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acram - associação cultural e recreativa dos africanos na madeira

A Associação Cultural e Recreativa dos Africanos na Madeira (ACRAM), registada no ano 2001 com a designação oficial de ACRA por iniciativa de quatro imigrantes africanos residentes na Região Autónoma da Madeira (RAM), naturais da Guiné-Bissau e de Angola, é uma organização sem fins lucrativos que tem por objetivo: preservar e divulgar a cultura africana na RAM, e promover a integração dos imigrantes africanos na sociedade madeirense. Este objetivo encontra-se consagrado nos estatutos da Associação: “fomentar, defender a unidade e solidariedade entre membros da comunidade africana residentes na RAM. Promover os valores culturais africanos; contribuir para a integração dos membros da comunidade” (“Associação Cultural…”, JORAM, II, 32, 2005, 9). A ACRAM surgiu num período marcado por grandes obras públicas na Região e pelo desenvolvimento do sector da construção civil: finais do séc. XX e inícios do séc. XXI. Este fenómeno originou o aumento significativo da população imigrante, sobretudo indivíduos do Leste europeu, Brasil e continente africano. Os imigrantes africanos residentes na RAM são provenientes de diversos países, com destaque para o Senegal, a Guiné-Bissau, a Guiné-Conacri, Angola, Moçambique, Cabo-Verde, África do Sul, Egipto, Marrocos e a Tunísia. A organização é reconhecida pelo Governo Regional como sendo, segundo o secretário regional dos Recursos Humanos do Governo Regional da Madeira, Brazão de Castro, “um importante parceiro para a integração na Região dos cidadãos de África, particularmente dos países de língua e expressão portuguesa e tem fomentado de uma forma exemplar o diálogo intercultural” (“Associações Constituem…”, AIPA, 96). As relações institucionais da Associação com o Governo Regional remontam à data da sua criação. A ACRAM também tem estabelecido relações com outras instituições da Região, como sejam as escolas, as juntas de freguesia, os consulados, as câmaras municipais, focalizando sempre a consolidação de esforço dentro de uma perspetiva de proximidade, cidadania plena e responsabilidade social. O relacionamento com os governos dos países de origem é muito esporádico. Verifica-se através das embaixadas e dos consulados, ao nível da solicitação de apoios. A ACRAM privilegia a dimensão cultural nas suas relações com a comunidade e com as instituições, promovendo, em colaboração com o Governo Regional, encontros que incluem mostras gastronómicas, exposições de arte africana e espetáculos musicais, e que têm vindo a ganhar cada vez mais adesão dos madeirenses e de todas as comunidades residentes na Região. A Associação também tem participado na semana intercultural, promovida pelo Centro das Comunidades Madeirenses, na qual se celebram os dias dos povos africanos e das mulheres e crianças africanas, promovendo convívios e fortalecendo laços de solidariedade. Estas atividades visam sempre, por um lado, a promoção do diálogo intercultural e a sensibilização para a multiculturalidade, e, por outro lado, a divulgação da cultura africana, as suas musicalidades, os ritmos, a gastronomia, o artesanato, ou seja, “levar um pouco de África” (MANÉ, com. oral, 2015) à comunidade recetora, como afirmam os dirigentes da organização. Estes eventos também têm por objetivo promover o envolvimento de todos indivíduos da comunidade. A promoção dos direitos das minorias étnicas e das suas identidades culturais faz parte das prioridades de intervenção social da ACRAM. A Associação financia-se através de donativos, da angariação de fundos provenientes de convívios e de apoios financeiros específicos do Alto Comissariado para as Migrações, nomeadamente através do Programa de Apoio ao Associativismo Imigrante (PAAI), e ainda de projetos apoiados pelo Fundo Europeu para a Integração de Nacionais de Países Terceiros (FEINPT). A ACRAM conta ainda com a tradicional contribuição dos associados, que nos seus primeiros 15 anos de existência chegaram a cerca de 150, embora nem todos fossem residentes na Madeira. A ACRAM não teve, nesse período, nenhum tipo de apoio financeiro do Governo Regional da Madeira, exceto parcerias com o centro de emprego da Madeira, que disponibilizou técnicos do emprego através de programas de formação. Ao nível do apoio técnico, o Centro das Comunidades Madeirenses do Governo Regional fornece pareceres no que respeita à dinamização das atividades e aprovação dos projetos. Os associados da ACRAM caracterizam-se fundamentalmente por possuírem uma ligação ao continente africano, sejam descendentes de imigrantes, os próprios imigrantes, ou ainda portugueses que residiram provisoriamente em África por motivos familiares ou laborais. No início do séc. XXI, a ACRAM tem-se empenhado também no sentido de mitigar os efeitos perversos das situações de desemprego na comunidade que representa, pois está na sua génese, enquanto organização, a necessidade de fazer face aos problemas com que esta comunidade se defronta, nomeadamente a legalização destes imigrantes, o seu emprego e a sua habitação condigna. Este esforço insere-se no cumprimento do seu mandato estatutário, granjeando à Associação prestígio e reconhecimento por parte dos membros da comunidade africana, das autoridades madeirenses e, de uma forma geral, da comunidade da Ilha. Nos seus primeiros 15 anos de existência, a Associação desenvolveu ainda um leque variado de serviços de apoio a jovens e crianças com dificuldades cognitivas, atuando na prevenção, no serviço social, no desenvolvimento de atividades como a dança, o teatro, as oficinas de expressões, bem como na realização de torneios desportivos, na organização de eventos, na mediação de conflitos e no desenvolvimento de projetos inovadores na área da integração, como é o caso do espaço das hortas urbanas. A organização interveio também nas situações de doença e morte dos membros da comunidade, procurando acompanhar de perto estes momentos e dando apoio, sobretudo nos contactos com os familiares dos países de origem.   João Adriano Conduto Júnior (atualizado a 19.07.2016)

Madeira Global Sociedade e Comunicação Social

cereais

A cultura dos cereais nos espaços insulares está em relação direta com a importância que os mesmos assumem na dieta alimentar e com as condições oferecidas pelos espaços onde foram cultivados. Porque, na verdade, a definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e económicos derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das condições internas, oferecidas pelo meio onde se foram fixando os europeus. De acordo com as condições geoclimáticas de cada espaço, é possível definir a forma como evolui a mancha da ocupação humana e do aproveitamento agrícola das ilhas. Nos arquipélagos constituídos por maior número de ilhas, a articulação dos vetores da subsistência com os da economia de mercado foi mais harmoniosa e não causou grandes dificuldades, o que não acontecerá naqueles em que o número de ilhas é reduzido. Os Açores apresentam-se como a expressão mais perfeita da realidade, enquanto a Madeira se situa como o reverso da medalha. Mesmo assim, apresenta as ilhas do Porto Santo e Desertas com condições para culturas de sequeiro, como os cereais, mas sem nunca oferecer uma colheita capaz de suprir as carências do arquipélago. A ilha viverá nesta permanente dependência externa, a partir da década de setenta do século XV, o que provocará diversos problemas em termos de abastecimento, que serão uma permanente preocupação das autoridades municipais. A rotura nos abastecimentos e o espetro da fome são uma constante da História da ilha, que se agrava em momentos de conflitos mundiais. Os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o processo atlântico, não puseram de parte a tradição agrícola e os incentivos comerciais dos mercados de origem. Por isso, na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou do transplante material e humano de que os peninsulares foram os principais obreiros. O processo foi a primeira experiência de ajustamento das arroteias às diretrizes da nova economia de mercado. A aposta preferencial foi para uma agricultura capaz de suprir as faltas do velho continente, quer os cereais, quer o pastel e açúcar, mais do que o usufruto das novidades propiciadas pelo meio. A presença, nas ilhas, de um grupo de colonos, oriundos de uma área em que as componentes fundamentais da alimentação se baseavam nos cereais, definiu para eles uma função primordial na abertura das frentes de arroteamento. O começo tudo foi moldado à imagem e semelhança do rincão de origem e, onde isso se tornava difícil, era quase impossível recrutar e fixar gentes. Assim surgiram as searas, os vinhedos, as hortas e as fruteiras dominadas pela casa de palha e, mais tarde, pelas luxuosas vivendas senhoriais. Da Europa, vieram as culturas comuns e fundamentais à dieta alimentar, baseadas fundamentalmente nos cereais, como o trigo, a cevada e o centeio. Mas, entretanto, a partir do século dezassete, o Atlântico foi devassado por novas culturas dos espaços recém-conhecidos, como raízes e outras sementes, que passaram a fazer parte da dieta alimentar das populações: primeiro, o milho, depois, o inhame e a batata. Na Madeira, até à década de setenta do século quinze, a paisagem agrícola foi dominada pelas searas, decoradas de parreiras e canaviais. A cultura cerealífera dominava a economia madeirense, gerando grandes excedentes com que se abasteciam os portos do reino, as praças africanas e a costa da Guiné. Tudo isso foi resultado da elevada fertilidade do solo provocada pelas queimadas para abrir caminho às primeiras arroteias. Em meados do século XV, Cadamosto referia a colheita de três mil moios de cereal, que excediam, em mais de 65%, as necessidades da população madeirense. Destes, mil moios estavam destinados a encher o "saco de Guiné ", isto é, a abastecer as feitorias da costa africana. Mas a partir da década de sessenta, a dominância da cultura dos canaviais conduziu a uma paulatina quebra das searas, de modo que, a partir de 1466, a produção cerealífera passou a ser deficitária, não podendo assim assegurar os compromissos de abastecimento das praças e feitorias africanas. Desde então, a ilha necessitava de importar parte significativa do cereal que consumia. Em 1479, a colheita dava apenas para quatro meses, dependendo o seu abastecimento do restante cereal importado dos Açores e das Canárias. A cultura tinha lugar nos municípios da Calheta e Ponta de Sol e na ilha do Porto Santo. A coroa havia estabelecido, em 1508, que os Açores eram o celeiro do mundo atlântico, suprindo as carências da Madeira e substituindo-a no fornecimento às praças africanas e cidade de Lisboa. Na verdade, a crise cerealífera madeirense coincidiu com o incremento da mesma cultura em solo açoriano, tendo-se determinado, nomeadamente em S. Miguel, um travão ao avanço da cultura do pastel. A partir de finais do século XVI, foi evidente a afirmação do arquipélago açoriano como principal produtor de trigo no Atlântico. A economia cerealífera açoriana estava organizada em torno de dois portos importantes (Angra e Ponta Delgada) que tinham à sua volta um vasto hinterland, abrangendo as áreas agrícolas da ilha e das vizinhas. Assim, a ilha de Santa Maria estava colocada sob a alçada de S. Miguel e as restantes adjacentes ou dominadas pelo porto de Angra. Note-se que até mesmo o comércio de cereal das Flores e Corvo se fazia a partir de Angra, como sucedeu em 1602. O Europeu encontrou nas ilhas, por explorar, o meio adequado e capaz de suprir as dificuldades geradas com a degradação, cada vez maior, da terra continental, esgotados os recursos à adubagem do solo, o variado sistema de afolhamento e rotação de culturas. O solo, agora cultivado, produzia quantidades elevadas de cereal, sem precisar do pousio, pelo que uma área reduzida era capaz de produzir soma igual a uma vasta área na Europa. A cultura do cereal, nestas paragens, fazia-se no solo apropriado e numa faixa reduzida de terreno, ficando as restantes cobertas de arvoredo a aguardar um melhor dimensionamento da política das arroteias. As condições em que se estabeleceram as primeiras arroteias fizeram com que as sementes de cereal, lançadas sobre as cinzas das queimadas, frutificassem em abundância. Diz Jerónimo Dias Leite que de um alqueire semeado se colhiam sessenta, enquanto Diogo Gomes refere "que uma medida dava cincoenta e mais". Cadamosto corrobora o primeiro mas anota que esta relação foi baixando devido à deterioração do solo. Ainda, segundo ele, a ilha produzia 3000 moios de trigo de que só tinha necessidade de um quarto. O demais era exportado para o reino, tal como o afirma Diogo Gomes: "E tinham ali tanto trigo que os navios de Portugal, que por todos os anos ali iam, quase por nada o compravam". Em data que desconhecemos, estabeleceu o infante D. Henrique - ou o rei - a obrigatoriedade de envio de mil moios para a Guiné, o que era considerado, na década de sessenta, um vexame para os funchalenses, que prontamente reclamaram ao novo senhor da ilha, no que não tiveram grande acolhimento por ser "trato de el-Rei". A partir de finais do século XV, a Madeira passou da condição de celeiro abastecedor do reino a espaço dependente doutros celeiros, nos Açores e Canárias. A ilha nunca se livrou desta situação de dependência cerealífera, sendo uma constante que pesava nas políticas de abastecimento do arquipélago. A par disso, os cereais assumiram, desde cedo, um papel destacado na dieta alimentar dos madeirenses, mantendo-se até à atualidade. Em 1975, a Madeira consumia anualmente cerca de 5 mil toneladas de cereal e a produção regional chegava apenas para suprir a população por apenas 15 dias. Apenas a carência ou disponibilidade de um ou outro cereal motivou a sua maior valoração. Entretanto, a partir de finais do século XIX, a maior disponibilidade e o preço do milho fizeram com que este cereal assumisse uma posição dominante na dieta alimentar.  Mesmo assim, o trigo continuará a deter uma importância destacada na alimentação dos madeirenses. Assim, em meados do século XX, a capitação média do consumo de trigo era de 74 quilos, sendo o milho de 55 kgs. Desta forma, a Madeira consumia cerca de 40.000 toneladas de importação, quando um século antes era de 10.500t, o que significava que a ilha apenas dispunha na produção regional de 11% do trigo e 6,4% do milho. Não existem dados que permitam acompanhar o percurso da produção de cereais no arquipélago. Os dados disponíveis são avulsos e maioritariamente para os séculos XIX e XX. Para a segunda metade do século XIX, temos informação sobre a produção de cevada, centeio, milho e trigo. O trigo assume uma posição maioritária e destacada na produção, seguido da cevada, que perde essa posição para o milho, a partir de 1882. Atente-se a que o aumento da produção de milho é acompanhada pela quebra da cevada, situação que não se reflete na do trigo, o que poderá querer dizer que o incremento da cultura do milho se fez-se em detrimento da cevada. O processo produtivo dos cereais ocupava momentos significativos da faina agrícola do campo, com reflexos evidentes no quotidiano. O momento mais celebrado era o da ceifa, com a colheita do cereal. As eiras proliferavam em todo o espaço de cultivo e tornavam-se no centro da animação na altura da ceifa. A toponímia imortalizou a sua presença na paisagem madeirense. Temos assim, por exemplo, na Fajã da Ovelha: a Cova da Eirinha, Eira do Curral de Pedro Nunes, do Curral de Pedro Nunes, do Massapez, Erinha, Eirinhas, Granel, Joeiras, Lombo da Eira; na Camacha; Eira de Fora, Eira de dentro, Campanário: Eira das Moças, Eira do Mateus; Canhas: Eiras; Prazeres: Eiras, Chã das Eiras; Curral das Freiras: Eira do Serrado, Ribeira da Janela: Eira da Achada, Eira do Pico; Serra de Água: Eira da Moura, Ribeira Brava: Eira do Mourão,  Santa Cruz: Eira Nova; Porto do Moniz: Eira Velha; Caniço: Eiras; Estreito da Calheta: Eira Velha; Porto da Cruz: Eira do Touco; Deserta Grande: Eirinha; Quinta Grande: Eirinha; Monte: Eira do Lombo. Temos ainda na toponímia apenas a referência à cevada com a Cova da Cevada nos Prazeres e no Jardim da Serra. À saida da eira ou do porto, para o cereal importado, colocava-se o problema do armazenamento do produto. Os particulares serviam-se de vários meios para a reserva do cereal de semente e do que iriam necessitar para o seu consumo ao longo do ano. As caixas/arcas de castanho, ou tulhas, servindo muitas vezes de cama, atuam nesse sentido, mas a necessidade de buscar um melhor resguardo face ao olhar alheio, de piratas e corsários, levou-nos a fazer covas especiais para a sua guarda, no chão da casa ou noutros espaços. No Porto Santo, eram conhecidas como matamorras, sendo construídas com pedra e cobertas por uma lage de basalto, podendo guardar até 7 moios de cereal. Estas eram também conhecidas como granéis, sendo conhecidos, no Funchal, diversos gráneis onde se guardavam os cereais para venda. Na chamada casa de Colombo, no Funchal, foi encontrado um, conhecido como granel do poço. Atente-se a que a rua do Sabão sempre foi considerada a artéria do grande comércio do cereal no Funchal e que os mercadores tinham aí armazens para a sua guarda. Em 1930, sabemos que eram 16 os comerciantes dedicados ao comércio do cereal, destacando-se, pela sua importância, a Companhia Insular de Moinhos, Antonio Giorgi & Co, Figueira Irmãos & Co, Luís Gomes da Conceição, Pereira e Figueira &Co. Já em 1939, temos notícia de 18 negociantes de cereais na cidade do Funchal: António Augusto Coelho, Aires Gonçalves de Freitas, Francisco Gonçalves dos Reis, Francisco de Sousa, Jacinto Gonçalves de Freitas, João Gonçalves Câmara, João Rodrigues Deniz, João Soares Araújo de Sousa, João de Sousa Júnior, José de Sousa, Luiz Gonçalves de Freitas, Manuel António Nunes. Um problema cada vez mais premente, do qual dependiam as políticas de abastecimento de cereais ao arquipélago, era o seu armazenamento. A Madeira não dispunha de silos e, desde os anos sessenta, se insiste na necessidade da sua construção. As dificuldades de abastecimento do período da guerra levaram o Governo a estabelecer os chamados celeiros municipais, como forma de controlo e distribuição do cereal produzido. Em 1918, o Governo decidiu criá-los pela portaria 1345 de 20 de abril e regulamentado pelo decreto 4637 de 3 de julho. A intenção era reunir neste espaço, sob a administração do tesoureiro da Fazenda Pública,  todo o cereal produzido no concelho, estando assim todos os agricultores obrigados a declarar o cereal produzido, sob pena de multa e confisco. Por lei 891 de 22 de setembro de 1919, procedeu-se à sua liquidação, criando-se comissões para o efeito. Sabemos, entretanto que, em 1576, por iniciativa de D. Sebastião, foram criados os Celeiros Comuns, mas não temos qualquer informação que aponte no sentido do seu funcionamento na Madeira. Apenas temos notícia na imprensa da sua criação, em 1918. Neste quadro de preocupações, tivemos a criação da Junta de Exportação dos Cereais  pelo Decreto-Lei n.º 28899, de 5 de agosto de 1938, regulamentado pela Portaria n.º 9251, de 24 de junho de 1959. A partir de 1958, esta Junta surgiu com delegação no Funchal, passando a coordenar todo o processo de abastecimento e fixação de preços do grão e farinha. Foi responsável local, Ramon Honorato Rodrigues que, em 1962, no momento de extinção, publicou uma memória sobre os serviços prestados pela Junta que presidira pela qual ficamos a saber do seu papel no assegurar do abastecimento do cereal regular dos madeirenses. A sua ação começa com o chamado Grémio do Milho Colonial Português, em 1934, que teve como delegado, na ilha, a Octávio César Craveiro. Este organismo depois deu lugar, em 1938, a esta Junta. A ideia de criação de silos no Funchal aparece em 1959, no plano do porto. A estiva dos cereais no porto do Funchal era cara e demorada. Em 1960, a Junta Geral manifesta preocupação pelo abastecimento de  cereais e a necessidade da construção dos silos, numa época em que a Madeira importava 20.000 toneladas de trigo e 15.000 t. de milho. A par disso, no plano de Reorganização dos Serviços de Coordenação Económica do distrito do Funchal, surgiu a secção de “cereais, farinha e pão”. Em 1938, com a criação da Junta dos cereais esta continua a ser uma reivindicação, cuja necessidade mais se faz sentir nos anos da Guerra, sendo considerada a sua ausência um fator desfavorável ao normal abastecimento de cereal eao aumento dos custos da estiva no porto. Depois, em 1963, o deputado Agostinho Cardoso reclama desta ausência e dos problemas que colocava ao abastecimento da cidade. No período post 25 de Abril de 1974, esta necessidade torna-se cada vez mais evidente. Deste modo, em março de 1975, deslocou-se ao Funchal o Secretário de Estado dos Transportes e Comunicações e o Sub-Secretário de Estado do Ambiente Social, com técnicos das referidas secretarias e da Direcção Geral de Portos e Instituto Nacional dos Cereais, no sentido de avaliarem os principais problemas decorrentes da instalação dos silos de cereais no Porto do Funchal. Daqui resultou a decisão da sua instalação nos antigos depósitos e instalações da firma Blandy. A proposta de criação dos silos foi aprovada em 1977, sendo inaugurados em 26 de julho de 1987, mantendo-se em atividade até 2006, altura em que, com o plano de requalificação e transformação, foram demolidos e transferidos para o porto e zona franca do Caniçal, surgindo a Silomad - Silos da Madeira S.A. (Zona Franca da Madeira). Neste contexto, releva-se o papel da Companhia Insular de Moinhos, criada em 1929 e que, em 1991, entrou em processo de transformação, com a transferência das instalações para a Zona Franca do Caniçal.  Em 1996, tivemos a construção de um parque de silos portuários de cereais para armazenagem de cereais. Ao mesmo tempo, esta empresa deu início a um processo de instalação de silos nas padarias, permitindo o transporte de farinhas a granel. A importância dos cereais na dieta alimentar dos madeirenses desde a ocupação da ilha conduziu à valorização dos meios de transformação em farinha. No arquipélago, assinalam-se quatro processos distintos: os moinhos de mão, atafonas, azenhas e moinhos de vento. Até 1821, os moinhos continuaram a ser um privilégio exclusivo dos capitães do donatário. Resquício disso é o Largo dos Moinhos, no Funchal, onde o capitão detinha um conjunto de azenhas que se serviam da água da Ribeira de Santa Luzia. O último moinho foi destruído em 1910 e hoje só resta memória na toponímia do local. De acordo com as cartas de doação, os moinhos ficavam em poder dos capitães que cobravam a maquia, isto é um alqueire em doze, sobre todos os que aí moessem cereais. Recorde-se que, desde o início do povoamento, são insistentes as queixas dos moradores pelo mau funcionamento destas infra-estruturas. Em 1461, a falta e má qualidade do serviço levou o Infante D. Fernando a recomendar aos capitães maior cuidado neste serviço. A situação deverá ter perdurado até 1821, altura em que se abriu à iniciativa particular a construção de novos moinhos. Em 1863, temos, em toda a ilha, 369 moinhos, sendo 79 no Funchal, sendo 313, em 1912. As primeiras fábricas industriais para a moenda do cereal aparecem em 1890, sendo neste ano duas fábricas, a que se junta outra em 1900. A par das azenhas, é de notar a presença das atafonas e dos moinhos de vento, na ilha do Porto Santo por não dispor de cursos de água. As atafonas também existiram na Madeira, referindo Gaspar Frutuoso que o capitão tinha uma dentro da Fortaleza de S. Lourenço. Na primeira metade do século XVI, a coroa deu autorização a dois portosantenses para construírem atafonas no Porto Santo: João Henrique (1501) e Afonso Garro (1545). O segundo apresentava um projeto de um complexo de moagem servido de quatro moinhos que tanto podiam ser movidos por animais ou água. As atafonas perduraram até ao século XX, sendo ainda visíveis, nos anos cinquenta, duas, na Serra de Fora e no Campo de Cima. Mas foi dos moinhos de vento que ficou o registo até aos nossos dias. Em 1791, surgiu o projeto de uma unidade municipal que só foi concretizada seis anos depois e que teve dificuldades em ganhar a confiança dos habitantes da ilha. Em 1827, eram bem visíveis do mar os dois únicos moinhos de vento e, quase cem anos depois, em 1927, havia 29 moinhos ativos em toda a ilha, cifrando-se, na década de cinquenta, em 23, com as velas desfraldadas. Em 1955, Ramon Rodrigues refere a existência de 350 azenhas e as fábricas dos Lavradores, Pelourinho, Insular de Moinhos, a que se juntava outra em Ponta de Sol, a firma de Marques Teixeira & Cº lda, dedicada à moenda do milho. No conjunto, moiam 22.000 t. de trigo, cevada e centeio, e 14.500 t de milho, sendo destas 13.500t para a panificação e 4.200 para massas. Recorde-se que, neste momento, funcionavam 209 padarias e 20 fábricas de massa. A presença destas estruturas industriais, movidas pela força motriz da água, ficaram também registada na toponímia tradicional, através da designação de sitios e lugares como “azenha” ou “moinho”. Temos assim na Calheta: Azenha; Caniço: Azenha, Moinhos, Machico: Moinho da Serra. No século XIX, surgiram algumas unidades industriais motorizadas e depois, com o advento e a expansão da energia elétrica, a partir dos anos quarenta, surgiu a  eletrificação de muitas unidades. Em princípios do século XX, era  evidente uma tendência para a centralização da indústria de moagem nas unidades que souberam inovar. Foi o caso da Companhia Insular de Moinhos no Funchal, alvo da fúria dos populares, em 1931, contra o decreto que regulava o comércio e transformação dos cereais.  Assinale-se, ainda, a firma da viúva de Romano Gomes & Filhos Lda dedicada à moagem do milho conjuntamente com a de Marques Teixeira & Co Lda na Ponta de Sol.   Alberto Vieira (atualizado a 17.08.2016)

História Económica e Social

darwin, charles robert

Charles Darwin nasceu a 12 de fevereiro de 1809 em Shrewsbury no condado de Shropshire a uns 35 km de Birmingham como quinto filho de Robert Darwin e Susannah Wedgwood (Desmond & Moore, 1992). Ambos os pais advinham de famílias com tradições académicas e comerciantes. O seu pai era um médico abastado, o seu avô paterno Erasmus Darwin foi filósofo e abolicionista, e o avô materno Josiah Wedgwood industrial e também abolicionista. A partir dos 8 anos de idade Darwin atendeu a escola de Shrewsbury (Darwin & Barlow, 1958; Desmond & Moore, 1992) como aluno interno. Em 1825 com 16 anos ingressou na Escola Médica da Universidade de Edimburgo embora não se tenha aplicado muito nas matérias centrais, preferindo a história natural e o museu da Universidade. Isso motivou o pai a mandá-lo para a Universidade Cambridge ao “Christ’s College” em 1827 (Van Wyhe, 2014, p. 20) para prosseguir uma carreira de religioso anglicano. Darwin chegou a Cambridge em janeiro de 1828 aos 18 anos de idade (Van Wyhe, 2014, p. 27). Mas mesmo aqui dedicou grande parte à história natural e caça, embora tenha obtido boas notas nos exames finais. Incitado pelo seu primo mais velho William Darwin Fox (1813-1881) começou a colecionar sistematicamente escaravelhos (Van Wyhe, 2014, p. 42). Foi em Cambridge que Darwin conheceu o então já distinguido mas jovem professor revd. John Stevens Henslow (1796-1861) padre, botânico e geólogo (Barlow, 1967; Walters & Stow, 2001). No seu segundo ano universitário Darwin começou por ser um visitante regular dos serões científicos em casa de Henslow (Van Wyhe, 2014, p. 76) tornando-se seu seguidor e depois amigo. De 1829 a 1831 assistiu à cadeira de botânica por ele lecionada "Botanical Lectures” (Henslow, 1829, p. 77; Van Wyhe, 2014) e ajudou na preparação das aulas práticas e na recolha e herborização de plantas britânicas sendo considerado favorito de Henslow (Van Wyhe, 2014, p. 89). Henslow prestava atenção à variação intraespecífica das plantas, ao contrário do costume praticado na época, identificando cada espécimen com data, local e nome do recolector, prática que influenciou os seus alunos, entre eles Darwin (Kohn et al. 2005). Em janeiro de 1831 Darwin completou o seu Bachelor of Arts (BA) como décimo de 178 candidatos (Hodge & Radick, 2009, p. 27; Van Wyhe, 2014, p. 93). Para obter o título faltava-lhe atingir o número de trimestres residentes obrigatórios, tempo que, sem a pressão das aulas, teve a oportunidade de se aproximar mais ainda de Henslow, jantando com ele regularmente e acompanhando-o em saídas de campo (Van Wyhe, 2014, p. 96). Foi nesta fase que, inspirado pelo relato de viagem de Humboldt (Von Humboldt, 1865), começou a planear com Henslow uma excursão a Tenerife nas ilhas Canárias com a finalidade de ver um ambiente mais tropical (Hodge & Radick, 2009, p. 27; Van Wyhe, 2014, p. 96). Muito embora tenha mesmo iniciado aulas de espanhol a excursão acabou por nunca se realizar. Em meados de agosto de 1831, no regresso de uma excursão geológica ao norte do País de Gales com o famoso professor geólogo Adam Sedgwick, Darwin recebeu uma carta de Henslow oferecendo-lhe o lugar de naturalista a bordo da brigue HMS Beagle numa viagem de levantamento hidrográfico à volta do mundo. De fato Darwin não foi a primeira escolha para essa posição. O convite inicial tinha sido formulado pelo comandante da expedição cap. Robert FitzRoy (1805-1865) ao seu superior hierárquico na marinha Francis Beaufort (1774-1857) o qual o enviou a Cambridge ao professor de matemática e astronomia George Peacock (1791-1858) a fim deste sugerir uma pessoa indicada com experiência nas ciências naturais. Peacock pensou primeiro no próprio Henslow o qual não pôde aceitar, sugerindo o entomólogo pastor Leonard Jenyns (1800-1893) e depois deste também não aceitar, sugerindo Darwin (Van Wyhe, 2013; Van Wyhe, 2014, p. 104). Depois de convencer o seu pai, Darwin aceitou ser o naturalista oficial da expedição, partilhando a cabina com o comandante (Van Wyhe, 2013). A única condição que Darwin impôs para aceitar a nomeação foi a de que possa desistir da expedição a qualquer momento e de que custearia a sua cota parte da alimentação (Fitzroy, 1839, v. 1, p. 19; Van Wyhe, 2013). Darwin manteve assim a sua independência da hierarquia naval, não recebendo salário e custeando também o material de trabalho e envio de espécimes para o Reino Unido. Várias cartas de Darwin (Burkhardt & Et Al., 1985-2014, cartas [117, 118, 120, 121,122, 147, 158]) documentam a intenção de que a primeira paragem programada do Beagle com duração de uma semana seria no Funchal na Madeira. No seu relato da viagem FitzRoy (Fitzroy, 1839, p. 22) enumera as ordens de itinerário que diziam explicitamente que o navio deve aportar “(…) sucessivamente na Madeira ou Tenerife; Cabo Verde; Fernão de Noronha; Estação na América do Sul (…)”. A justificação para que isso não tenha acontecido é também dada por FitzRoy (Fitzroy, 1839, pp. 46-47). Os ventos mudaram subitamente para sudeste acompanhados de vagas grandes e dificultando a passagem do Beagle a sul do Porto Santo e a sua entrada na travessa entre a Madeira e as Desertas. Tinham avistado o Porto Santo no dia 04 de janeiro de 1832, e passaram a poucas léguas da Madeira (1 légua inglesa corresponde a cerca de 3 milhas náuticas). O comandante optou por tomar rumo a Tenerife tendo avistado as Selvagens na manhã seguinte e chegando a Tenerife nesse mesmo dia. Numa carta datada de 6 de setembro de 1831 à sua irmã Susan Elizabeth (1803-1866) (Burkhardt & Et Al., 1985-2014, carta [119]), Darwin reforça a ideia de que ele está livre de abandonar a expedição quando bem entender, mas que se desengane a irmã se pensar que ele irá regressar já a partir da Madeira, pois desde que lhe subsista um pedaço de estômago, ele não irá desistir. De fato Darwin passou muito tempo enjoado a bordo do Beagle, não sendo claro se chegou a ver alguma ilha do Arquipélago da Madeira. Mas mesmo em Tenerife não puderam desembarcar devido a uma quarentena de 12 dias imposta aos navios oriundos do Reino Unido onde havia uma epidemia de cólera (Fitzroy, 1839, p. 48). Nem ancoraram e zarparam imediatamente em direção a Cabo Verde, pisando terra firme pela primeira vez em Santiago/Cabo Verde no Porto da Praia a 16 de janeiro. A restante viagem do Beagle está descrita em muitas obras sendo os relatos originais os de Darwin e FitzRoy (Darwin, 1839; Fitzroy, 1839, v.2). A circunavegação levou o navio a Fernando de Noronha, Baia, Abrolhos, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Montevideo, Ilhas Malvinas, Cabo Horn e Estreito de Magalhães, costa pacífica da América do Sul, Galápagos e outras ilhas no Pacífico, Nova Zelândia e Austrália, Ilhas Cocos e Maurícias e regressando pelo Cabo da Boa Esperança, as ilhas de Santa Helena e Ascensão, e de novo Brasil, Cabo Verde e Açores. Chegaram aos Açores a Angra do Heroísmo na ilha Terceira, permanecendo de 19 a 25 de setembro, pararam em S. Miguel para a recolha de correspondência e seguiram em ruma à Inglaterra (Darwin, 1839, pp. 594-598). A 2 de outubro de 1836 o Beagle ancorou em Falmouth após uma ausência de 4 anos e nove meses, chegando pouco depois a Plymouth e Londres (Fitzroy, 1839, p. 638). Darwin desembarcou em Falmouth (Darwin, 1839, p. 598). Regressou a Cambridge e depois Londres para trabalhar em colaboração com outros naturalistas na publicação do vasto espólio que recolheu durante a viagem. A 29 de janeiro de 1839 Darwin casou com a sua prima Emma Wedgwood (Darwin & Barlow, 1958, p. 82; Van Wyhe, 2014, p. 111) e em 1842 tomou residência no meio rural do sudeste de Londres em Down House (Darwin & Barlow, 1958, p. 114). Nunca mais viajou ao estrangeiro. Ao todo Darwin escreveu 16 livros sem contar com reedições (Freeman, 1977, p. 9). A primeira obra em que Darwin se empenhou depois da viagem do Beagle foi a Zoologia da Viagem do Beagle publicada em vários volumes entre 1838 e 1843 (Freeman, 1977, p. 26). Em paralelo trabalhou na narrativa da viagem publicada em 1839 (Darwin, 1839), revista posteriormente (Darwin & Barlow, 1958, p. 116) e publicada como Diário das Investigações (Darwin, 1845). Nesta obra, de índole mais genérica e popular, a Madeira praticamente não é mencionada. Este é o livro mais lido de Darwin e o qual estabeleceu a reputação internacional de Galápagos como arquipélago de Darwin. Darwin depois concentrou-se na geologia com obras ainda hoje importantes sobre a formação dos recifes de corais (Darwin, 1842) ou as ilhas vulcânicas (Darwin, 1844). Nesta última obra a Madeira não é também mencionada, pese o fato de Darwin ter lido e se inspirado nos trabalhos de Charles Lyell (Lyell, 1840) o qual esteve na Madeira e escreveu sobre a sua geologia (Lyell, 1854). Outras obras emblemáticas de Darwin não relacionadas diretamente com evolução são os seus trabalhos sobre cirrípedes (Darwin, 1851; Darwin, 1854), trabalhos sobre botânica como o sobre a fertilização de orquídeas (Darwin, 1862), e uma biografia do seu avô Erasmus (Krause & Darwin, 1879). No entanto, são as obras relacionadas com a teoria da evolução que ficaram mais conhecidas. O livro sobre a variação sobre domesticação (Darwin, 1868) é já um prenúncio da sua teoria. Segundo as palavras de Darwin a viagem do Beagle foi o mais importante evento da sua vida e determinante para toda a sua carreira (Darwin & Barlow, 1958, p. 76). As ilhas Galápagos forneceram das primeiras ideias para a teoria que viria a publicar. O vice-governador da Ilhas Nicholas Lawson tinha-o informado de que as tartarugas diferem de ilha para ilha, e de que ele seria capaz de identificar a ilha da qual cada uma é originária (Darwin, 1845, p. 394). Devido a isso Darwin prestou mais atenção à recolha de espécimes, admiravelmente não aos famosos tentilhões-de-Darwin, mas sim aos mockingbirds, os sabiás de Galápagos (Sulloway, 1982). A ideia de que as espécies não são estáveis tinha emergido (Darwin, 1963, p. 262). Cada ilha do arquipélago alberga um conjunto diferente de espécies. A obra mais importante de Darwin A origem das espécies (Darwin, 1859; Darwin, 2009) foi publicada em 1859, um ano depois da publicação conjunta com Alfred Russel Wallace de um esboço da teoria (Darwin, 1858; Darwin & Wallace, 1858; Wallace, 1858). Darwin tinha passado cerca de 20 anos a recolher sistematicamente informação para fundamentar a sua teoria. É esta recolha sistemática de informação que coloca a Madeira numa posição de vanguarda como fonte de suporte para a teoria. Em dois ensaios inéditos escritos muito antes da publicação da A origem das Espécies (Darwin, 1909 [1842-44]), Darwin esboçou a sua teoria da Seleção Natural pela primeira vez. Aí Darwin somente menciona a Madeira duas vezes: uma para suportar a afirmação de que espécies usualmente migradoras como a galinhola o deixam de ser quando vivem em ilhas oceânicas (Darwin 1909[1842-44], p.120), e a outra para afirmar a dificuldade que mamíferos têm em colonizar ilhas distantes muito embora essas ilhas proporcionem ambientes favoráveis ao seu desenvolvimento como o provam os coelhos introduzidos na Madeira (Darwin, 1909[1842-44], p. 172). A primeira edição da Origem (Darwin, 1859) menciona Galápagos 17 vezes mas a Madeira 20 vezes, os Açores 4, e as Canárias também 4 vezes. A 6 edição que representa o texto final da obra (Darwin, 1876) menciona Galápagos 22 vezes mas a Madeira 32 vezes, os Açores 8, e as Canárias 6 vezes. Esta simples métrica demonstra bem a importância que a natureza da Madeira deteve para aquilo que é a mais importante teoria da biologia com repercussões enormes mundiais, e especialmente sobre a nossa visão da natureza do ser humano. Porque é que a Madeira se destaca como fonte de exemplos insulares? A razão reside em Cambridge e no núcleo de estudantes e académicos em torno do prof. revd. John Stevens Henslow. Henslow. Henslow, um brilhante aluno, educou-se no colégio de St.John em Cambridge e graduou-se em 1818. Em 1822, com apenas 26 anos de idade, foi nomeado professor de mineralogia e em 1822 de botânica, resignando da cátedra de mineralogia 1827 e mantendo a de botânica. Um dos seus alunos foi Richard Thomas Lowe (1802-1874) (Nash, 1990), o qual se tinha matriculado em Cambridge em 1821 graduando-se em 1825. Lowe visitou a Madeira pela primeira vez em 1826 por pouco tempo (Nash, 1990, p. 6), e a segunda vez de 1828-1830 (Nash, 1990, pp. 12, 23). Tomou residência permanente na Madeira, com interrupções entre 1831-1852 sendo capelão anglicano no Funchal entre 1832-1852, mas regressando posteriormente várias vezes. Lowe foi provavelmente aquele naturalista que mais contribui para o conhecimento da flora e fauna da Madeira, tanto marinha como terrestre, tendo publicado inúmeros tratados e estudos sobre a mesma, todos publicados na Inglaterra. Enquanto estudante em Cambridge, ao que parece, não chegou a conhecer Darwin pessoalmente. O segundo aluno de Henslow foi Thomas Vernon Wollaston (Machado Carrillo, 2006) o qual se matriculou em 1841 e se graduou 1845, obtendo ainda o MA em 1845. Foi amigo pessoal de Darwin e de Lowe. Também ele trabalhou na Madeira tendo sido introduzido à ilha por Lowe. Foi um dos grandes entomólogos e malacologistas e os estudos mais detalhados da época sobre a fauna dos coleópteros e dos caracóis terrestres foram produzidos por ele (Wollaston, 1854; Wollaston, 1878). As obras destes dois destacados naturalistas representavam, na altura, o que de melhor se fazia sobre fauna e flora de ilhas, e Wollaston, viajando entre Cambridge e Funchal, levava notícias atualizadas à Inglaterra (Nash, 1990, p. 111). Darwin tinha pois conhecimento detalhado dos estudos sobre fauna e flora da Madeira e não é de admirar que tenha usado esse conhecimento para fundamentar a sua Origem da Espécies. Um levantamento da correspondência de Darwin em que os intervenientes abarcam temas relacionados com a Madeira mostra que o pico das referências se situa entre os anos de 1855-1862 (Dellinger, 2009a). Os exemplos da Madeira citados por Darwin (Dellinger, 2009b) foram variados. Em primeiro lugar realçou a semelhança entre a fauna de insetos da Madeira e da Europa continental (Darwin, 1876, p. 38). Em segundo lugar argumentou que variedades podem sobreviver por muito tempo, usando como exemplo os caracóis subfossilizados das Dunas da Piedade e do Porto Santo (Darwin, 1876, p. 42). Citou também Oswald Heer e a similitude da laurissilva da Madeira com a vegetação da Europa Terciária (Heer, 1857; Darwin, 1876, p. 83). O exemplo de suporte à seleção natural, a parte central da sua teoria da evolução, vem de novo do mundo dos insetos em que cita Wollaston para mostrar que, em ilhas, as formas aladas são em número inferior do que em faunas continentais, e que, quanto mais pequena a área da ilha, a probabilidade de sobrevivência de formas aladas se reduz por serem transportados pelo vento para o mar onde acabam por morrer (Darwin, 1876, p. 109). Darwin argumenta também que o isolamento aumenta a probabilidade das espécies diferirem, dando como exemplo a Madeira em que os escaravelhos e caracóis terrestres diferem bastantes das continentais, enquanto que os caracóis marinhos e as aves do mesmo arquipélago o não fazem (Darwin, 1876, pp. 291, 349). A razão desta diferença é que o meio marinho ou a capacidade de voar grandes distâncias reduzem o isolamento relativo. Para sublinhar isso cita o enxame de gafanhotos que assolou a Madeira em 1844 (Darwin, 1876, p. 327), ou o número de aves terrestres ocasionais avistadas na Madeira (Darwin, 1876, p. 348), justificando que devem ser os ventos que os transportam. Darwin realça também o fato de que ilhas oceânicas albergam menos espécies do que áreas continentais, mas que têm uma maior taxa de endemismos. É aqui que Darwin faz a única comparação direta entre a Madeira e Galápagos, equiparando a proporção de espécies endémicas de caracóis terrestres na Madeira com as aves terrestes em Galápagos (Darwin, 1876, p. 348). No entanto existem diferenças taxonómicas: anfíbios não são encontrados normalmente em ilhas oceânicas muito embora, quando são introduzidos, consigam sobreviver bem nelas com se observa na Madeira (Darwin, 1876, p. 350). O último exemplo da Madeira serve para reforçar o isolamento relativo das espécies de caracóis terrestres do Porto Santo em relação à Madeira. Muito embora grandes quantidades de pedras de cal são transportadas do Porto Santo à Madeira, e muito embora caracóis vivam debaixo de pedras e nas suas fissuras, as faunas de caracóis existentes nas das duas ilhas são distintas (Darwin, 1876, p. 357). A lógica da argumentação na Origem da Espécies, que Darwin chamou de “um longo argumento”, em especial quanto à importância dos exemplos insulares, está bem delineada e analisada em Gould (Gould, 2002, p. 59). Das obras subsequentes de Darwin, a mais destacada foi aquela que, de forma explícita, alargou a sua teoria ao ser humano (Darwin, 1871). Darwin faleceu na sua casa em Down House, condado de Kent, a 26 de abril de 1882, estando enterrado em Londres na Abadia de Westminster (Van Wyhe 2014, p. 118). Embora revolucionária para a época, a teoria de Darwin foi relativamente bem aceite a nível mundial nas duas décadas subsequentes à sua publicação. Em Portugal “(…) a teoria Darwiniana conheceu (…) dificuldades de implantação” (Pereira, 2001, p. 66) recentemente superada com o bicentenário do seu nascimento. Quanto à Madeira ainda falta um estudo historiográfico do impacto de Darwin que inclua toda a sociedade madeirense e não somente os naturalistas estrangeiros radicados na Madeira. No entanto o papel da Madeira como fonte de exemplos para a teoria da evolução está bem estabelecido.   Thomas Dellinger (atualizado a 25.07.2016)

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