alguns biógrafos citam um primeiro casamento de D. Luís da Câmara com Emília das Neves e que a mesma, falecendo em 1883, o teria feito herdeiro da sua apreciável fortuna, então avaliada em 80 contos de réis. Contudo, à data do seu falecimento, em 1883, Emília é sempre mencionada como solteira, tal como então o seu possível biógrafo. O Gen. D. Luís da Câmara Leme casou-se mais tarde, na freguesia dos Mártires de Lisboa, a 5 ou 15 de outubro de 1887, com D. Ana de Albuquerque (1858-1924), que foi escritora e também atriz no teatro de D. Maria II e que, nascida em São Tomé e Príncipe e filha de Luís Maria do Couto de Albuquerque da Costa, fidalgo e cavaleiro da casa real, bem como sócio correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa, era igualmente senhora de apreciável fortuna, tal como uma das mulheres mais cultas do seu tempo.   Obras de Luís da Câmara Leme: Elementos de Arte Militar (1862-1864) (atr.); “Relatório apresentado a sua excelência o ministro da Guerra em desempenho de uma comissão concernente à aquisição das novas armas de fogo portáteis” (1866); “Relatório a S. Ex.ª o ministro da Guerra acerca dos objectos militares mais notáveis apresentados na exposição universal de Paris em 1867” (1867); Considerações Gerais acerca da Reorganização Militar de Portugal (1868); Emília das Neves, Documentos para a sua Biografia, por um dos seus Admiradores (1875) (atr.); Incompatibilidades Políticas sob o Aspecto Histórico, Jurídico, Político e Moral (1893).   Rui Carita (atualizado a 14.12.2017)

História Militar Personalidades

leme, jorge da câmara

Filho mais velho do morgado D. João Frederico da Câmara Leme, que também usava o apelido Homem de Sousa, e de D. Maria Carolina Correia Henriques, ou Correia Pinto, filha dos viscondes de Torre Bela, nasceu no Funchal, a 13 de março de 1807. Teve como irmãos D. Luís da Câmara Leme (1817-1904), general, deputado e ministro da Guerra, D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), tenente-coronel, e D. José da Câmara Leme (c. 1825-1883), capitão do estado-maior, secretário do ministro da Guerra e oficial às ordens honorário do rei D. Luís. Este ramo dos Câmara Leme descendia dos Câmara da linha de Garcia Homem de Sousa e de Catarina Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, descendência que se cruzou com os Leme (Genealogias), nos inícios do séc. XVII e de que a principal figura foi, em Seiscentos, o Ten.-Gen. Inácio da Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general). O pai de D. Jorge da Câmara Leme, o morgado D. João Frederico, era ainda sobrinho materno do 1.º conde de Carvalhal, pois era filho da irmã do próprio, D. Ana Josefa de Carvalhal, que casara com João Francisco da Câmara Leme, tendo desposado com uma prima em segundo grau, Correia Henriques de Noronha, ou Correia Pinto, como indicámos, neta materna do 1.º visconde de Balsemão. D. Jorge da Câmara Leme seguiu a carreira militar, assentando praça, como voluntário, a 2 de dezembro de 1826, na 1.ª companhia de granadeiros do regimento de infantaria 4. Mas integrou-o por pouco tempo, pois, com a instalação do governo absolutista do infante D. Miguel, o regimento foi dissolvido. Devido às suas ideias liberais, emigrou, pouco depois, para Inglaterra, ao contrário do tio João Carlos Correia Brandão de Bettencourt Henriques de Noronha, 2.º visconde de Torre Bela (1794-1875), ajudante-de-campo de D. Miguel e um dos poucos morgados madeirenses que abraçou o absolutismo. D. Jorge passou, depois, à ilha Terceira, nos Açores, alistando-se no batalhão de caçadores 5, que desembarcou na praia de Mindelo, a 8 de julho de 1832, e participando em toda a campanha liberal, até à convenção de Évora Monte, tendo, na ocasião, o posto de alferes. Todos os seus irmãos integravam, então o exército e , pouco tempo depois, por volta de 1835, pediu a reforma, como tenente, tendo fixado residência na Madeira. Apenas temos notícias da sua participação na vida pública madeirense perto de meados de Oitocentos, no início do governo do conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891). As primeiras informações datam das eleições, determinadas para 1846, mas realizadas somente nos finais de 1847, depois dos pronunciamentos da revolução da Maria da Fonte. As circulares para as eleições na Madeira começaram a ser expedidas nos finais de setembro de 1847, mas, em novembro, ainda não se sabia como suprir a falta de D. Jorge da Câmara Leme, que fora nomeado para coordenar as comissões de revisão dos recenseamentos e que, com os pronunciamentos revolucionários desse ano, a referida Maria da Fonte, se retirara da vida pública do Funchal. O seu nome aparece mencionado, na mesma altura, na administração do Asilo de Mendicidade do Funchal, mas não sabemos se, dada a instabilidade política do período, terá abdicado da função. O governador conseguira que o bispo do Funchal, D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1810-1862), assumisse a direção geral do asilo, integrando na administração D. Jorge da Câmara Leme e outros elementos da sociedade madeirense, que “tiveram a bondade de se prestarem gostosos a esse serviço”, como refere o próprio governador (FREITAS, 1852, 19-20 e 48-49). A comissão do asilo principiou, a 21 de abril, com cinco membros, aumentando para sete, a 23 do mesmo mês. Começou por funcionar no edifício do extinto convento de S. Francisco, mas, pouco depois, passou para as instalações das Angústias, iniciadas para servir essa mesma função. Como os terrenos haviam pertencido a D. Guiomar Madalena de Vilhena e, depois, passaram ao seu sobrinho bisneto, o 1.º conde de Carvalhal, sendo cedidos para construção do asilo, talvez D. Jorge da Câmara Leme, como herdeiro de ambos, tenha participado, pelo menos, nesta primeira fase da reinstalação. No entanto, somente temos referência ao próprio devido ao seu falecimento, que ocorreu a 8 de julho de 1889, e muito depois desta data.     Rui Carita (atualizado a 14.12.2017)

História Militar

leme, joão frederico da câmara

Filho do morgado homónimo, que também usava o apelido Homem de Sousa, e de D. Maria Carolina Correia, filha dos viscondes de Torre Bela, nasceu no Funchal, a 18 de março de 1821. Teve como irmãos o Ten. D. Jorge da Câmara Leme (1807-1889), que colaborou ativamente nas lutas liberais, o deputado e general D. Luís da Câmara Leme (1817-1904), ministro da Guerra e D. José da Câmara Leme (c. 1823-1883), capitão do estado-maior. Descendiam do ramo dos Câmara da linha de Garcia Homem de Sousa e de uma das filhas de Zarco, descendência que se cruzou com os Leme (Genealogias), nos inícios do séc. XVII e de que a principal figura foi, nos meados e finais de Seiscentos, o Ten.-Gen. Inácio da Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general). D. João Frederico da Câmara Leme seguiu, como os irmãos, a carreira militar, assentando praça, como voluntário, no batalhão de infantaria 16, em Évora, a 3 de outubro de 1842, já com alguma idade para a época. Aí serviu “2 anos, 5 meses e 16 dias” (AHM, Processos individuais, João, 6-19), até 18 de março de 1845, data em que foi promovido a alferes, por decreto, passando a porta-bandeira do regimento de granadeiros da rainha, em Lisboa. Promovido a tenente, por dec. de 1 de agosto de 1849, integrou o batalhão de caçadores 6, a 18 de outubro de 1850 e, no ano seguinte, por dec. de 5 de julho, foi promovido a capitão graduado, contando antiguidade desde 29 de abril. Por razões que se desconhecem, muito provavelmente para assumir o controlo das propriedades da família e entrar na vida política, algo que seu irmão D. Luís começara a ensaiar em Lisboa, optou por ser colocado na disponibilidade, por dec. de 15 de janeiro de 1852, passando para ajudante do corpo de artilheiros auxiliares da ilha da Madeira, por dec. de 27 de julho de 1856, ano em que o irmão foi eleito deputado pela Madeira; D. João Frederico tornou-se ainda capitão do corpo auxiliar, por dec. de 25 de novembro de 1861. Nos anos de 1857 a 1862 decorreu um conflito político, com aspetos anticlericais, envolvendo a presença das ordens religiosas em Portugal e que levou as irmãs de S. Vicente de Paulo a abandonarem o Hospício Princesa D. Maria Amélia e até o país. Nos meados de março de 1859, o gabinete do duque de Loulé, que formava a nova corrente progressista histórica, caiu, perante a dissidência de alguns dos seus próprios apoiantes. O novo governo, então constituído pelo Partido Regenerador e com o qual voltava, novamente, António Maria Fontes Pereira de Melo, terá tentado fazer outras alterações, mas a sua vigência durou pouco tempo. Assim, foi nomeado governador civil do Funchal, por dec. de 21 de maio de 1860, o Cap. D. João Frederico da Câmara Leme, que comunicou a tomada de posse a 27 de maio, através de um impresso dirigido às autoridades superiores do distrito. Mas, em breve, a correspondência continuaria a ser assinada pelo anterior governador, o 2.º conde do Farrobo (1823-1882), genro do duque de Saldanha (1790-1876), como se nada se houvesse passado. Não deixa de ser curioso que, nos documentos do processo militar individual de D. João Frederico da Câmara Leme, não conste qualquer documentação desta sua primeira nomeação para governador civil, nem haja referência a ela nos registos biográficos de Luiz Peter Clode ou no Elucidário Madeirense. Os inícios de 1868 foram marcados, no Funchal e uma vez mais, pela tentativa de tomada do palácio de S. Lourenço pelo antigo administrador do Porto Santo, João de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt (1825-1892). Como membro, à data, do conselho de distrito, porque era chefe do Partido Regenerador, e tendo sido exonerado o anterior governador e conselheiro, Jacinto António Perdigão, por dec. de 16 de janeiro, passado este a governador civil de Bragança, a 30 desse mês, João de Santana de Vasconcelos enviou uma circular a todas as autoridades insulares a informar que tinha tomado posse nesse dia. Porém, desta vez, ficou em S. Lourenço apenas cerca de 10 dias. Com efeito, a 10 de fevereiro, tomou posse o Cap. D. João Frederico da Câmara Leme, nomeado por dec. de 25 de janeiro de 1868. D. João Frederico deparou-se com uma situação muito difícil e à qual, nesta sua segunda permanência no Governo Civil, não conseguiu responder da melhor maneira, até porque não teve cobertura política do governo do central. Os finais de 1867 tinham sido marcados por uma subida generalizada dos preços, motivada pela situação de difusão geral da crise no país e agravada pelo imposto da sisa, ou imposto sobre o consumo, na ordem dos 6,5 %. Este valor, decretado em dezembro, que deu origem a graves tumultos por todo o continente, em breve se espalhava à ilha da Madeira. O movimento ficou conhecido como janeirinha, dado ter decorrido nos primeiros dias de janeiro de 1868, resultando em vários motins, tendo sido um, no Funchal, designado por pedrada, o responsável por ter impedido o desembarque de Jacinto de Santana e Vasconcelos (1824-1888). O capitão e governador civil D. João Frederico da Câmara Leme, depois do sucedido no Funchal e, especialmente, na Câmara de São Vicente, onde, entretanto, se deslocou, devido a novos tumultos (Tumultos populares), deve ter sentido uma profunda insegurança no palácio do governo de S. Lourenço. Assim, em abril desse ano, requisitou mesmo uma força militar para ficar em permanência nas imediações do palácio, “não só para defesa do cofre central, como dos arquivos que existem no mesmo edifício” (Alfândega do Funchal) (ARM, Alfândega do Funchal, liv. 680, 18 abr. 1868). A força ficou aquartelada nos armazéns de bagagens da Alfândega, de forma algo provisória. E, com o decorrer dos acontecimentos, depois de 1870, tomou mesmo assento definitivo, quando D. João da Câmara Leme ocupava já o lugar de governador civil. Para o efeito, por proposta do próprio governador e após a aprovação da Junta Geral, foram adquiridas, em Lisboa, 30 camas “e seus pertences”, transportadas para a Madeira no vapor Maria Pia. D. João Frederico da Câmara Leme foi exonerado pelo novo executivo, do açoriano conde de Ávila (1806-1881), que lhe ofereceu o lugar de governador civil de Santarém, para o que teve decreto de nomeação, a 25 de janeiro de 1868, “dada a desistência do coronel Francisco de Mello Breyner” (AHM, Processos individuais, João, 6-19), mas não aceitou o lugar. No entanto, só veio a ser exonerado a 9 de setembro e, a 14 de outubro, dado que “frequentara o tirocínio para oficial superior em Lisboa” (Id., Ibid.), foi de novo colocado no batalhão de caçadores 12 do Funchal, como regista o despacho do rei D. Luís e do marquês de Sá da Bandeira, tendo tido ordem de embarque para o Funchal, a 9 de outubro do mesmo ano. O periódico A Revolução de Setembro, por essa altura, transcrevia uma série de notícias da ilha da Madeira: “Dizem-nos cartas dali, que foi muito mal recebida a notícia ‘encapotada’ da transferência para Santarém do governador civil D. João da Câmara Leme. Não ajudou também a notícia de que o Frade [deverá tratar-se do bispo de Viseu, D. António Alves Martins (1808-1882), que fora franciscano e era então um dos elementos proeminentes do Partido Reformista] apresentara e premeditara impor como deputado governamental pelo círculo da Ponta do Sol o ex-deputado Lampreia”; “Dizem também, que o marquês de Sesimbra, novo governador, não será bem recebido. ‘O Direito’ e ‘A Ordem’, jornais de mais confiança na Ilha, passaram à oposição. Já o esperávamos: Quem tem Razão Direita, não podia andar por muito tempo desviado do Bom Caminho” (A Revolução de Setembro, 26 set. 1868). O Governo do marquês de Sesimbra (1839-1887), décimo quarto filho do duque de Palmela (1781-1850) e o Governo seguinte, do visconde de Andaluz, que viera como secretário-geral do marquês de Sesimbra, foram de vaga gestão da crise motivada pela oposição dos duques de Loulé e Saldanha, que se alternaram à frente do gabinete ministerial de Lisboa. A situação manteve-se até às eleições de julho de 1870, mas configurava-se uma nova nomeação para o Funchal. O governo cessou funções a 26 de outubro, mas, já então, o Cap. D. João Frederico da Câmara Leme estava novamente nomeado governador civil do Funchal, voltando a tomar posse, então com um Te Deum na sé do Funchal, a 31 de outubro de 1870, tal como comunicou às restantes entidades superiores da Ilha, em informação impressa. A nomeação fora bastante anterior, pois fora mandado “marchar para Lisboa”, por “ordem telegráfica” do ministério da Guerra de 20 de maio desse ano, como refere o comandante do batalhão de caçadores de Tomar, onde estava colocado (AHM, Processos individuais, João, 6-19). No dia seguinte, 21 de maio, foi colocado no seu lugar, em Tomar, o Cap. Alexandre Magno de Campos, perguntando o comandante se o mesmo também ficava na situação de “supranumerário”, como estava Câmara Leme (Id., Ibid.). As eleições e as nomeações eram acordadas, muitas vezes, entre os quadros madeirenses, em Lisboa e no Funchal, como expressa uma carta de 15 de março de 1869, onde o diplomata Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901) voltava a dar instruções ao irmão, o então cónego D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880), ainda não sabendo se concorreria às eleições de 1870, estando dependente do número de deputados a eleger por cada círculo eleitoral na Madeira. Equacionava, assim, as posição dos irmãos D. João Frederico e D. Luís da Câmara Leme, adiantando uma situação interessante, que era o ministro do Reino ter “muita repugnância a aceitar o João Câmara, porque o Luís tem feito e faz aqui uma guerra terrível ao ministério, procurando excitar contra ele os militares que estão geralmente descontentes com as reformas que feriram os seus interesses” (GOMES, 1997, 98-99). D. João Frederico da Câmara Leme, desta vez, estaria à frente dos destinos da Madeira durante mais de cinco anos, o que foi um verdadeiro recorde para o tempo, só ultrapassado pelo conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891), que esteve seis anos em S. Lourenço. Entre outros apoios, pois fora nomeado por um gabinete “histórico” e o seguinte, “regenerador”, confirmou-o, contando com uma certa estabilidade governativa por parte dos novos gabinetes de Fontes Pereira de Melo, gozou de um muito especial auxílio: o do bispo do Funchal então nomeado, uma das mais interessantes personalidades da Igreja da Madeira: D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880). Confirmado bispo titular de Gerasa, em 1871, nos inícios e meados de 1872, foi governador da diocese do Funchal e a 27 de outubro de 1872, tomou posse efetiva do bispado. Familiar, em certa medida próximo, do governador civil, como todos os grandes morgados insulares, e vindo a sofrer, à frente da diocese, os mesmos problemas que D. João da Câmara Leme enfrentava no governo civil, estabeleceu-se uma discreta, mas profícua colaboração entre ambos, apoiados nos irmãos deputados em Lisboa, embora não ao mesmo tempo: D. Luís da Câmara Leme e o diplomata Agostinho de Ornelas e Vasconcelos. O governador civil procurou outros apoios ao longo do seu mandato, nomeadamente, no Conselho do Distrito, cujo vogal era Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875), elevado a visconde de São João a 3 de maio de 1871 (São João, visconde), e na nova Junta Geral do Distrito. Nas eleições de 1874 ocorreram alguns distúrbios, nomeadamente, no Porto Moniz, para onde o governador teve de destacar uma força militar, mas essas eleições elegeram de novo o seu irmão general, D. Luís da Câmara Leme, pelo Partido Popular. Ao longo desse ano, instalou-se progressivamente o telégrafo submarino, com o qual o governador foi comunicando oficialmente às restantes autoridades superioras da Ilha. D. João Frederico da Câmara Leme começou a acusar algum desgaste pelos cinco anos de governação, que, inclusivamente, lhe haviam afetado a saúde. Por isso, nos inícios de 1876, pediu a sua exoneração, concedida a 1 de maio desse ano. Entretanto, também nos começos de 1876, já estaria indigitado um novo governador civil para o Funchal, Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro, cuja comunicação de nomeação terá chegado a 7 de abril. Levando este algum tempo em Lisboa, tomou posse do lugar interinamente, a 18 do mesmo mês, o novo secretário-geral Joaquim Curado de Campos e Meneses. A 8 de maio, tomou posse o antigo morgado das Cruzes, Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880), membro do Conselho do Distrito, segundo o art. 223.º do Código Administrativo. E, a 10 de junho, finalmente, o novo governador Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro. O ex-governador D. João Frederico da Câmara Leme casara, a 30 de julho de 1854, com D. Maria Carlota da Gama Freitas Berquó, filha do militar e político brasileiro marquês de Cantagalo (1794-1852). Do matrimónio resultou uma descendente, D. Maria Teresa da Câmara Leme, nascida a 10 de maio de 1854 e falecida em 1942, mas que não casou, não havendo, assim, sucessão, como aconteceu a todos os outros três irmãos de D. João Frederico. D. João Frederico estava, então, colocado em Tomar, embora essa colocação não conste na sua folha de matrícula militar. Foi daí que partiu, em 1870, para ser governador civil do Funchal, vindo a faleceu na mesma cidade, como Ten.-Cor., a 6 de fevereiro de 1878. Foi cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada (1847) e da de Avis (1862), comendador da de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa (1867), possuindo ainda as medalhas de Valor Militar, Bons Serviços e Comportamento Exemplar (1866 e 1867).   Rui Carita (atualizado 14.12.2017)

História Militar Personalidades

kassab, braheem abdo

Braheem Abdo Kassab nasceu em Damasco (Síria), a 18 de novembro de 1891, e faleceu no Funchal, a 26 de junho de 1980. Era filho de Abdo Kassab, comerciante, natural de Damasco, e de Mareeta Rais, professora na escola da missão protestante inglesa na Síria, natural dos montes Hasbaya, no Líbano. O pai de Mareeta foi morto pelos drusos, muçulmanos, no massacre de cristãos de 1860. Nessa altura, ela fugiu com a família e refugiou-se na Missão Protestante, em Beirute, onde estudou. Social e comercialmente, era conhecido por B. A. Kassab e dedicava-se à exportação de bordados, adquiridos em Itália, para os Estados Unidos da América (EUA). A Kassab Brothers, instalada no n.º 303 da 5.ª avenida de Nova Iorque, foi constituída pelos sócios Najeeb Kassab, Braheem Kassab e Farid Haddad (sobrinho). Najeeb Kassab iniciou o negócio dos bordados em Florença (Itália) e, depois, a Kassab Brothers teve loja em Beirute e manteve negócios em Londres, Palestina e no Cairo, até ser dissolvida em 1973. Em novembro de 1916, B. A. Kassab fez uma viagem de Nova Iorque para Southampton à procura de novos mercados. Quis o destino, ou o mero acaso, que o vapor em que viajava tivesse de aportar ao Funchal para escapar a uma violenta tempestade. Ao deambular pela cidade, despertaram-lhe a atenção a quantidade de lojas de embroideries e, por coincidência, os cerca de doze industriais sírio-libaneses que se dedicavam a esse ramo de negócio. Os bordados, made in Italy, eram idênticos, mas o preço de aquisição no Funchal era incomparavelmente mais barato. Afável e de bom trato como era, B. A. Kassab rapidamente estabeleceu contacto com esses industriais, com quem aprendeu os segredos daquela atividade. Assim, formou a Mallouk & Kassab e, logo de seguida, a casa B. A. Kassab. A 30 de abril de 1920, o Correio da Madeira anunciava que a casa Mallouk & Kassab, então à R. da Rochinha, no Funchal, iria mudar para umas instalações mais amplas, e, em 1921, Braheem A. Kassab instalou-se, sozinho, na R. de João Tavira. A 20 de fevereiro de 1922, B. A. Kassab mudou o seu estabelecimento comercial para a R. do Dr. Vieira, n.º 13 (a dada altura, R. da Carreira e hoje, naquele trecho, R. Câmara Pestana), onde permaneceu 50 anos. Em 1972, aquele escritório foi trespassado. Em finais dos anos de 1920, B. A. Kassab abriu uma loja no Quebec, Canadá, denominada Madeira Embroideries Importing Company, que encerrou em 1934 devido a questões fiscais. Na Madeira, com o aumento exponencial da atividade, fabrico e exportação de bordados para os EUA, em finais de 1934, princípio de 1935, verificou-se uma tremenda falta de mão-de-obra. Pelo ano de 1938, B. A. Kassab abriu nos Açores a B. A. Kassab – Açores. Aí, bordavam relativamente bem, nunca atingindo, porém, a perfeição das profissionais madeirenses. Ao ser procurador dos príncipes polacos Jerzy Ignacy Lubomirski (1882-1945) e sua esposa, Anna Lubomirska, Kassab teve oportunidade de comprar para eles, em 1928, a casa mandada construir por Henry Veitch na Madeira (Qt. Calaça), que em 1952 foi vendida para aí se instalar o Clube Naval do Funchal. Foi esta proximidade do mar que levou B. A. Kassab a adquirir os terrenos para mandar edificar um complexo balnear, a que deu o nome de Lido, por si inaugurado em junho de 1933, numa perspetiva de negócio muito avançada para a época. B. A. Kassab foi um empresário de sucesso e muito ativo, valendo-lhe a condecoração com a medalha de mérito da Exposição Agrícola, Pecuária e Industrial de 1930 no Funchal. Como garantia de sustentabilidade das suas iniciativas, B. A. Kassab investiu também em vários negócios, esporadicamente, na aquisição de lotes de vinho raro da Madeira, oportunidade que surgiu resultante da crise bancária madeirense dos anos 30, entre outras. Fruto da diversificada atividade comercial deste negociante sírio, há ainda no mercado madeirense reduzidos lotes de vinho Madeira lacrados com sinete B. A. K., extremamente valorizados na última década. A 12 de dezembro de 2014, por exemplo, num leilão da firma inglesa Christie’s, em Nova Iorque, uma garrafa da sua coleção, datada de 1715, rendeu $26.950 dólares. De notar o financiamento, por parte de Kassab, da construção das obras da Estrada Nacional n.º 1, lanço de S. Vicente – Fajã da Eira, Seixal, durante a Segunda Grande Guerra. A obra foi adjudicada a 24 de maio de 1941, mas o contrato cessou devido à morte trágica do empreiteiro, Frederico da Silva, e de três trabalhadores numa derrocada ocorrida na Fajã da Pedra a 22 de setembro de 1942. Foi nessas andanças que conheceu Maria Clara. Durante aquele período, adquiriu cerca de 2.000.000 m2 (c. 2 km2) no montado da Rocha Vermelha, que integrava parte do Fanal e confrontava com as 25 Fontes (Rabaçal), e, depois, o montado dos Pessegueiros (freguesias do Seixal e S. Vicente), com cerca de 6.000.000 m2 (c. 6 km2), onde fabricou carvão e manteiga, explorou madeiras, gado e vinhas. Este montado foi expropriado pelo Governo Regional em 1976 por ser a mancha mais importantes do Parque Natural da Madeira. No Fanal, estava em curso um importantíssimo projeto de captação, exploração e distribuição de águas, por levadas de heréus, que era o principal ativo da casa bancária Reid, Castro & Companhia, que, com a crise de 1930, faliu, levando os seus ativos à praça, os quais foram depois adquiridos por B. A. Kassab. Noutro contexto, um tio de B. A. Kassab, Iskandar Kassab, fez parte da administração pública na Palestina, função proeminente, e, a 8 de setembro de 1926, adquiriu uma bayara (termo palestino que significa “pomar”, neste caso, de laranjas), sendo curioso registar que “laranja”, em árabe, é porturral. Os ditos laranjais estavam localizados num quarteirão da cidade de Haifa denominado Basateen al Ramel, e Iskandar Kassab adquiriu-os por $15.000.00 dólares americanos, tendo-os depois vendido ao sobrinho. Aqueles prédios viriam a ser ocupados em 1948 e confiscados pelo Estado israelita em 1954. Assim, pela déc. de 1960, B. A. Kassab foi forçado a defender os seus direitos, recorrendo aos tribunais israelitas, e obteve vencimento em 1977. Nessa mesma década, teve de iniciar outra ação judicial para garantir os seus investimentos nas herdades que adquirira no que é hoje o Parque Natural da Madeira. B. A. Kassab comprou e explorou, também, a Fábrica de Sabão e Velas Conceição, fabricando ali velas, sabão, água-de-colónia, limpa-metais, polimentos e detergentes para cozinha, e adquiriu a Electro Reparadora, à R. do Carmo, onde representava importantes marcas, como a Philco – Philadelphia Storage Battery Company, pioneira no fabrico de baterias, rádios, televisão, etc., hoje pertencente à Philips; a Kelvinator, companhia americana que, ainda hoje, produz os famosos frigoríficos; e a Sylvania, famosa companhia americana que produz lâmpadas (Osram Sylvania) e materiais elétricos. Por princípio, Braheem Abdo Kassab nunca renunciou à nacionalidade síria, mas adotou, de todo o coração, a Madeira, onde viveu 64 anos, como sua terra de eleição. Numa descrição apoiada no seu passaporte de 1926, B. A. Kassab era de porte atlético, com 1,60 m de altura, tez morena, olhos esverdeados, nariz forte, queixo redondo e cara oval. Tinha cabelo castanho, sobrancelhas espessas, bigode e boca pequena. Kassab casou em The Little Church Around the Corner, Nova Iorque, em 1949, com Maria Clara de Andrade, nascida a 23 de agosto de 1925, em São Vicente. Era filha de Manuel Joaquim de Andrade e de Maria Pereira Andrade, naturais da mesma freguesia. Faleceu em Wallingford (Pennsylvania, EUA) a 1 de junho de 1982, dois anos após o marido, que falecera a 26 de junho de 1980, no Funchal. A sua descendência ficou garantida através de dois filhos (Braheem Alexander Kassab e Edward Michael Kassab) e de dois netos (Jaqueline Clara e Eduardo Miguel), todos naturais da ilha da Madeira. O relacionamento familiar continua com a regularidade própria dos entes queridos. Ora chegam à Madeira os tios, ora se revezam as visitas do sobrinho (Eddie) à América do Norte. Alexander Kassab, ou Alex (tratamento familiar), optou por viver no estrangeiro quando foi estudar para os EUA, onde terminou o curso liceal e se licenciou. Em Nova Iorque, por volta de 1910, Braheem Abdo Kassab havia tentado fazer carreira na ópera, mas, apesar de ser um razoável cantor, não teve sucesso. Foi isso que transmitiu a Alex, o filho mais velho, que foi músico e cantor profissional de grande qualidade técnica. Ainda estudante universitário na Flórida, Alex ficou em segundo lugar numa audiência a nível nacional para a Metropolitan Opera Company. Depois, gravou um disco na Flórida e participou num programa televisivo americano, onde foi entrevistado por Ronald Reagan, então governador da Califórnia. Anos mais tarde, radicou-se na Venezuela, onde faleceu a 10 de janeiro de 2016.   José Luís Ferreira de Sousa (atualizado a 11.02.2017)

Sociedade e Comunicação Social Personalidades

jogos florais

Os jogos florais, conhecidos como “floralia”, eram festividades religiosas consagradas à deusa grega Flora, divindade que reinava sobre as flores dos jardins e dos campos, no mês que corresponde a abril do calendário romano. Segundo alguns estudiosos, nestes jogos, as cortesãs participavam dançando, sendo a vencedora coroada com um ramo de flores. Ao longo dos tempos, a forma de celebração dos jogos florais mudou. Na Baixa Idade Média, deu-se a instituição dos jogos florais como se tornaram posteriormente conhecidos, ou seja, como competições literárias. No ano de 1323, em Toulouse, França, segundo a tradição, um grupo de jovens poetas, com o desejo fazer renascer o brilhantismo da língua d’Oc e mantê-la em uso (mais tarde conhecidos pelos “mantenedores”), decidiram organizar uma competição das suas composições nessa mesma língua. No séc. XVIII, Luís XIV institui a Academia dos Jogos Florais com o objetivo de manter as tradições culturais da região e promover a criação literária. O aparecimento dos jogos florais em Portugal data de fevereiro de 1936. A Emissora Nacional, com o propósito de comemorar os 10 anos da revolução nacional que levou ao poder a ditadura do Estado Novo, lança ao público os primeiros jogos florais. Os autores podiam concorrer nas áreas da prosa e poesia, cada uma nas suas mais variadas formas, sendo dada maior importância à poesia e prosa que exaltasse nos versos o orgulho da pátria e o ser português. Os jogos florais em Portugal gozaram de grande vitalidade e visibilidade na época como grande evento público, em cuja comissão de honra apareciam as mais importantes figuras do Estado, sendo as obras vencedoras lidas nas emissões radiofónicas da Emissora Nacional. Na ilha da Madeira, a iniciativa dos jogos florais foi lançada pelo periódico Eco do Funchal, no dia 21 de setembro de 1941. O principal impulsionador e organizador dos primeiros jogos florais da Madeira foi o jornalista e poeta César Pestana (Pausania) que, conjuntamente com o diretor do Eco do Funchal, José da Silva, organizou o concurso literário tendo como modelo os primeiros jogos florais realizados pela Emissora Nacional e o Secretariado de Propaganda. Segundo o regulamento do concurso, os jogos florais da Madeira constituíam uma competição que tinha como objetivos valorizar a poesia madeirense e fomentar o cultivo das letras entre os poetas da Ilha. Os poetas podiam participar com as suas composições em quatro modalidades poéticas: soneto, quadra, poemeto e glosa. Na criação da glosa, eram obrigados a escrever composições com a seguinte mote: “Não canto por bem cantar/Nem por bem cantar o digo:/Canto só para espalhar/Mágoas que trago comigo”. Foram atribuídos três prémios para cada modalidade poética. O primeiro e o segundo prémio equivalia a uma flor e o terceiro a uma menção honrosa. O soneto vencedor do 1.º prémio receberia um Lys de Oiro e o do 2.º prémio um Lys de Prata. A quadra vencedora do 1.º prémio receberia um Cravo de Oiro e a do 2.º prémio um Cravo de Prata. O poemeto ao qual fosse atribuído o 1.º prémio receberia uma Túlipa de Oiro e o do 2.º prémio uma Túlipa de Prata. A glosa teria como 1.º prémio um Malmequer de Oiro e como 2.º prémio um Malmequer de prata. Nos números seguintes do Eco do Funchal foram sendo publicadas regularmente as poesias que em grande número afluíam à redação do jornal, gerando enorme entusiasmo entre a intelectualidade madeirense da época. Um entusiasmo que teve eco nos jornais do continente e dos Açores, sendo largamente transcrito um artigo escrito no Comercio do Porto a louvar a iniciativa, mas criticando a falta de empenho da Câmara Municipal e da presidência de Fernão de Ornelas em reunir as poesias num volume. O mesmo entusiasmo não chegou aos dois jornais diários madeirenses, que se manterão em silêncio relativamente à iniciativa do Eco do Funchal. No dia 18 de janeiro de 1942, o Eco do Funchal dá por encerrado a receção e publicação dos trabalhos, com um total de 75 poetas e poetisas, que concorreram com 30 sonetos, 37 quadras, 35 poemetos e 36 glosas, num total de 138 poesias inéditas. O júri que procedeu à leitura e avaliação dos primeiros jogos florais da Madeira foi constituído por cinco personalidades da sociedade madeirense, Eugénia Rego Pereira, Cón. António Homem de Gouveia, Jaime Vieira Santos, João Velez Caroço e Manuel Higino Vieira. A declamação dos poemas vencedores ficou a cargo da poetisa Idalina Salvador (Inah). A sessão solene para a entrega dos prémios dos jogos florais realizou-se no Ateneu Comercial do Funchal, no dia 12 de novembro de 1942. No sarau literário, reuniram-se as mais altas individualidades, contando com a presença, entre outros, de A. Branco Camacho, chefe do gabinete do governador do distrito, de Alberto Araújo e de Eduardo Homem de Gouveia e Sousa. Na sessão solene, celebraram-se várias iniciativas de cariz artístico antes da entrega de prémios aos concorrentes e da recitação dos poemas vencedores. Nas várias categorias poéticas, os grandes vencedores dos primeiros jogos florais foram: no soneto, Humberto Nunes da Silva com o poema “Filha”; na quadra, um poeta que permaneceu anónimo; no poemeto, Viterbo Dias, com o poema “Ilha da Madeira”; e na glosa, Abel Nunes com “Glosa n.º 9”. Deste primeiro concurso ressalva-se a promessa, por parte dos organizadores, da edição de um volume das melhores composições poéticas dos primeiros jogos florais da Madeira. No entanto, apesar do sucesso dos primeiros jogos florais do Eco do Funchal, a organização do concurso literário não voltaria a ter o apoio desta empresa, passando assim a ser organizados pelo Ateneu Comercial do Funchal. A 27 de agosto de 1945, o Diário de Notícias da Madeira anuncia a realização dos jogos florais pelo Ateneu do Funchal, presididos por Luiz de Sousa, com o objetivo de movimentar e tornar conhecidas as obras dos escritores madeirenses. No quadro organizativo da prova literária, encontravam-se como colaboradores Horácio Bento Gouveia e Manuel Silvério Pereira. As modalidades literárias em que os autores podiam participar eram o conto, o conto infantil, o soneto, a poesia alegórica à Madeira, a quadra popular, o poema filosófico e o poema lírico. O júri dos jogos florais do Ateneu Comercial do Funchal era constituído pelo presidente da instituição, Alberto Jardim, e por Ernesto Gonçalves, Horácio Bento de Gouveia, Jaime Vieira Santos e Marmelo e Silva. Os prémios atribuídos aos vencedores eram de valor monetário e, conforme a modalidade literária, iam dos 1.000$00 aos 300$00. A cerimónia solene de encerramento dos primeiros jogos florais do Ateneu Comercial realizou-se no dia 23 de maio de 1946, no edifício da associação recreativa e cultural, à semelhança do encerramento dos primeiros jogos florais do Eco do Funchal. Na cerimónia, discursaram o presidente do Ateneu Comercial do Funchal, Luiz de Sousa, Alberto Jardim e Jaime Vieira Santos; seguiu-se a entrega dos prémios aos vencedores nas várias categorias. Os primeiros classificados nas diversas modalidades literárias foram: no conto, “A última luz da candeia tem três bicos”, por Manuel dos Canhas, pseudónimo de Elmano Vieira; no conto infantil, o prémio foi para “Viagem ao Polo”, por Maria de Roma, pseudónimo de Lisetta Zarone D’Arco Vieira; na poesia alegórica à Madeira, o vencedor foi Silvado Prado, pseudónimo de Manuel Silvério Pereira, com o poema “Madeira”; na categoria do soneto, o vencedor foi Florival dos Passos, que assinou como Emanuel Jorge; no poema filosófico, o prémio foi para Humberto Nunes da Silva, Plauto, com o poema “Carta”; na poesia lírica, o vencedor foi António Jorge Gonçalves Canha, com o poema “Voltar à Escola”. Por fim, na categoria da quadra popular, foi A. Cílio, pseudónimo de Aurélio Nelson Pestana, o vencedor. Nos jogos florais do Ateneu Comercial do Funchal destacou-se a presença feminina entre os laureados do torneiro literário: o primeiro prémio para a modalidade de conto infantil foi ganho por Lisetta Zarone D’Arco Vieira e, na modalidade de poesia alegórica à Madeira, J. Crus Baptista Santos, com o nome de Ana Rosa, ganhou uma menção honrosa com o poema “Poesia à Madeira”. A tradição dos jogos florais na Madeira conta com dois momentos importantes, ou dois inícios por assim dizer, o Eco do Funchal inaugura a novidade da competição literária na Ilha e o Ateneu Comercial do Funchal continua com a competição dando-lhe um novo e renovado impulso até ao último quartel do séc. XX.     Carlos Barradas (atualizado a 18.12.2017)

Literatura Sociedade e Comunicação Social

jogos de fortuna e azar

De acordo com o dec.-lei 422/89, de 2 de dezembro, os jogos de azar são definidos como “operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico”, sendo “abrangidos rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos”. Para além disso, enquadram-se neste conceito os jogos proibidos, que se fazem portas adentro, em locais reservados. No passado, eram associados às cartas de jogar, ao jogo da hoca, do osso, de dados, solimão e tavolagem. Na Madeira, associam-se ainda ao jogo do bicho, à milhada, um jogo de adivinhação feito com grãos de milho – que foram depois substituídos por moedas, ficando o jogo conhecido como a moedinha – e, posteriormente, ao raspa, criado pela Associação de Municípios da Madeira. Note-se que a diversão e o jogo fazem parte de todas as sociedades, estando condicionados pelas limitações impostas, nomeadamente pela Igreja, através das constituições sociais, da prática episcopal das visitações, das ordenações régias e da sua expressão local através das posturas. Muitas vezes, a documentação não nos fala da prática destes jogos, mas o facto de existirem estas medidas proibitivas é, por si só, a prova da sua existência. O facto de a Madeira ter sido local de acolhimento de forasteiros, que, muitas vezes, aí passavam temporadas, trouxe para a Ilha essas formas de jogo europeu para ocupar o tempo. Ocupar o tempo não era tarefa fácil numa terra em que faltavam muitos serviços de diversão e entretenimento. Assim, as autoridades demonstraram empenho em promover tudo o que fosse possível para que, aos poucos, se criassem as condições necessárias ao acolhimento destes forasteiros, destacando-se a ação do Gov. José Silvestre Ribeiro, que insistiu nos melhoramentos das ruas da cidade, calcetando-as e provendo-as de iluminação noturna, e a construção de casas de abrigo no interior da Ilha. Alguns estrangeiros queixavam-se do tédio permanente das estadias no Funchal, por falta de locais de diversão, má qualidade dos músicos e pouca variedade dos repositórios musicais. É disso exemplo Isabella de França, que, em 1853, declarava: “Não posso dizer muito em louvor da música destes bailes, porque só há uma no Funchal e o público não fica mais bem servido do que noutro monopólio qualquer. Outra consequência é que, durante a temporada, se tocam sempre os mesmos números. São eles, como em toda a parte, uma ou outra quadrilha, por mera formalidade, e muitas polcas, valsas, mazurcas, etc. – tantas quanto possível” (FRANÇA, 1970, 173). Outros ainda, como Dennis Embleton em 1882, apontavam a pouca veia musical dos madeirenses. Talvez por isso a presença de uma banda a bordo de um navio de passagem fosse motivo de interesse e curiosidade, providenciando-se a sua participação em bailes oficiais ou organizados pelos clubes. Em 1853, a banda de um barco americano foi convidada a atuar num baile no palácio de S. Lourenço, como também conta Isabella de França: “Na mesma sala dos quadros tocava a banda do navio americano surto no porto e cujo comodoro tivera a gentileza de a ceder para aquela ocasião. A música, de que o instrumento mais importante era o bombo, devia soar bem no mar alto mas ensurdecia muito debaixo de um teto” (Id., Ibid., 203). A noite era um momento importante para o convívio e animação nas casas das principais famílias da Ilha e da comunidade britânica aí residente. Nos seus solares apalaçados no espaço urbano ou quintas nos arredores da cidade, todos dispunham de amplos aposentos servidos com sala de jantar e de dança para muitos convidados. Entre estes, contavam-se sempre estrangeiros de diversas nacionalidades que ocupavam o tempo de estadia na Ilha pulando de festa em festa. Tais saraus eram marcados por grande animação de música e dança. Disso nos dá conta, uma vez mais, Isabella de França: “A reunião não teve muita concorrência, mas incluiu várias nações. Havia uma dama russa, três ou quatro alemães, além de ingleses, franceses e portugueses. Depois do chá, houve música nacional, para nossa distração: machete primorosamente tocado, viola e cavaquinho (machete de seis cordas em vez de quatro, peculiar ao Porto). Estes instrumentos foram todos bem tangidos e harmonizaram-se na perfeição em músicas que lhes são próprias. Gostei bastante” (Id., Ibid., 182). No séc. XIX, o Teatro Grande, criado em 1780 próximo da fortaleza de S. Lourenço, era considerado o principal centro de diversão por acolher as mais famosas companhias europeias, como foi o caso da companhia de teatro do S. Carlos, em 1808. A aposta das autoridades neste tipo de espaços foi, no entanto, sendo adiada, pelo que, quer a imprensa, quer os forasteiros reclamavam uma casa de espetáculos. Criá-la era, em 1819, no entendimento do Gov. Sebastião Xavier Botelho, a possibilidade de travar os espaços não autorizados, na medida em que eram “forçados seus habitantes a buscarem más distrações quando lhes faltem as honestas” (ALMEIDA, 1907, 295). É o mesmo governador quem promove uma lotaria com um prémio até 18 contos, com duas ou três extrações anuais, sendo os lucros, que poderiam chegar a 12%, destinados a obras ligadas à diversão, como o reparo do teatro, por exemplo. Em 1822, surge a ideia de uma nova lotaria, no valor de 24 contos, que, nas palavras do governador, podia ajudar a evitar o tédio e falta de diversão na cidade: “vantagens são bem conhecidas de todos mormente numa cidade que não tem outros entretenimentos com que se possa distrair e fazer diversão...” (Id., Ibid.). O Funchal era, então, uma cidade cosmopolita que fervilhava de gente de passagem e de doentes em busca da cura para a tísica. Como as diversões eram poucas e não havia teatro, ópera ou outras diversões europeias, o tempo era ocupado por passeios a pé ou de barco e piqueniques. Perante isto, foi preocupação de vários governadores promoverem o entretenimento. Todavia, só na déc. de 80 do séc. XIX a pertinácia do Dr. João da Câmara Leme venceu a inércia das autoridades centrais. Assim, em 25 de fevereiro de 1880, constituiu-se a companhia edificadora do Teatro Funchalense, mas a decisão da sua construção por parte da Câmara só ocorreu em 9 de fevereiro de 1882. O espaço abriria as suas portas apenas cinco anos depois, com o nome teatro D. Maria Pia. Com a República, em 1911, passou a ser chamado teatro Manuel de Arriaga, mas, face à recusa desta personalidade, ficou como teatro Funchalense até à sua morte, em 1917. Já na déc. de 30 do séc. XX, com Fernão Ornelas como presidente da Câmara, passou a designar-se Baltasar Dias, como forma de homenagem ao maior dramaturgo madeirense do séc. XVI. A primeira notícia sobre uma casa de representação é de 1776. João Rodrigues Pereira fez construir a Casa da Ópera do Funchal no local de outra, que havia sucumbido num incêndio. Passados 10 anos, temos referência a dois teatros: a Comédia Velha e o referido Teatro Grande. Já o séc. XIX pode ser considerado o grande momento do teatro, do circo e da ópera. Surgiram novas casas de espetáculo que mantiveram uma atividade permanente, trazendo à Ilha personalidades de destaque do bel canto, concertos, récitas e festas de beneficência, circo e teatro. Ao mesmo tempo, surgiram sociedades dramáticas, como a Concórdia (1840) e Talia (1858), com o objetivo de promover a construção de salas de espetáculos e o seu funcionamento. Ao visitante de passagem ou de estadia temporária restavam ainda outras diversões. As atividades desportivas são assinaladas no decurso do séc. XIX. Assim, em 1838, John Driver dá conta de uma corrida de cavalos, no percurso da estrada Monumental. Depois, foram surgindo outros desportos, por influência da comunidade britânica residente. Em 1875, Harry Hinton trouxe o futebol, que começou a ser praticado na Achada, na freguesia da Camacha, em 1870. Por sua vez, o ténis estava presente no Monte e na Qt. do Palheiro Ferreiro, onde o rei D. Carlos jogou uma partida. A estas modalidades, juntam-se ainda o criquet e o bilhar, que se tornaram duas das principais atrações dos clubes de recreio da cidade. Por fim, para os mais destemidos, havia a caça à codorniz, ao coelho, à galinhola e à perdiz, que tanto poderia ter lugar no Santo da Serra, no Caniçal ou no Paul da Serra, bem como no Porto Santo e nas Desertas. A animação e o lazer encontram, assim, novas formas de expressão para as elites locais. Os clubes de diversão e de recreio são uma realidade a partir da déc. de 30 do séc. XIX. Entre estes destacaram-se o Clube União (1836-1879) e o Clube Funchalense (1839-1899). Este último ficou célebre pelos bailes e soirées, afirmando-se, ainda, como um dos principais espaços de receção dos visitantes. Para além destes, vários outros clubes vieram animar a cidade: o Clube Económico (1856), o Clube Recreativo (1856), o Clube Aliança (1867), o Clube Restauração (1879), o Clube Internacional do Funchal (1896), o Clube dos Estrangeiros (1897), o Clube Recreio Musical (1900), o Turt Club (1900), o Novo Clube Restauração (1908), o Sports Club (1910), o Clube Republicano da Madeira (1911), o Clube Naval Madeirense (1917), o Clube Recreio e Restauração, o Novo Clube Renascença, o Clube Funchalense e o Commercial Rooms. Algumas das homenagens prestadas a personalidades de passagem tinham lugar nestes clubes. Assim, em 1885, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens foram aclamados no clube Funchalense e, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram obsequiados pelo Club Sport Madeira. Aos clubes e aos hotéis, juntaram-se os casinos, como locais privilegiados de diversão e de jogo. O casino da Qt. Vigia (1895), sobranceiro ao porto, era um dos mais visitados e conhecidos pelos saraus dançantes que tinham lugar todos os dias. Destaca-se igualmente, a partir de 1880, uma novidade que veio animar as ruas da cidade e as amplas quintas dos arredores do Funchal: as esquadras de navegação terrestre. Este jogo, que consistia genericamente na organização de “esquadras militares” fardadas a rigor que, em momentos determinados, realizavam assaltos entre si, acabou por monopolizar o lazer dos proprietários das principais quintas. Na Madeira, a segunda metade do séc. XIX foi marcada por uma conjuntura difícil para as diversas classes socioprofissionais, marcando, nesta medida, o despertar da sua consciência para o associativismo ou para a busca de soluções que propiciassem a assistência e a proteção aos trabalhadores, nos acidentes, na doença e na velhice. A tudo isto acresce o filantropismo social de ajuda aos mendigos, crianças e viúvas. Deste modo, a partir de meados da centúria, o mutualismo, o cooperativismo e o associativismo socioprofissional foram um meio capaz de minorar as dificuldades com que se debatia a população. Nesta sociedade, os jogos de fortuna e azar estão em todo lado e em lado nenhum, praticando-se de forma velada. À exceção dos que são legais, como a lotaria, os jogos de cartas e os que acontecem dentro dos casinos, apenas se sabe deles quando acontece algum desacato que implica a presença da autoridade, ou quando alguém apresenta denúncia. Em 1710, os vendeiros José Maria, Pedro Matos e a mulher de António Gonçalves Renhim são notificados para que nas “vendas não armassem jogos de moços e homens casados, nem negros e mulatos, sob pena de 6$000 réis” (RIBEIRO, 1993, 89). Depois, em 1768, transfere-se um deportado “por jogar e dar casa a jogos proibidos e crime de Mollicie” (CARITA, 1999, 252). Já em 1777, foi informado Francisco José, morador à R. do Hospital Velho, que “não teria mais jogo em sua casa” (Id., Ibid., 252). Não era só na cidade que o jogo se generalizara. Também no meio rural existiu, mesmo sem registo documental. Veja-se, por exemplo, este aviso lançado no Diário Popular, em 1901, por uma vítima do jogo que define o Seixal como uma escola de jogatina: “Joga-se nas casa particulares, em vários edifícios desabitados, nas tabernas por toda a parte, enfim, e quem se recusa a acompanhar os viciosos em tal divertimento é perseguido” (RIBEIRO, 1996. 260). Esta denúncia é um exemplo de que o jogo existe em toda a Ilha.   O estanco Consistia numa forma de monopólio legal, exercido pelo Estado ou concedido por este a um particular, para produção ou venda de um determinado produto, como o tabaco, o sal, a urzela, cartas de jogar ou diamantes. No caso de exercício por um particular, estamos perante uma doação como forma de mercê ou uma concessão a troco de uma renda fixa. O estanco também pode significar o armazém onde se encontra depositado e onde se faz a venda do produto do monopólio. O contratador do estanco providenciava estes espaços nas diversas localidades através do sistema de subarrendamento, sendo conhecido como estanqueiro. O mais importante foi o estanco do tabaco que perdurou desde do séc. XVII até à publicação da lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitida a plantação de tabaco nas ilhas da Madeira e dos Açores e o seu livre fabrico e comércio. No Funchal, existiu uma rua com a designação “Estanco Velho”, cuja referência mais antiga é de 1572, reportando-se, possivelmente, à existência de um estanco na mesma rua. Outro estanco, não menos importante, foi o das cartas de jogar, surgido em 1607. Estando proibido o fabrico e a venda de cartas, pertencia ao estanqueiro esse direito, mediante uma renda cujo contrato era feito por arrematação. No séc. XVIII, o meirinho do estanco estava autorizado a fazer buscas em navios, barcos e quintas quando houvesse suspeita da existência de cartas falsas ou da sua venda sem licença do contratador. Ao contratador ou estanqueiro das cartas de jogar, era reconhecido o direito de ter mestres de fazer cartas, situação que estava vedada aos particulares. No séc. XVI, o baralho de cartas custava 80 réis. Ao longo de todo o séc. XVIII, vigorou na Madeira o contrato das cartas de jogar e solimão, instituído no séc. XVII e arrematado em Lisboa. Este contrato devia ter ligação à Madeira, dado encontrar-se registado na Câmara do Funchal, nos inícios do séc. XVII, o contrato celebrado com João Almedo de O'Campo, assim como uma outra provisão passada a Manuel Mendes Cardoso. O contrato referia que se poderia “jogar todo e qualquer jogo de nove e doze cartas, sem pena alguma e que se não possa o ‘jogo de parar’, sob as penas da lei” (CARITA, 1999, 252). Este contrato envolvia a venda das cartas de jogar, fabricadas em Lisboa pela Real Fábrica das Cartas de Jogar. Em 1770, o estanco das cartas de jogar era administrado por João dos Santos Coimbra e funcionava numa casa na R. do Sabão. No entanto, algo terá corrido mal, na medida em que os bens do administrador foram penhorados. Em 1793, Pedro Jorge Monteiro, procurador na Ilha da “real renda”, ainda procedia de acordo com este auto.   Lotarias Sabe-se da criação, em 1688, de uma companhia de jogos de rendas e que, em 1702, o rei determina a criação de uma lotaria, havendo notícia de outra em 1720. A primeira lotaria de que se tem conhecimento na Ilha foi criada pelo Gov. e Cap. Gen. José Manuel da Câmara, a 5 de fevereiro de 1803. Esta lotaria era de 30.000$000 réis, dividida em 6000 bilhetes, ao preço de 5$000. O 1.º prémio era de 4000$000 réis e o 2.º de 1600$000. Contudo, a 24 de março de 1804, o Gov. Ascenso de Sequeira Freire informa o visconde de Anadia da impossibilidade de esta se realizar, por ainda não se ter vendido metade dos bilhetes. Uma lei de 18 de outubro de 1806 atribui o negócio da lotaria às Casas da Misericórdia, mas, mesmo assim, a segunda lotaria de que há notícia terá sido criada, no Funchal, para benefício dos lázaros, de acordo com uma ata da sessão da Câmara Municipal do Funchal de 12 de janeiro de 1814 referida por Eduardo Almeida. O mesmo poder foi atribuído à Santa Casa da Misericórdia do Funchal para financiar as suas obras de caridade. Assim, em 1823, o provedor da Santa Casa, o Dr. João Francisco de Oliveira, teve autorização para uma nova lotaria, cuja receita revertia a favor do Recolhimento das Órfãs. Em 1931, defendeu-se uma lotaria local com base nas corridas de cavalos de Inglaterra, mas esta não foi autorizada. Pouco depois, em 1935, João Abel de Freitas reclamava as receitas da lotaria para a assistência local, mas Salazar não aceitou, mantendo-as como apanágio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A propósito de prémios da lotaria, há notícia de que, em 1928, o emigrante madeirense João Gonçalves de Jesus, residente na ilha de Trinidade, venceu a lotaria de S.to António, doando o que ganhou para a construção do monumento de N.ª S.ª da Paz, no Monte. Outro madeirense, João Fernandes, de Câmara de Lobos, que fora emigrante no Curaçau, encontrou a sua recompensa, em Lisboa, ao ganhar a lotaria no valor de 300 contos.   Os casinos Há notícia do funcionamento de três casinos no Funchal – Monumental, Vitória e Pavão – e de que a companhia de ferro do Monte pretendia explorar um casino no término da linha de comboio dessa freguesia. Em 1906 ateou-se a polémica na imprensa local com o projeto da Companhia dos Sanatórios da Madeira, que pretendia montar na Qt. Pavão um kurhotel. No entanto, a companhia seria comprada pelos ingleses, que aí montaram um casino. Em 1936, o Ministério das Finanças cedeu as quintas Vigia, Pavão e Biachi à empresa que adjudicou a zona de jogo, a empresa de turismo da Madeira, sendo instalado um casino na Qt. Vigia no mês de julho do mesmo ano. O casino Vitória, que era muito frequentado por estrangeiros, ardendo em 1927, e o casino Pavão funcionaram até à déc. de 30 do séc. XX, quando o governo decidiu concessionar a sua exploração. Tenha-se em atenção que, das sete zonas de jogo existentes em 1928-1929 em Portugal, a da Madeira era a que rendia mais ao Estado, com uma receita anual de 861.988$80. Na década seguinte, gerou-se um movimento a favor da concessão e construção de um casino, reivindicado por Henrique Vieira de Castro e pelo próprio João Abel de Freitas em carta de 1935 endereçada a Salazar, que, em resposta privada, se manifestou contra. O primeiro concurso para a concessão do jogo na zona da Madeira foi aberto em dezembro de 1935, surgindo na sequência da publicação do dec.-lei n.º 14.643, de 3 de dezembro de 1927, que regulamentou a exploração do jogo. A Associação Comercial manifestou interesse nessa concessão, criando para o efeito uma sociedade, a Empresa de Turismo da Madeira Lta. (1936). No entanto, apenas em 1958 lhe foi entregue a concessão do jogo por um período de 35 anos, sendo esta posteriormente prorrogada, em 1996 e 2006, por mais 10 anos. Mais tarde, o dec.-lei n.º 48.912, de 18 de março de 1969, estabeleceu duas zonas de jogo na Madeira, uma para cada ilha, sendo posteriormente alterado por outro decreto, o 10/95, de 10 de janeiro.   O jogo do bicho e o raspa O jogo do bicho joga-se na Madeira e no Rio de Janeiro. Na cidade brasileira, começou em 1892, por iniciativa do barão de Drummond. Não se sabe se antes desta data existia o jogo na Madeira, mas é muito provável que os emigrantes madeirenses no Rio de Janeiro tenham sido os seus divulgadores no Funchal, em data que se desconhece. Este jogo clandestino baseava-se em apostas feitas em números que correspondiam a animais, sendo os mesmos estabelecidos pelas terminações da lotaria nacional. Não se sabe, pois, quando começou, na Ilha, o jogo do bicho. Tratando-se de um jogo clandestino, não tem registo histórico, aparecendo na documentação oficial apenas quando, por qualquer razão, a polícia intervinha. Assim, sabemos que, na déc. de 30 do séc. XX, era bastante praticado, pois o Governo Civil promoveu uma ação, em 1930, para acabar com ele, na medida em que fazia concorrência à lotaria nacional da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Era nas vendas e mercearias que este jogo circulava, sendo assim apreendido, em 1937, o jogo em Santa Cruz e condenado o merceeiro. Por outro lado, vários angariadores espalhavam-se por toda a cidade e meio rural, no sentido de atrair novos jogadores. Embora saibamos muito pouco sobre o seu funcionamento, podemos afirmar que este jogo foi muito popular na Ilha e que ainda continua a existir na clandestinidade, não obstante ter entrado em decadência a partir da déc. de 70 do séc. XX. Há uma expressão popular dos madeirenses que tem origem neste jogo, “dar no porco”, significando que algo acaba mal. A expressão terá origem num momento em que, segundo o povo, saiu uma elevada quantia no porco, no âmbito do jogo do bicho, ficando o banqueiro com o dinheiro todo. Nos jogos de fortuna e azar, é também de destacar o raspa ou jogo instantâneo, que surgiu a 19 de dezembro de 1985, sendo explorado pela Associação de Municípios da Madeira. Passados 10 anos, apareceria, a nível nacional, a raspadinha, jogo lançado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Este é um dos chamados jogos instantâneos, uma vez que a atribuição ou não do prémio acontece na hora em que se procede ao raspar do cartão adquirido.   O imposto A primeira situação que conhecemos em relação à tributação do jogo prende-se com as cartas de jogar e solimão, que estavam sujeitas ao regime de monopólio. O estanco era nacional e existia na Madeira. O primeiro imposto a recair sobre o jogo foi o de selo, que existiu entre 1797 e 1988. Este tributo foi criado por alvará de 10 de março de 1797, como meio de financiar a guerra com a França e seus aliados (1793-95, 1801, 1807-14). Acabou por manter-se como mais uma fonte de rendimento para o Estado. A sua incidência sobre a lotaria foi determinada pela carta de lei de 4 julho de 1889. O imposto foi regulado pela lei de 20 de dezembro de 1837, a que se seguiu o dec. n.º 12.700, de 20 novembro de 1926. Aqui se refere que o imposto incide sobre “documentos, livros, papéis, atos e produtos”, visando-se tributar a circulação de riqueza, bens e valores que, de alguma forma, não tenham sido abrangidos por outro tributo. Os impostos estão, assim, presentes em anúncios, editais, escrituras, emissão de cheques, doações, obrigações, atos notariais, etc. A lei de 26 de abril de 1861 introduziu a possibilidade do seu pagamento através da inutilização de estampilhas fiscais. Já a lei de 29 de junho de 1902 alargou a sua cobrança às especialidades farmacêuticas. As taxas são variáveis: tanto pode ser uma percentagem da verba que está na origem do ato, como um valor fixo, que vai sendo atualizado com o tempo. Pelo dec. n.º 4056, de 6 de abril de 1918, foi criado um adicional de 50% enquanto durasse a guerra. Temos notícia de tabelas aprovadas: lei de 10 de julho de 1834; lei de 21 de abril de 1845; lei de 26 de abril de 1861; lei de 1 de julho de 1867; lei de 30 de agosto de 1869; lei de 2 de abril de 1873; lei de 7 de maio de 1878; lei de 21 de julho de 1893; lei de 24 de maio de 1902; lei n.º 1193, de 31 de agosto de 1921, que duplicou as taxas que foram publicadas no dec. n.º 7772, de 3 de novembro; lei n.º 1152, de 1 de março de 1924, que quintuplicou as taxas; lei n.º 1633, de 17 de julho de 1924, que procedeu a alterações na tabela publicada pelo dec. n.º 10.039, de 26 de agosto do mesmo ano; dec. n.º 16.732, de 13 de abril de 1929, que mandou integrar neste imposto a parte do imposto de transações que incidia sobre as operações bancárias; nova tabela aprovada pelo dec. n.º 21.916, de 28 de novembro de 1932; dec. n.º 21.427, de 30 de junho de 1932, que mandou multiplicar as taxas por 1,25, publicando-se as novas tabelas pelo dec. n.º 21.591, de 11 de agosto; decreto com força de lei n.º 21.916, de 28 de novembro de 1932, em que foi aprovada uma nova tabela. A parte do imposto de selo que recaia sobre bilhetes de lotaria e rifas foi abolida em 1988 (dec.-lei n.º 442-A/88, de 30 de setembro e dec.-lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro), com a criação de dois novos impostos: imposto sobre rendimento de pessoas singulares e imposto sobre rendimento de pessoas coletivas, pelo dec.-lei n.º 394-B/84, de 26 de dezembro, que entrou em vigor a 1 de janeiro do ano imediato. Também foram abolidas algumas das tributações que estavam na tabela deste imposto de selo. O IRS, imposto sobre o rendimento de pessoas singulares, surgiu em 1988, na sequência da reforma fiscal provocada pela entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia. Foi criado pela lei n.º 106/88, de 17 de setembro, e teve código aprovado pelo dec.-lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, tendo substituído os seguintes impostos: profissional, de capitais, sobre a indústria agrícola, de mais-valias, complementar e de selo, contribuição industrial e predial. São elegíveis para este imposto os rendimentos da categoria I, provenientes de jogo, lotaria e apostas mútuas. As taxas deste imposto são progressivas, sendo o lançamento e liquidação realizados a partir de declarações feitas pelos contribuintes. A partir de 1989, com o dec.-lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, é cobrada uma taxa às empresas concessionárias de jogos de fortuna ou azar, como imposto especial pelo exercício da atividade do jogo, para o fundo de turismo. O Estado tem conservado, assim, o direito de exploração dos jogos de fortuna e azar, sendo tal exploração feita por concessão. Desta forma, em 1927, o Estado português decidiu regulamentar a incontornável atividade do jogo, através da publicação do dec. n.º 14.643, de 3 de dezembro, que autorizava a exploração de jogos de fortuna e azar em regime de concessão exclusiva (em sítios específicos denominados como zonas de jogo). Imediatamente, inicia-se o primeiro regime fiscal sobre a atividade de exploração dos jogos de fortuna e azar, com a tributação a incidir sobre os lucros diários auferidos. Neste contexto, surge, em 29 de maio de 1948, o dec. n.º 36.889, que altera a tributação sobre o jogo de azar, de forma a tributar apenas o lucro normal, presumido com base no capital de giro, ao invés do lucro real, apurado conforme a intensidade do jogo. Após 10 anos, sobreveio o dec. n.º 41.562, de 18 de março de 1958, no qual se retorna à diretriz da primeira legislação fiscal sobre a matéria, a tributação de capitais de giro, lucros e receitas brutas com taxas elevadas, por se considerar o jogo um setor de exceção. Pelo dec.-lei n.º 318/84, de 1 de outubro, foram transferidas para as regiões autónomas dos Açores e da Madeira as competências do Governo para a adjudicação da concessão da exploração de jogos de fortuna ou azar, com exceção das referentes a lotarias e concursos de prognósticos ou apostas mútuas. Posteriormente, a tributação sobre o jogo de azar é disciplinada pelo dec.-lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, cujo regime mantém o carácter de exceção.     Alberto Vieira (atualizado a 18.12.2017)

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