Mais Recentes

serviço de estrangeiros e fronteiras

O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) é um serviço de segurança que depende do Ministério da Administração Interna, tem autonomia administrativa e se integra no quadro da política de segurança interna do país. O controlo de estrangeiros, no que respeita à sua entrada, permanência e saída de território nacional, foi desde os anos 40 do século XX uma tarefa cometida à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, depois designada por Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) e, após 1968, por Direção Geral de Segurança (DGS), a qual esteve sedeada durante muitos anos na rua da Carreira n.º 155, no Funchal. A PIDE/DGS tutelou os estrangeiros e fiscalizou a sua estadia em Portugal desde os anos 40 do século XX até ao dia 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos. Nos finais de abril, tal incumbência e os seus ficheiros passaram para a tutela da Guarda Fiscal (GF). Existiriam nessa altura cerca de 30.000 processos de cidadãos portugueses e estrangeiros, devidamente organizados e arquivados; o número de processos de cidadãos portugueses ultrapassava os 10.000. Sobre os portugueses, existia um ficheiro pormenorizado referente às viagens, quer internas, isto é, para o Continente e Açores, quer para o estrangeiro, fosse em férias, fosse por emigração, com um número de fichas individuais muito superior aos 10.000 processos acima referidos. Nessas fichas eram anotados os movimentos de cidadãos na condição de passageiros, quer por via marítima quer, posteriormente a 1964, por via aérea, uma vez que a mesma organização controlava as fronteiras portuguesas e, por tal razão, as da Madeira. A PIDE/DGS era dirigida, à altura da sua extinção na Madeira, pelo inspetor Anatólio, que tinha sob a sua direção cerca de 12 agentes da polícia política, os quais foram enviados para Lisboa nos finais de abril de 1974 sob escolta da PSP, sendo presos, após julgamento, por um período indeterminado e variável, no Estabelecimento Prisional de Alcoentre. Nessa altura, estariam domiciliados na Madeira com processos ativos cerca de 400 cidadãos estrangeiros, muitos deles nascidos na Madeira ou nela residentes de longa data. Em 1976, existiriam legalizados na Madeira cerca de 700, sendo as mais importantes comunidades a inglesa, a alemã, a venezuelana – muitos de cujos membros eram de origem portuguesa – e a nórdica; nos anos 80, juntaram-se-lhes angolanos, cabo-verdianos e guineenses e, já nos anos 90 e inícios do século XXI, ucranianos, russos, romenos, moldavos e brasileiros, que foram legalizados em três processos de regularização extraordinária, respectivamente em 2001, 2003 e 2005, este último exclusivamente para cidadãos brasileiros. As fichas que se encontravam na posse da PIDE/DGS foram mandadas queimar, cerca de um mês após a revolução de abril, à ordem da PSP, a quem o controlo de cidadãos estrangeiros foi cometido no dia 28 de maio de 1974; por essa razão, todo o acervo referente a estrangeiros passou da tutela da GF para a da PSP, tendo ficado sedeado no comando desta polícia, sito na rua do Carmo da cidade do Funchal, com a designação interna de Serviço de Estrangeiros (SE) e sob a autoridade do Ministério de Interior, posteriormente designado por Ministério da Administração Interna. Desse acervo referente a cidadãos nacionais não restou uma única ficha, ou um simples processo, escapando apenas os documentos de identidade ou de viagem que haviam sido apreendidos pela PIDE/DGS, nomeadamente bilhetes de identidade e passaportes, alguns dos quais foram devolvidos aos seus legítimos titulares. Os documentos que não foi possível devolver, por impossibilidade de localização do seu titular foram devolvidos à Conservatória dos Registos Centrais (os bilhetes de identidade) e entregues no Palácio de São Lourenço (os passaportes), ficando à guarda do Governo Civil da Madeira. Os processos de cidadãos estrangeiros da PIDE/DGS que transitaram para o novo serviço mantiveram-se até 2005 sob a jurisdição e guarda do Serviço de Estrangeiros, depois Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Este acervo incluía peças documentais únicas, muitas delas referentes a cidadãos estrangeiros nascidos na Madeira e ligados por sangue e nome a muitas das principais e mais influentes famílias da Região, como os Blandy, os Hinton, os Welsh, os Garton ou os Gesch. A estes processos juntaram-se também documentos estatísticos, carimbos, selos brancos, chancelas e demais parafernália administrativa e de controlo de fronteiras da PIDE/DGS, cuja destruição foi ordenada, em 2005, pelo Diretor Regional, ficando na sede do serviço, sita à rua Nova da Rochinha, apenas os designados processos ativos. O SE esteve sedeado na PSP de 28 de maio de 1974 até ao verão de 1977. A partir de 1977, passou à tutela direta do MAI, ganhando autonomia administrativa e funcional e uma nova designação: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) Enquanto esteve na PSP, o SE foi chefiado administrativamente por Gabriel Oliveira, coadjuvado, na qualidade de oficial de diligências, por Manuel Abreu. Na qualidade de operacionais, na fiscalização de estrangeiros e de instalações hoteleiras trabalhavam 5 agentes e subchefes da PSP. A partir de 1977, o SE foi dirigido por um diretor, o primeiro dos quais foi o capitão França Machado, originário do Porto da Cruz. O controlo de fronteiras manteve-se, nos postos de fronteiras, sob a tutela da GF até agosto de 1992 em Portugal continental e até 7 de outubro desse mesmo ano no aeroporto do Funchal, data em que se deu a transferência desse comando para o SEF. Foi nomeado Inspetor Responsável desse Posto de Fronteira, designado por PF004, o inspetor SEF José Felisberto de Gouveia Almeida e como adjunta de comando a inspetora SEF Fátima Teixeira, com 24 inspetores-adjuntos SEF. A fronteira aérea do Porto Santo, PF007, passou para a tutela SEF em 1997, sob o mesmo comando, e o mesmo aconteceu pouco depois com as fronteiras marítimas, tanto a do Porto do Funchal, PF 208, quanto a da Marina do Porto Santo, PF223, todas unificadas sob o mesmo comando. O SE, depois SEF, tem também uma delegação no Porto Santo; teve uma delegação em Machico, a qual foi extinta no final de 1980. A partir de 2004, o SEF na Madeira ocupou um balcão duplo na Loja do Cidadão do Funchal, local onde a partir de 2006 se passaram a fazer todos os atendimentos de cidadãos estrangeiros que solicitavam os seus serviços. Os diretores da Direção Regional do SE/SEF na Madeira entre 1977 e 2015 foram: de 1977 a 1979, o capitão França Machado; de 1979 a 1983, o capitão Fonseca Ferreira; de 1983 a 1993, o major Renato Trindade; de 1993 a 2004, o inspetor SEF José Felisberto de Gouveia Almeida; de 2004 a 2007, o inspetor SEF César de Jesus Inácio; de 2007 a 2009, o inspetor SEF Luís Frias; de 2009 a 2012, a inspetora SEF Fátima Teixeira; de 2012 a 2015, o inspetor SEF Paulo Torres. O SEF Madeira é um Serviço com tutela directa do SEF e, por via deste, do Governo Central, via Ministério da Administração Interna.     José Felisberto Almeida (atualizado a 30.12.2017)

Direito e Política História Política e Institucional

segurança social

De acordo com a Lei de Bases da Segurança Social (LBSS), lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, o sistema de Segurança Social português encontra-se estruturado em três sistemas: o sistema de proteção social de cidadania (que se decompõe nos subsistemas de ação social, de solidariedade e familiar), o sistema previdencial e o sistema complementar. O sistema de proteção social de cidadania tem por objetivos garantir direitos básicos dos cidadãos e a igualdade de oportunidades, bem como promover o bem-estar e a coesão sociais. Ele inclui, em primeiro lugar, o subsistema de ação social, cujos objetivos centrais são os da reparação e prevenção de situações de carência e desigualdade socioeconómica, de dependência, de disfunção e de vulnerabilidade sociais, designadamente de crianças, jovens, pessoas com deficiência e idosas, bem como a integração e promoção comunitárias das pessoas e o desenvolvimento das respetivas capacidades. A sua concretização faz-se sobretudo mediante o desenvolvimento de um conjunto de serviços e equipamentos sociais, bem como de programas de combate à pobreza, disfunção e marginalização sociais. Em segundo lugar, o sistema de proteção social de cidadania integra o subsistema de solidariedade, que visa assegurar, a partir de um princípio de solidariedade nacional, direitos essenciais de forma a prevenir e erradicar as situações de pobreza e exclusão, e garantir prestações em situações de comprovada necessidade pessoal ou familiar, não incluídas no sistema previdencial. E, de facto, este subsistema garante a atribuição aos beneficiários, desde que cumprindo condições de residência e de recursos, de prestações de carácter não contributivo, num conjunto de eventualidades sociais, a saber: falta ou insuficiência de recursos económicos dos indivíduos e dos agregados familiares, invalidez, velhice e morte, e situações de insuficiência dos rendimentos de trabalho ou da carreira contributiva dos beneficiários. Das prestações deste subsistema (que grosso modo equivale ao anterior regime não contributivo), destacam-se três: as pensões sociais (de velhice e invalidez); o Rendimento Social de Inserção (constante da lei n.º 13/2003, de 21 de maio, alterada); e os complementos sociais, estes destinados a completar o valor da pensão estatutária quando este se situe abaixo do valor fixado para a pensão mínima do regime geral da Segurança Social. Finalmente, o sistema de proteção social de cidadania integra ainda o subsistema de proteção familiar, que tem por objetivo assegurar a compensação de encargos familiares, garantindo o pagamento de prestações nesta eventualidade (v.g., abono de família, cujo regime consta da conjugação de vários diplomas: dec.-lei n.º 176/2003, de 2 de agosto, alterado, dec-lei n.º 70/2010, de 16 de junho, alterado, dec.-lei n.º 77/2010, de 16 de junho e dec.-lei n.º 116/2010, de 22 de outubro) e, bem assim, nas situações de dependência e de deficiência. O sistema previdencial visa garantir, na base de um princípio de solidariedade de base laboral, prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido em consequência da verificação das eventualidades legalmente definidas (doença, parentalidade, desemprego, acidentes de trabalho e doenças profissionais, invalidez, velhice e morte). Voltaremos a este sistema, mais à frente. Por último, o sistema complementar, marcado pela sua natureza facultativa, concretiza-se num regime público de capitalização e em regimes complementares de iniciativa coletiva e individual. O regime público de capitalização foi uma novidade da LBSS (art. 82.º). Tratou-se de instituir, numa base facultativa (a adesão por parte dos contribuintes/beneficiários da Segurança Social é voluntária), um esquema complementar de reforma que, em contrapartida das contribuições adicionais feitas pelo subscritor, concede, logo que verificados os requisitos de acesso mormente quanto à idade de acesso à pensão, complementos de reforma, sob a forma de pagamentos únicos (devolução integral do capital aplicado mais rendibilidade) ou de rendas vitalícias. As taxas contributivas a pagar, a incidir sobre o valor de remuneração referente, resultam de uma opção do subscritor, entre três hipóteses: 2 %, 4 % ou 6 %. O regime público de capitalização foi efetivamente instituído e regulamentado com a aprovação do dec.--lei n.º 26/2008, de 22 de fevereiro, que regulou ainda o respetivo Fundo de Certificados de Reforma. A esta diferença de estrutura no sistema da Segurança Social correspondem formas diferentes de financiamento. Por força do princípio da adequação seletiva (art. 89.º da LBSS), enquanto o sistema de proteção social de cidadania é financiado através de transferências do Orçamento do Estado (OE) para o orçamento da Segurança Social ou pela consignação de receitas fiscais (fundamentalmente o chamado IVA social), o sistema previdencial financia-se a partir de contribuições sociais (vide também art. 90.º da LBSS, desenvolvido pelo dec.-lei n.º 367/2007, de 2 de novembro, o qual concretiza as formas de financiamento da Segurança Social). Pela sua razão de ser histórica e utilidade – a necessidade de garantir que o Estado cumpra a suas responsabilidades em matéria de financiamento das áreas não contributivas da Segurança Social –, poder-se-á afirmar que o princípio da adequação seletiva tem um significado unidirecional. Quer isto dizer que, se é certo que ele pretende evitar que as contribuições sociais (fonte de financiamento primacial das prestações garantidas no sistema previdencial) sejam desviadas para financiar as despesas com as prestações de natureza não contributiva e assentes num princípio de solidariedade nacional (é o caso das prestações e apoios na área da Ação Social e do subsistema de solidariedade), já a inversa é questionável. Pois que, se é verdade que o n.º 1 do art. 90.º da LBSS manda financiar o sistema de proteção social de cidadania por transferências do OE e por consignação de receitas fiscais, isso não quer (não pode) significar que estas mesmas fontes de financiamento não possam ser utilizadas para financiar o sistema previdencial, especialmente se e quando a situação financeira deste o reclamar. Defender o contrário significaria aceitar que o Estado, enquanto tal, se mantivesse totalmente alheio e não responsável perante a proteção social garantida no sistema previdencial (que é um sistema público) – i.e., perante a proteção na ocorrência dos riscos sociais –, designadamente em situações de dificuldade financeira ou de défice deste. Esta possibilidade é aceite no dec.-lei n.º 367/2007, o qual prevê, de forma expressa que, sem prejuízo das receitas próprias do sistema previdencial (elencadas no n.º 1 do art. 14.º), possam ser efetuadas, em favor deste sistema, transferências do OE, sempre que a sua situação financeira o justifique (cf. n.º 3). Este mesmo dec.-lei, concretizando o disposto no art. 91.º da LBSS, estabelece ainda a distinção entre sistema previdencial de repartição, aquele que genericamente assegura a cobrança de receita (das contribuições sociais) e o pagamento das prestações sociais, e o sistema previdencial de capitalização, encarregue de gerir, em regime de capitalização coletiva, os saldos excedentários do orçamento da Segurança Social (do sistema previdencial repartição) e, bem assim, o montante equivalente a dois a quatro pontos percentuais da quotização devida pelos trabalhadores por conta de outrem, com vista a formar um “bolo” financeiro capaz de assegurar o pagamento de pensões ao longo de dois anos (em caso de necessidade financeira). A capitalização faz-se no Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, cuja gestão compete ao Instituto de Gestão dos Fundos de Capitalização da Segurança Social. Este regime coletivo, intitulado também de capitalização pública de estabilização, não se confunde com o supra mencionado regime público de capitalização. Neste, está em causa uma capitalização individual que visa assegurar aos subscritores, e apenas a estes, complementos de reforma. Naquele, pelo contrário, a capitalização é coletiva e tem em vista criar uma folga financeira com intuitos de estabilização do sistema previdencial, na sua globalidade. Além do princípio da adequação seletiva, releva ainda, no domínio financeiro, o princípio da diversificação das fontes de financiamento (art. 88.º da LBSS). O princípio permite assegurar que o sistema de Segurança Social possa ser financiado não apenas através de contribuições sociais, mas também através de outras fontes de receita, maxime de natureza fiscal. Por ora, no caso português, ao contrário do que sucede em outros ordenamentos, essa possibilidade confina-se ao chamado IVA social (uma percentagem do IVA resultante do aumento das taxas deste imposto em 1996), o qual é afeto ao financiamento do sistema de proteção social de cidadania e, dentro deste, preferencialmente, ao subsistema de proteção familiar. A redação do art. 88.º da LBSS sugere contudo que possam ser equacionadas outras fontes de financiamento no próprio sistema previdencial, na medida em que objetivo assumido do princípio é o de assegurar a redução dos custos não salariais da mão-de-obra. Tratar-se-á assim de desonerar o fator trabalho, encontrando-se, em alternativa, outras formas de incidência (consumo, património, capital) e de tributação. O epicentro do sistema de Segurança Social está no sistema previdencial. Este sistema baseia-se num princípio de contributividade (art. 54.º da LBSS), que significa, por um lado, que o sistema é autofinanciado (financiando-se nas contribuições dos trabalhadores e das entidades empregadoras) e, por outro lado, que existe uma relação sinalagmática entre a obrigação de contribuir e o direito a receber prestações sociais, nas eventualidades típicas, verificadas estas e cumpridos os demais requisitos legais. No entanto, tal princípio sofreu uma dupla entorse: por um lado, o sistema vai sendo cada vez menos autofinanciado, na medida em que as receitas próprias do sistema (as contribuições sociais) tendem a crescer a um ritmo menor do que a despesa (sobretudo a despesa com pensões); por outro lado, a relação sinalagmática a que se refere o preceito legal é cada vez menos evidente, na medida em que, relativamente a diversas prestações (desde logo, quanto às pensões), não existe já hoje uma integral proporção entre aquilo com que se contribui e aquilo que se recebe em contrapartida. O sinalagma é incompleto e imperfeito. A análise do sistema previdencial implica olhar com atenção para os seus dois domínios financeiros primaciais, as receitas e as despesas. Sobre as receitas – as contribuições sociais – rege o Código Contributivo (CC), aprovado pela lei n.º 110/2009, de 16 de setembro (alterada). As contribuições sociais são prestações monetárias pagas pelos trabalhadores e, se for caso disso, pelas respetivas entidades empregadoras, destinadas a financiar a atribuição, pelo sistema público de Segurança Social, de um conjunto de prestações sociais, mas também a prossecução de algumas políticas nas áreas laboral e do emprego. Sobre a natureza jurídica das contribuições sociais, muito se tem discutido entre nós e no estrangeiro, divergindo as opiniões). Todos reconhecem, porém, a sua natureza ambivalente e ambígua, a qual resulta de uma oscilação ontológica entre uma fisionomia bilateral, fundada no princípio do benefício (que a levaria a aproximar-se mais de uma taxa ou de uma contribuição financeira) e uma fisionomia unilateral, assente numa lógica de capacidade contributiva (que a aproximaria mais de um verdadeiro imposto). Mas essa ambivalência resulta também da bicefalia própria deste tributo, resultante de ser suportado por trabalhadores e por entidades empregadoras. Entre nós, para lá da discussão, e no que diz respeito ao regime aplicável, o Tribunal Constitucional tem defendido a aplicação às contribuições sociais, nos mesmos termos dos impostos, do princípio da legalidade fiscal (art. 103.º, n.º 2, em articulação com a alínea i) do n.º 1 do art. 165.º, ambos da Constituição da República Portuguesa). De acordo com este princípio, os impostos são criados por lei (lei da Assembleia da República ou decreto-lei do Governo precedido de autorização legislativa), à qual compete definir também os respetivos elementos essenciais: incidência, taxas, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes. Por outro lado, e agora já numa ótica económica, importa notar que as contribuições sociais constituem encargos não salariais sobre a mão de obra, cujo efeito financeiro se repercute a montante e a jusante. Na verdade, os custos induzidos por esta tributação são repercutidos pelas empresas que os suportam, a montante, nos salários pagos aos trabalhadores e a jusante, nos preços praticados, designadamente junto dos consumidores. Sobre a matéria contributiva dispõe o CC. Dele resultam reguladas as principais relações jurídicas da Segurança Social, a saber: i) Relação jurídica de vinculação ao sistema de Segurança Social. Traduz o estabelecimento de um elo estável entre as pessoas interessadas e o sistema de Segurança Social, mediante a sua identificação pessoal, através do ato de inscrição dos beneficiários ou registo das entidades empregadoras (vejam-se os arts. 6.º a 8.º do CC). O objetivo fundamental da vinculação é o de determinar o titular do direito à Segurança Social, bem como o respetivo conteúdo; com a inscrição o beneficiário ou contribuinte obtém o Número de Identificação na Segurança Social. ii) Relação jurídica de enquadramento nos regimes de Segurança Social (art. 9.º do CC). Os regimes de segurança social podem ser de vários tipos (vide art. 53.º da LBSS), destacando-se os regimes gerais dos trabalhadores por conta de outrem (TCO) e dos trabalhadores independentes (TI), sendo que o enquadramento dos trabalhadores num ou noutro dependerá naturalmente da qualificação do respetivo vínculo e, existindo mais do que um, daquele que prevalece. iii) Relação jurídica contributiva. Esta recai sobre trabalhadores e, se for caso disso, suas entidades empregadoras. Traduz-se em dois tipos de obrigações: a) por um lado, no pagamento das contribuições e quotizações (vulgarmente tratados como descontos para a Segurança Social); b) obrigações declarativas diversas, tais como a declaração dos tempos de trabalho e das remunerações devidas aos trabalhadores. A obrigação de declarar remunerações cabe às entidades empregadoras no caso do regime geral dos TCO (cf. art. 40.º), a quem cabe também o pagamento quer das contribuições próprias, quer da quotização dos seus trabalhadores – neste caso através de retenção na fonte (cf. art. 42.º). No regime geral dos TI, estes são equiparados às entidades empregadoras (cf. n.º 2 do art. 150.º), cabendo-lhes inteiramente o cumprimento da obrigação contributiva: pagamento de contribuições e cumprimento de obrigações declarativas (art. 151.º). As contribuições sociais são tributos assentes em taxas proporcionais, cuja base de incidência são os rendimentos do trabalho. Do CC resultaram importantes novidades, quer ao regime geral dos TCO, quer no regime geral dos TI. Em relação ao regime geral dos TCO, assinale-se, antes de mais, o alargamento da base de incidência contributiva, passando o conceito de remuneração relevante para efeitos de segurança social a aproximar-se do conceito de remuneração que encontramos no Código do IRS (CIRS) (sobretudo prestações remuneratórias da categoria A de rendimentos, a que se refere o art. 2.º do CIRS) e, bem assim, do próprio conceito jus-laboral de remuneração. Assim, diversas prestações remuneratórias, sobretudo de natureza variável (fringe benefits), que estavam fora do conceito de remuneração em sede de Segurança Social foram objeto de inclusão (cf. arts. 46.º e 46.º-A do CC). Para além disso, o mesmo Código introduziu alterações importantes a nível das taxas das contribuições sociais. A TSU é de 34,75 %, sendo paga numa parte pela entidade empregadora (23,75 %), noutra parte pelo trabalhador (11 %). Esta taxa contributiva destina-se a pagar o custo técnico das diferentes eventualidades sociais que aparece devidamente desagregado no próprio CC (cf. art. 51.º). Depois, estão previstas taxas contributivas mais favoráveis, as quais podem ficar a dever-se a diferentes razões, tais como: redução do âmbito material de proteção (em certo de tipo trabalho, não há lugar, por exemplo, à proteção no desemprego, pelo que, nesse casos, a taxa se reduz em conformidade – o caso do trabalho no domicílio); natureza não lucrativa da entidade empregadora (v.g., trabalho prestado para instituições particulares de solidariedade social; serviço doméstico); natureza débil da atividade económica (o caso da agricultura e das pescas); promoção do emprego junto de certas camadas especialmente frágeis (v.g., desempregados de longa duração, jovens à procura do primeiro emprego, portadores de deficiência). O CC ficou ainda marcado por uma previsão inovadora (a qual, todavia, até ao momento, não foi objeto de regulamentação, nem de concretização prática): tratou-se de proceder à adequação das taxas contributivas à modalidade de contrato de trabalho; assim, a taxa é reduzida, em um ponto percentual (pp) por cada trabalhador contratado, se a modalidade for o contrato de trabalho por tempo indeterminado, e a taxa é aumentada, em três pp por cada trabalhador, se a modalidade for o contrato de trabalho a termo resolutivo (cf. art. 55.º). Em relação ao regime geral dos TI, também resultaram do CC diversas novidades. Em primeiro lugar, a aproximação do âmbito material de proteção do regime do TCO. Isto desde logo em virtude da supressão, já na primeira versão do CC, da distinção, que resultava da legislação anterior (dec.-lei n.º 328/93, de 25 de setembro), entre regime obrigatório (proteção nas eventualidade velhice, invalidez, morte e parentalidade) e regime alargado de proteção (que incluía, além daquelas, também os encargos familiares, a doença e as doenças profissionais). As taxas eram diferentes, consoante os regimes (25,4 % no primeiro caso, 32,5 % no segundo). No novo quadro, o âmbito material de proteção no regime dos TI é único e inclui todas as eventualidades, com exceção do desemprego. Tratando-se de prestação de serviços, a cessação de atividade não é reconduzível a uma situação de desemprego. No entanto, reconhecida a existência dos falsos recibos verdes, situações que materialmente se aproximam de um verdadeiro contrato de trabalho, não o sendo formalmente, justificou-se mais tarde garantir, para essas situações, e na base de determinados indícios, a proteção no desemprego. Assim, na sequência da aprovação do dec.-lei n.º 35/2012, de 15 de março, o CC foi alterado pela lei n.º 20/2012, de 14 de maio (alteração à lei do OE para 2012), contemplando-se a possibilidade de atribuição de subsídio de desemprego (melhor, subsídio por cessação de atividade), aos TI (prestadores de serviços), considerados economicamente dependentes (vide novo art. 141.º do CC). E assim sendo, o âmbito material de proteção no caso destes TI coincide integralmente com o âmbito definido para os TCO. Em segundo lugar, assistimos no CC a uma mudança tendencial e progressiva do conceito de remuneração relevante: da remuneração convencional à remuneração real. Assim, o escalão de rendimento, para efeitos de tributação, deixou de ser escolhido livremente pelo trabalhador, antes resulta da conversão do duodécimo do rendimento obtido e declarado fiscalmente, numa percentagem do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), com o limite de 12 IAS (o último escalão). Finalmente, assinalamos como novidade do CC, o novo regime aplicável às entidades contratantes: a previsão de que as pessoas coletivas e singulares que beneficiem da prestação de serviços de um TI são também entidades contribuintes da Segurança Social (art. 140.º do CC). Assim, passam a considerar-se entidades contratantes de serviços as pessoas coletivas e singulares com atividade empresarial que, no mesmo ano civil, beneficiem de pelo menos 80 % do valor da atividade independente, caso em que o TI é, portanto, nos termos supra, considerado trabalhador economicamente dependente. Na verdade, esta medida está intimamente relacionada com aqueloutra antes referida, a da concretização da atribuição de subsídio de desemprego aos TI (constante da lei n.º 20/2012, de 14 de maio). A taxa contributiva a suportar pelas entidades contratantes é de 5 % sobre o valor dos rendimentos resultantes de prestações de serviços, e esses 5 % correspondem precisamente ao custo do desemprego. iv) Relação jurídica sancionatória. Repare-se que no CC apenas é regulada a parte contraordenacional e, dentro desta, a parte contraordenacional respeitante ao incumprimento das regras impostas pelo CC relativas às demais relações jurídicas de segurança social, antes aqui mencionadas (vide a regulação desta matéria, nos arts. 221.º e seguintes do CC). Assim sendo, não são objeto de regulação no CC os aspetos sancionatórios que tenham a ver com contraordenações no seio da relação jurídica prestacional (pois as prestações sociais não são tratadas no CC), nem a matéria relativa aos crimes contra a Segurança Social. Quanto àquelas, regulam desde logo os diplomas específicos aplicados a cada uma das prestações (por exemplo, contraordenações em virtude do recebimento indevido de prestações no desemprego são reguladas pelos arts. 64.ºss do regime geral da proteção no desemprego, dec.-lei n.º 220/2006, de 3 de novembro e suas alterações). Quanto aos crimes contra a Segurança Social, regula o Regime Geral das Infrações Tributárias (lei n.º 15/2001, de 5 de junho, e suas alterações) e aqui se tipificam dois tipos de crimes nesta matéria, um tanto podendo respeitar à relação jurídica contributiva como à relação jurídica prestacional (o crime de fraude contra a Segurança Social – art. 106.º), outro apenas relacionado com a obrigação contributiva e, concretamente, com a obrigação, da parte da entidade empregadora, de proceder à retenção na fonte da quotização do trabalhador, garantindo o pagamento desta junto da Segurança Social (crime de abuso de confiança – art. 107.º). Repare-se que, no seio da obrigação contributiva, o Direito valora diferentemente, de um lado, o desrespeito pelas obrigações declarativas ou obrigações tributárias acessórias (incluindo a obrigação de proceder à retenção na fonte) e que constituem, no caso do regime geral dos TCO, basicamente obrigações das entidades empregadoras e, do outro lado, o incumprimento pontual da obrigação de pagamento de contribuições próprias (para as entidades empregadoras no regime geral dos TCO e para os trabalhadores no regime dos TI). No caso do desrespeito por obrigações declarativas, o domínio é, como vimos, o do Direito Contraordenacional ou do Direito Penal. No caso do incumprimento da obrigação de pagamento, a situação é de mora (havendo lugar à cobrança de juros), pelo que estamos no âmbito do Direito Civil. As dívidas à Segurança Social podem ser regularizadas através de processos de execução cível ou de execução fiscal (n.º 1 do art. 186.º do CC), prevendo-se ainda a verificação de situações excecionais de regularização de dívidas (cf. art. 190.º), nos termos das quais pode haver lugar à isenção ou redução de juros de mora. O prazo de prescrição das dívidas à Segurança Social é de cinco anos contados da data em que a obrigação deveria ter sido cumprida (art. 187.º). Para além da área contributiva, o sistema previdencial é composto pelo domínio das prestações sociais. Tais prestações são pagas nas eventualidades típicas previstas, desde logo, na LBSS (velhice, invalidez, morte, desemprego, parentalidade, doença, incluindo doenças profissionais). Os acidentes de trabalho integram também o âmbito material de proteção neste sistema, se bem que a Segurança Social pública externaliza para as seguradoras privadas a responsabilidade pela provisão do risco social: é junto das seguradoras que as entidades empregadoras são obrigadas a subscrever um seguro de acidentes de trabalho. As prestações sociais distinguem-se entre prestações imediatas (nas eventualidades desemprego, parentalidade e doença), cujos períodos de formação são curtos (aferíveis ao mês) e prestações diferidas ou pensões, cujos períodos de formação são longos, reportados ao ano. Trata-se de pensões de velhice, de invalidez e de sobrevivência. Seguindo o ensinamento de Ilídio Neves, podemos diferenciar, como requisitos de acesso às prestações sociais, os seguintes: i) requisitos relativos ao cumprimento da obrigação contributiva (matéria que vimos no ponto anterior); ii) requisitos relativos ao período de tempo contributivo, havendo que considerar aqui a noção de prazo de garantia (período mínimo de contribuição para se poder beneficiar da abertura do direito), que, como dissemos, é curto nas prestações imediatas e longo, nas pensões; iii) requisitos relativos aos eventos típicos e que são as eventualidades supra mencionadas – repare-se que falamos de verdadeira tipicidade legal; o sistema previdencial de Segurança Social não garante proteção para lá destes eventos; iv) requisitos relativos a características específicas dos beneficiários, e que relevam particularmente em relação a esta ou aquela prestações sociais, tais como: idade (mínima, máxima ou ambas); situação escolar; estatuto laboral ou profissional (v.g., índice de profissionalidade); requisitos médicos; requisitos de natureza económica (v.g., condição de recursos – se bem que neste caso, apenas ainda para as prestações do sistema de proteção social de cidadania, não para o previdencial); v) requisitos relativos ao cumprimento de exigências administrativas, de que se destacam a necessidade e apresentação de requerimento (as prestações sociais são sempre requeridas) e a apresentação de certos meios de prova (v.g., prova de que se está grávida ou de que se teve um filho). Na Segurança Social, importa diferenciar entre abertura do direito à proteção social e cálculo ou apuramento do valor das prestações. Só depois de verificado que o beneficiário tem direito à prestação, é que se passa à determinação do valor da mesma. Quanto à abertura do direito, ele depende, como vimos antes, da verificação do prazo de garantia, determinado em meses para as prestações imediatas (no caso por exemplo de atribuição do subsídio de desemprego é de 450 dias de trabalho por conta de outrem, com o correspondente registo de remunerações, num período de 24 meses imediatamente anterior à data do desemprego – art. 22.º do dec.-lei n.º 220/2006) e aferido em anos, para as pensões (é de três ou cinco anos, para a invalidez, consoante seja absoluta ou relativa – art. 16.º do dec.-lei n.º 187/2007, de 10 de maio – e é de 15 anos para a velhice – art. 19.º do mesmo diploma). Relativamente ao cálculo ou apuramento do valor das prestações, as regras tendem a ser mais complexas quando se trate de calcular pensões, do que no cálculo das prestações imediatas. Nestas, o apuramento do valor da prestação começa por fazer-se a partir da determinação da remuneração de referência. Determinada essa remuneração (que na verdade é uma média de remunerações registadas ao longo de um determinado período), procede-se ao apuramento da prestação, o qual dependerá da aplicação, àquela remuneração, de uma taxa de substituição. No caso das prestações de maternidade, e para o gozo pelo período de 120 dias, a taxa de substituição é de 100 % (ou seja, o valor da prestação equivale inteiramente ao valor da remuneração de referência previamente apurada) – veja-se o art. 30.º do dec.-lei n.º 91/2009, de 9 de abril, que estabelece o regime de proteção na parentalidade. Noutros casos, a taxa de substituição é menor: por exemplo, no subsídio de doença, a taxa é progressiva e aumenta em função da duração da situação de incapacidade temporária. Assim, nos termos do 16.º do dec.-lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, alterado (regime jurídico da proteção na doença), as percentagens de substituição são: a) 55 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária de duração inferior ou igual a 30 dias; b) 60 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária de duração superior a 30 e que não ultrapasse os 90 dias; c) 70 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária de duração superior a 90 e que não ultrapasse os 365 dias; d) 75 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária que ultrapasse os 365 dias. O cálculo das pensões é mais complexo. Regula aqui fundamentalmente o já referido dec.-lei n.º 187/2007, que é o regime jurídico das pensões. O cálculo destas (pensamos fundamentalmente no cálculo das pensões de velhice) atende sobretudo a três tipos de fatores, que consideramos fatores estáticos de determinação da pensão, a saber: i) determinação da remuneração de referência, de acordo com as regras legais aplicáveis; ii) aplicação da taxa anual de formação, definida também por lei; iii) dimensão da carreira contributiva (considerando-se carreira completa, a de quarenta anos). Existem duas formas de cálculo da chamada pensão estatutária. Uma primeira aplicável aos beneficiários inscritos no sistema até 2001 e que é uma fórmula proporcional: a remuneração de referência resulta quer das regras antigas (10 melhores salários dos últimos 15 anos), quer das regras novas (média de salários de toda a carreira contributiva), ponderadas em função do número de anos de carreira em que o contribuinte conviveu com cada uma dessas regras. Além disso, a taxa anual de formação, aplicável à determinação da remuneração de referência, é também diferente: 2 % ao ano quando se aplique à parcela antiga (P1); entre 2 % e 2,3 % (em função quer da dimensão da carreira, quer do próprio valor da remuneração de referência) quando aplicável à parcela nova (P2). Uma segunda forma de cálculo é aplicável aos inscritos no sistema após 2002. Quanto a estes, as regras de cálculo são apenas as regras novas, as regras antes vistas para o P2. Mas para além destes fatores estáticos, há a considerar um fator dinâmico de cálculo da pensão, o fator de sustentabilidade (FS). Ao contrário dos anteriores, este é dinâmico porque se relaciona com a evolução da esperança média de vida: pretende internalizar no valor da pensão os efeitos da evolução demográfica, e em particular o efeito do envelhecimento. É um fator de evolução incerto, pelo que introduz alguma volatilidade no cálculo da pensão. Este fator foi previsto na atual LBSS de 2007 e regulado no referido dec.-lei n.º 187/2007. Recentemente, os termos da sua aplicação foram significativamente alterados, juntamente com a alteração da idade de acesso à pensão de velhice (que passou dos anteriores 65 para 66 anos). As novidades constam do dec.-lei n.º 167-E/2013, de 31 de dezembro, que alterou aqueloutro decreto-lei. Assim, o FS passou a aplicar-se: a) às pensões iniciadas até 31 de dezembro de 2014 e b) às pensões iniciadas após 1 de janeiro de 2015, mas desde que requeridas antes dos 66 anos. As regras são diferentes consoante os casos. Para pensões iniciadas até 31 de dezembro de 2014, valem as regras iniciais do FS, a saber: resulta do rácio entre a esperança média de vida (EMV) no ano de 2006 e a EMV verificada no ano anterior ao requerimento de pensão (n-1). Este rácio multiplicará pelo valor da PE apurado de acordo com as regras supra, obtendo-se assim o valor da pensão final. Diversamente para as pensões iniciadas após 1 de janeiro de 2015 e nas condições antes indicadas (requeridas antes dos 66 anos), o rácio será EMV2001/EMVn-1. Ainda a propósito do regime de pensões, importa recordar que um dos princípios que esteve presente na reforma do sistema de pensões em 2007 foi o princípio do envelhecimento ativo. Tratava-se de criar incentivos para assegurar a permanência na vida ativa dos trabalhadores mais velhos. Penalizou-se assim, de forma mais pesada do que antes sucedia, a antecipação da idade de reforma no âmbito da flexibilização. A crise financeira que se seguiu e a intervenção da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) acentuaram a necessidade de evitar, tanto quanto possível, o recurso ao expediente das reformas antecipadas. Por isso, em 2012 foram suspensas, para só voltarem a ser admitidas a partir de 2015, e com limites. A crise, de resto, e a austeridade subsequente reavivaram o debate em torno das questões da reforma da Segurança Social. Nos anos noventa, a questão demográfica e o problema da sustentabilidade de longo prazo dos sistemas de pensões levaram alguns estudiosos e políticos a defender a substituição dos sistemas de repartição por sistemas de capitalização. Esta substituição implicava tendencialmente, de igual modo, a privatização parcial da Segurança Social. Para isso, deveriam os países que o não tivessem ainda feito (o caso de Portugal), fixar um teto superior ao valor da remuneração (plafonamento contributivo), acima do qual os contribuintes deixariam de descontar para o sistema público, passando antes a financiar segundas pensões obrigatórias, geridas em capitalização, pelo sistema segurador privado. O objetivo deste plafonamento contributivo seria o de garantir, a longo prazo, poupanças na despesa pública, pois o Estado – a Segurança Social pública –, ficaria apenas responsável por pagar uma pensão de montante limitado, e limitado em função daquele mesmo plafond. A este tipo de reformas, reformas estruturantes, podemos qualificar de reformas sistémicas de primeira geração. O assunto foi muito debatido na sequência do Livro Branco da Segurança Social (1998), mas só viria a ser assumido, como vontade política, em 2002, na Lei de Bases aprovada durante Governo liderado por Durão Barroso. Tal intenção não vingou: esbarrou, já nessa altura, com oposições de natureza ideológica e problemas de eficácia. Na verdade, ao contrário do que se poderia pensar, os modelos de capitalização não são imunes, antes pelo contrário, aos efeitos do envelhecimento demográfico. É no prémio de seguro que esses mesmos efeitos, desde logo, se fazem sentir. Para além disso, uma mudança deste tipo conhecia importantes entraves financeiros. O problema fundamental estaria em como financiar a Segurança Social no período de transição, o período durante o qual esta perderia receita desviada para o sistema de capitalização privado, não se fazendo ainda sentir as poupanças de despesa a longo prazo desejadas. De facto, a Segurança Social teria de continuar a fazer face aos compromissos quotidianos assumidos perante pensionistas em curso. Assim, por causa destas dificuldades, tais intenções foram abandonadas, para se optar, nos Governos seguintes, por introduzir medidas de cariz paramétrico, ou seja, medidas que, não alterando a fisionomia e a filosofia do sistema, procurariam incrementos na receita e poupanças na despesa, reforçando assim a sustentabilidade da Segurança Social. Medidas como a alteração das regras de cálculo das pensões (em 2002 e 2007), a maior penalização das reformas antecipadas e a introdução do fator da sustentabilidade (em 2007) inserem-se nesse catálogo, embora esta última preanunciando reforma de outro calibre. Em 2014-2015, a alteração da idade de acesso à pensão para os 66 anos constituiu também exemplo de medida paramétrica. Agudizados os problemas demográficos e económicos, problemas que a crise mencionada exacerbou, voltou a estar na ordem do dia a reforma da Segurança Social. Ainda que a hipótese de substituição dos modelos de repartição pelos de capitalização não esteja arredada, a verdade é que, dadas as dificuldades financeiras sentidas no período de transição – a que antes fizemos referência – e que podem inviabilizar no limite a eficácia pretendida, outras hipóteses de reformas sistémicas podem ser equacionadas. Serão reformas sistémicas de segunda geração. Trata-se aqui de substituir os modelos de benefício definido, como é o caso português, por modelos de contribuição definida. Aliás, esta é uma tendência que se desenhou em alguns países europeus, antes mesmo da crise. O exemplo sueco costuma ser apontado como o mais emblemático. O grande problema dos modelos de benefício negativo, conquanto sejam bons estabilizadores de direitos e expectativas, reside na sua rigidez, mormente em contextos demográficos negativos. Isto porque, em virtude das regras de cálculo aplicáveis, as pensões, uma vez definidas, não podem ser ajustadas à evolução de vicissitudes relevantes. O modelo português é de benefício definido, porque o montante de pensão fica dependente dos fatores estáticos, de cálculo de pensão, supra. A pensão é, diríamos, automaticamente determinada em função destes elementos, pelo que o contribuinte/beneficiário pode saber com alguma precisão qual vai será o valor da sua pensão, mesmo antes de se reformar, já que eles são conhecidos ou antecipáveis. No modelo de contribuição definida, pelo contrário, os fatores que concorrem para o cálculo da pensão são também fatores dinâmicos, em certo sentido voláteis, podendo ser de natureza demográfica (v.g., evolução da esperança média de vida), económica (taxa de crescimento da economia) ou financeira (saldo do sistema previdencial). Assim, neste modelo, uma pensão que se esteja a formar vai recebendo, como inputs, não apenas aqueles fatores estáticos, dotados de previsibilidade, mas também estes, instáveis e de comportamento menos previsível. Entre nós, a introdução do fator de sustentabilidade no cálculo da pensão (2007) deixou antever essa deriva do modelo de benefício definido para o de contribuição definida, mas ele é ainda um mero embrião. A Suécia foi ainda mais longe, pois incorpora estes elementos voláteis não apenas na fase de formação da pensão, mas também na fase em que as pensões já estão a pagamento, em curso de atribuição, podendo a todo o momento ser recalculadas. Para terminar, uma nota apenas relativa aos aspetos relativos à administração do sistema de Segurança Social. Conquanto da Constituição (art. 63.º) e da LBSS resulte um princípio de unidade na gestão do sistema de Segurança Social; conquanto seja esta uma área tipicamente da responsabilidade do Estado central; conquanto a legislação fundamental esteja uniformizada (veja-se o CC), a verdade é que na prática, em termos de gestão financeira, existe uma boa dose de ‘regionalização’ do sistema de Segurança Social – nas Regiões Autónomas portuguesas. Os Institutos da Segurança Social dos Açores e da Madeira (regulados respetivamente pelos Decretos-Legislativos Regionais nºs. 14/2013/A, de 3 de outubro, e 34/2012/M, de 16 de novembro) têm importantes competências quer no domínio da arrecadação de receita própria da Segurança Social, quer no pagamento de prestações, quer enfim na preparação do orçamento e da conta da Segurança Social regional respetiva. E estão evidentemente sob a tutela dos Governos regionais respetivos, não do Estado central.   Nazaré da Costa Cabral (atualizado a 30.12.2017)

Direito e Política História Económica e Social História Política e Institucional

secretário regional

O Secretário Regional é o membro do governo de uma Região Autónoma que, nomeado sob proposta do Presidente do Governo Regional, está encarregado de dirigir um departamento regional, em termos políticos e administrativos, tendo assento permanente no Conselho de Governo Regional. O Secretário Regional mostra-se, ao invés do que sucede com os Subsecretários Regionais, uma categoria essencial da formação e composição do Governo Regional: sem Secretários Regionais não há Governo Regional, uma vez que o Presidente do Governo Regional não pode acumular o exercício das pastas referentes a todos os departamentos regionais, nem o pode fazer com a ajuda ou coadjuvação apenas dos Subsecretários Regionais. Sendo certo que sem Presidente do Governo Regional também não se pode falar em Governo Regional ou, pelo menos, em governo em plenitude de funções, deve concluir-se que o conceito constitucional e estatutário de Governo Regional se baseia na conjugação simultânea ou coexistência de duas categorias de membros: um Presidente e vários Secretários Regionais. Num outro sentido, o Secretário Regional assume uma particular posição jurídica intragovernamental: os Secretários Regionais são os principais colaboradores do Presidente do Governo Regional, participando com ele na definição da orientação geral da política regional em Conselho do Governo Regional, contando também, por sua vez, com a colaboração e coadjuvação, num plano estatutário de exercício apenas de poderes delegados, dos Subsecretários Regionais. Numa derradeira nota de recorte conceitual, pode dizer-se que os Secretários Regionais, ao contrário dos Subsecretários Regionais, são os únicos membros do Governo Regional que podem exercer funções substitutivas do Presidente do Governo Regional. Os Secretários Regionais são nomeados pelo Representante da República, sob proposta do Presidente do Governo Regional, num exemplo perfeito de poderes entrecruzados ou partilhados: nem o Presidente do Governo Regional consegue incluir no seu elenco governativo pessoas que sejam vetadas pelo Representante da República como membros do Governo Regional, nem o Representante da República pode nomear membros do Governo Regional que não lhe tenham sido propostos pelo Presidente do Governo Regional. Uma vez que a Constituição e o Estatuto Político-Administrativo exigem que a nomeação de cada Secretário Regional assente num acordo entre quem propõe o nome (o Presidente do Governo Regional) e quem aceita proceder à sua nomeação (o Representante da República), pode bem dizer-se que os Secretários Regionais gozam de uma dupla legitimidade política: beneficiam da legitimidade de quem faz a proposta e de quem aceita essa proposta. É essa dupla legitimidade política, sem tomar em consideração a possibilidade de também a pessoa em causa ter sido eleito deputado regional, que cada Secretário Regional deverá expressar junto do Conselho do Governo Regional e difundir no interior do respetivo departamento regional. O início das funções de cada Secretário Regional começa no momento da respetiva posse, cessando o seu exercício de funções verificando-se uma das seguintes situações: Ocorrendo exoneração do Presidente do Governo Regional ou, em caso de morte deste, a posse do novo Presidente do Governo Regional e do inerente Governo; Demissão voluntária junto do Presidente do Governo Regional ou de proposta nesse sentido deste último junto do Representante da República, tendo ocorrido a respetiva exoneração e consequente posse de um novo Secretário Regional que substitua o demitido; Verificando-se a morte ou impedimento permanente do Secretário Regional; Demissão forçada pela condenação definitiva do Secretário Regional por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções (Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, artigo 31.º). No caso de demissão do Secretário Regional por efeito de condenação penal, deve entender-se, à semelhança do que sucede com o Presidente do Governo Regional, que existe um impedimento imediato que obsta à continuação do exercício de funções, devendo o Secretário Regional ser imediatamente substituído por um novo Secretário Regional ou, não sendo isso possível, proceder-se à substituição temporária. Em termos idênticos aos aplicáveis ao Presidente do Governo Regional, se for movido um procedimento criminal contra um Secretário Regional (ou um Subsecretário Regional), sendo ele acusado definitivamente, deve aplicar-se o regime de suspensão do exercício de funções traçado a propósito de idêntico cenário com o Presidente do Governo Regional (Ibid., Presidente do Governo Regional, n.º 4.3.). Configurados juridicamente os Secretários Regionais como órgãos que exercem funções de natureza política e administrativa, desenvolvendo por via individual ou colegial os poderes atribuídos ao Governo Regional, sempre sujeitos à coordenação e orientação do Presidente do Governo Regional, verifica-se que possuem cinco tipos distintos de competência: Competência de execução: aos Secretários Regionais pertence implementar a política definida para os respetivos departamentos regionais, significando isto, antes de tudo, que não possuem autonomia de definição da política da sua própria Secretaria Regional, funcionando como órgãos de execução da política definida pelo Conselho do Governo Regional e dirigida pelo Presidente do Governo Regional; Competência de coordenação e orientação: assim como os Secretários Regionais se encontram sujeitos a tais poderes de garantia da unidade de ação intragovernamental por parte do Presidente do Governo Regional, igualmente gozam de idênticas faculdades de coordenar e orientar a ação dos respetivos Subsecretários Regionais (e funcionários da Secretaria Regional); Competência de participação: os Secretários Regionais integram o Conselho do Governo Regional, competindo-lhes, nessa qualidade, participar na formação da vontade colegial do Governo Regional que, sob o impulso e a condução do Presidente do Governo Regional, define as linhas gerais da política governamental; Competência de representação: os Secretários Regionais asseguram, no âmbito dos seus departamentos regionais, as relações de carácter geral entre o Governo Regional e as restantes estruturas integrantes da Administração da Região Autónoma, integrando-se neste contexto as suas tarefas de participação nos trabalhos da Assembleia Legislativa; Competência de substituição: nas ausências ou impedimentos do Presidente do Governo Regional, os Secretários Regionais encontram-se investidos da faculdade de substituir o Presidente do Governo Regional, salvo existindo um vice-presidente ou tratando-se de um caso vacatura em que as funções são exercidas pelo Presidente da Assembleia Legislativa. Os Secretários Regionais encontram-se sujeitos a uma dupla responsabilidade política formal ou institucional: São individualmente responsáveis perante o Presidente do Governo Regional, devendo prestar contas de toda a atividade desenvolvida no âmbito dos diferentes tipos de competência, podendo ser, a qualquer momento, demitidos pelo Presidente do Governo Regional, apresentando junto do Representante da República a proposta da respetiva exoneração e imediata substituição por um novo Secretário Regional; São ainda responsáveis politicamente perante a Assembleia Legislativa, no contexto da responsabilidade coletiva do Governo Regional decorrente do princípio da solidariedade, tendo o direito e o dever de comparecer no parlamento regional, apesar de este não poder votar moções de censura a Secretários Regionais individualmente considerados, sem embargo de a gravidade da conduta de um único deles poder fundamentar uma moção de censura a todo o Governo. Note-se, porém, que, em sistemas de governo de base parlamentar, a responsabilidade política concentrada dos membros de um governo maioritário obedece a um verdadeiro paradoxo: perante governos alicerçados numa maioria absoluta parlamentar, o resultado de todas as votações efetivadoras da responsabilidade política parlamentar encontra-se antecipadamente determinado, tornando inúteis ou débeis os mecanismos parlamentares de controlo, isto quando, precisamente, mais importantes e necessários seriam para limitar os riscos de abuso do poder. Não se pode ignorar que, por efeito de um modelo de sociedade política aberta e participativa, os Secretários Regionais (e os restantes membros do Governo) se encontram sempre sujeitos a mecanismos de responsabilidade política difusa junto da opinião pública, exercendo aqui particular importância os meios de comunicação social e as redes sociais no controlo e na denúncia de situações de ilegalidade, inconveniência ou inoportunidade do agir governamental.   Paulo Otero (atualizado a 30.12.2017)

Direito e Política

rodrigues, manuel

Manuel Rodrigues nasceu no Funchal a 25 de Novembro de 1697, filho de Francisco Maria dos Ramos e Josefa Maria Pereira, sobrinho do Cap. Manuel Neto Barreto. É referido no Elucidário Madeirense que, com a tenra idade de 15 anos, parte para o Rio de Janeiro, no Brasil. Manuel Rodrigues teve uma vida repleta de aventuras, tendo frequentado o Seminário da Cachoeira, no Brasil, onde foi um aluno brilhante. Já no ano de 1715, alistou-se como soldado no regimento de Manuel de Almeida Castelo em Sacramento. Ainda assim, entra em 1719 para a Ordem de São Francisco em Córdova, na Argentina, onde se torna versado em filosofia e teologia. Manuel Rodrigues acompanha Fr. José de Cardena nas suas viagens. Neste seu percurso como franciscano, passa pelos mais variados países. A morte de seu pai precipita o seu retorno a Portugal, uma vez que as irmãs não tinham meios de subsistência. É em Lisboa, cidade onde finalmente se fixa, que Manuel Rodrigues fica conhecido pelos seus sermões. Diogo Barbosa Machado, em particular, menciona a qualidade da sua oratória aquando das cerimónias fúnebres de D. João V. Manuel Rodrigues morre em Lisboa, muito provavelmente na segunda metade do séc. XVIII.   Amanda Coelho (atualizado a 17.12.2017)  

Religiões

região autónoma

A divisão fundamental das formas de Estado, de há muito formulada pela doutrina, dá‑se entre Estados simples ou unitários e Estados compostos ou complexos. Critérios de distinção são: unidade ou pluralidade de poderes políticos (ou de poderes soberanos na ordem interna); unidade ou pluralidade de ordenamentos jurídicos originários ou de constituições; unidade ou pluralidade dos sistemas de funções e órgãos do Estado; unidade ou pluralidade de centros de decisão política a se. Apesar das diferenças de perspetivas, coincide‑se nos resultados. O Estado unitário tanto pode ser Estado unitário centralizado como Estado unitário descentralizado ou regional. Se todos ou quase todos os Estados do mundo admitem descentralização administrativa, quer de âmbito territorial – através de municípios ou comunas e através de circunscrições mais vastas –, quer de âmbito institucional ou funcional – através de associações, fundações, institutos ou outras entidades públicas –, só alguns Estados comportam descentralização política. E não é a descentralização administrativa, mas sim a política que aqui importa. Esta descentralização política é sempre a nível territorial: são províncias ou regiões que se tornam politicamente autónomas por os seus órgãos desempenharem funções políticas e participarem, ao lado dos órgãos estatais, no exercício de alguns poderes ou competências de carácter legislativo e governativo. Daí que se fale em Estado regional. A conceção constitucional específica e a elaboração teórica do regionalismo político são relativamente recentes, sem embargo de certas notas características se encontrarem antes. Aquelas remontam à Constituição espanhola de 1931 e à Constituição italiana de 1947. A doutrina dominante parece inclinar‑se para a sua inserção dentro do Estado unitário. Mas há também quem pense tratar‑se de um tertium genus e quem entenda que, por causa dele, fica posta em causa a distinção clássica entre Estados unitários e Estados federais. Podem ser apontadas várias categorias de Estados descentralizados. No Estado regional integral, todo o território se divide em regiões autónomas. No Estado regional parcial, encontram‑se regiões politicamente autónomas e regiões ou circunscrições só com descentralização administrativa, verificando‑se, pois, diversidade de condições jurídico‑políticas de região para região. Esta é também uma diferença clara em relação ao Estado federal, sempre integral por natureza (sempre formado, inteiramente, por um maior ou menor número de Estados federados). No Estado regional homogéneo, seja integral ou parcial, a organização das regiões é, senão uniforme, idêntica (a mesma no essencial para todos). No Estado regional heterogéneo, ela pode ser diferenciada ou haver regiões de estatuto comum e regiões de estatuto especial. Em geral, as regiões são criadas pela Constituição, mas conhecem‑se casos – ainda que de necessária relevância a nível de Constituição material – de regiões instituídas por lei (caso da Gronelândia) e até pelo direito internacional (caso do Alândia). Como exemplos de Estados regionais integrais apontem‑se o Brasil (no Império, após a revisão da Constituição em 1834), a Áustria (antes de 1918), a Itália, a Espanha (na vigência da Constituição de 1978) ou a África do Sul (com a Constituição de 1996). Como exemplos de Estados regionais parciais indiquem‑se a Finlândia (por causa da Alândia), a Espanha (aquando da Constituição de 1931), a Dinamarca (quanto às ilhas Feroé e à Gronelândia), Portugal (desde 1976, em virtude das regiões autónomas dos Açores e da Madeira), a Rússia, a Ucrânia (por causa da Crimeia), a China (sobretudo por causa de Hong Kong e de Macau), o Reino Unido (com a Irlanda do Norte, a Escócia e Gales, a partir de 1998 e de 1999) a Geórgia (com a Ajária e a Ossétia do Sul), ou São Tomé e Príncipe (em relação à ilha do Príncipe). Como exemplos de Estados regionais heterogéneos refiram‑se a Itália, com regiões de estatuto especial (Sicília, Sardenha, Vale de Aosta, Trentino-Alto Ádige e Friul-Veneza Júlia) e regiões de estatuto comum (as restantes), e a Espanha atual (com comunidades autónomas de regimes diversos). O grau de descentralização varia muitíssimo; compreende regiões que pouco mais parecem que coletividades administrativas e regiões que parecem Estados‑membros de uma federação. Geralmente, os estatutos são‑lhes outorgados pelo poder central, mas há casos (as regiões italianas, as regiões autónomas portuguesas) em que elas chegam a participar na elaboração e na revisão desses estatutos. A maior semelhança possível entre Estado regional e Estado federal dá‑se quando aquele é integral e as regiões, além de faculdades legislativas, possuem faculdades de auto‑organização. Mesmo assim, porém, cabe distinguir: porque o ato final, a vontade última na elaboração ou na alteração dos estatutos regionais pertence ao poder central (ou seja, as regiões não têm poder constituinte); porque as regiões tão-pouco participam na elaboração e na revisão da constituição do Estado, como unidades políticas distintas dele (ou seja, o poder constituinte do Estado é delas independente). Juridicamente, o Estado federal dir‑se‑ia criado pelos Estados componentes. Pelo contrário, as regiões são criadas pelo poder central e as atribuições políticas que têm tanto podem vir a ser alargadas como extintas por este. Mais ainda: se o Estado federal desaparecer, em princípio os Estados federados adquirem ou readquirem plena soberania de direito internacional; não assim as regiões autónomas, as quais, como quaisquer outras coletividades descentralizadas, ou desaparecem com o Estado ou carecem de um ato específico para obterem a soberania. Os desmembramentosno final do séc. XX, da União Soviética, da Jugoslávia e da Checoslováquia, com o acesso à plena soberania dos Estados que as compunham, mostra bem que, mesmo em federações politicamente fictícias, perdura um resíduo de “estatalidade” pronto a revivescer se as condições assim o permitem. Com a descentralização política regional não se confunde a regionalização, traduzida em desconcentração regional e, sobretudo, na criação de autarquias supramunicipais. Se a dimensão e alguns dos objetivos das regiões que assim se apresentam em alguns países podem ser semelhantes aos das regiões autónomas, os meios orgânicos e funcionais oferecem‑se bem diversos. Só as regiões autónomas possuem órgãos e funções de natureza política e, portanto, apenas estas afetam a forma do Estado. A par da autonomia regional, que é efeito da descentralização política ou político‑administrativa, conhece‑se a autonomia (ou talvez melhor, uma gama algo diversificada de formas de autonomia) de que são dotadas certas comunidades territoriais dependentes de outros Estados ou em regimes especiais. Trata‑se aqui de um conceito empírico destinado a descrever algo de situado entre a não autonomia territorial e o estatuto de Estado independente ou entre a não autonomia territorial e a integração em Estado independente, em igualdade com quaisquer outras comunidades que deste façam parte. São, designadamente, quatro os tipos de estatutos de autonomia de comunidades territoriais: autonomia derivada de antigos laços feudais (a ilha de Man e as ilhas Anglo‑Normandas em relação à Coroa britânica); autonomia ligada a vínculos coloniais, semicoloniais ou pós‑coloniais (as colónias autónomas e semiautónomas britânicas, como é o caso de quase todos os países da Commonwealth of Nations antes de acederem à independência e das Bermudas, de Gibraltar ou das ilhas Caimão, entre outros territórios; de certo modo, dos territórios ultramarinos franceses, como a Nova Caledónia ou a Polinésia; de Guame, das ilhas Marianas do Norte e da Samoa Americana, em relação aos Estados Unidos); autonomia com associação a outros Estados (as Antilhas Holandesas e Aruba em face da Holanda, Porto Rico perante os Estados Unidos, as ilhas Cook e Niue em relação à Nova Zelândia); autonomia ligada a situações internacionais especiais (Fiume entre 1919 e 1924, o Sarre entre 1919 e 1935 e entre 1945 e 1955, Danzig entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, Trieste entre 1947 e 1954, Berlim entre 1949 e 1990, Macau entre 1976 e 1999; numa fase de preparação para a autodeterminação, alguns territórios sob mandato ou sob tutela). A estrutura da autonomia das regiões autónomas e a das comunidades territoriais dependentes acabadas de enunciar dir‑se‑iam prima facie similares. Há autonomias mais extensas ou menos extensas num lado e noutro e também são variáveis os poderes de controlo e de intervenção das autoridades estatais. Mas a natureza e o sentido da autonomia são completamente diversos, consoante se trate da autonomia com integração ou sem integração. A autonomia própria das regiões autónomas é uma autonomia com integração. É a autonomia – sejam quais forem as razões em que se funde – de comunidades que compõem, com outras, um povo, ao qual corresponde um certo e determinado Estado e que, por essa via, têm pleno acesso à soberania desse mesmo Estado. Pelo contrário, a autonomia sem integração – resulte ela de laços feudais, coloniais, associativos, internacionais ou outros – implica uma separação e, ao mesmo tempo, uma subordinação. A comunidade que dela goza não se considera constitutiva do povo do Estado soberano a que se encontra vinculada e está, portanto, numa espécie de capitis deminutio perante ele; o seu território não é parte integrante do território desse Estado soberano (ou se, porventura, é declarado parte integrante, encontra‑se numa condição particular frente à metrópole); em virtude desta diferenciação, avulta a imperfeição do respetivo estatuto constitucional. É uma constante do direito constitucional português a unidade ou unicidade do poder político, com maior ou menor grau de descentralização e desconcentração (embora a locução “Estado unitário” só apareça desde a Constituição de 1911). Apenas a Constituição de 1822 esboçara algo diferente: uma união real com o Brasil – aliás, bastante imperfeita, por faltar uma assembleia própria do Brasil, e logo ultrapassada, por, ainda antes da aprovação final do texto constitucional, o Brasil se ter declarado independente. Para além disso, não houve senão a aplicação tendencial dos princípios da especialização e da descentralização legislativas aos territórios ultramarinos pelas Constituições de 1838, 1911 e 1933 e pelo Ato Adicional à Carta de 1852. O art. 6.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), em contrapartida, vem converter os Açores e a Madeira em regiões autónomas dotadas de estatutos político‑administrativos e de órgãos de governo próprio (CRP, art. 6.º, n.º 2). Esta é uma fortíssima alteração qualitativa, introduzida não somente na situação dos arquipélagos – cujos distritos, desde 1895, gozavam de maior autonomia administrativa do que os distritos continentais –, mas também na própria estrutura do Estado português – correspondente à nação portuguesa, no seu espaço europeu e atlântico –, que, pela primeira vez na história, confere assim poderes substancialmente políticos a órgãos regionais com titulares não designados pelo poder central. Não se adotou uma regionalização política integral: as regiões administrativas previstas para o continente – a existirem – constituirão meras autarquias locais (CRP, arts. 236.º, n.º 1, 255.º-262.º). Portugal não deixa, por isso, de ser um Estado unitário regional (apesar de esta designação não estar expressamente consagrada no texto constitucional). Se bem que situada no contexto de 1975‑1976 (com o país saindo do processo revolucionário, com o poder central enfraquecido e perante certos receios de separatismos), a decisão constituinte correspondeu a algo de muito profundo. Foi uma resposta adequada tanto às reivindicações de desenvolvimento e de autonomia das populações insulares como aos próprios princípios constitucionais proclamados (descentralização e participação). Três dos projetos de Constituição apresentados à Assembleia Constituinte já contemplavam um regime político‑administrativo, mas o impulso para a sua definição viria das “juntas regionais” (entretanto constituídas nos dois arquipélagos pelo Governo provisório) e, sobretudo, da 8.ª Comissão e dos debates travados no plenário da Assembleia Constituinte quase no termo dos seus trabalhos. Entrada em vigor a CRP, logo o Governo provisório publicou – em obediência ao seu art. 302.º – estatutos provisórios e leis eleitorais para as primeiras eleições regionais. Estes estatutos vigorariam até serem elaborados os estatutos definitivos (CRP, art. 302.º, n.º 3), o que aconteceria, quanto aos Açores, com a lei n.º 39/80, de 5 de agosto (depois alterada pela lei n.º 9/87, de 20 de março, pela lei n.º 61/98, de 27 de agosto, e pela lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro), e, quanto à Madeira, com a lei n.º 13/91, de 5 de junho. As revisões constitucionais – sobretudo a de 1997 e, muito mais ainda, a de 2004 – introduziram clarificações e modificações importantes, sempre no sentido de um aumento da autonomia. Em 1982, as regiões autónomas receberam poder tributário próprio, o poder de definir atos ilícitos de mera ordenação social, o poder de criar e extinguir autarquias locais e o poder de participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos (CRP, art. 229.º, posteriormente 227.º). Foram aperfeiçoadas as regras sobre a reserva de competência da Assembleia Regional e sobre o veto do ministro da República (CRP, arts. 234.º e 235.º, depois 232.º e 233.º). Desapareceu a possibilidade de suspensão dos órgãos regionais pelo Presidente da República (CRP, art. 234.º inicial). Foi extinta a comissão consultiva para os assuntos das regiões autónomas (CRP, art. 236.º inicial). Assimilou‑se o contencioso de legalidade de normas regionais ou perante os estatutos regionais ao contencioso de constitucionalidade (CRP, arts. 280.º e 281.º). Em 1989, reconheceu‑se às assembleias, posteriormente chamadas Assembleias Legislativas Regionais, o poder de desenvolver Leis de Bases. Admitiram‑se autorizações legislativas da Assembleia da República a essas Assembleias para efeito de derrogação de leis gerais da República em matérias não reservadas aos órgãos de soberania. Foram concedidos às regiões os poderes de estabelecer cooperação com entidades regionais estrangeiras e de participar em organizações que tenham por objeto fomentar o diálogo e a cooperação inter‑regionais (CRP, art. 229.º, posteriormente 227.º). Garantiram‑se direitos de informação à oposição nessas Assembleias (assim como, aliás, às oposições do poder local) (CRP, art. 117.º, depois 114.º, n.º 3). Em 1992 e em 2001, nenhum preceito sobre regiões autónomas foi modificado. A revisão constitucional de 1997 reforçou o poder legislativo das regiões, pela subordinação de respetivos decretos aos princípios fundamentais das leis gerais da República, e não simplesmente às leis gerais da República (quer dizer, aos preceitos, um a um, destas leis), e pela enunciação, a título exemplificativo, de matérias de interesse específico (CRP, arts. 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º). Abriu caminho a um regime estável de finanças regionais, objeto de lei orgânica (CRP, arts. 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3). Consagrou a participação das regiões no processo de construção europeia (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas v) e x)). Eliminou a cláusula de vedações do art. 230.º inicial. Reduziu o conteúdo funcional do estatuto dos ministros da República, que deixaram de representar a soberania da República, de ter assento em Conselho de Ministros e de exercer funções administrativas, salvo, mediante delegação do Governo, poderes de superintendência nos serviços regionais do Estado, e cujos mandatos ficaram a coincidir com o do Presidente da República (CRP, art. 230.º). Atribuiu ao Governo regional um poder de auto‑organização (CRP, art. 231.º, n.º 5). Criou o referendo regional (CRP, art. 232.º, n.º 2). E passou a admitir a dissolução das Assembleias Legislativas apenas por prática de atos graves contrários à Constituição (CRP, art. 234.º). A revisão de 2004 iria muito mais longe, assimilando, para vários efeitos, o regime das Assembleias Legislativas das regiões autónomas (e não mais Assembleias Legislativas Regionais) ao regime da Assembleia da República (CRP, arts. 52.°, n.º 2 e 232.°, n.° 4); permitindo a delegação de competências do Governo da República aos Governos regionais, com a correspondente transferência de meios financeiros e os mecanismos de fiscalização aplicáveis (CRP, art. 229.°, n.° 4); substituindo os ministros da República para as regiões autónomas por representantes da República, nomeados e exonerados pelo Presidente da República, apenas ouvido o Governo (e não sob proposta do Governo) e sem poderem receber, por delegação do Governo, competências de superintendência nos serviços do Estado nas regiões (CRP, arts. 230.°; 134.°, alínea i) e 145.°, alínea c)); suprimindo o poder do Presidente da República de dissolver os órgãos de governo próprios das regiões por prática de atos graves contrários à Constituição (CRP, art. 234.°, n.° 1), passando a admitir-se, porém, a dissolução das Assembleias Legislativas em termos análogos aos da dissolução da Assembleia da República (CRP, arts. 234.°, n.os 1 e 3, e 133.°, alínea j)) e ficando, em caso de dissolução, os Governos regionais demitidos, mas com as funções de Governo de gestão (CRP, art. 234.°, n.° 2). Por outro lado, esta revisão constitucional: eliminou o interesse específico como critério definidor dos poderes legislativos regionais (CRP, arts. 112.°, n.° 4, e 227.°, n.° 1, alínea a)), bem como a referência a leis gerais da República (mesmos preceitos), embora estas não desapareçam, obviamente, porque continua a haver leis aplicáveis a todo o território nacional, quer no âmbito da reserva dos órgãos de soberania, quer quando falte legislação regional própria não reservada a estes órgãos (CRP, art. 228.°, n.° 2) – simplesmente, nesta segunda hipótese, novos decretos legislativos regionais prevalecem sempre no âmbito regional; remeteu para os estatutos político-administrativos as matérias não reservadas aos órgãos de soberania em que consiste a autonomia legislativa regional (CRP, art. 228.°, n.° 1), mas devendo os correspondentes preceitos estatutários ser aprovados, na Assembleia da República, por dois terços dos deputados presentes, desde que o seu número seja superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções (CRP, art. 168.º, n.º 6, alínea f)); reiterou o poder (perdido em 1997) de transposição de atos jurídicos da União Europeia que versem sobre matérias de autonomia legislativa (CRP, arts. 112.°, n.° 8, e 227.°, n.° 2, alínea x)); em vez da possibilidade de autorizações legislativas para derrogação de princípios fundamentais de leis gerais da República, previu a possibilidade de autorizações legislativas sobre a maior parte das matérias de reserva relativa da Assembleia da República, se bem que não das mais importantes no plano dos direitos fundamentais e dos órgãos de poder (CRP, art. 227.°, n.° 1, alínea b)); possibilitou o desenvolvimento por decreto legislativo regional, para o âmbito regional, dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam – de quaisquer leis, sem exceção, incluindo em matérias reservadas à Assembleia da República (CRP, art. 227.°, n.° 2, alínea d), em confronto com o anteriormente estipulado). O art. 225.º da CRP aponta os fundamentos, as finalidades e os limites da autonomia regional (parecendo, em parte, uma exposição de motivos): “1. O regime político‑administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira fundamenta‑se nas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares. – 2. A autonomia das regiões visa a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico‑social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses. – 3. A autonomia político‑administrativa regional não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce‑se no quadro da Constituição”. A despeito de ser muito denso, este artigo deve ser lido em conexão com os arts. 9.º, alínea g), 81.º, alínea d), 90.º e 229.º, n.º 1: é tarefa fundamental do Estado promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o “carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira” (CRP, art. 9.º, alínea g)); os órgãos de soberania asseguram, em cooperação com os órgãos do Governo regional, o desenvolvimento económico e social das regiões autónomas, “visando, em especial, a correção das desigualdades derivadas da insularidade” (CRP, art. 229.º, n.º 1). A par dos elementos estritamente políticos, põem‑se, assim, em foco elementos económicos e sociais. Para além da autonomia como valor em si e da maior e mais direta participação dos cidadãos na gestão dos assuntos que lhes dizem respeito, pretende‑se realizar a igualdade efetiva entre os Portugueses (CRP, art. 9.º, alínea d)). Porque a vida nas ilhas, mormente nas menores e mais afastadas, arrasta carências e obstáculos à plena fruição de direitos económicos, sociais e culturais, incumbe ao Estado e às regiões, em diálogo e obra comum, procurar remover tais carências e obstáculos através do desenvolvimento e da solidariedade. No essencial, o regime político‑administrativo da Madeira e dos Açores consiste em: atribuição de poderes atinentes ao tratamento das matérias de âmbito regional, designadamente poderes legislativos (CRP, arts. 227.º, n.º 1, alíneas a), b), c), i), l), m), p), 1.ª parte, e q), 112.º, n.º 8, e 228.º), regulamentares (CRP, art. 227.º, n.º 1, alínea d)) e executivos (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas g), h), m) e o)); atribuição também de poderes de participação em atos de órgãos do Estado que afetem especificamente as regiões (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas e), f), p), 2.ª parte, r), s), t), v) e x)); atribuição ainda de poderes adjetivos ou de garantia (CRP, arts. 281.º, n.º 2, alínea g), e 283.º, n.º 1); criação de uma assembleia representativa e de um governo perante ela responsável como órgãos de governo próprio (CRP, arts. 231.º e 232.º); reserva de iniciativa das Assembleias Legislativas Regionais quanto aos estatutos das respetivas regiões e quanto à eleição dos seus deputados (CRP, art. 226.º); articulação dos órgãos de soberania e dos órgãos de autonomia, através de vários poderes do Presidente da República (CRP, arts. 133.º, alíneas b), d), j) e l), e 234.º), dos poderes de participação das regiões, do Conselho de Estado (CRP, art. 242.º, alínea e)) e do representante da República (CRP, arts. 230.º, 231.º, nos 3 e 4, e 233.º); integração da produção legislativa regional no sistema legislativo nacional (CRP, arts. 112.º, 227.º, 228.º e 278.ºss.), bem como das finanças regionais no sistema financeiro nacional (CRP, arts. 106.º, n.º 3, alínea e), 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3). Em confronto com os sistemas regionais mais próximos (o italiano e o espanhol) depara‑se, como notas individualizadoras do sistema português, além do seu carácter parcial: a aprovação do estatuto de cada região por lei ordinária (CRP, art. 166.º, n.º 3) e não por lei constitucional, ainda que o seu processo ofereça significativas particularidades (CRP, art. 226.º); o valor reforçado do estatuto (CRP, arts. 280.º, n.º 2, alíneas b), c) e d), e 281.º, n.º 1, alíneas c) e d)); a explícita consagração constitucional de poderes de incidência internacional (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas s) a x)); a atribuição às regiões não só de poder tributário próprio mas também de todas as receitas tributárias nelas cobradas (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas i) e j)); o sistema de governo regional (CRP, art. 231.º), diferente do sistema de governo a nível nacional; a proibição de partidos regionais (CRP, art. 311.º, n.º 2, no texto inicial; 51.º, n.º 4, posteriormente). Até à revisão constitucional de 2004, também poderia ser referida a definição da autonomia legislativa com base em conceitos relativamente indeterminados – “interesse específico e leis gerais da República” (CRP, arts. 112.º, n.os 4 e 5, e 227.º, n.º 1, alíneas a), b) e c)). Ponto importante a dilucidar vem a ser o atinente ao sentido dos estatutos das regiões. A função de cada estatuto (note‑se, político‑administrativo) consiste em definir as atribuições regionais e os meios correspondentes (CRP, art. 227.º), bem como o sistema de órgãos de governo próprio da região, incluindo os estatutos dos respetivos titulares (CRP, art. 231.º); ou, em geral, em desenvolver, explicitar ou concretizar as normas do título vi da parte iii da Lei Fundamental, adequando‑as às especificidades e às circunstâncias mutáveis dessa região; não consiste em estabelecer os princípios de toda a vida política, económica, social e cultural que aí se desenrola, porque isso cabe à Constituição – que é a Constituição da República, e não só do continente. Há uma reserva de estatuto, com a necessária densificação (voltamos a dizer). Em contrapartida, ela define, concomitantemente, o objeto possível de cada estatuto em concreto. O estatuto não é uma constituição com amplitude potencialmente ilimitada. Cabe‑lhe definir o interesse específico, cerne da autonomia, mas não regular matérias de interesse específico. Cabe‑lhe assegurar um sistema político regional, mas não substituir‑se‑lhe ou substituir‑se aos órgãos de soberania. Por outro lado, competindo a iniciativa originária do estatuto ou das suas alterações à Assembleia Legislativa (CRP, art. 226.º), se o estatuto pudesse abarcar qualquer matéria, ficaria, por esse modo, limitado o poder de iniciativa dos deputados, dos grupos parlamentares, de grupos de cidadãos ou do Governo da República relativamente a essa matéria (CRP, art. 167.º). A Assembleia pode, certamente, apresentar propostas de lei, “no respeitante” à região, sobre qualquer objeto (CRP, art. 167.º, n.º 1, 2.ª parte), o que não justifica transformar essa matéria em matéria estatutária. Se um dos estatutos contiver normas sobre outras matérias que não as respeitantes às atribuições e aos órgãos e aos titulares dos órgãos regionais, essas normas não adquirirão a força jurídica específica das normas estatutárias. Por conseguinte, poderão ser modificadas ou revogadas, observadas as pertinentes regras gerais da Constituição; ou poderão, desde logo, ser inconstitucionais por invadirem domínios próprios de outras leis. Não custa pensar em exemplos de inconstitucionalidade de eventuais normas estatutárias por preterição da distribuição constitucional de formas e procedimentos legislativos. Seria o caso de normas sobre eleições dos titulares dos órgãos de governo próprio ou dos titulares dos órgãos do poder local na região (afetando o art. 164.º, alíneas j) e l), e o art. 166.º, n.º 2 da CRP), sobre criação, extinção ou modificação territorial de autarquias locais (infringindo o art. 164.º, alínea n) da CRP), ou sobre direitos, liberdades e garantias (contra o art. 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP), ou sobre reprivatizações (CRP, art. 296.º). Quanto às eleições, em especial, não se esqueça o tratamento homogéneo que recebem da Constituição, quer no plano dos grandes princípios substantivos (CRP, arts. 10.º, 49.º; e 113.º), quer no da regulamentação legislativa (CRP, arts. 164.º, alíneas a), j) e l), e 136.º, n.º 3, alínea c)), quer no da competência do Presidente da República (CRP, art. 133.º, alínea b)), quer ainda no plano dos limites materiais da revisão constitucional (CRP, art. 288.º, alínea h)). Esse tratamento unitário e reforçado – compreensível por causa da importância fulcral das eleições em democracia representativa (CRP, art. 10,º, n,º 1) – ficaria afetado se o regime das eleições regionais fosse repartido pelas leis eleitorais e pelos estatutos. Em escritos de há vários anos, tendíamos a reconduzir as situações a inconstitucionalidade formal por excesso de forma. Revendo a nossa posição, desdobrámo‑las agora em geral, em mera irrelevância e, em hipóteses como as acabadas de enunciar, em inconstitucionalidade – por insuficiência de forma, no caso das eleições, quando se não respeitem as regras próprias das leis orgânicas (CRP, arts. 136.º, n.º 3, 168.º, n.º 5, e 278.º, n.º 5); e, nos demais casos por desvio de forma (por se utilizar uma forma para fim diferente daquele para o qual está instituída). Por outro lado, sustentávamos que se a Assembleia da República viesse, subsequentemente, a legislar sobre matérias que não deviam constar dos estatutos, ocorreria um conflito entre constitucionalidade e legalidade: as normas estatutárias seriam inconstitucionais, as normas não estatutárias ilegais; e, solicitada a apreciação da legalidade em tribunal, poderia este suscitar ex officio a questão da constitucionalidade daquelas, visto que, para serem padrão de validade de outras normas, teriam de ser conformes com a Constituição. Mas hoje estimamos desnecessário raciocinar assim, porque só as normas sobre objeto próprio dos estatutos poderão determinar ilegalidade, não quaisquer outras, e, portanto, não se põe o problema. Contra a consideração de mera irrelevância, há quem pretenda que não seria razoável dar ao legislador comum a possibilidade de destacar as normas que entenda a seu bel‑prazer serem estatutárias e não estatutárias “por natureza”; e, contra a qualificação de certas normas estatutárias como inconstitucionais pelo próprio órgão legislativo, quem invoque o sistema de fiscalização, que não consente à Assembleia da República nenhuma decisão autónoma de constitucionalidade. Mas julgamos que as críticas não atingem o alvo, pois que não preconizamos que o legislador declare, explícita ou implicitamente, inconstitucional qualquer norma; o Parlamento agirá como tal, simplesmente legislando, por sua conta e risco – sobre eleições, como sobre qualquer outra matéria – e quem irá decidir, em última análise, da constitucionalidade e da legalidade de todas as normas será o Tribunal Constitucional.   Jorge Miranda (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Política e Institucional

pastoral

“Pastoral” é um termo cujo uso se tem deslocado da ação dos pastores na cura de almas de toda a sociedade para a ação de diversos agentes em campos cada vez mais especializados. “Se a expressão ‘cura de almas’ apontava para o específico, este não era entendido como separação do viver quotidiano; pelo contrário. A partir do Iluminismo e da Revolução Francesa, o progressivo afirmar-se da secularização e da laicidade do Estado estabelecia fronteiras e proibições de acesso crescente. O contributo eclesial específico no interior tornava-se separação, quando não contraposição, marco de fronteira... Tratava-se então de determinar as formas do agir eclesial” (LANZA, 2012, 296). Na enciclopédia dos saberes, a teologia pastoral assumiu um aspeto cognoscitivo geral, enquanto teoria da práxis, e outro especificamente teológico: o horizonte da fé da Igreja. Fundamento da conotação teológica é o princípio da encarnação, já enunciado por Franz Xaver Arnold (1898-1969) como “divino-humano” e pela constituição dogmática Dei Verbum com a expressão gestis verbisque: “por ações e palavras”, Deus revela-nos que está connosco para nos libertar do pecado e da morte. De acordo com tal princípio e com a natureza e estrutura sacramental da Igreja, Sergio Lanza (1945-2012) definiu o objeto e o método da teologia pastoral: o seu objeto material é a pastoral como ação eclesial orgânica nas suas dimensões antropológica global, sociopolítica, cósmico-universal e escatológica; o objeto formal, por seu lado, descobre-se “aqui e agora”, de forma analítica e crítica, no horizonte hermenêutico da fé e no dinamismo do espírito. O adjetivo “teológico-pastoral” refere-se, não a uma realidade em parte teológica e em parte pastoral, mas à teologia pastoral. O método teológico-pastoral é constituído pelas dimensões kairológica (do grego “kairós”, com o significado de “ocasião”, “tempo oportuno”), criteriológica e operativa, presentes em toda esta sequência de fases: 1.ª) análise e avaliação; 2.ª) decisão e projeto; 3.ª) atuação e verificação. Assim, na primeira fase está presente, não só uma dimensão kairológica, mas também uma ativação de critérios idóneos de leitura da realidade, os quais, por sua vez, estão atentos à dimensão operativa, para a qual a fase de avaliação está orientada. Fases e dimensões relacionam-se entre si em termos de prevalência, por um lado, e de presença simultânea, por outro. Na fase de análise e avaliação, e.g., prevalece a dimensão kairológica, mas estão presentes também a criteriológica e a operativa. Entre a fase analítico-avaliativa e a projetual aprofundam-se os critérios (sem esquecer o kairós nem a ação), podendo voltar à leitura da situação para melhor a avaliar, de modo a entrar capazmente na fase projetual. O presente estudo está dividido precisamente segundo estas três fases. Edificação e missão são os dois grandes campos da ação pastoral, ambos movidos pelo impulso da nova evangelização e centrados na vivência das pessoas. No horizonte da nova evangelização, ponto central é a passagem do paradigma do cuidado das almas (centrípeto) ao da evangelização (dinâmico). Tarefa relevante da missão é chegar ao Homem onde ele nasce, estuda, trabalha, sofre, restaura as forças; não só em sentido físico-topográfico, mas também e sobretudo em sentido psicológico e cultural. Sem pretender ser exaustivo, o anúncio e o ensinamento da palavra de Deus, a oração, a liturgia, e o testemunho da caridade não são compartimentos estanques da pastoral, mas indicam um caminho ainda a percorrer, cujos âmbitos principais são a vida afetiva, o trabalho, o tempo livre, a fragilidade humana, a tradição, a educação, a cidadania, etc. “As áreas de exploração temática articulam-se segundo uma figura que vê no entrelaçamento entre o sujeito, a comunidade cristã e a sociedade, por um lado, e, por outro, a perspetiva ‘ad intra’ (comunhão) e ‘ad extra’ (missão) – a infraestrutura epistemológica adequada ao saber teológico pastoral. Como se nota, é praticamente impossível reduzir a um esquema rígido o campo multiforme da ação eclesial, guiado pelo Espírito Santo e interrogado pelos sinais dos tempos. É, todavia, possível identificar alguns âmbitos que a especificidade da fé cristã põe em particular evidência; tais âmbitos assumem carácter não passageiro, e podem, com razão, ser consideradas articulação normativa no campo disciplinar” (Ordo Anni Academici 1998-1999,1998, 244). A evangelização contempla âmbitos como a “primeira” e a “nova” evangelização, a missão ad fideles e a missão ad gentes, a evangelização e as culturas, o ministério pastoral, a procura religiosa, a evangelização da afetividade, a pastoral juvenil, a caridade da moral cristã, a família, a prática litúrgica, a paróquia, etc. Descrita a pastoral como ação eclesial orgânica nas suas diversas dimensões, advertimos a impossibilidade de este trabalho contemplar a maioria dos seus setores específicos. Superadas expressões como “catequese missionária” ou “de diáspora” nos países de antiga cristandade, posteriormente descristianizados, a atividade missionária (missionação) liga-se à catequese, à liturgia, ao exercício da caridade e da diaconia, à renovação da comunidade, etc., mas respeitando a especificidade destas. Não há esse respeito em expressões como “catequese kerygmática”, “catequese evangelizadora”, “pré-evangelização” ou “pré-catequese”, que pretendem preencher com formas espúrias o campo primeira evangelização. É neste campo da primeira evangelização (e designadamente de primeiro anúncio) que se situa a missão ad fideles, considerada como ação eclesial extraordinária de implantatio evangélica e eclesial. Desta colocação resulta que “a primeira evangelização, tem, por conseguinte, caráter kerygmático, mas não se reduz de modo nenhum à simples proclamação verbal do kérygma” (LANZA, 1994, 34). Enquanto primeira evangelização, a renovada missão ad fideles tem constituído uma forma apta ao almejado ardor missionário, que não deve ser confundido com os processos do tornar-se cristão (catecumenado ou educação cristã). A escansão teológico-pastoral daquele teólogo de Latrão prevê uma estrutura “em unidade de perspetiva sob a denominação de primeira evangelização, nas suas duas fases salientes: primeira evangelização ad extra, de carácter distintamente missionário; primeira evangelização na comunidade, com carácter de aprofundamento e de avaliação das motivações, em clima de acolhimento em vista da decisão de fé que conduz à entrada no catecumenado” (LANZA, 1994, 36) ou ao completá-lo, uma vez interrompido a certo ponto do itinerário por o “catecúmeno” se ter daí “afastado”, conforme prevê o Ritual da Iniciação Cristã dos Adultos (Ritual…, 1995, § 295). A missão entre fiéis (ad fideles, por oposição a ad gentes), embora se dirija a maior parte das vezes a batizados, tem a caraterística de primeira evangelização ad extra, uma vez que a referida oposição não é taxativa. Requer-se, pois, em cada época, competência, parrêsia (i.e., franqueza, coragem), iluminação e capacidade, seja de atrair, seja de lançar pontes. E tal não pode ser deixando à mera iniciativa individual dos cristãos, mas propondo estruturas dinâmicas e formas aptas aos que se encontram afastados da comunhão do povo de Deus. O panorama teológico-pastoral pós-moderno, tanto a nível de identidade e método como das estruturas e formas de primeira evangelização, é nota dominante nos países de antiga evangelização como Portugal. O mesmo se diga da cristandade transplantada do território continental português para o que viria a constituir, desde 1514, a Diocese do Funchal. Forma de pastoral extraordinária, originalmente implantada pelos Jesuítas portugueses, a missão ad fideles poderia ter chegado, depois de 1566, por mão dos discípulos de Inácio de Loiola à Diocese que Leão X criara para o arquipélago povoado havia menos de um século e todos os territórios descobertos e por descobrir pelos Portugueses. Eduardo Nunes Pereira, porém, considera que, graças à sua preparação intelectual e espiritual, os Franciscanos se dedicavam à pregação, no que eram secundados pelo clero diocesano, mas não pelos Jesuítas, mesmo se “pelo seu estatuto e carta de dotação tinham obrigação da prédica [...]. Todos estes factos levam-nos a supor que a Companhia não atingiu o nível que alcançou em outras terras do Continente e Ultramar, porque veio a encontrar na Madeira, em pleno e seguro desenvolvimento, a Ordem Seráfica” (PEREIRA, 1968, II, 294), que, apesar da doação espiritual à Ordem de Cristo, em 1433, já “descobrira” espiritualmente o arquipélago. Graças a tal preponderância dos Franciscanos, a Diocese do Funchal continuou a celebrar com especial empenho o final do Advento, cantando antes da aurora as missas à Virgem do Parto. O Corpo de Deus, celebrado em clima diocesano, é prolongado ao longo do ano nas diversas paróquias e na sua diáspora. As visitas do Divino Espírito Santo, cada domingo em diferentes sítios de uma paróquia, dão à cinquentena pascal uma conotação pneumatológica.   Análise e avaliação Na sequência da renovação da Igreja em Portugal e do Sínodo dos Leigos que teve lugar em Roma em 1987, os bispos portugueses puseram em marcha um trabalho, realizado quer na área das dioceses e das paróquias, quer no seio dos movimentos e das associações para preparar um congresso nacional de leigos. O trabalho dos 2000 delegados nos dias 2 a 5 de junho de 1988 representa, por conseguinte, o culminar de um movimento mais amplo que gerou justas expectativas na nossa Igreja: no mínimo, uma sondagem global dos seus recursos humanos e da sua própria visão. É por esta capacidade de análise – devida tanto à qualidade dos métodos sociológicos como à larga participação eclesial – que nos debruçamos sobre este acontecimento. Neste âmbito, realizou‑se em cada Diocese um congresso de leigos, cujas conclusões seriam levadas ao congresso nacional, em Fátima. Foi o caso do primeiro congresso de leigos da Diocese do Funchal, de 5 a 7 de fevereiro de 1988, precedido de um estudo sociológico. O congresso do Funchal encomendou a uma empresa especializada em análises sociológicas um estudo de “interesse” teológico-pastoral de oito paróquias representativas da Diocese, cujos dados se apresentam a seguir. O congresso diocesano constatou que a generalidade dos madeirenses – quase todos católicos – procurava a Igreja para o batismo, a catequese, a primeira comunhão e o matrimónio, apesar de a frequência da eucaristia e da reconciliação revelar uma grande diferença entre as várias zonas da Diocese. Esta diferença era evidente do ponto de vista de uma religiosidade genérica, admitida pela quase totalidade dos inquiridos das paróquias rurais e por uma parte dos das paróquias suburbanas; menos evidente, à medida que os centros urbanos cresciam. Declarava-se católica a quase totalidade da população madeirense, excetuadas as paróquias mais populosas do arquipélago, como S. Pedro e S.to António. Também a prática era menor, aumentado à medida que nos aproximamos do meio rural. O congresso funchalense falava, em conjunto, da frequência dos sacramentos da eucaristia (prática dominical) e da reconciliação. Quanto ao primeiro, o estudo feito revelou que as razões do abandono da prática dominical na Diocese do Funchal não se prendiam com a consciência de ter perdido a fé, nem com a deficiência da assistência religiosa nem com preconceitos classistas; a privatização do facto religioso prevalecia sobre a indisponibilidade. Quanto à reconciliação, prevaleciam os que se confessam 1 ou 2 vezes por ano (paróquias de S.to António, Achada de Gaula, S. Vicente e Santana), logo seguidos daqueles que o faziam entre 3 e 11 vezes no mesmo ano (paróquias de Machico, S.ta Cruz, Loreto e Porto Santo). A alguns pontos percentuais estavam os que raramente ou nunca se confessavam; na paróquia de S. Pedro, na capital madeirense, quase metade dos inquiridos nunca se confessava. Dentro do universo dos inquiridos, indiferentemente do seu estatuto religioso, na capital quase metade dos inquiridos rezava diariamente, contra 11 % que nunca o faziam. Nas restantes paróquias, a percentagem dos que oravam diariamente oscilava entre os 70 % de S.ta Cecília e os 60 % de Machico, enquanto os que nunca o faziam representavam valores na ordem de 1 % (Achadas de Gaula e Loreto) a 9,1 % (Porto Santo). Quem mais ia à missa em 1989 eram os habitantes do Loreto (86 %), nomeadamente os jovens dos 15 aos 24 anos (81,5 %), os adultos dos 45 aos 54 anos (93,3 %) e todos os inquiridos com mais de 65 anos. Esta paróquia rural só era ultrapassada pela também rural Achada de Gaula, na faixa dos 25 aos 34 anos (75 %) e dos 55 aos 64 (95,3 %), e pela paróquia suburbana de S.ta Cecília, na faixa dos 35 aos 44 anos (100 %). Os mínimos da prática dominical em todas as faixas etárias registavam-se na paróquia de S. Pedro, no maior centro urbano da Diocese do Funchal. Concluiu-se que a prática dominical era percentualmente menor nos grandes aglomerados, salvo nas idades compreendidas entre os 25 e os 54 anos, em que algumas paróquias urbanas e suburbanas tinham mais prática que as rurais. Não é legítimo comparar as médias percentuais de um inquérito como o de 1989 com os resultados de recenseamentos da prática dominical em 1977 e 1991, uma vez que se trata de métodos sociológicos diferentes. Contudo, é possível comparar as tendências entre as faixas etárias em cada um dos anos. Os estudos eram unânimes em apresentar como menos praticantes os indivíduos com idades compreendidas entre os 15 e os 24 anos, em comparação com os mais velhos. Contudo, entre estes, os recenseamentos da prática dominical concordavam quanto à menor prática dos sexagenários, enquanto o inquérito de 1989 os considerava mais praticantes que os de meia-idade (25-54 anos). Acrescente-se ainda que os sucessivos recenseamentos revelaram uma diminuição da prática dominical das crianças e dos adolescentes. A descida dessa prática entre os adultos dos 40 aos 54 anos (-0,4 %) era compensada pela subida dos jovens adultos (25-39 anos). Quanto aos mais velhos, a subida foi maior entre os 55 e os 69 anos do que a partir dos septuagenários. O Boletim Diocesano do Funchal acusava, globalmente, a subida de presenças de homens com mais de 70 anos e das senhoras a partir dos 55, a diminuição dos lugares de culto, do número de celebrações e de presenças, e um ligeiro aumento do número de comunhões. As presenças diminuíram em todos os concelhos, exceto no Porto Santo e na Ribeira Brava. As comunhões, nestes dois concelhos, aumentaram 197,6 % e 59,55 % respetivamente. O concelho da Calheta manteve-se, quanto ao número de comunhões, na ordem dos 20,55 %. O concelho de Câmara de Lobos teve uma baixa de 750 presenças e um aumento de 1561 comunhões (27,35 %). O concelho do Funchal viu diminuído o número de presenças em 7500, com um aumento de 500 comunhões. Nos concelhos de Machico, Ponta de Sol, Porto Moniz e Santana (com uma diminuição acentuada), baixaram as presenças e comunhões. No concelho de São Vicente, baixou o número de presenças em mais de 1300 e aumentaram as comunhões em cerca de 200. As faixas etárias que mais diminuíram foram as de 7-14 e 15-24 anos. Estes números exigiam, no entender da Diocese, uma reflexão pastoral. A pastoral da juventude e da família, os cursos bíblicos, a animação litúrgica, uma atenção particular à população académica deveriam ser prioritários. Fazer uma análise da iniciação cristã dos madeirenses significa indagar o modo como se tornam cristãos, através da catequese, do exercício da vida cristã, da liturgia, da evangelização e edificação da Igreja. Além da prática dominical e do sacramento da reconciliação, o inquérito versou a iniciação cristã, na sua vertente tanto sacramental como catequética. Além disso, embora o matrimónio não faça parte da iniciação cristã, uma vez que na Diocese do Funchal era prática generalizada (no cumprimento da lei canónica) exigir a confirmação aos nubentes, importa analisar a relação entre ambos os sacramentos. Segundo a sondagem de 1988, os madeirenses eram batizados quase todos antes da “idade da razão”, não chegando a 1 % os que o faziam depois dos 15 anos. A relação entre a educação cristã, designadamente a catequese, e os sacramentos da iniciação cristã estava patente na proximidade percentual entre os que frequentaram a catequese (97,4 %) e os que fizeram a primeira comunhão (90,0 %). A diminuição dos catequizandos à medida que ia aumentando a sua idade explicava o menor número total de crismados (92,1 %). E o facto de 49,7 % dos inquiridos terem frequentado a catequese até aos 12 anos explicava que 50,3 % tivessem feito o crisma entre os 12 e os 14 anos. De facto, a catequese na Diocese do Funchal terminava por norma com a celebração da confirmação e – segundo os inquiridos – não havia catequese depois disso. Era a diretiva canónica um dos motivos que levava os jovens que se queriam casar catolicamente a receberem aquele sacramento, geralmente depois de concluído o itinerário catequético normal ou, por vezes, através de uma preparação ad hoc na iminência do matrimónio. O 1.º congresso de leigos da Diocese do Funchal concluiu que a paróquia era uma referência forte, sobretudo no meio rural, e que muitos cristãos afluíam a ela, mas poucos pertenciam a associações e obras religiosas. Na Madeira, a tradição associativa não parecia enraizada na população, a avaliar pela média de 22,2 % de associados nas mais diversas instituições. O dinamismo destas, de resto, não parecia depender da tipologia demográfica; os habitantes das paróquias de Santana (rural, 32 %) e de S.to António (suburbana, 29,5 %) eram os que mais se associavam. Idêntico fenómeno se registava entre os católicos dessas mesmas paróquias, cujos 21 %, sensivelmente, se situavam acima da média de associativismo, dos 960 católicos inquiridos: 14,6 %. Tal fenómeno invertia-se em zonas rurais como as Achadas da Cruz e o Loreto, onde as associações católicas contavam com maior percentagem de membros do que as suas congéneres não-católicas. Sobre as razões por que os católicos não se associam não se debruçou a comissão permanente de coordenação pastoral, pois o estudo de que dispunha não era conclusivo: 74,1 % dos inquiridos disse não ter razões e 58,9 % invocou falta de tempo. Por outro lado, só 12,4 % sabiam da existência ou não de um boletim paroquial e só uma média de 46 % o liam. No campo da informação, eram os meios regionais e nacionais que suscitavam maior interesse (20,2 % de assinaturas, 54,4 % de audiência radiofónica e 71,9 % de audiência televisiva), apesar das discrepâncias entre paróquias bem informadas como S.ta Cecília, e paróquias com défice de informação como o Loreto. A participação monetária (84,7 % dos 997 inquiridos) era, sem dúvida, superior ao interesse pela informação. Estava ligada, contudo, a um segmento bem determinado da vida eclesial, o culto, uma vez que a maioria contribuía através do ofertório da missa. Além disso, só em quatro paróquias havia uma maioria de inquiridos cuja segunda forma de participação não era meramente esporádica, uma vez que pagava quotas. O congresso funchalense avaliou ainda os baixos índices de participação na vida social, política, cultural e sindical e a pouca sensibilidade aos problemas sociais como: o alcoolismo, as drogas, o analfabetismo, a degradação moral, a corrupção, a desintegração da família, o papel subalterno da mulher, o conformismo face às desigualdades sociais, a habitação, os problemas dos jovens e dos deficientes. Os baixos índices de participação em associações de carácter genérico influíam, como se afirmou, no específico associativismo eclesial, mas, por outro lado, constituíam indício das preocupações e interesses dos cidadãos e, por reflexo, também dos cristãos. 12,6 % dos inquiridos não tinham nenhuma preocupação pelo mundo que os rodeava. Dos que as tinham, a maioria preocupava-se com a guerra ou com a saúde, prevalecendo esta preocupação nos meios rurais. Outras preocupações apontadas foram a fome e sobretudo as finanças. Tal elenco denota que os problemas são captados de um ponto de vista individualista, por um lado, e genérico, por outro, não se tendo em conta, por conseguinte, as situações concretas do próximo em sentido evangélico. Os trabalhos do congresso encerraram sob a nota da “participação corresponsável [...] nas tarefas de renovação da Igreja e da construção do mundo segundo o Evangelho” (CONGRESSO NACIONAL DE LEIGOS, 1988, 379). Analisando os “sinais dos tempos” presentes no mundo, os congressistas notaram que a inovação tecnológica, a internacionalização da economia, a integração europeia, o surgimento de novas realidades culturais tinham dado lugar a processos de mudança que, a par de muitos aspetos positivos, geravam tensões, conflitos e risco de agravamento de desigualdades e injustiças, e grande insegurança em relação a valores e modelos de vida. O congresso não dava, no entanto, a estes factos valor de determinismos cegos, contrapondo a um estilo de vida marcado pelo hedonismo e pelo individualismo e um modelo económico e social excessivamente competitivo escolhas conformes com a dignidade do homem e com o projeto do evangelho. O congresso discerniu, na Igreja, como bons “sinais dos tempos”: a comunhão, designadamente pela maior participação e abertura ao diálogo, e a corresponsabilidade traduzida na consciência de que há uma missão comum a toda a Igreja. Mas a ausência do espírito conciliar e a dificuldade de se comprometer na sociedade eram maus “sinais dos tempos” entre os cristãos portugueses do final de milénio. Esta auscultação dos leigos mereceu uma carta pastoral do episcopado, que pretendia ser, ao mesmo tempo, incentivo e programa para o esforço evangelizador em Portugal. A análise do quartel pós-conciliar (1965-1989) foi muito positiva quanto à evolução da Igreja, secundando o que já dissera o congresso do ano anterior. Mas os bispos foram mais concretos, enumerando como sinais positivos a renovação ou o surgimento de movimentos e associações laicais, nomeando a Ação Católica, a renascer de uma profunda crise, bem como a participação dos leigos na catequese e na vida litúrgica, organizativa e apostólica. Contudo, chamavam a atenção para a tentação individualista que atentava contra a dinâmica comunitária da missão da Igreja, uma vez que a participação tinha frequentemente a forma de poder e não de serviço, e havia gosto em participar, mas não profundidade na formação da fé, exigida pela missão. Eis a razão por que a missão da Igreja, inclusive as missões ad fideles, no pós‑congresso viria a fazer parte da instrução pastoral dos bispos portugueses intitulada A Formação Cristã de Base dos Adultos, de 1994. Decisão e projeto Os cristãos, e em particular os leigos, requeriam formação profunda e permanente para se empenharem na edificação da Igreja e na realização da sua missão. Muitos dos batizados não praticantes teriam chegado a essa atitude por falta de formação adequada. Por outro lado, num mundo caraterizado pelo princípio da competência na realização das tarefas profanas, a missão exigia cada vez mais competências específicas que só uma sólida formação cristã podia proporcionar. Por isso, a formação cristã era uma das mais urgentes prioridades pastorais. Esta prioridade seria apontada como prioridade da ação pastoral por vários congressos diocesanos, articulados com o congresso nacional dos leigos de 1998. De facto, a carta de 1989 quedava‑se pelas “grandes coordenadas da formação cristã”, remetendo para a instrução que só viria a lume em 1994 “o ritmo e o plano de formação permanente para os cristãos leigos” (CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, 1989, § 23). Passamos à sua análise. Urgência da formação cristã dos adultos A catequese na infância de grande parte dos leigos adultos revelou-se insuficiente para interpretar as experiências da idade adulta, as questões sociais e morais, e para dar razões da própria da fé. A fé cristã é um dinamismo de vida sociológico, psicológico (idades evolutivas), razoável (não meramente racional), teológico e especificamente missionário (de alteridade). Cada concretização autêntica da fidelidade à vocação projeta para a missão; as exigências desta proporcionam a descoberta e vivência mais profunda daquela. Referindo‑se à exortação apostólica pós‑sinodal sobre os leigos, os bispos de Portugal consideravam decisivo o modelo comunional de Igreja, aqui incluída a missão dos cristãos leigos no mundo, a qual deve convergir para a experiência comunitária da fé. Da constatação de que se vivia um cristianismo passivo, sem identificação eclesial nem compromisso cristão, surgiu a necessidade de incrementar a consciência de que a missão da Igreja é obra de todos os seus membros e de realizar aquela eclesiologia de comunhão através de uma opção pastoral fundamental: edificar comunidades vivas de fé, de amor, de dinamismo missionário; só elas podem garantir a cada um dos fiéis a sua plenitude cristã e a toda a Igreja a fidelidade à missão. Entendida negativamente, a secularização foi considerada pela carta de 1989 como secularismo, i.e., perda da inspiração cristã dos comportamentos e dos critérios de discernimento da realidade: rutura entre a cultura e a fé, indiferença religiosa, pluralismo religioso, confusão moral, “ataque” de seitas, em suma, descristianização ou negação da dimensão transcendente de uma ordem secular justamente autónoma. Note-se que, vista positivamente, a secularidade sadia é um processo de autonomia da cidade secular que gera uma cultura em que germinam valores de matriz cristã – como a justiça, a paz, o respeito pela pessoa humana, a solidariedade, a participação, a dignificação do trabalho – e mesmo o regresso do sagrado como ambiente favorável ao despontar de tais valores. Os adultos são o alicerce da comunidade, que é, por sua vez, matriz da catequese e de toda a educação e formação cristã. É interessante notar que “fortalecer o alicerce da vida cristã” foi também a expressão usada em sede de “formação na perspetiva da nova evangelização”, como forma desta, que incluísse uma “iniciação cristã integral aberta a todas as componentes da vida cristã” (CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTGUESA, 1994, § 4). Aludia-se à exortação apostólica Catechesi Tradendæ, de João Paulo II, adotando o seu sentido inclusivo de catequese enquanto ensino (ou educação) feito de forma sistemática, essencial e suficientemente completa, diferente de kerygma: “uma enunciação cristã integral, aberta a todas as outras componentes da vida cristã” (JOÃO PAULO II, 1979, § 21).   Missão ad fideles Um certo número de elementos da missão pastoral da Igreja tem um aspeto catequético, prepara a catequese ou desenvolve-a: o primeiro anúncio do evangelho ou pregação missionária pelo kerygma para suscitar a fé. Fazendo uma breve resenha histórica dos vários modos de formação, os bispos consideravam as missões ad fideles uma forma privilegiada de promover, após o Concílio de Trento, a conversão e o crescimento da fé dos adultos. Como se depreende, a Conferência Episcopal portuguesa reconheceu o multissecular valor das missões ad fideles em Portugal no âmbito da evangelização, aliás na linha das exortações apostólicas Evangelii Nuntiandi e Catechesi tradendæ, do discurso papal ao primeiro convénio nacional para as missões ad fideles e do Código de Direito Canónico. A pastoral da fé identificada pelos bispos portugueses como prioritária concretizava-se na formação cristã de base, em todos os seus âmbitos e níveis. O nível médio teria em vista a formação de líderes e o aprofundamento dos elementos fundamentais da fé cristã: Sagrada Escritura, mistério de Deus, Jesus Cristo, Igreja e história da Igreja, liturgia, antropologia, moral e doutrina social da Igreja. O nível superior formaria cristãos mais esclarecidos, capazes de orientar atividades pastorais, nomeadamente a formação de nível básico e médio. A formação permanente e a especializada teria por objetivo a preparação específica para o exercício de ministérios laicais ou serviços eclesiais. Dada a constatação de que era necessário cuidar do alicerce da vida cristã, i.e., da primeira evangelização, seria de esperar que fosse prioridade para Portugal o seguinte: a) nível de introdução, sensibilização ou kerygma, que tem em vista fazer o anúncio de Jesus Cristo como o único em quem encontramos a salvação, procurando despertar a fé e a conversão iniciais; àqueles que andam afastados ou não tiveram qualquer iniciação catequética é necessário apresentar os elementos primários e essenciais da fé de forma simples, acessível e testemunhal; b) nível básico, que tem em vista proporcionar uma visão de conjunto e atualizada da fé nos seus elementos integrantes (a história da salvação resumida no credo, os sacramentos, os mandamentos e a oração, conforme a genuína tradição catequética recolhida pelo Catecismo da Igreja Católica), abrangendo as várias dimensões da vida cristã. Torna‑se desde já claro que uma missão ad fideles que abranja o nível de introdução ou sensibilização enquanto visão básica de conjunto da vida cristã não pode ser um acontecimento limitado no tempo; deve incluir tempos prévios e subsequentes. Fernando Taccone recolheu as formulações que melhor caraterizam as missões ad fideles: anúncio extraordinário da palavra de Deus, proclamada por uma comunidade profética que, pela força do Espírito Santo e por mandato da Igreja, chama todo o homem à conversão, para tornar evangelizadora a comunidade evangelizada. É importante sublinhar o carácter extraordinário desta forma de ação eclesial, como fez Marciano Morra: não apresentar nenhuma novidade no contexto da vida sacramental, no exercício da caridade, mas pôr em movimento um conjunto de energias naturais e sobrenaturais que na pastoral ordinária dificilmente se libertam. Na missão ad fideles, ad populum, o povo é entendido enquanto realidade sociológica, religiosa e teológica, ao passo que a missão tem uma vertente social e outra religiosa. O povo é constituído sociologicamente ao longo dos tempos e das culturas como união de pessoas; o facto de estas exprimirem o transcendente torna‑o realidade religiosa e especificamente teológica ao haver uma especial convocação de Deus para uma missão de testemunho. A missão é apanágio de todo e qualquer povo, se bem que segundo tempos e modos diversos, mas é também a missão do povo de Deus, já indicada no êxodo e confirmada por Jesus Cristo que, enviado pelo Pai, manda os seus apóstolos para o meio do povo. Reza a tradição viva da Igreja nascente: “Assim, todo o apóstolo que vier ao vosso encontro seja recebido como o Senhor; mas não ficará senão um só dia; e, se houver necessidade, também o seguinte; se ficar três dias, é um falso profeta” (Didakhé, 1965, 4).   Atuação e verificação Quando o kairós é de nova evangelização, a perspetiva ad intra (comunhão) está ao serviço da perspetiva ad extra (missão), a edificação é campo de ação aberto à missão pastoral; o paradigma do cuidado das almas (centrípeto) cede ao da evangelização (dinâmico). Além disso, o objeto material da teologia pastoral é a ação eclesial orgânica; não apenas dos pastores. Daí evidenciarmos, seguidamente, alguns aspetos da ação do conjunto da Igreja do Funchal durante os episcopados posteriores ao Estado Novo.   O episcopado de D. Francisco Santana Nomeado e ordenado bispo em março, em maio de 1974 entrava D. Francisco Antunes Santana na Diocese do Funchal, onde permaneceria até morrer, em março de 1982. Na senda do Concílio do Vaticano II e do apelo do Papa Paulo VI, D. Francisco suscitou a colaboração da Diocese na dinamização e ação eclesial, pretendendo “ouvir mais do que falar” (CONSELHO DIOCESANO DO APOSTOLADO DOS LEIGOS, 1974, 22), atitude que muitos lhe reconheciam. “Sentindo a responsabilidade que pesa sobre todos nós neste momento [pós-conciliar e, em Portugal, revolucionário], num momento, por um lado, muito rico de valores humanos e cristãos, mas por outro lado também um momento de desafio à Igreja, vindo de dentro e de fora […] momento concreto da vida nacional” (Id., Ibid., 22), foi constituído o conselho diocesano do apostolado dos leigos com 76 membros de paróquias, associações e movimentos de âmbito diocesano, nacional e internacional atuantes na Diocese; estaria em articulação com os conselhos presbiteral, pastoral diocesano e pastoral paroquial. Pretendia-se atento às carências de apostolado da Diocese, promovendo a colaboração de todas as associações de fiéis, apoiando e dinamizando as iniciativas que melhor servissem os fins da Diocese, organizando uma estrutura de base, por paróquias e arciprestados, que assegurasse, em termos geográficos, uma real representatividade dos leigos na constituição dos futuros conselhos e, simultaneamente, facilitasse a rápida circulação de ideias e experiências. O dito conselho dispunha-se, em 1974, a ajudar, concretamente na paróquia, no arquipélago, no meio ambiente e na Diocese, à solução dos problemas principais da Igreja: as supostas desunião, desatualização e carência de clero; a deficiência da catequese e da educação moral e religiosa; a separação entre a vida e a fé; a inadequação da pastoral às realidades diocesanas; a falta de integração dos leigos. Tal ajuda concretizar-se-ia colaborando os presbíteros na evangelização dos demais fiéis, menos esclarecidos, a fim de se juntarem e poderem descobrir como atuar e desempenhar o seu papel de autênticos cristãos, organizando reuniões a fim de promoverem palestras, filmes, conferências, diálogos; de prepararem os conselhos das paróquias; de fazerem uma profunda reflexão e a transmitirem aos outros leigos e ao conselho presbiteral, e estimularem ações que, no conjunto da pastoral, permitissem dar à face da Igreja um aspeto de maior autenticidade. Em 1975, reunia-se o mesmo conselho de leigos, sendo objetivo principal desta assembleia debruçar-se sobre a criação de uma estrutura diocesana de base paroquial que respondesse à crise religiosa daquele tempo, a saber, os conselhos (pastorais) paroquiais. Antes, porém, questionados os grupos acerca de como encaravam o ateísmo ou o simples indiferentismo religioso existente no próprio meio, suas causas, e possíveis formas de, nesses ambientes, se dar uma resposta cristã, responderam que uma forma de reagir cristãmente é ter coerência, dando testemunho de fé e de vida inseridos no mundo, descobrir novas experiências de fé, fomentar uma catequese mais organizada e equipas paroquiais de entreajuda, não dividir a paróquia entre uma elite e os outros, estimular a disponibilidade dos leigos e a colaboração dos padres; criar cursos bíblicos; multiplicar experiências litúrgicas com participação mais direta em pequenos grupos, estar atento às atuações de certos padres progressistas, criticar o tradicionalismo do pároco, ajudando-o a ultrapassar os seus aspetos negativos; pôr em prática a doutrina social da Igreja; procurar que todos possuam independência económica, promovendo paralelamente um esclarecimento, reunir em conselhos as forças vivas da paróquia em espírito de Igreja; fomentar o aparecimento de grupos ativos nas paróquias, como o escutismo, os jovens cristãos, etc. (Id., Ibid., 19-26)   O longo episcopado de D. Teodoro de Faria Do múnus de D. Teodoro de Faria – segundo bispo do Funchal (entre maio de 1982 e maio de 2007) proveniente desta Diocese – podem destacar-se a organização das seguintes realidades: a Ação Católica; os acólitos; o arquivo documental e, especificamente, musical, da Diocese; a beatificação do Imperador Carlos da Áustria, na parte do processo que coube à Diocese; a biblioteca da Cúria Diocesana; a Cáritas diocesana; os cursos de cristandade; os conselhos económico, pastoral e de consultores da Diocese; a educação moral e religiosa católica nas escolas públicas, além das católicas; a formação de agentes culturais e pastorais pela Universidade Católica Portuguesa no Funchal; os jovens cristãos; a liturgia, mormente na Catedral; os meios de comunicação social, como o Jornal da Madeira, a Rádio Jornal da Madeira e o Posto Emissor do Funchal; as Misericórdias; o Museu Diocesano de Arte Sacra; a oração pelas vocações e a promoção vocacional; o Seminário Maior de N.ª Sr.ª de Fátima, sua escola teológica, formação dos diáconos e presbíteros, no país e no estrangeiro, desocupação do Seminário da Encarnação; visitas pastorais de maneira “pessoal e direta, exercida com humildade, paciência e caridade do Bom Pastor” (FARIA, 2010, 169); a visita do Papa João Paulo II à Diocese do Funchal. Este bispo velou pela conservação do património móvel e imóvel da Igreja, e impulsionou a construção duma casa de retiros, do edifício destinado à Cúria Diocesana, e de diversas igrejas e centros sociais paroquiais. Evoque-se ainda o papel dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica masculinos: Congregação da Missão (junto do Hospício Dona Maria Amélia, paróquia da Sé, no ensino, nas missões ad fideles, na direção espiritual do Seminário Maior de N.ª Sr.ª de Fátima); Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, Dehonianos (paróquias dos Romeiros, de S. João, de S. Paulo e da Ribeira Brava, Colégio Missionário, casa de formação dos próprios candidatos na paróquia de S.ta Luzia, Colégio do Infante D. Henrique na paróquia do Monte, Escola da Associação Promotora do Ensino Livre na paróquia do Imaculado Coração de Maria, pastoral juvenil e animação missionária, associação de leigos voluntários dehonianos); Ordem dos Carmelitas Descalços (Ordem do Carmelo Secular, ensino, catequese na igreja do Carmo, paróquia da Sé); Ordem dos Frades Menores franciscanos (paróquia da Sagrada Família, capela da Penha de França, na paróquia da Sé, Ordem Franciscana Secular); Ordem Hospitaleira de S. João de Deus (saúde mental no sítio do Trapiche, paróquia da Graça); Sociedade Salesiana de S. João Bosco (paróquia de Fátima com a Escola Salesiana de Artes e Ofícios, o Lar da Paz na paróquia de Água de Pena, cooperadores salesianos, movimento juvenil salesiano). E ainda a atividade dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica femininos: Companhia das Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo (Externato da Princesa D. Maria Amélia e Lar do Hospício Princesa D. Maria Amélia, ambos na paróquia da Sé, Casa da Sagrada Família e Refúgio de S. Vicente de Paulo, ambas na paróquia de Gaula); Congregação da Apresentação de Maria (Casa da Ave Maria na paróquia da Ribeira Brava, Externato de S. Francisco de Sales na paróquia de Gaula, Escola de S. Francisco de Sales na paróquia dos Prazeres, Colégio da Apresentação de Maria e Escola de D. Maria Eugénia de Canavial, ambos na paróquia de São Pedro, catequese e catecumenado, comunicação); Congregação das Irmãs Franciscanas de N.ª Sr.ª das Vitórias, Vitorianas (Abrigo de N.ª Sr.ª da Conceição na paróquia da Sé, Associação dos Amigos da Irmã Wilson, Colégio de S.ta Teresinha na paróquia de S.ta Luzia, enfermagem, catequese, Escola Arendrup na paróquia do Santo da Serra, Escola da Sagrada Família na paróquia de Santana, Escola de N.ª Sr.ª da Conceição na paróquia da Piedade (Porto Santo), Escola de S.ta Maria Madalena na paróquia da Santa, Escola de Sant’Ana na paróquia do Piquinho, Escola do Espírito Santo e Calçada na paróquia de Câmara de Lobos, Escola do S.to Condestável na paróquia da Camacha, Externato de S. João da Ribeira na paróquia de S. Pedro, Fundação de N.ª Sr.ª da Piedade na paróquia do mesmo nome (Porto Santo), Lar N.ª Sr.ª da Assunção na paróquia de São Gonçalo, Patronato de N.ª Sr.ª das Dores na paróquia de S.ta Maria Maior, Seminário Maior de N.ª Sr.ª de Fátima e Qt. das Rosas, ambos na paróquia da Sé); Congregação de S. José de Cluny (Escola da Fundação D. Jacinta Ornelas Pereira na paróquia do Estreito de Câmara de Lobos, Escola Superior de Enfermagem de S. José de Cluny na paróquia do Livramento); Congregação Portuguesa das Irmãs Dominicanas de S.ta Catarina de Sena (Abrigo de N.ª Sr.ª de Fátima na paróquia de S.to Amaro, Fundação Cecília Zino na paróquia da Nazaré); Fraternidade Missionária Verbum Dei (pastoral juvenil e universitária); Instituto das Franciscanas Missionárias de Maria (infantário e semi-internato de S.ta Clara, acolhimento aos turistas no Convento de S.ta Clara na paróquia de S. Pedro); Instituto Missionário das Filhas de S. Paulo (Paulinas Multimédia na paróquia da Sé, semanas bíblicas, comunicação radiofónica); Irmãs do Bom Pastor (casa paroquial da Ponta Delgada); Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus (Casa de Saúde Câmara Pestana na paróquia de São Gonçalo, Centro de Reabilitação Psicopedagógica da Sagrada Família na paróquia dos Álamos); Ordem de S.ta Clara (Mosteiro de N.ª Sr.ª da Piedade na paróquia do Carmo, Mosteiro de S.to António na paróquia da Visitação). Ao tempo de D. Teodoro de Faria, estavam ainda presentes na Diocese do Funchal os institutos seculares: Companhia Missionária do Coração de Jesus, Instituto Secular das Cooperadoras da Família e Servas do Apostolado.   D. António Carrilho e os quinhentos anos da Diocese Nomeado bispo do Funchal em março, em maio de 2007 D. António José Cavaco Carrilho entrou naquela Diocese, sobre a qual afirmou: “a Diocese pode parecer pequena, mas é grande a exigência apostólica [...] em saber acolher os valores e as tradições das gerações passadas, mas também olhar em frente no diálogo fé-cultura-vida […] no realismo da vida concreta e com o conhecimento, entretanto adquirido, das necessidades das pessoas e dos seus problemas, como também dos recursos, possibilidades e limitações que a Diocese tem para lhes responder da forma mais adequada” (CARRILHO, 2009, 283ss.,). As comemorações do quinto centenário da criação da Diocese do Funchal procuraram realizar um projeto pastoral trianual marcado por três dimensões: o kairós, os critérios e a ação. Tais dimensões estiveram presentes em cada um dos três anos. Por kairós entendeu-se a situação da Diocese e as mudanças em curso, mas também as caraterísticas permanentes que têm distinguido a vivência da fé naquela Igreja particular. O ano de 2011-2012 foi dedicado à Pessoa divina do Pai. O critério que regeu aquele primeiro ano encontra-se na real e íntima ligação da Igreja à história do Homem. Pretendeu-se uma comunidade alimentada pela palavra, com o objetivo de a edificar e de potenciar cristãmente coletividades, famílias e indivíduos à luz da Escritura, através de ações de âmbito geral relacionadas com o acolhimento; a palavra como alimento; a família, enquanto comunidade de vida e de amor; as estruturas de comunhão na paróquia e a valorização e divulgação, em cada comunidade, de histórias de vida que a edifiquem. Houve ações de âmbito paroquial, arciprestal e diocesano. A 12 de junho de 2011, abriu-se o triénio celebrativo com a presença do núncio apostólico em Portugal e a 3 de junho de 2012 realizou-se a festa diocesana das famílias. 2012-2013 centrou-se na Pessoa divina do Filho, a quem são devotadas as confrarias e as festas celebradas, sucessivamente em cada paróquia, após a solenidade de Corpus Christi, devoção que valeu ao arquipélago o epíteto de “ilhas do Santíssimo Sacramento”. Deste critério brotou o objetivo de renovar festas e tradições e passar de uma devoção cultural para a eucaristia, que é um verdadeiro culto espiritual. As ações de âmbito geral incidiram sobre os batizados e confirmados em Cristo, e a eucaristia ocupou o centro da ini­ciação e da vida cristãs. Pretendeu-se potenciar as festas do Santíssimo Sacra­mento, bem como convocar confrarias a ele devotadas e aos padroei­ros, no arquipélago e fora dele, refletir sobre o específico delas e dos diver­sos organismos e minis­térios, e ainda revalorizar a adoração eucarística. De entre as ações nos diversos âmbitos, destacou-se um congresso eucarístico diocesano e a solenidade do Corpo de Deus. 2013-2014 foi especialmente animado pela Pessoa divina do Espírito Santo na Igreja que está nestas “ilhas missionárias”, como muitos lhes têm chamado. Tal caraterística cumpriu o critério duma Igreja enriquecida com diversos dons do Espírito, que desceu sobre ela e suscitou testemunhas até aos confins do mundo. Foi objetivo daquele último ano de comemorações valorizar a presença do Divino Espírito Santo no chamamento, compromisso e envio dos crentes, e ir ao encontro de todos em ações de âmbito geral: potenciar as visitas das insígnias (não só pascais mas) do Divino Espírito Santo, como primeira evangelização para os não iniciados à fé; renovar a evangelização para os afastados; reforçar a comunidade dos praticantes, suscitando novos ministérios e vocações para a missão; atender à caridade, tradicionalmente praticada no bodo ou copa do Espírito Santo, quando se completam os dias de Pentecostes; e contactar as instituições locais e a emigração, como lugares missionários e ecuménicos. Entre 8 e 15 de junho de 2014, celebrou-se o 500.º aniversário da Igreja funchalense através da liturgia, da catequese e da cultura. Nesta semana jubilar, apresentaram-se: uma carteira de selos dos CTT; concertos; exposições de fotografia e arte sacra; o livro Diocese do Funchal: Oragos e Paróquias; uma medalha comemorativa; restauros na Sé do Funchal. Honrou esta Diocese a presença das igrejas de onde provém e daquelas que gerou, na pessoa dos seus bispos, mormente o cardeal Fernando Filoni, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos e enviado especial do Papa Francisco. De 17 a 20 de setembro de 2014, na cidade do Funchal, um congresso internacional versou a história, a cultura e a espiritualidades daquela que foi a primeira Diocese global.   Héctor Figueira

Religiões