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candomblé e umbanda

O candomblé é a religião afro-brasileira dos escravos africanos levados para o Brasil, que aí mantiveram algumas das tradições culturais das religiões de várias partes de África, nomeadamente o culto dos orixas (termo iorubano que significa “ser sobre-humano” ou “Deus”) – manifestações do grande deus Olorum (criador de tudo) que representam as forças da natureza –, que constitui uma forma de xamanismo. Trata-se de uma religião com uma base filosófica, mistérios, crenças e rituais específicos: tem uma teologia própria (estudo dos orixás, experiência da divindade e conhecimento da formação do seu mundo religioso), uma liturgia (todos os ritos, públicos e secretos, existentes na religião para os iniciados, como cantos e danças) e dogmas que sustentam a doutrina desta tradição religiosa. A religião dos orixás – entendidos como entidades espirituais ancestrais dos reis e das rainhas que existiram nas terras africanas e foram levados como escravos para o Brasil – formou-se na Baía no séc. XIX, sendo parte das tradições do povo ioruba (nome do idioma) ou nagô, também chamado nação Ketu. A maioria das religiões de origem africana que se firmaram no Brasil sofreu grande influência deste povo do antigo reino africano, onde surgiriam a República Popular do Benim e a Nigéria. A nação Ketu é considerada a verdadeira raiz africana, enquanto a nação Angola é vista como um braço do Ketu que tornou os seus preceitos ou obrigações mais brandos, mantendo os mesmos fundamentos: resguardo e respeito. O Ketu tornou-se uma espécie de modelo para o conjunto das religiões dos orixás, pelo que as outras nações (assim chamadas por corresponderem a povos) acabaram por incorporar algumas das suas práticas ou rituais. Foram principalmente os candomblés baianos das nações Ketu (ioruba) e Angola (banto) que mais se propagaram no Brasil. A nação Banto ou Angola, dos povos do Congo e Angola, tinha como idioma o quimbundo, sendo facilmente reconhecida pela forma diferente de dançar, cantar e tocar atabaques. Esta nação incorporou os orixás iorubanos, utilizando nomes dos inkices ou divindades bantas. Existem ainda outras variantes de cultos do candomblé no Brasil, mas todas têm o mesmo propósito nas suas crenças e liturgia: o equilíbrio entre os homens e as divindades como ligação do mundo material com o sagrado. Por isso, praticamente todas as variantes seguem as mesmas determinações: iniciação, cânticos (na linguagem original), toque de atabaques, oferendas e sacrifícios. Tradicionalmente, esta religião afro-brasileira vive do conhecimento dos orixás, que determinam as características e o destino pessoal dos crentes. O santo de proteção ou orixá da cabeça (ori) é conhecido através do jogo de búzios feito pela mãe (iaolorixá) ou pelo pai (babalorixá) de santo. Estes comandam as sessões ritualísticas com a ajuda dos seus filhos de santo, iniciados ou iaôs, que têm funções específicas no terreiro, onde se realizam os cultos e os religiosos recebem ou incorporam os santos e/ou orixás que “baixam”. O barracão é a casa central de um terreiro de candomblé, onde acontecem as festividades, os rituais religiosos e as incorporações dos orixás nas pessoas iniciadas, ao som dos tambores. Um iniciado é uma pessoa que é escolhida para ser filho ou filha de santo, passando por anos de aprendizagem sobre a religião, as músicas, os cânticos, as folhas e ervas utilizadas nos trabalhos espirituais ou ebós, maneiras de andar, dançar e estar diante de um pai ou mãe de santo, a história dos povos africanos e os seus eguns (espíritos), entre outras coisas. Enquanto religião, o candomblé foi muito perseguido, mas, no Brasil, a Igreja Católica acabou por aceitar os pais e as mães de santos trajados com os seus filhos de santos. Esta religião sofreu, assim, transformações ao longo dos séculos: por um lado, sincretizou o seu conteúdo com a Igreja Católica, por outro, preservou os elementos essenciais da identidade cultural dos negros africanos escravizados no Brasil. Como escravos de senhores católicos, os negros foram proibidos de cultuar a sua religião, sendo obrigados a assistir às missas nos portais das igrejas. Numa tentativa de fazer sobreviver a sua cultura, começaram a estabelecer paralelos entre as suas divindades e os santos da Igreja Católica, num gesto de sincretismo religioso. Cada orixá tem as suas características, o seu dia, a sua cor, a sua dança, os seus instrumentos, frutas e comidas favoritas, e saudações. Também há uma correspondência entre os orixás e os signos do zodíaco. No que diz respeito à presença do candomblé na Madeira, existem pais e mães de santo na ilha que vieram do Brasil ou que foram formados no Brasil ou por brasileiros e africanos no continente português. O barracão de candomblé ou roça de santo/ casa de santo é um lugar considerado sagrado, onde ocorre a gira para cultuar o orixá. O terreiro engloba o quarto do orixá, o salão para fazer as festas, cantar, exaltar e receber o orixá, etc. Num terreiro de umbanda, tal como no candomblé, a gira é a entrada no recinto da mãe ou pai de santo, ou seja, a abertura para receber uma entidade com o propósito de cura e orientação espiritual. A umbanda (“arte de curar”, do quimbundo de Angola) é uma religião formada dentro da cultura religiosa brasileira, que sincretiza vários elementos: índios (indígenas ancestrais ou caboclos), negros (ancestrais pretos-velhos de África, da religião afro-brasileira candomblé), brancos (religião católica) e da doutrina espírita de Kardec (Espiritismo). Uma das principais diferenças em relação ao candomblé é que, na umbanda, os orixás não incorporam, devido à sua elevada posição na hierarquia divina. A prática da caridade é a característica principal deste culto, que tem por base o evangelho. Ao longo do tempo, a umbanda passou por várias transformações e criou diversas ramificações. Assim, as entidades ou guias que cultua estão ligados a diferentes linhas espirituais: pretos-velhos (linhagem africana), caboclos (sobretudo índios), baianos (também chamados Zés e marinheiros), boiadeiros, povo do Oriente, crianças (erés), exus e pombagiras, entre outros. Na Madeira, existem pai de santo de umbanda que realizaram a sua “feitura”, o “assentamento” ou “fundamento” (cerimónia ou ritual de iniciação) de preto-velho no Brasil ou em Lisboa, na linhagem africana, sendo médiuns de incorporação que juntam o espiritismo e o catolicismo, bem como a sua intuição e visão, na sua atividade. Desde agosto de 2006, existe o Umbanda Center na Madeira, começando a divulgação da religião e a realização de rituais. Este centro ou terreiro de umbanda na Madeira está ligado a uma casa de santo do Rio de Janeiro e foi fundado com o seu apoio. Designando-se primeiramente tenda espírita Sete Luas, o seu nome foi depois alterado para TEMO – Umbanda Center, que significa tenda espírita Mensageiro de Oxalá – Centro de Umbanda. A aceitação do candomblé e da umbanda na Madeira revelou-se um processo lento devido ao preconceito oriundo do desconhecimento destas religiões, que são conotadas negativamente como práticas de macumba e de feitiçaria.   Naidea Nunes (atualizado a 15.06.2020)

Religiões

calçada madeirense: bordados de pedra a preto e branco

No séc. XVI, Gaspar Frutuoso, na sua obra Saudades da Terra, trata com admiração e elogio as “calçadas de pedra miúda” (FRUTUOSO, 1968, II, 117). De acordo com Sainz-Trueva, a utilização de seixos pretos e brancos na calçada madeirense atingiria o apogeu nos sécs. XVIII e XIX. Todavia, a partir de 1950, a atividade sofrerá um grande declínio motivado, essencialmente, pelos seguintes fatores: desinteresse por essa tradição, falta de mão de obra e de motivação da existente, pouco apreço pelo ofício, baixos salários, menor disponibilidade da pedra natural local e utilização de novos tipos de materiais para pavimentação. Ainda segundo Sainz-Trueva, “as severas mudanças no ‘rosto’ da cidade e arredores ajudaram a apagar os traços mais característicos da Madeira antiga, cada vez mais confrontada com ventos do progresso, que nem sempre contemplam da melhor forma os testemunhos de uma herança secular” (SAINZ-TRUEVA, 1991, 132 e 133). A calçada madeirense é muito anterior à chamada calçada portuguesa, dela distinta, a qual utiliza pedra facetada, de morfologia aproximadamente cúbica ou paralelepipédica, de cores preta (identificada como sendo basalto) e cinzenta-escura, branca ou rosada (identificada como sendo calcário). A calçada portuguesa, nacional e internacionalmente prestigiada, foi criada em 1842 pelo Ten.-Cor. e Eng.º Eusébio Pinheiro Furtado, quando no comando do Batalhão de Caçadores 5, que, querendo combater o ócio dos seus soldados, os pôs a revestir a parada do quartel com pedrinhas pretas e brancas. A calçada madeirense constitui uma autêntica referência histórica e patrimonial do arquipélago e é um símbolo da geodiversidade litológica local, sendo por vezes confundida com a calçada portuguesa propriamente dita. Em 2004, João Baptista Pereira Silva e Celso de Sousa Figueiredo Gomes desenvolveram um conjunto de investigações com os seguintes objetivos: caracterizar a pedra natural aplicada na calçada madeirense dos pontos de vista textural, petrográfico, químico, mineralógico e físico-mecânico; identificar os locais de proveniência da pedra natural; homenagear os profissionais com um papel ativo na preservação do secular trabalho que envolve a aplicação de pedra de seixo ou de calhau rolado, contribuindo desta forma para a preservação dos ofícios tradicionais; desenvolver uma ação pedagógica de divulgação da calçada madeirense junto da população e das entidades competentes, sensibilizando-as para a importância da preservação desta técnica, em vez de se proceder à substituição da pedra natural por outros materiais; valorizar o património edificado e dignificar a arte dos trabalhos concebidos com pedra natural, pequena e rolada. Materiais e amostragem A pedra natural local, de origem vulcânica e sedimentar, potencialmente adequada à aplicação na calçada madeirense, e que foi objeto da referida investigação, foi amostrada em depósitos de praia, em pequenos afloramentos de rocha carbonatada e em obras de recuperação de calçadas sitas nos concelhos do Funchal, de Câmara de Lobos, da Ponta do Sol, de Santa Cruz, de São Vicente e também na ilha do Porto Santo. Nos textos consultados e nos diálogos mantidos com alguns estudiosos e profissionais do sector é frequente referir-se serem os seixos brancos feitos de calcário originário de Portugal continental, tendo provavelmente servido de lastro em navios que outrora aportavam ao Funchal. Foi propósito da já mencionada investigação referir os locais de proveniência da pedra natural utilizada nas calçadas; tendo em conta, quer o levantamento já efetuado, quer a extensão da sua aplicação em todo o arquipélago, admite-se que a pedra aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte da Madeira e do Porto Santo. Atualmente, a recolha dos materiais está restringida a depósitos de algumas praias (figs. 1 e 2) – Formosa (Funchal), Porto Novo (Santa Cruz), Madalena do Mar (Ponta de Sol) e Calhau da Serra de Fora e Calhau da Serra de Dentro (Porto Santo) –, devidamente autorizada pelas autoridades regionais competentes (Secretaria Regional dos Assuntos Parlamentares e Europeus da Região Autónoma da Madeira e capitania do Porto do Funchal). A amostragem dos materiais nas praias foi feita na baixa-mar, por duas razões (fig. 1): a primeira, porque a secção da praia é mais ampla; a segunda, porque a recolha de material é feita em maior segurança durante a maré baixa.   Na ilha do Porto Santo, os calcários ocorrem entre as cotas 0-165 m, correspondendo-lhes idades compreendidas entre os 13,5 e os 18 milhões de anos (Miocénico Inferior), tendo sido neles identificados foraminíferos, celentrados, briozoários, equinodermes, crustáceos, anelídeos e grande variedade de espécies de lamelibrânquios e de gastrópodes – isto é, nos calcários figuram quase todos os grandes grupos de invertebrados, bem como restos de seláceos e algas coralinas. O paleontólogo Gumerzindo Silva atribui aos calcários da ilha do Porto Santo e dos seus ilhéus uma fácies recifal edificada sob clima tropical a profundidade que não devia exceder os 40 m; normalmente, este tipo de calcários pode exibir cor branca leitosa e/ou cor branca amarelada.No que diz respeito às rochas carbonatadas, identificadas como sendo calcários recifais marinhos, elas apresentam as cores seguintes: castanha-avermelhada, branca leitosa, branca amarelada ou branca avermelhada. Trata-se de materiais com origem no concelho de São Vicente, na ilha da Madeira (fig. 3), no ilhéu da Cal ou de Baixo e no vale da Ribeira da Serra de Dentro, ilha do Porto Santo (fig. 4). No caso dos calcários que ocorrem no afloramento do sítio dos Lameiros (à cota de 475 m), em São Vicente, eles são, essencialmente, recifais, associados a tufos de cor castanha-avermelhada, e aglomerados, cujos fósseis marinhos identificados correspondem a várias espécies de lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes, coraliários, crustáceos e foraminíferos. Dados de geocronologia isotópica apontam a idade de sete milhões de anos (Miocénico Superior) para os calcários fossilíferos. Na segunda déc. do séc. XXI, puderam ser observados alguns dos antigos depósitos de calcário recifal no sítio do Furtado da Achada do Barrinho, Lameiros, ao percorrer o itinerário turístico-geológico denominado Rota da Cal (fig. 3).   No Museu de História Natural do Jardim Botânico da Madeira pode ser observado um rico e diversificado espólio de exemplares de fósseis marinhos originários das ilhas da Madeira e do Porto Santo. No conjunto, destacam-se, entre os fósseis mais representativos, lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes e algas coralinas, fósseis que apresentam, na generalidade, um elevado grau de preservação, situação que permite a fácil identificação das respetivas espécies. Nos seixos e calhaus de rocha carbonatada aplicada na calçada madeirense observam-se os exo-esqueletos de várias espécies de fósseis marinhos (fig. 5). Aspetos texturais A população designa vulgarmente a pedra aplicada na calçada madeirense por seixo, calhau ou cascalho rolado – mas, em termos técnicos e científicos, as denominações seixo e calhau não têm o mesmo significado. Efetivamente, em termos técnicos e científicos, os referidos nomes correspondem a designações que estão intimamente relacionadas com aspetos texturais, isto é, com a dimensão e a forma das peças individuais do material pétreo. A escala granulométrica de Chester K. Wentworth, utilizada em sedimentologia, estabelece designações e limites dimensionais para as partículas constituintes dos sedimentos. Nesta escala, a designação calhau é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 256 mm e 64 mm, e a designação seixo é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 64 mm e 4 mm (fig. 6). Por outro lado, o estudo morfométrico dos materiais pétreos – isto é, o estudo das diferentes geometrias dos calhaus e seixos aplicados na calçada – permite, de acordo com a classificação de Theodor Zingg, definir que eles apresentam, normalmente, forma oblata ou discoidal. Os seixos e calhaus de rocha vulcânica apresentam-se lisos, polidos, entre arredondados e bem arredondados, e a cor escura que exibem é normalmente devida à patine que vão adquirindo ao longo do tempo, efeito da poluição e da sujidade acumulada. Tipologias e propriedades No âmbito da referida investigação, a caracterização petrográfica, mineralógica e química dos materiais pétreos (calhaus e seixos) amostrados nas calçadas madeirenses foi realizada no departamento de Geociências da Universidade de Aveiro, tendo permitido o estabelecimento das tipologias relevantes. No que diz respeito às rochas vulcânicas, utilizando a relação entre a percentagem de sílica (SiO2) e a percentagem de alcalis (Na2O + K2O) adotada no sistema classificativo das rochas vulcânicas proposto por Peter Francis, foi possível definir as litologias seguintes: traquibasalto, traquiandesito e traquito, que apresentam tonalidades que vão desde o cinzento-escuro até ao cinzento-claro (fig. 6); basalto, hawaiíto e representantes do grupo minor varieties, que inclui diversos tipos de rochas vulcânicas menos comuns; normalmente, estes tipos litológicos apresentam cor preta. Os resultados da análise química obtidos por fluorescência de raios X indicam que as amostras estudadas de seixos ou calhaus de calcário do arquipélago da Madeira apresentam teores muito baixos de sílica (SiO2) e de alumina (Al2O3), sempre inferiores a 200 ppm. Diferentemente, no caso das amostras de calcário utilizado em calçada portuguesa (técnica também presente no arquipélago da Madeira), provenientes das localidades de Porto de Mós, Alcanena, Albufeira e Lagoa, em Portugal continental, os teores de sílica (SiO2) e alumina (Al2O3) variam entre 0,40 % e 3,19 %. Assim sendo, os resultados analíticos obtidos permitem identificar a origem do seixo e do calhau de calcário aplicado na calçada madeirense, a qual está relacionada com rochas carbonatadas locais (calcário recifal muito puro). De facto, as investigações realizadas mostram que a pedra calcária aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte das ilhas da Madeira e do Porto Santo (figs. 3, 4 e 5). Por sua vez, as propriedades físico-mecânicas dos principais tipos de pedra natural utilizados na calçada madeirense foram avaliadas no Laboratório de São Mamede de Infesta (Porto), afeto ao antigo Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (posteriormente, Laboratório Nacional de Energia e Geologia). A determinação da resistência ao desgaste por abrasão em vários provetes de pedra natural foi realizada através do método de desgaste de Capon. Os resultados obtidos permitem concluir que a rocha traquibasáltica é a que apresenta menor desgaste (0,6 mm), e que o calcário recifal é a rocha que apresenta maior desgaste (4,2 mm). Se observarmos alguns pavimentos pelos quais há grande circulação de pessoas, verificamos facilmente que a superfície superior e exposta da pedra calcária se apresenta plana, ou seja, com maior grau de desgaste, quando comparada com a superfície superior e exposta da pedra vulcânica contiguamente aplicada, que se apresenta abaulada ou convexa (fig. 7). Aplicação da calçada madeirense A calçada madeirense é uma manifestação do património insular madeirense, sendo também testemunho da atividade desenvolvida por trabalhadores de ofícios tradicionais. Feita na maior parte das vezes por mãos anónimas, revela a sensibilidade naïve dos seus autores (e.g., fig. 20) e é um testemunho cultural que merece ser divulgado e preservado. Na feitura da calçada madeirense, a aplicação dos materiais pétreos no terreno poderá realizar-se diretamente sobre uma camada de solo silto-argiloso (designado localmente por cerro). Caso contrário, a aplicação dos materiais passa por diversas etapas: preparação do fundo de caixa com aplicação de tout venant sobre o terreno e colocação de pó de pedra sobre o tout venant e tirada de pontos (fig. 8); colocação da pedra segundo o seu eixo maior (isto é, para um sistema de eixos XYZ, em que X representa o comprimento máximo, Y a largura máxima e Z a espessura máxima) (fig. 9); betonagem das juntas entre as pedras, com uma mistura líquida de calda de areia e cimento, numa proporção de três partes de areia para cinco de cimento (fig. 10); calcamento e nivelamento do pavimento com calcão mecânico e acabamento com maço de madeira de plátano (fig. 11); colocação de areia fina sobre o pavimento, com o objetivo de remover o excedente da calda de cimento e, finalmente, a lavagem, a escovagem e o varrimento (fig. 12). Para se ter noção do grau de exigência que esta arte de pavimentação implica, marcou-se no chão, com motivo em espinha, a área de 1 m2. Verificou-se que em cada metro quadrado foram aplicados, em média, 1023 seixos. Este valor é elucidativo dos milhares de seixos que foram utilizados para fazer o pavimento de calçada madeirense que existe no jardim municipal do Funchal (fig. 13). Tendo em conta a proveniência dos materiais, pode dizer-se que se assemelham a praias que foram transferidas para o espaço urbano e rural. Na déc. de 1960, o Arqt. Fernando Santos Pessoa introduziu uma alteração à calçada madeirense tradicional – a variante de calçada madeirense com pedra partida; trata-se de um pavimento menos escorregadio e que oferece maior atrito ao calçado, permitindo melhor andamento e mais conforto (fig. 14).   Motivos A calçada madeirense pode ser construída utilizando unicamente calhaus e seixos de rochas vulcânicas, de tonalidade cinzenta mais ou menos escura, cuja monocromia é quebrada devido às diferentes orientações conferidas pela disposição dos materiais (figs. 14 e 17). Quando são utilizadas rochas vulcânicas e sedimentares, a policromia a preto e branco apresenta uma grande diversidade de padrões e temas geométricos e florais estilizados que ornamentam e embelezam ruas, átrios, igrejas, palácios, casas, quintais e jardins (figs. 15-22). Muitos dos motivos dos pontos do bordado da Madeira – tais como oficial, bastido, chão, corda, granitos e richelieu – foram aproveitados pelos calceteiros para serem representados na decoração da calçada madeirense. O adro da igreja de S. Martinho, no Funchal, é talvez o local que reúne a maior diversidade de padrões e de motivos geométricos e florais estilizados, com vários pontos de bordado da Madeira.   No pavimento, predomina geralmente o material mais abundante, isto é, calhaus e seixos de rochas vulcânicas, sendo apenas utilizadas rochas sedimentares para realçar alguns aspetos florais, brasões de armas, monogramas, datas e a cruz de Cristo (figs. 23 e 24). Os pavimentos de calçada madeirense apresentam pouca reflexão da luz e são facilmente limpos utilizando a tradicional vassoura de urze.   Preservação Em meados da segunda déc. do séc. XXI, a calçada foi modificada e adulterada em alguns espaços, com a aplicação de materiais estranhos a esta técnica e com a remoção de motivos. A pedra rolada foi substituída por cubos e paralelepípedos de mármore e coberta por argamassas de areia, cimento e material betuminoso, ou por alcatrão (figs. 25 e 26).   Na requalificação urbana que ocorreu no núcleo histórico de Câmara de Lobos, o antigo brasão do concelho – que estava colocado no adro da igreja de S. Sebastião, fazendo parte de um tapete de pedra rolada – deu lugar a um pavimento de “calçada madeirense” de blocos e calhaus partidos; perdeu-se, assim, o único exemplo de heráldica municipal em calçada madeirense construída no arquipélago, restando dela apenas registos fotográficos (fig. 27).Também nesta altura, na rua D. Carlos I, na zona velha do Funchal, foi observada a existência de diferenças cromáticas entre as argamassas em algumas obras de recuperação, viu-se serem muito diferentes as dimensões dos seixos utilizados e serem os espaços entre pedras roladas – porque grandes – preenchidos por argamassa.  Nas travessas da Malta e do Redondo, o pavimento de calçada madeirense foi coberto por tapete betuminoso. Noutros locais, verificou-se ser total o abandono da calçada, como no caso dos passeios na estrada do João Abel de Freitas e na estrada da Boa Nova, e advir grande perigo – tanto para peões como para utilizadores de viaturas motorizadas – das pedras, encontrando-se estas soltas entre a estrada e o passeio (fig. 28).   O desenvolvimento das raízes das árvores de grande porte destruiu e só ergueu por vezes o pavimento – como aconteceu na capela de N.ª Sr.ª da Graça, no Instituto do Vinho da Madeira e no Hospício Princesa Dona Maria Amélia –, carente de trabalhos de manutenção regulares.No adro da capela de N.ª Sr.ª da Graça, na ilha do Porto Santo, observou-se a presença de grandes manchas de cera, com origem no pagamento de promessas feito por alguns fiéis (com velas) e na ausência da sua posterior remoção. Durante a referida investigação, teve-se oportunidade de acompanhar diversas obras de recuperação de antigas calçadas e de construção de novas pavimentações. Exemplos disso mesmo são o antigo palacete dos Zinos, posteriormente palacete do Lugar de Baixo, recuperado em 2004 pelo Governo Regional da Madeira (GRM) (fig. 29); os jardins de Santa Luzia, recuperados em 2004 pela Câmara Municipal do Funchal e pelo GRM (ao projeto, da autoria do Arqt. Luís Paulo Ribeiro, foi atribuída uma menção honrosa na categoria de espaços exteriores de uso público, no quadro do Prémio Nacional de Arquitectura Paisagista, em 2005) (fig. 30); o pavimento onde está representado o cronograma dos vários Batalhões de Infantaria e dos Caçadores na Universidade da Madeira, recuperado por calceteiros da Câmara Municipal do Funchal, em 2008 (figs. 31 e 32).   A preservação da calçada madeirense, nas antigas quintas e jardins públicos e privados, casas particulares, ruas, estradas, etc., reveste-se de uma importância crucial, especialmente para os núcleos e zonas históricas das ilhas da Madeira e do Porto Santo. Deste modo, a profissão e a formação do calceteiro é imprescindível para a manutenção dos referidos espaços. Além disso, o património material da calçada madeirense constitui um legado de grande valor, sob os vários aspetos da sua composição, da diversidade dos materiais geológicos utilizados, com presença de fósseis marinhos, e da diversidade de padrões construídos e desenhados.   João Baptista Pereira Silva Celso de Sousa Figueiredo Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Arquitetura Património Geologia

catequese na diocese do funchal

A catequese é a ação da Igreja para fazer discípulos de Jesus que creiam, em comunidade, que Ele é o Filho de Deus. Articulada com o primeiro anúncio do Evangelho, a busca de razões para crer, a vida cristã, os sacramentos, a integração na comunidade e o testemunho garante a expansão da Igreja em termos de convicção, geografia e número de fiéis. Catequizar foi, desde tempos apostólicos, deixar a Palavra de Deus ecoar nos corações. Partindo da explicação do Antigo Testamento e da memória dos gestos e palavras de Jesus de Nazaré, o anúncio oral foi-se sedimentando através da tradição e dos escritos neotestamentários. Entretanto, têm mudado os intervenientes, o espaço, o tempo e o modo da catequese; as suas mutações coincidem com as reformas da Igreja. É o caso da publicação de catecismos próprios por Lutero (1529) e Calvino (1537), em campo protestante; em âmbito católico, D. Fr. Bartolomeu dos Mártires (Braga, 1564), Fr. Vicente Foreiro (1566, por mandato do Concílio de Trento), os Jesuítas Astete, Ripalda e Pedro Canísio (também no séc. XVI). Entrepunha-se assim, progressivamente, o catecismo entre quem testemunha a fé e quem nela se inicia. É este o contexto de uma cristandade transplantada do velho continente para o arquipélago da Madeira, nos inícios do séc. XV, entretanto constituída diocese em 1514. Os catecismos, que a invenção de Gutenberg difundira, constituem fontes para o estudo da catequese, mas nada dizem do seu método. O texto doutrinal era posto nas mãos dos catecúmenos e catequizandos? Explicado? Comentado? Livremente utilizado como referência? Integrado com outros instrumentos? Responderá Catechesi Tradendae: “A catequese […] compreende especialmente um ensino da doutrina cristã […]. Sem se confundir formalmente com eles, anda ligada com certo número de elementos da missão pastoral da Igreja, que têm um aspeto catequético, que preparam a catequese ou que a desenvolvem” (JOÃO PAULO II, 1979, n.º 18). Tais elementos e doutrina têm merecido, desde os primórdios da diocese funchalense, o cuidado dos seus bispos e colaboradores. Do séc. XVI ao XIX As constituições do bispado, promulgadas em 1579 por D. Jerónimo Barreto, denotam que a doutrina cristã era ministrada por quem ensinava a ler e escrever. Usavam-se papéis e livros de boa doutrina, aproveitáveis aos bons costumes das crianças, entre os quais uma cartilha então reimpressa. Fr. José de Santa Maria, tendo entrado na Diocese em 1691, várias vezes a visitou toda, reuniu um sínodo diocesano e tomou particular interesse pelo ensino da doutrina cristã, publicando e fazendo imprimir instruções práticas para ministrar esse ensino. Ordenado bispo em 1725, D. Manuel Coutinho votou o seu múnus episcopal especialmente à explicação insistente do Evangelho nas paróquias, a uma catequese metódica, às missões evangélicas entre o povo, às visitas pastorais. D. Gaspar Brandão (1757-1784) prosseguiu as missões evangélicas na maioria das paróquias, zelou pela propagação da boa doutrina, pregações e vida de piedade do laicado, do clero e da vida consagrada. Em 1803, o n.º 441 do Heraldo da Madeira noticiou que o morgado João de Freitas da Silva fora mandado instruir-se nos rudimentos da doutrina cristã para o Convento de S. Bernardino, donde fugiu, sendo posteriormente preso na Fortaleza de S. Tiago. Este testemunho denota zelo por parte das autoridades e eclesiásticas e desmazelo da comunidade, mesmo da de elevada extração. Na segunda metade do séc. XIX, os capelães do Hospício da Princesa D. Maria Amélia converteram a Capela seiscentista de N. S.ª da Penha de França em escola e centro de piedade e de ensino do Catecismo da Doutrina Cristã, o qual perdurou no séc. XX. Outro prelado zeloso pela propaganda da doutrina católica foi D. Patrício Xavier de Moura (1870-1872), que imprimiu austeridade de vida no seu clero e disciplina quanto às leis eclesiásticas. Os leigos também assumiram o seu papel na catequese e demais evangelização; oriundos de diferentes estratos sociais, fundaram, em 1874, a Associação Católica do Funchal. Esta tinha por missão defender e propagar a doutrina católica por meio de conferências, prática de atos religiosos e uma oficina de impressão. Desta saiu, desde 1875, e durante anos, o jornal A Verdade. Vinda do mundo britânico e anglicano, a Ir. Wilson encontrava, em 1881, uma catequese restrita e deficiente, pelo que fundou diversos centros catequéticos por toda a diocese. Igualmente estimulada pela pregação protestante, foi aprovada, em 1893, a Obra de S. Francisco de Sales. Permitiu, num só ano, abrir nove escolas em que se ensinava o catolicismo a cerca de 500 alunos, as quais se foram estabelecendo em dezenas de paróquias. Fonte histórica preciosa é o Boletim Mensal Diocesano daquela Obra, dirigido pelo P.e Xavier Prevot, da Congregação da Missão e professor do Seminário. O séc. XX 1905 trouxe à luz o Catecismo da Doutrina Cristã Composto Especialmente para a Diocese do Funchal. Em 1917, de Lisboa, foram publicadas as 288 páginas do Catecismo da Doutrina Cristã da Diocese do Funchal. Entretanto, estabeleceu-se, em 1912, na diocese do Funchal, a Confraria da Doutrina Cristã, para fornecer os rudimentos principais da doutrina cristã, em igrejas, capelas e novos centros de catequese. A transição do séc. XIX para o XX, marcada pelo laicismo, mas também pela atenção à criança, revolucionou a catequese. Pio X quis que esta se sistematizasse, conduzindo as crianças à comunhão solene, a primeira, pelos 10 ou 11 anos. À encíclica Acerbo Nimis, de 1905, e ao Catecismo, de Pio X, sucedeu, em 1910, o dec. Quam Singulari, que apontava a idade da razão, pelos sete anos, como suficiente para ser iniciado à penitência e à eucaristia. O Código de Direito Canónico de 1917, o dec. Provido Sane de Pio XI (1935) e o Concílio Plenário Português (1926) preconizavam a organização da catequese na paróquia, na diocese e a nível nacional, respetivamente. Paroquialmente, os presbíteros “explicavam” uma catequese em ordem à primeira comunhão das crianças, das quais voltariam algumas, entretanto crismadas, para a comunhão solene. Ineficaz, o desejo do Concílio Plenário Português de 1926 só se concretizaria com a autonomia do Secretariado Nacional da Catequese (1952): a publicação dum Catecismo Nacional (1953-1956). Dos anos 20 aos 50 do séc. XX, caminhou-se para a adoção deste catecismo pelas dioceses. Neste contexto, D. David de Sousa criou no Funchal, a 6 de agosto de 1959, o Secretariado da Catequese, articulado com a “religião” no início da escolaridade, contando com consagradas e presbíteros entre os delegados das várias partes da diocese e uma equipa de estudos. Esta, na segunda ata, distinguia o papel do ensino e dos centros paroquiais de catequese: “Na escola […] vai falar-lhes à inteligência; e, no centro, […] vai completar tudo por meio de um conto, por meio do filme, ensinando a estar dentro da igreja, ensinando outra coisa prática” (SECRETARIADO DIOCESANO DA CATEQUESE, 1959-1960a, 3). Das Atas do Secretariado da Catequese consta um resumo de atividades: além de se criar o Secretariado e, a 21 de novembro de 1959, as regiões, nomearam-se os delegados destas, fez-se um inquérito acerca do estado da catequese, foi aprovada legislação concernente à catequese, a 28 de abril de 1960, realizaram-se 17 cursos (para os delegados, nas regiões e paróquias, para religiosas e professoras), 10 reuniões (metade para delegados, as restantes para a equipa de estudos) e 13 visitas do responsável diocesano a escolas de religiosas. Desde então, aumentou o número de catequistas leigos e seus formadores. O mundo foi-se tornando pluralista. A catequese ganhou outra consciência de si própria, conforme ao Concílio Vaticano II, ao serviço da Palavra de Deus (constituição Dei Verbum) e de quantos, cedo ou tarde, queiram conhecer, celebrar, amar, testemunhar Cristo (decreto Ad Gentes). Ainda o primeiro Catecismo Nacional não destronara o de Pio X, já os catecismos conciliares estavam no prelo (1969). Surgido para disponibilizar o novo catecismo nacional, o Secretariado Diocesano funchalense, até então mais nominal, recebeu considerável tempo de dedicação do P.e Juvenal Pita Ferreira. Tendo falecido, sucederam-lhe Manuel Ferreira Cabral, entretanto eleito bispo auxiliar de Braga, o P.e Dr. Sidónio Peixe, por um ano, e o cónego Tomé Velosa, entre 1966 e 2002. A obra deste último é fonte preciosa para a história da catequese no período referido e períodos antecedentes, pelo que me cingirei a alguns aspetos dela. D. João Saraiva esteve à frente da igreja funchalense entre 1966 e 1972. Promoveu a formação com vultos como Cassiano Floristán, Manuel Useros Carretero, François Coudreau, Amílcar Amaral, etc., e acompanhou a realização da “nova” catequese que propunham: partindo da vida iluminada pela Palavra de Deus e voltando para a vida. Destinados a catequistas, multiplicaram-se, entre 1966 e 1974, o curso de iniciação (o abecê dos novos métodos pedagógicos, psicologia aplicada), o curso complementar (teologia, pedagogia da fé, psicologia e catequética), o estágio e formação permanente, nomeadamente com o lançamento de novos catecismos. Aos presbíteros dedicaram-se jornadas de atualização acerca da catequese e confiou-se a alguns, além da missão catequética de párocos, a de delegados regionais. Incentivou-se a estruturação da catequese nas paróquias e a colaboração com a educação moral e religiosa católica, a começar nos primeiros anos de escolaridade. Promoveu-se o Dia Catequístico, de formação e convívio, em quatro regiões. As paróquias disponibilizavam meios humanos, logísticos e financeiros à obra da catequese. O Secretariado prosseguia a formação dos catequistas, essa “escola permanente”, no dizer de D. João. Este autorizou o arrendamento de uma sede (até então na antiga Câmara Eclesiástica) para o Secretariado, no Funchal: inicialmente, no n.º 230 da rua dos Ferreiros (1966-1969) e, depois, na rua do Bispo, n.º 16 (1969-1989). Em 1967, o Secretariado do Funchal iniciou o programa radiofónico “Mensagem”, publicou o boletim Crianças e, com “Abertura” do seu bispo, foi cofundador da Revista da Catequese, interdiocesana, fundida em 1969-1970 com a patriarcal Voz da Catequese. Em 1970, o encontro nacional de catequese, uma reunião com periodicidade anual, juntou no Funchal os responsáveis da catequese das dioceses portuguesas, o qual se viria a repetir em 1990 e 2010. Entretanto, concluía-se em Roma (1971) o Directório Catequístico Geral e o Congresso Catequístico Internacional. Entre 1974 e 1982, reorganizou-se o Secretariado, intensificaram-se os estágios e os encontros de reflexão para catequistas, por zonas interparoquiais. D. Francisco Santana esteve no Funchal entre dois sínodos romanos: um sobre a evangelização (1974) e outro sobre a catequese (1977), após os quais viriam a lume as exortações apostólicas Evangelii Nuntiandi (1975) e Catechesi Tradendae (1979). Quis impulsionar os animadores de zona, que seriam colaboradores e não fiscalizadores das paróquias, com funções de âmbito diocesano no campo da catequese. No Corpo de Deus de 1978, aconteceu o Dia Catequístico Diocesano, em que D. Francisco agraciou os catequistas que celebravam bodas de prata e ouro.  Regressado ao Funchal como bispo, D. Teodoro de Faria pastorearia a diocese de 1981 a 2007; apresentou-se-lhe as atividades do Secretariado Diocesano, entre as quais um centro experimental de catequese e formação diversificada de catequistas. Foi tempo de jornadas catequísticas locais e nacionais; preparação para o ano santo de 1983-1984 e para o ano mariano de 1988, com peregrinação dos catequizandos à Sé para a visita do papa João Paulo II, em 1991 (ano da C); Dias Catequísticos com cunhagem e atribuição de medalhas a catequistas. Propôs-se o curso de iniciação às paróquias; o geral às zonas. No mesmo ano, após errar pela cidade, o Secretariado Diocesano da Educação Cristã adquiriu sede, à rua Fernão Ornelas, e personalidade jurídica, em 1992. Apresentou os 10 novos catecismos, que começaram a ser editados em 1991, e, em 1997, o Catecismo da Igreja Católica e o Diretório Geral da Catequese. O presente Em 1999, D. Teodoro integrou na direção do Secretariado o autor destas linhas, nomeando-o seu responsável em 2002, função em que foi confirmado por D. António Carrilho, bispo do Funchal desde 2007. Da atual atividade do Secretariado, referimos apenas a do departamento da catequese. Este integra outros membros com formação teológica superior e/ou especializada em áreas afins, fruto da aposta pessoal e dos bispos diocesanos na escola teológica e Universidade Católica Portuguesa. A formação inicial para ser catequista segue o Curso de Iniciação publicado pelo Secretariado Nacional da Educação Cristã em 1999. Aborda a identidade do catequista, do catequizando, da catequese e o seu método, tem a duração de 16 horas, realiza-se predominantemente nas paróquias e atinge uma média anual de duas centenas de formandos, a qual diminui na formação subsequente, o curso geral. Este acontece a nível central e interparoquial e tem sido renovado entre nós até 2012, ano da publicação nacional da Catequética (identidade e método da catequese), depois de a Psicologia e a Doutrina (conteúdos bíblicos e teológicos). A formação permanente dos catequistas tem incidido sobre temas concernentes à espiritualidade e ação do catequista e a utilização dos novos instrumentos escritos e audiovisuais publicados desde 2005. Realiza-se a nível paroquial, interparoquial e diocesano, nomeadamente no Dia Diocesano do Catequista, em que o bispo da diocese congrega acima de um milhar de catequistas. Da catequese das crianças e adolescentes, passamos atualmente à escola paroquial de pais, autêntica catequese de adultos, em que a Igreja os ajuda a crescer e fazer crescer na fé os filhos. Perfilam-se no futuro próximo a atenção à adolescência, como idade progressivamente diferenciada da infância, e a catequese familiar, em que os pais assumem-se como o sujeito da catequese dos filhos. Além das publicações nacionais, o Secretariado do Funchal promove algumas edições complementares. Estudos de teologia pastoral realizados em fins do séc. XX na diocese do Funchal indicam que os seus diocesanos são batizados maioritariamente antes da “idade da razão”, sendo residual o número dos que o fazem após os 15 anos de idade. Ingressados na catequese por essa idade, uma percentagem crescente de catequizandos desiste após a primeira comunhão e à medida que se aproxima o final do itinerário catequético. A catequese de iniciação termina normalmente com a celebração da confirmação, sendo raros os casos de catequese dirigida a adultos iniciados na fé.   António Héctor de Araújo Figueira (atualizado a 29.12.2016)

Religiões

padres do pombal

A designação de “padres do Pombal” aplica-se a um conjunto de sacerdotes católicos que desenvolveram a sua ação na Madeira, entre os finais da déc. de 60 e os meados da de 70 do séc. XX. Na génese do grupo estiveram João da Cruz, que o liderava, Lino Cabral, Arnaldo Rufino da Silva e Francisco Sidónio Figueira.  Segundo o P.e João da Cruz, o facto de serem chamados padres “do Pombal” decorria, tão simplesmente, de terem decidido procurar uma casa onde pudessem viver em comunidade. Acabaram por encontrar as acomodações pretendidas na R. do Pombal, para onde se mudaram depois de, em 1967, o bispo ter entendido que não deviam continuar a morar no seminário, abandonando dessa forma local onde até aí viviam e ensinavam (CARDOSO, 2011, 43). João da Cruz frequentara o seminário do Funchal como aluno, após o que rumou a Lisboa onde, em 1966, se licenciou em Filologia Românica, com o objetivo de vir a ensinar num colégio diocesano que então se perspetivava para a Madeira. Gorado esse projeto, foi integrado, por iniciativa de D. João Saraiva, bispo do Funchal ao tempo, no Movimento Operário da Ação Católica, acabando, depois, por se ligar em particular à Juventude Operária Católica (JOC), movimento juvenil que, ao contrário do que acontecia no resto do país, era na Madeira politicamente alinhado à esquerda do regime, e no qual se ia desenvolvendo o interesse pela democracia e a importância do sindicalismo. Por seu lado, o P.e Lino Cabral estava encarregado da assistência espiritual à Juventude Agrária Católica (JAC) e, operando nas zonas rurais, fazia por despertar nos jovens a noção de que tinham direitos, sendo, portanto, também uma figura contestatária da situação vigente. Por seu turno, o P.e Arnaldo Rufino era assistente do Corpo Nacional de Escutas, enquanto o P.e Francisco Sidónio Figueira, ainda que sem compromisso político visível, era, pelo facto de ser próximo dos restantes, com os quais compartilhava a habitação, associado às mesmas ideias. Os padres do Pombal foram objeto da atenção da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a polícia política que operou nos últimos anos do Estado Novo. Com efeito, as homilias deste grupo progressista, que tinha ligações de amizade com membros do Partido Comunista e mantinha contactos com a elite cultural que gravitava à volta do Cine Forum, eram seguidas com cuidado e as suas atividades eram monitorizadas por vários informadores, entre os quais se contavam outros elementos do clero. Ao mesmo tempo que os padres do Pombal tentavam movimentar sacerdotes mais novos, agregando-os às discussões sobre a influência da Igreja no mundo e a renovação proposta pelo Concílio Vaticano II, o P.e João da Cruz candidatava-se pela oposição, em 1969, às eleições legislativas. Com o movimento a crescer, o grupo conseguiu dinamizar alguns setores da sociedade, dentro e fora da Igreja, chegando a organizar estruturas de alfabetização e a dar aulas ao nível do 2.º ciclo do ensino preparatório, de forma gratuita e em período pós-laboral. Estas atividades decorreram sob vigilância, mas sem sobressaltos de maior até 1974. Com a chegada à Madeira do novo bispo, D. Francisco Santana, em 1974, os padres do Pombal foram convidados a integrar-se, de forma menos contestatária, na Igreja madeirense. Perante a sua recusa, os sacerdotes viram serem-lhes retirados benefícios sociais, bem como a possibilidade de celebrar missa, uma ação concertada que era quase um convite ao abandono do sacerdócio. A esta condenação implícita, veio juntar-se uma outra, muito mais explícita, que se materializou sob a forma de bombas que foram colocadas, quer na casa do Pombal, quer no automóvel do P.e João da Cruz, pela Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira (FLAMA) – movimento separatista muito ativo depois da Revolução de Abril. Deste modo, o advento da democracia seria, paradoxalmente, fatal para os padres do Pombal, que, sem condições de segurança para permanecerem na Madeira, optaram pelo abandono da Ilha, desfazendo-se, assim, o núcleo e as atividades que tinham levado a cabo nos fins do regime do Estado Novo.   Cristina Trindade  José Luís Rodrigues (atualizado a 01.01.2017)

Religiões

teologia, ensino da

O estudo da Teologia faz parte da formação dos futuros padres e desenvolveu-se no Seminário do Funchal, tendo como objetivo primeiro a formação do clero e as necessidades concretas da pastoral das paróquias onde, para além da catequese, era necessário evangelizar os costumes religiosos do povo. Na prática, o ensino do Seminário dava a estrutura doutrinal e moral para lidar com as diferentes solicitações do múnus de pastor, mas diversas pastorais dos bispos diocesanos insistiram na formação do clero para além dos elementos iniciais recebidos no Seminário. A instituição dos seminários foi uma das obras mais importantes do Concílio de Trento. A 20 de setembro de 1566, D. Sebastião criava o Seminário do Funchal, apenas três anos depois do decreto do Concílio. Foi sobretudo D. Jerónimo Barreto, formado em colégios jesuítas e sagrado bispo do Funchal em 1573, que determinou o estabelecimento do seminário diocesano, com toda a probabilidade no decénio de 1575 a 1585. No início do séc. XVII, D. Luís de Lemos mandou construir o paço episcopal e instalou o Seminário numa casa anexa. Devido à proximidade do Colégio dos Jesuítas, os seminaristas frequentavam as aulas do Colégio, onde recebiam formação em letras, mas também em ciência sagrada. Num relatório de 1594, encontramos uma referência ao Seminário, ao seu reitor e aos seminaristas, que iam todos os dias às aulas dos padres da Companhia de Jesus, onde eram instruídos em virtudes e letras para depois desempenharem a cura de almas. O texto anónimo Memórias sobre a Creação e Aumento do Estado Eclesiástico na Ilha da Madeira referem que os Jesuítas estabeleceram no edifício do Colégio o ensino da doutrina, a confissão, a pregação, a moral, o latim e a retórica, disciplinas importantes não só para a formação dos seus próprios religiosos, mas também para os seminaristas diocesanos que aí encontravam as bases intelectuais e humanas do seu futuro ministério. Henrique Henriques de Noronha, que escreve por volta do ano de 1722, afirma que o Seminário se manteve até 1702 nas dependências do paço episcopal, altura em que passou para o mosteiro novo, situado na futura R. do Seminário. Foi nesta data que o bispo diocesano dispôs de estatutos para o Seminário, exigindo que os jovens nele admitidos tivessem entre 12 e 18 anos e aí permanecessem sete anos: os quatros primeiros dedicados ao estudo do latim e do canto, os três últimos à moral e à filosofia. Era condição para receber ordens menores o conhecimento do latim; para as outras ordens – subdiácono, diácono e presbítero –, importava que o ordinando conhecesse os procedimentos que pertenciam à missa, nomeadamente a matéria e a forma da consagração, e tivesse a disposição necessária de espírito e de corpo. Alguns sacerdotes prosseguiam estudos de nível superior em Coimbra, em Évora ou mesmo fora do país. Embora não se conheça o conteúdo da formação teológica dos seminaristas nesta data, sabe-se por uma pastoral do bispo D. Fr. Manuel Coutinho, de setembro de 1725, que a preparação do seu clero era superficial, sobretudo a nível espiritual. O bispo exigiu um prazo para que todos os clérigos se apresentassem a exame de confessores, aplicando-se ao estudo da moral e do latim. Os residentes no Funchal deviam frequentar as aulas de moral no colégio da Companhia de Jesus e não eram sujeitos a exame sem a frequência dessas lições. A liturgia dos sacramentos e as questões morais eram os pontos dominantes na preparação do clero diocesano ao longo do séc. XVIII. Em 1741, o bispo D. Fr. João do Nascimento aprovava novos estatutos para o seminário que nos interessam aqui pelas questões formativas que contêm. Em primeiro lugar, os referem as condições de entrada dos jovens no Seminário, cuja idade não devia ultrapassar os 18 anos. Depois determinam os requisitos relativos à disciplina e ao traje eclesiástico. O programa de estudos é exposto no capítulo v dos estatutos. Mantêm-se as disposições anteriores, que previam uma formação em 7 anos. Os alunos eram examinados antes da partida para férias e à chegada das férias. Os que estudavam moral deveriam prestar provas públicas duas vezes: a primeira no fim do 2.º ano e a segunda no termo do 3.º ano. Quanto ao estudo propriamente dito, havia exercícios práticos que serviam de complementos às aulas. O método era de tipo escolástico: exposição e defesa duma determinada posição, objeções e perguntas feitas pelos outros estudantes, resposta às perguntas e objeções. Cada um era avaliado pela maneira como respondia diante do reitor e dos outros seminaristas. Estes exercícios eram certamente uma réplica das lições que recebiam. Depois de os Jesuítas terem abandonado a Madeira, em julho de 1760, por virtude do decreto de expulsão das ordens religiosas, o problema dos formadores do clero voltou a colocar-se. Por um lado, o edifício do Seminário tinha sido fortemente danificado em virtude do terramoto de 1755; por outro lado, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão queixava-se da inexistência dum edifício digno para instalar o Seminário e da falta de mestres para ensinar as ciências eclesiásticas. Quando entrou na Diocese, D. Gaspar fazia-se acompanhar por dois padres lazaristas e pensou entregar o Seminário ao cuidado da Congregação da Missão. Efectivamente, os padres lazaristas começaram um trabalho de acompanhamento e ensino no Seminário, sobretudo na formação espiritual, na linha da escola francesa de espiritualidade fundada pelo Cardeal Bérulle e segundo o carisma de S. Vicente de Paulo. Em 1787, D. Maria I entregou o edifício do Colégio à Diocese e o bispo, D. José da Costa Torres, aí instalou o Seminário desde 1788 até 1802. Um edital deste bispo, de 1787, dá-nos uma ideia da formação no Seminário: só eram admitidos às ordens sacras aqueles que tivessem suficiente formação em latim, retórica, filosofia racional e moral; para o sacerdócio seriam promovidos os que estudassem com aproveitamento o direito canónico, a teologia moral e dogmática. Estas indicações do final do séc. XVIII permanecem válidas para o séc. XIX. Foi por iniciativa de D. Manuel Agostinho Barreto (1877-1911) que começou a ser construído um novo Seminário na cerca do extinto Convento da Encarnação. O Seminário passou a funcionar neste novo edifício em outubro de 1908 mas a lei de 20 de abril de 1911 extinguiu o Seminário e transferiu a posse do edifício para o Estado. D. Manuel Barreto chamou para a reorganização do Seminário o P.e Ernesto Schmitz (vice-reitor desde 1881), Lazarista, que foi um verdadeiro fundador da formação sacerdotal, organizando com profundidade os estudos desta instituição, numa iniciativa que marcou várias gerações de padres diocesanos. Outros sucederam-no também com grande empenho, como por exemplo o Cón. Barreto, reitor do seminário durante largos anos. Destacam-se nesta época alguns escritos do Cón. Manuel Gomes Jardim (1881-1949), professor de dogma no Seminário, escritos cuja temática ilustra o teor do ensino teológico da altura. O Cón. Jardim escreveu, em 1931, um estudo sobre as razões do protestantismo; em 1934, um livro sobre a existência de Deus à luz da razão; e em 1940, dois volumes sobre a Igreja e o protestantismo. O estilo destes escritos é expressamente apologético e visa rebater as posições protestantes expondo a contrario a perspetiva católica. As análises da Escritura servem de prova para as posições defendidas e a argumentação segue o estilo escolástico de exposição dos princípios católicos e resposta às objeções. O autor quer mostrar que o livre exame aceite pelo protestantismo põe em causa os fundamentos da fé e que a fé implica sempre uma dimensão social, institucional. Para o Cón. Jardim, quando se prescinde de Deus, nem democracias, nem totalitarismos podem resolver o problema do verdadeiro bem dos povos. Diferente é já a perspetiva duma revista do Seminário – Oásis – fundada em 1962 e com tiragem trimestral. Esta revista contém uma variedade de temas, que vão desde narrativa das atividades internas e externas do Seminário, a estudos literários feitos pelos seminaristas, peças de teatro, poemas, mas também alguns artigos teológicos, em especial ligados ao Concílio Vaticano II. Nestes últimos contam-se temas como o movimento litúrgico, que culmina com a reforma conciliar da liturgia, a renovação da vida da Igreja aberta pelo Concílio, a filosofia como caminho para a teologia, a importância e os limites da sociologia religiosa. Estas perspetivas exprimem uma progressiva transformação do pensamento teológico, aberto ao confronto com problemáticas coevas. Antes e durante o Concílio Vaticano II, os bispos do Funchal tiveram o cuidado de preparar alguns padres da Diocese em Roma, com especialização em diferentes áreas da Teologia, o que foi certamente importante para a formação teológica do clero madeirense. Entre eles contam-se: D. Teodoro de Faria, D Maurílio de Gouveia, D. Manuel Ferreira Cabral, P.e Abel Augusto da Silva, P.e Agostinho Faria, P.e Sidónio Gomes Peixe. Em 1972, o Seminário Maior do Funchal foi encerrado, mas já em 1968 os seminaristas do 1.º ano de Teologia começaram a ir para Lisboa, por iniciativa do bispo diocesano, onde frequentaram a Faculdade de Teologia da Universidade Católica, aberta nesse ano. Entretanto, o curso teológico continuou no Funchal até 1972 para os restantes seminaristas. Deste modo, o clero da Diocese que se formou nestes anos é, na sua quase totalidade licenciado em Teologia. D. Teodoro de Faria teve também o cuidado de preparar alguns padres através duma especialização em Teologia, em Roma e em Paris.   Vítor Reis Gomes (atualizado a 31.12.2016)

Religiões

vicentinos (padres da congregação da missão ou lazaristas, e filhas da caridade)

A presença dos filhos de S. Vicente de Paulo na Ilha da Madeira a partir da segunda metade do séc. XIX está intrinsecamente associada à fundação do Hospício da Princesa D. Maria Amélia, por iniciativa de sua mãe, a Imperatriz do Brasil, D. Amélia de Leuchtenberg, viúva de D. Pedro I, Imperador do Brasil, que foi também D. Pedro IV, Rei de Portugal. À procura de clima e ambiente propícios para cura dos males de que sofria, a jovem princesa D. Maria Amélia chegou ao Funchal a 30 de agosto de 1852, na companhia da mãe. Menos de meio ano depois, aí veio a falecer, no dia 4 de fevereiro de 1853. Em memória da filha, a Imperatriz tomou a decisão de fundar o Hospício da Princesa D. Maria Amélia. Para esse fim, foi arrendada uma casa onde o mesmo ficou instalado provisoriamente, a partir de 10 de julho desse ano de 1853, sob a direção clínica do Dr. António da Luz Pita. Para lhe assegurar condições de continuidade, foi aprovada em 19 de julho de 1853 e publicada no Diário do Governo de 5 de agosto desse ano uma lei que estabelecia as garantias necessárias. Adquirido o terreno para a construção do edifício definitivo, os trabalhos foram iniciados em 1856, sendo concluídos em 1859. Ao edifício material, juntou a Imperatriz D. Amélia as diligências necessárias para entregar o serviço dos doentes e dos pobres às Filhas da Caridade. A fundadora do Hospício determinou também que a assistência religiosa aos doentes e ao pessoal do estabelecimento fosse confiado aos sacerdotes da Congregação da Missão, fundada por S. Vicente de Paulo. Os superiores maiores acederam ao convite, que correspondia plenamente ao carisma vicentino, e, no dia 4 de fevereiro de 1862, o Hospício D. Maria Amélia recebia os primeiros doentes, conforme se lia na lápide de mármore preto que foi colocada a meio da escadaria de entrada. As Filhas da Caridade tinham entretanto chegado ao Funchal para se dedicarem ao tratamento dos doentes. Começava assim, na Madeira, a presença estável do serviço corporal e espiritual prestado a pobres e doentes por parte dos filhos e das filhas de S. Vicente de Paulo. Padres da Congregação da Missão A primeira presença de padres da Congregação da Missão no arquipélago da Madeira ocorrera em meados do séc. XVIII. Após as reiteradas solicitações de D. Gaspar Afonso Brandão (1703-1784), Bispo do Funchal, foram enviados, em agosto de 1757, dois padres da Congregação da Missão, destinados à direção do seminário diocesano. Uma vez chegados à Madeira, percebeu-se que não havia condições para instalar e pôr em marcha o estabelecimento de ensino eclesiástico e os dois missionários, João Alasia, piemontês de nascimento, e José Reis, tiveram de ficar hospedados no paço episcopal. Logo iniciaram trabalhos pastorais diversos, tais como pregação de exercícios espirituais aos ordinandos e ao clero, pregação de retiros a religiosos e religiosas de vários conventos, e missões populares nas paróquias da Madeira e Porto Santo. Ao longo de 10 anos, entregaram-se os missionários, muitas vezes na companhia do próprio bispo, a estas tarefas apostólicas próprias do carisma vicentino. Em virtude de persistir a falta de condições para se ocuparem da formação seminarística, finalidade que os levara à Madeira, regressam ao continente em dezembro de 1767, e só um século depois voltam à Ilha. No Hospício, começaram a assegurar o serviço religioso como capelães aquando da chegada das irmãs, em 1862, e depois ininterruptamente, a partir de 1871. Outras missões, além da capelania, lhes foram sendo atribuídas no contexto pastoral da Diocese do Funchal, nomeadamente funções de ensino e de direção no seminário, de pregação e de assistência espiritual, bem como a promoção e o acompanhamento de obras de natureza social e cultural. As tarefas de formação do clero madeirense por parte dos filhos de S. Vicente de Paulo começaram com a entrada de D. Manuel Agostinho Barreto na Diocese do Funchal, em 1877, e acompanharam praticamente os 34 anos do seu governo episcopal. Em 1878, partiu de Lisboa o P.e José Joaquim de Sena Freitas, incumbido da tarefa de pregar o retiro espiritual aos ordinandos e aos seminaristas. Nesse mesmo ano, foi colocado como capelão do Hospício o P.e Ernesto Schmitz que, pouco depois, começaria a colaborar no seminário como professor, embora a direção do estabelecimento só em 1881 tenha sido confiada aos Lazaristas. Aí se mantiveram até à implantação da República, como obreiros da “mais completa e radical transformação que nele [seminário] se operou em toda a sua já longa existência de quase quatro séculos” (SILVA, 1946, 117-118). Entre as duas dezenas de formadores lazaristas que trabalharam no seminário, merecem que aqui recordemos de modo muito particular os P.es Ernesto Schmitz e Léon Xavier Prévot. O primeiro distinguiu-se como prestigiado diretor, conselheiro e modelador de personalidades, a que juntava o apostolado como pregador de missões populares no período de férias escolares; notabilizou-se ainda enquanto reputado botânico e ornitólogo, a quem se ficou a dever, em 1882, a fundação do museu do seminário, onde reuniu importantes coleções no domínio da história natural. O P.e Prévot impôs-se como competente professor de filosofia tomista e, ao mesmo tempo, esteve profundamente empenhado em contribuir para a alfabetização das crianças, mobilizando vontades para abrir escolas nos meios mais pobres da cidade e noutros lugares da Ilha. Com esse objetivo fundou, em 1893, a Obra das Escolas de S. Francisco de Sales e, para torná-la mais conhecida e apoiada, criou o Boletim Mensal Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales, em 1894. Outro padre vicentino que, em condições muito difíceis, foi encarregado da formação do clero madeirense na direção do seminário foi o P.e Bráulio de Sousa Guimarães; jovem sacerdote de 26 anos, desempenhou, desde 1916 até 1919, o cargo de vice-reitor e professor, com reconhecida competência e grande apreço pelos bons serviços prestados à Diocese do Funchal. A dedicação dos Lazaristas à obra do seminário não se confinou aos seus muros. A formação contínua do clero nas componentes espiritual, moral e pastoral, assumiu, no decorrer dos tempos, diferentes formas, de que se regista a União Sacerdotal madeirense que teve como seu diretor espiritual, nomeado a 14 de janeiro de 1914, o P.e José Maria Luís Garcia, capelão do Hospício e antigo professor do seminário, que dinamizou a União Sacerdotal até 1919, ano em que faleceu. Sucedeu-lhe nessa função o P.e Henrique Janssen, que pertencia à comunidade dos padres do Hospício desde 1909. A república decretou a expulsão das ordens e congregações. O efeito dessa decisão anticongreganista foi a saída dos padres vicentinos que pertenciam à comunidade do Seminário diocesano; os capelães do Hospício puderam continuar e manter as atividades costumadas em virtude de o Hospício se encontrar sob tutela da Coroa da Suécia. Foram tempos cheios de dificuldades, mas também de novas oportunidades para desenvolver e alargar os trabalhos de assistência caritativa e de evangelização. O P.e Luís Garcia dedicou-se ao acompanhamento religioso das irmãs, dos doentes, das escolas e das obras que giravam em torno do Hospício; era o caso das Damas da Caridade e da Associação das Filhas de Maria. Mas estendeu o seu zelo muito para além dos muros da capelania, como grande pregador na Sé e em toda a Ilha, e como diretor de consciências. O P.e Manuel da Silveira, outro vicentino, também antigo professor do seminário, a quem foi confiada a capelania da Penha, tornou-a um bem organizado centro de catequese, que serviu de modelo às catequeses paroquiais. Uma das suas particularidades foi a criação de uma Biblioteca da Infância destinada a prolongar o ensino do catecismo, promovendo, através do livro e da leitura, a formação geral de crianças e jovens. Outra iniciativa do P.e Manuel da Silveira consistiu na criação, no Funchal e em meados da déc. de 1920, do Patronato de S. Pedro, um centro constituído por escola elementar para crianças, aulas diurnas e noturnas para adultos, sede de organismos para a juventude, sala de cinema e grupo de teatro. Os padres vicentinos estão igualmente ligados a duas obras de promoção da cultura católica na Madeira, pioneiras no seu tempo: a publicação da revista A Esperança e a criação da Biblioteca Utile Dulci. A Esperança começou a ser publicada a partir de março de 1919. Era uma revista que se propunha contribuir para a formação católica dos leitores. Sucedia ao Boletim Eclesiástico da Madeira, que se publicou desde 1911 até fevereiro de 1919. Embora o leigo António Alves Torres figurasse como diretor nominal da publicação, o diretor efetivo era o P.e José Maria Luís Garcia que, tendo falecido pouco depois, teve no P.e Henrique Janssen um dedicado e persistente animador da revista durante os 20 anos que durou a publicação. A redação e administração tinham a sede na residência dos capelães do Hospício. Entre os vários colaboradores que deram corpo doutrinal à revista contam-se as muitas dezenas de artigos sobre os mais diversos assuntos assinados por “Miles Christi”, isto é, o P.e Henrique Janssen. A orientação de fundo identificava-se com a conceção da democracia cristã baseada no magistério doutrinal do Papa Leão XIII. Dentro da imprensa católica da época, A Esperança chegou a ser considerada uma das melhores publicações periódicas que se publicavam em língua portuguesa. O compromisso com a promoção da cultura católica e da cultura geral no meio madeirense levou os padres do Hospício a fundar uma biblioteca a que foi dado o nome de Biblioteca Utile Dulci. Os primeiros passos são descritos nos termos seguintes por quem a viu nascer: “Aproveitando para a sua instalação, primitivamente, uma sala da escola paroquial da Sé, à rua Dr. Vieira, a biblioteca Utile Dulci foi muito modestamente iniciada a 26 de novembro de 1916 com 15 livros, aos quais não tardaram a juntar-se uns 300 volumes dos quais muitos haviam pertencido aos padres lazaristas, então ausentes no estrangeiro, P.es Pereira da Silva e Sebastião Mendes” (GUIMARÃES, 1962, V, 130). Em 1920, já a biblioteca contava 3000 volumes e o número foi sempre aumentando, bem como o número de empréstimos e o de leitores que frequentavam a sala de leitura. Em nota inserta no Diário da Madeira de 31 de janeiro de 1937, pode ler-se que a Biblioteca Municipal e a Utile Dulci são as duas únicas bibliotecas públicas do Funchal. A este contributo cultural, proporcionado através do livro que a biblioteca tornava acessível, outras iniciativas se juntaram, como o círculo de estudos e as quintas-feiras literárias que, no Instituto de Ensino Secundário e Comercial do Funchal, reuniam pessoas interessadas em enriquecer o âmbito dos seus conhecimentos. Pode dizer-se que, através dos Lazaristas que foram passando pela capelania do Hospício, a Madeira foi berço do movimento ecuménico. Foi no Funchal, no outono de 1889, que se deram os primeiros contactos entre o P.e Fernand Portal (1855-1926) e o anglicano lord Charles Wood Halifax que conduziriam mais tarde às promissoras Conferências de Malines, iniciadas a 6 de dezembro de 1921 e presididas pelo Cardeal Mercier. O P.e Portal, que durante muitos anos sofreu de doença pulmonar, chegou ao Funchal no dia 8 de outubro de 1889 e lá permaneceu até ao dia 4 de maio de 1890. Lord Halifax tinha, pela mesma altura, aportado à Madeira com a família, à procura de um clima suave e saudável. Como já tinha perdido um filho, levado pela tuberculose, e ele mesmo sofria desse mal, quis visitar o Hospício. Ao P.e Portal, um estudioso das instituições eclesiásticas para quem a teologia era apenas uma história do que Deus revelou aos homens, coube a tarefa de o receber. Começou assim uma relação de profunda estima pessoal e de infatigável colaboração na procura de caminhos para o diálogo e a unidade das igrejas. As conversações então iniciadas na Madeira tiveram o consentimento e estímulo do bispo do Funchal, D. Manuel Agostinho Barreto – que em maio de 1890 partiria para Roma, levando o P.e  Portal como seu secretário.  Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo A Companhia das Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo foi autorizada a estabelecer-se em Portugal por alvará de D. João VI, de 14 de abril de 1819. Dois anos depois, começava a organizar-se em Lisboa o primeiro núcleo de irmãs. As obras de assistência aos doentes, aos pobres e às crianças abandonadas foram-se multiplicando até que, no ano de 1834, chegou a legislação de Joaquim António de Aguiar que, extinguindo as ordens religiosas, inviabilizou a continuidade da instituição. Foi preciso esperar até ao outono de 1857 para as Filhas da Caridade, de nacionalidade francesa, voltarem a estabelecer-se em Portugal. À medida que a dedicação aos doentes, pobres e órfãos lhes iam granjeando o respeito e a gratidão das camadas populares mais humildes, nos jornais manipulados por políticos e mentores de orientação maçónica recrudesciam as campanhas contra as Filhas da Caridade. Depois de agitados debates nas mais altas instâncias políticas, esta Companhia recebeu nova ordem de expulsão do território nacional em maio de 1862, sem exceção da Madeira, onde as Filhas da Caridade tinham começado a trabalhar no Hospício D. Maria Amélia cerca de três meses antes. A opinião pública local e poderosas influências apoiaram sempre a presença das irmãs e as suas obras de bem fazer, mas elas acabaram mesmo por deixar o Funchal, em julho do mesmo ano em que tinham iniciado a obra do Hospício. Voltariam em 1871. Em agosto de 1900, as Filhas da Caridade foram convidadas a tomar conta de um pequeno Asilo de Mendicidade, onde eram acolhidos idosos e crianças abandonadas; mas tiveram de o abandonar em julho de 1902, devido a mudanças verificadas na administração. O anticongreganismo dominante deu origem a um decreto de Hintze Ribeiro, datado de 18 de abril de 1901, que obrigava a aprovação governamental as associações religiosas que se dedicassem a obras de beneficência e os respetivos estatutos. Os Estatutos da Associação Religiosa das Irmãs de S. Vicente de Paulo foram aprovados; deles faziam parte o hospital para tuberculosos no Funchal, escolas externas, asilo, ensino doméstico e, na mesma cidade, o já mencionado asilo de mendicidade. Em 1910, foi instaurada a república e com ela ganhou novo fôlego o anticongreganismo. Como todas as ordens e congregações, também as Filhas da Caridade foram intimadas a deixar o país. Acabaram, no entanto, por ficar, em virtude de, estatutariamente, o Hospício se encontrar, como já foi referido, sob a tutela da coroa sueca. Ao lado do Hospício, havia uma escola dirigida pelas irmãs e frequentada por mais de 700 crianças. As Filhas da Caridade que dela se ocupavam foram obrigadas a partir, e forçadas a abandonar a formação das crianças e as obras de assistência aos pobres. O poder republicano mais radical e hostil às congregações religiosas não deu tréguas às Filhas da Caridade nem aos capelães do Hospício. O ardil persecutório recorreu, em 1913, a um indivíduo alto, robusto e de cabelo loiro que, a falar inglês, se apresentou no Hospício como enviado do Rei da Suécia e com o intuito de verificar as contas a fim de as transmitir a Sua Majestade que, segundo dizia, estava descontente com o serviço das irmãs e se dispunha a entregar o estabelecimento a diaconisas protestantes inglesas. A pronta reação das irmãs e dos padres do Hospício consistiu em demonstrar que, segundo os estatutos da instituição, o estabelecimento podia ser fechado, mas nunca entregue a outra congregação ou associação. Tentativa semelhante, a pretexto de pagamento de impostos, seria repetida mais tarde, mas, uma vez mais, sem consequências. O Hospício sentiu os efeitos da guerra de 1914-1918, quando, a 3 de Dezembro de 1916, um submarino alemão atacou barcos ancorados na baía da cidade. Uma canhoneira francesa carregada de munições de guerra foi afundada e as respetivas munições explodiram. Dois obuses caíram no Hospício: um rebentou ao pé do jardim e o outro, sem explodir, alojou-se num edifício da escola, causando apenas danos materiais e um enorme susto. A comunidade do Hospício, ajudada por alguns colaboradores, dedicou-se, ao longo do seu primeiro século e meio de existência, a obras diversas, tais como jardim de infância, creche, escola, lar de idosos, lar para crianças carenciadas, além de obras de formação espiritual, como a Associação das Filhas de Maria Imaculada da Medalha Milagrosa, ereta no Hospício em 1880, as Damas da Caridade, e colaborações na catequese, na pastoral juvenil e no apoio às famílias. Ao findar o século XX, foram fundadas mais duas comunidades de Filhas da Caridade, as comunidades de Gaula e do Monte. Por iniciativa particular e a pedido do bispo do Funchal, as Filhas da Caridade fundaram em Gaula, para serviço dos pobres e de idosos, a Casa da Sagrada Família e Refúgio de S. Vicente de Paulo, que começou a funcionar no dia 1 de maio de 1988, dando apoio a muitas dezenas de pessoas. Em 1956, a Comunidade das Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo adquiriu no Monte, concelho do Funchal, um terreno amplo com moradia destinado a casa de formação e lugar de repouso para as irmãs. A agitação social que acompanhou a Revolução de 25 de abril de 1974 saldou-se pela ocupação do terreno e das instalações, que só foram recuperados pelas Filhas da Caridade depois de moroso processo. Em 1995, o conselho provincial criou aí a Fundação de Santa Luísa de Marillac, uma instituição particular de solidariedade social. A Comunidade do Monte-Quinta Betânia instalou um infantário e uma creche, colaborando com a paróquia na catequese e em serviços religiosos e conferências vicentinas.   Luís Machado de Abreu (atualizado a 30.12.2016)

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