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cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

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clube funchalense

Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes, apontam o Clube Funchalense, criado a 3 de dezembro de 1838, como um dos primeiros clubes do Funchal, tendo os seus estatutos sido aprovados em assembleia geral, ocorrida a 18 de dezembro de 1876, e novamente aprovados pelo governador civil, Francisco d’Alburquerque Mesquista e Castro, a 16 de fevereiro de 1877. Odília Pereira refere todavia que o Clube Funchalense teve dois estatutos ao longo da sua existência: os que foram aprovados em 1853 e os datados de 1876, sob a direção de Gregório Francisco Perestrello da Câmara, J. de Salles Caldeira, Francisco de Castro e Almeida, e Filipe Acciaiolli Ferraz de Noronha. A referida autora, adianta que os estatutos aprovados a 30 de março de 1853 tornam claro que o objetivo desta instituição era “promover, por todos os meios que se possa dispôr, a modesta convivência dos sócios, e de suas famílias: para mútua recreação, e progresso instrutivo” (PEREIRA, 1996, 33). De acordo com os autores do Elucidário Madeirense, a primeira sede do Clube foi uma residência situada na R. do Carmo, tendo sido depois transferida para a R. dos Ferreiros, espaço que ocupou até à sua extinção. Importa notar que este Clube era elistista: o alto comércio tinha admissão imediata e as figuras ilustres que visitavam a Madeira eram convidadas para os bailes e as soireés. Faziam parte do Clube pessoas do continente português e até mesmo estrangeiros. O Clube Funchalense admitia quatro tipos de sócios, a saber: o sócio proprietário, cuja quota rondava os 30$000 réis, acrescidos do pagamento mensal de 1$000 réis; o sócio subscritor residente no Funchal, que pagava a mensalidade de 1$500 réis; o sócio supranumerário que não residia no Funchal e pagava de mensalidade a quantia de 1$200 réis; e, por último, o sócio temporário, que estava sujeito a uma mensalidade de 2$400 réis. Estes pagamentos tinham de ser feitos até ao dia 10 de cada mês. A cada tipo de sócio estavam atribuídos direitos e deveres diferentes, já que os primeiros gozavam de privilégios mais alargados, nomeadamente o de propor candidatos, o de convocar a assembleia geral, o de analisar os livros de contas e o de apresentar uma senhora em cada baile. No entanto, havia um critério comum a todos, tal como consta do art. 7.º dos estatutos aprovados em 1876: só era admitida “pessoa decente, de boa educação e bons costumes, contanto que seja de maior idade ou emancipada” (Id., Ibid., 37). Na realidade, a adesão ao Clube superou a expetativa, como se pode constatar na nota publicada no periódico Chronica, a 18 de maio de 1839: “Este Estabelecimento merece cada vez mais a aprovação dos seus Proprietários e assinantes, e esperamos que continuará a receber o seu apoio para que progrida e melhore se ainda é suscetível de algum melhoramento”. O Clube Funchalense destacou-se nas áreas recreativas, com particular destaque para os jogos, os concertos e, sobretudo, os bailes, que acabaram por lhe dar protagonismo. Era no Carnaval e na Páscoa que se realizavam com maior frequência, embora se tenham encontrado referências a bailes de primavera e de Natal, e ainda a bailes mensais. A publicidade para estes eventos era feita através dos jormais locais. Em 1839, há notícia de um baile realizado a 6 de abril, seguido de um outro, no dia 15 de abril, e ainda de um baile de primavera, realizado a 16 de maio; o que confirma a regulariadade deste tipo de convívio. Um folheto publicado na revista Islenha, em 1857, dá conta da eleição de uma rainha do baile. Importa notar, tal como relembra Susana Caldeira, que o Clube tinha uma missão abrangente no seio da sociedade, já que parte das receitas dos espetáculos era canalizada para instituições, ficando assim demonstrado o carácter benemérito da associação e dos seus membros. No dia 5 de junho de 1839, e.g., foi realizado um baile de subscrição em favor do Asilo de Primeira Infância, tendo-se elogiado na impressa local esta louvavél iniciativa. De acordo com a autora anteriormente referida, os anos 40 mantiveram o glamour das festividades, mas trouxeram novidades, já que Ricardo Porfírio da Fonseca abdicou do cargo, tendo-se convocado os sócios para uma assembleia geral, que ocorreu a 3 de dezembro. Em consequência, a 23 de dezembro, são aprovados novos estatutos , assim como a mesa da assembleia geral e da direção para o ano de 1840. A presidência foi assumida por José da Fonseca e Gouveia, barão de Lordelo e administrador geral do distrito, a vice-presidência por Webster Gordon, e o secretário eleito foi Almeida e Azevedo. A estes juntaram-se Ricardo T. Eduardo Kollway, Oliveira, Júlio Fernandes, T. Burnett, V. de Brito, J. Castello Branco, Burder Taylor Sant’ Anna, Bean, António de Almeida, e Diogo Tellei. Durante os anos seguintes, a impressa local testemunha a ação do Clube Funchalense, dando notícia dos bailes que se vão realizando e dando conta do valor arrecadado pelas subscrições com vista à beneficiência. Todavia, em 1856,  o Clamor Público explica que o Clube enfrentava dificuldades, adiantando, no entanto, que uma nova direção tinha tomado posse e tinha promovido a renovação das salas do edifício. Na verdade, o morgado Diogo d’Ornelas de França Frazão toma as rédeas da instituição e sabe-se que o baile de Páscoa foi muito concorrido e animado. No que diz respeito ao edifício propriamente dito, foi possível apurar que o seu estado de degradação se foi acentuando com o passar dos anos, pelo que, em junho de 1867, foram levados a cabo trabalhos de manutenção e melhoramentos sob a direção de Pedro Júlio Vieira, ao qual a imprensa local tece os maiores elogios. Tendo por base os estatutos, sabe-se que existiam várias salas de reuniões, uma sala de leitura, salas de jogo, nomeadamente para bilhar, xadrez e outros. A sede funcionava todos os dias entre as 10 h e as 24 h, exceto nos dias de baile, em que encerrava mais tarde. Gradualmente, a frequência dos bailes foi diminuindo e durante o final de Oitocentos, as referências a estes convívios tornam-se cada vez mais escassas. Porém, e aquando da visita de Sua Majestade, a Imperatriz da Austria, e de Sua Alteza Real, o infante D. Luiz, a 17 de abril de 1861, o Clube promoveu um baile em sua honra. Surge ainda, em 1874, uma notícia acerca de um baile a favor do Asilo de Mendicidade e Orfãos, cuja receita atingiu 320$000 réis, situação que se repetiu a 17 de janeiro de 1877, tendo a imprensa local elogiado a “deslumbrante decoração da entrada e das salas onde domimavam as luzes e as flores” (Id., Ibid., 34).  O esforço de João de Freitas da Silva, tesoureiro do Clube, que teve a seu cargo a decoração das salas, por recuperar de tempos mais recuados o bom gosto em que os bailes primavam e a sociedade refinada que os frequentava, foi visível. Em meados do séc. XIX, alguns periódicos locais encheram-se de uma animada troca de críticas; acusavam-se alguns cavalheiros de jogar no Clube a dinheiro. Em 1899, há notícia de que se jogava à roleta todas as noites, enumerando-se os sócios que frequentavam o Clube assiduamente, entre eles: Joaquim Simões Cantante, juiz de Direito, Joaquim Augusto Machado, delegado do procurador régio, conde do Ribeiro Real, e José Maria Malheiro, administrador do concelho. Por volta de 1899, houve uma tentativa de dissolver o Clube Funchalense, tendo sido agendada uma reunião para o dia 18 de fevereiro com o objetivo de debater a questão. Apurou-se que a assembleia geral foi adiada para o dia 15 de junho. A intenção inicial de pôr termo ao Clube, manifestada por um grupo de 14 sócios, foi abandonada. No entanto, uma notícia saída a público no Diário de Notícias da Madeira a 5 de abril de 1901 dá conta de que o Grémio dos Bordados pretendia ocupar o espaço que tinha servido de sede ao Clube Funchalense, fazendo supor que o mesmo deixara de existir.   Cláudia Faria (atualizado a 30.12.2016)

Sociedade e Comunicação Social

união, clube de futebol

A associação de recreio União Foot-Ball Club nasce em 1913 com o objetivo de promover os exercícios desportivos, náuticos e terrestres. Todavia, a vertente náutica deste clube, fortemente contemplada nos estatutos a que tivemos acesso, quer por fixar o registo das embarcações e material adquirido, quer pelas provas e concursos desportivos a desenvolver, não se viria a materializar. O União Foot-Ball Club, cuja nomenclatura deixava clara a intenção maior da sua origem, surge, à semelhança de inúmeros clubes da época, na R. de Santa Maria, no Funchal, fruto de uma contenda entre membros que integravam a equipa do Grupo União Marítimo, uma equipa de infantis constituída por jovens residentes junto ao campo D. Carlos, rapidamente batizado, com a República, campo Almirante Reis, em homenagem ao mártir Carlos Cândido Reis (1852-1910). Era uma equipa associada ao Marítimo até ter existido uma discussão em torno da compra, sem autorização, de duas balizas que haviam custado 2$70 e que eram pertencentes ao entretanto extinto Clube Operário Madeirense. Dessa discussão resultou a separação da equipa, tendo César da Silva levado para sua casa a primeira sede do União Foot-Ball Club, a 1 de novembro de 1913, coadjuvado por Ângelo Olim Marote, Luís Vieira Guerra, João Fernandes Rosa,  Alexandre de Vasconcelos,  José Anastácio do Nascimento  e  João Ferreira. O logótipo do União é aquele de que mais versões se conhecem. Muito semelhantes entre si, mantém-se o azul e o amarelo, listado, cores que mais tarde seriam escolhidas para representar a Região. O símbolo em forma de escudo com listas azuis e amarelas é rasgado por uma faixa branca com as iniciais do clube “U.F.C.”, mais tarde “C.F.U.”, tendo no cimo o capacete de Hermes, deus da fertilidade na mitologia grega. Nos primeiros anos do futebol na Madeira, sentiu-se a necessidade de contribuir para que a modalidade seguisse por um caminho de prestígio e de seriedade. Nesse âmbito, do União e do Insulano – grupo desportivo, inaugurado oficialmente a 4 de junho de 1916, que terá um papel muito importante no futebol da Madeira, uma vez que será, entre outros, o responsável pela redação dos primeiros estatutos da Associação de Futebol do Funchal, anos mais tarde denominada de Associação de Futebol da Madeira – partia a iniciativa de reunir as direções dos vários clubes, na sede do segundo, à R. da Queimada de Baixo, também no Funchal. O objetivo central seria a fundação de uma liga desportiva, o único meio de se acabar com as rivalidades que tanto prejudicavam o desporto madeirense. A proposta em discussão seria constituir na cidade uma liga entre clubes, destinando-se, inicialmente, a acordar entre todos os grupos, clubes ou associações desportivas um projeto de estatutos de uma associação, ao exemplo do que acontecia em Lisboa. Assim, em 1916, nascia a Associação de Futebol do Funchal (AFF), tendo sido organizado nesse mesmo ano o primeiro campeonato de futebol da Madeira. Nem oito dias depois da publicação, nos periódicos da época, do que é ser um bom futebolista, o jogo entre o União e o Marítimo, com vitória do primeiro sobre o segundo, acabava envolto em polémica. O jogo é anulado pela AFF com o intuito de ser repetido, mas o União não aceita a decisão, recorrendo junto deste órgão, que, pela pressão de não conseguir resolver o conflito, acabará por ficar inativo dois anos após a sua criação, e por dois anos, não havendo, por isso, competições oficiais em 1919 e 1920. A Associação ressuscita e, na época  1920/1921, a competição regressa, com a disputa do 3.º Campeonato da Madeira, acabando com a vitória do  União.  A partir da época 1921/1922, começa a realizar-se o  Campeonato de Portugal, mas o representante madeirense apenas entrará na competição na época seguinte. O União alcança esse feito na época 1927/1928, defrontando e quase vencendo o Sport Lisboa e Benfica. O União vivia muito para as atividades de lazer, para as excursões com jogos à volta da Ilha, mas também para causas solidárias. Na rubrica “Vida Sportiva” do Diário da Madeira de 4 de julho de 1915, anunciava-se que o União iria, em excursão, a Santa Cruz, acrescentando que “registamos sempre com prazer excursões desta natureza em que a nossa mocidade abandonando a vida ociosa da cidade vai retemperar o seu físico em exercícios proveitosos”(DM, 4 jul. 1915, 1). Outras notícias de 1917 davam conta de que o Club Sports Madeira e o União faziam reverter as entradas do jogo disputado entre ambos em benefício da viúva de António Fernandes, antigo jogador do Marítimo, provando, uma vez mais, que a solidariedade e a preocupação social não distinguem cores nem se alimentam de clubismos, realidade corroborada pelo sucedido no jogo noticiado pelo Diário da Madeira, na antevéspera do Natal de 1917, revelando que num jogo entre o Marítimo e uma equipa mista a verba angariada seria entregue a um fundador do União que à data se encontrava doente e em precárias circunstâncias. Na déc. de 40, o clube entra em crises sucessivas. A modalidade-rainha, o futebol, já não conseguia fazer ignorar os problemas internos. Em julho de 1945, o Diário de Notícias anunciava que o delegado da Direção-Geral dos Desportos havia dissolvido a direção do União, à exceção do presidente, após os desacatos entre jogadores e a direção, na final da Taça da Madeira. Depois de resolvido o conflito, o União vai entrar numa era de grande atividade desportiva, em muito devido ao mestre Medina, jogador que fez furor na déc. de 50 e que, através do hino, o União imortalizou. De facto, as décs. de 50 e 60 representaram as décadas de maior sucesso do clube. A nível regional, o União venceu, por sete vezes consecutivas, o Campeonato da Madeira, entre a época desportiva 1955/1956 e 1962/1963. Tomando presença na luta nacional contra o analfabetismo, o União dispõe, em 1954, de cursos de instrução primária na sua sede para os seus atletas, desde os infantis até à equipa de honra. O clube promove ainda, e sempre que possível, palestras e ações de formação, nomeadamente conferências técnicas e sociais destinadas aos árbitros. Com a autonomia política administrativa da Madeira, assiste-se à passagem de um desporto elitista para um desporto massificado. A ascensão do clube aos nacionais de futebol ocorreu na temporada 1979/1980, com o clube a entrar na III Divisão Nacional. Após duas épocas, sobe à II Divisão Nacional. Mas será na época de 1988/1989 que se viverá o momento mais alto da história do União, então liderado por Jaime Ramos e treinado por Rui Mâncio. Após vencer a Zona Sul da II Divisão Nacional, disputa a sua primeira época nos mais importantes palcos nacionais na época 1989/1990, juntando-se ao Marítimo e ao Nacional. Ficará no escalão máximo do campeonato nacional de futebol durante duas épocas até descer à  II Divisão de Honra, em  1991/1992. No entanto, volta a subir na época seguinte, igualando a melhor classificação obtida, em  1993/1994, na época em que regressa ao Campeonato Nacional da I Divisão, abandonando-a logo na época seguinte. Na época de 1998/1999, com o advento da Sociedade Anónima Desportiva (SAD), o clube cai na  II Divisão Zona Sul, conseguindo em 2001/2002 vencer a Zona Sul e regressar à II Liga. No entanto, os sucessivos sobe-e-desce teimam em repetir-se, ficando em último lugar, indo competir novamente na Zona Sul da II Divisão B. A estrutura da  competição onde o União está inserido muda no final de  2004/2005, passando a ter acesso às competições profissionais apenas dois clubes de um conjunto de quatro séries com 16 equipas. O União é colocado na Série B, conseguindo na primeira época o segundo lugar, tendo ganho a Série na época  2006/2007, contudo falha a qualificação ao perder com o Freamunde. O União consegue subir de divisão, garantindo lugar na Liga de Honra, após dois anos consecutivos a perder no play-off. Em 2011/2012, integrou a II Liga, lugar que ocupa até à época 2014/2015. Ao longo de 100 anos de existência, e apesar de se ter dedicado ao futebol, o União brilhou em outras modalidades importantes, como o andebol, o voleibol, o hóquei em patins, a esgrima, o basquetebol e o râguebi, modalidade introduzida na Madeira pelo clube, movimentando, na temporada de 2005/2006, cerca de 310 atletas federados e conquistando vários prémios, entre os quais a medalha de bons serviços desportivos, a medalha de prata do Instituto de Socorros a Náufragos e a medalha de ouro da Cidade do Funchal. Garantiu, ainda, 1 presença no Campeonato de Portugal (1927/1928), 6 presenças na I Liga (1989/1990, 1990/1991, 1991/1992, 1993/1994, 1994/1995 e 2015/2016), 5 presenças na Liga de Honra (1992/1993, 1995/1996, 1996/1997, 1997/1998 e 1998/1999), 6 presenças no Campeonato Nacional da II Liga (2002/2003, 2003/2004, 2011/2012, 2012/2013, 2013/2014 e 2014/2015), 2 presenças na III Divisão Nacional, 37 presenças na taça de Portugal, 62 presenças e 17 títulos no Campeonato da Madeira, 59 presenças e 15 títulos na taça da Madeira, 8 títulos na taça Cidade do Funchal e 3 títulos na taça de Honra e no torneio Autonomia.     Andreia Micaela Nascimento (atualizado a 04.01.2017)

Sociedade e Comunicação Social

brasões de armas

A descrição e o estudo dos brasões de armas ou escudos encontra-se a cargo da heráldica, ciência muito complexa e com uma linguagem que escapa à maioria das pessoas não iniciadas nesse tipo de estudos. As origens da heráldica remontam aos tempos da Idade Média, em que era imperativo distinguir os participantes nas batalhas e nos torneios, pelo que havia a necessidade de utilizar bandeiras ou estandartes (Bandeiras) reconhecíveis a uma certa distância e, depois, de recorrer a outros elementos facilmente reconhecíveis a menor distância. A diferenciação era definida pelo soberano através da atribuição de determinadas cores e de outros elementos identificativos a serem pintados nos escudos dos seus principais servidores. A complexidade progressiva da corte portuguesa, entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, levou à nomeação de um rei de armas, que tinha por função organizar o arquivo dos brasões atribuídos e equacionar os novos, a atribuir, propondo quem os deveria possuir, juntamente com as cores e as peças que deveriam figurar nos respetivos escudos. Os primeiros brasões consistiam essencialmente numa cor, depois definida como sendo um esmalte ou um metal, este último quando se tratava de ouro ou de prata. Quase ao mesmo tempo, foi colocado sobre esse fundo, que em heráldica se designa campo, um animal ou uma parte do mesmo ou até outra figuração, nomeada peça e identificativa da personalidade em questão ou da família. Este elemento, ou um outro, era ainda geralmente colocado sobre o elmo, constituindo o chamado timbre. Acresce que, para os torneios medievais e outros exercícios militares, as cores utilizadas nos esmaltes e nos metais eram ainda aplicadas nas vestes, definindo-se também assim, heraldicamente, o paquife, herdeiro dos antigos mantos vestidos pelos cavaleiros, e o virol, formado por um entrelaçado, em princípio, feito com os mesmos tecidos, com uma das cores do esmalte do escudo e com uma outra de um dos metais, e colocado sobre o elmo, lembrando o torçal que defendia o cavaleiro dos golpes de espada. Portanto, os elementos definidores dos brasões de armas iniciais foram: o escudo, o paquife e o virol, e o timbre. Progressivamente, anexaram-se inúmeros outros, como os tenentes ou suportes do escudo, os coronéis de nobreza, por vezes, impropriamente designados por coroas (só se devem assim nomear quando reais), os listéis com motes, divisas, lemas e gritos de guerra, terrados, etc. A passagem de toda esta linguagem e figuração para a Madeira não foi direta. Com efeito, o aparente isolamento da sociedade insular propiciou, senão algumas inovações, pelo menos alguns abusos. Num contexto geral, o primeiro degrau de nobreza era constituído pelos escudeiros, como o nome indica, aqueles que levavam os escudos dos cavaleiros, sendo recrutados entre os pajens e tendo, na Idade Média, entre 7 a 14 anos. Conforme o seu desempenho e, inclusivamente, a sua posterior prestação em combate, ao atingir a idade adulta, entre os 18 e os 20 anos, podiam ser armados cavaleiros, ascendendo assim ao degrau de nobilitação seguinte. Sendo alguns escudeiros de origem fidalga, porventura, teriam já direito a possuir um brasão de armas próprias. Aqueles que eram armados cavaleiros, em princípio e num futuro mais ou menos próximo, seriam dotados com brasão de armas. Caso o cavaleiro tivesse o pai ainda vivo, e porque o brasão de armas era pessoal, este seria acrescido de uma brica ou diferença, geralmente colocada no cantão direito do chefe, ou seja, no canto superior direito do portador, dado a leitura de um brasão ser feita na perspetiva do utilizar e não do observador. A organização do povoamento da Madeira, até aos meados do séc. XV, inviabilizou um pouco esta organização, que era a que vigorava no continente do reino. João Gonçalves Zarco (c. 1395-c. 1471), p. ex., embora tenha sido armado cavaleiro, em princípio em Ceuta, antes de ser enviado na missão de que resultou o descobrimento da Madeira, só veio a ser agraciado com brasão de armas a 4 de julho de 1460. Tanto quanto se sabe, nem ele nem o filho João Gonçalves da Câmara (1414-1501) parecem ter utilizado o respetivo brasão de armas, pois estes não constam nas lápides sepulcrais de ambos, na capela-mor da igreja de S.ta Clara do Funchal. Em 1452, o primeiro capitão do Funchal terá solicitado, a D. Afonso V, quatro pequenos fidalgos para casarem com as suas filhas, uma vez que a Madeira era “terra nova”, não havendo “com quem pudessem casar, segundo o merecimento de suas pessoas”; segundo escreveu Gaspar Frutuoso, repetindo quase literalmente o que o cónego Jerónimo Dias Leite lhe mandara da Madeira, resultou destes casamentos “a mais ilustre e nobre geração da Ilha” (FRUTUOSO, 1968, 217). Túmulo de Martim Mendes de Vasconcelos. 1493. Ao que sabemos, nenhum dos genros de Zarco possuía brasão de armas e, embora fossem fidalgos, não eram primogénitos. Mas, num curto espaço de tempo, os mesmos ou os seus descendentes assumiram escudos com as armas plenas dos seus antepassados. Assim aconteceu com Martim Mendes de Vasconcelos (c. 1432-c. 1493), que casou com Helena Gonçalves da Câmara, “matrona de tanta virtude que se justifica falar-lhe muitas vezes o crucifixo milagroso de S. Francisco do Funchal”, como escreveu Henriques de Noronha (NORONHA, 1948, 518), numa alusão ao milagre ocorrido a 26 de dezembro de 1482, que depois foi mandado certificar e publicar pelo bispo D. frei Lourenço de Távora (1566-1618), por alvará episcopal de 24 de outubro de 1615 (Convento de São Francisco e Sé do Funchal). Com efeito, Martim Mendes de Vasconcelos era um terceiro filho e o seu pai e homónimo não era, quase certamente, o representante dos “Vasconcelos de Portugal”, como veio a referir depois, de modo abusivo, o mesmo Henriques de Noronha (Id., Ibid.). Porém, as armas que mandou lavrar no seu túmulo, ainda hoje existente na igreja de S.ta Clara do Funchal (Convento de Santa Clara), são as da principal linha dessa família. O mesmo terá acontecido com os restantes genros de Zarco, embora não tenha chegado até nós nenhum exemplar dos seus brasões de armas iniciais: Diogo Afonso de Aguiar, que casou com Isabel Gonçalves da Câmara e que se terá fixado em São Martinho do Funchal, sendo sepultado no convento de S. Francisco; Diogo Cabral (c. 1432-1496), que desposou Beatriz Gonçalves da Câmara e era o irmão mais novo do senhor de Belmonte e, em princípio, tio do futuro almirante Pedro Álvares Cabral, fixando-se o casal em Vale de Amores, na Calheta, e sendo aí sepultado; Garcia Homem de Sousa, que seria filho de João Homem de Sousa e que “se entendia ser” neto de Pedro Homem, um dos “doze de Inglaterra” (Id., Ibid., 329), que contraiu matrimónio com Catarina Gonçalves da Câmara e veio a levantar a chamada torre do capitão, a Santo Amaro do Funchal (Arquitetura senhorial). Não consta qualquer carta de brasão de armas destes parentes de Zarco. Também não possuímos informações concretas sobre as armas dos capitães de Machico, sendo o primeiro capitão, inicialmente, quase apenas designado por Tristão ou Tristão da Ilha e tendo o seu filho e segundo capitão usado o apelido da mãe, sendo assim Tristão Vaz Teixeira. O capitão do Porto Santo, Bartolomeu Perestrelo, possuiria já brasão, pois existiam armas de família, mas não temos muitas referências da sua utilização nessa época, muito menos naquela ilha, onde só se deslocava pontualmente. Bartolomeu Perestrelo foi o primeiro a ter carta de doação da sua capitania, passada a 1 de novembro de 1446, o que parece indiciar uma condição social mais elevada, tal como indicam os dois casamentos que contraiu no continente, sempre com famílias de elevada qualidade social. A sua descendência veio a entroncar-se na dos capitães de Machico e, depois, também na dos capitães do Funchal. Dentro dos arranjos matrimoniais da emergente nobreza madeirense, o segundo capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara, começou por casar com uma cunhada, Isabel Homem, filha de João Homem de Sousa e irmã de Garcia Homem de Sousa. Não houve geração desta união e, falecida D. Isabel, o segundo capitão voltou a casar, então em Ceuta, com D. Maria de Noronha, filha de D. João Henriques e D. Beatriz de Mirabel; D. Beatriz foi depois dada como fidalga aragonesa e o seu marido como filho segundo de D. Diogo Henriques, bastardo do infante D. Afonso de Noronha, conde de Gijón e filho de D. Henrique II de Castela. Os descendentes daquele casamento vieram a optar quase todos pelo apelido Noronha, salvo o primogénito, que, por determinação real e para poder aceder à capitania do Funchal, teve de voltar a usar o apelido anterior, Câmara de Lobos, ficando assim Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530). A partir dos meados do séc. XV, os principais filhos-família da Madeira passaram a combater no Norte de África, no quadro do serviço régio, recompondo-se assim, de certa forma, o quadro medieval de nobilitação. Ao mesmo tempo, estabeleceu-se uma rede de casamentos de primos cruzados entre as principais famílias terratenentes da Ilha, até para a manutenção do património fundiário. E muitas dessas famílias passaram a enviar os seus filhos para serem educados na corte de Lisboa, primeiro como pajens, em seguida como escudeiros; estes indivíduos, geralmente, viriam a ser referidos como tendo sido educados no paço. Nos finais de Quatrocentos, no entanto, emergiu também na Madeira uma nova sociedade de escudeiros, mas agora nobilitados pelo serviço régio da Fazenda e da Justiça, e que, logicamente, não tinham acesso a brasão de armas. As dificuldades iniciais do registo dos brasões de armas ficaram logo patentes nas insígnias dos Câmara de Lobos atribuídas a João Gonçalves Zarco e seus descendentes. Nelas deveriam figurar dois lobos-marinhos afrontando uma torre, porém, ao serem executadas, na corte de Lisboa, por alguém que nunca terá visto tal animal, no lugar dele foram representados dois lobos continentais, espécie que nunca existiu na Madeira, mas que passou a ser a utilizada por todos os descendentes de Zarco, nomeadamente o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (c. 1491-1569) e depois, e de forma plena, os vários ramos da família, especialmente o açoriano, dos condes da Ribeira Grande (embora, neste caso, com o campo do escudo de negro). As armas que parecem ter sido seguidamente atribuídas a um residente da Madeira foram as de António Leme; desta feita, por D. Afonso V, a 2 de novembro de 1475 e por intercedência do príncipe D. João, devido à sua participação na tomada de Arzila e de Tânger, para onde foi enviado pelo pai, Martim Leme de Bruges, da Flandres. A carta de armas refere, inclusivamente, que, embora “da parte de seu pai pudesse trazer armas com diferença”, D. Afonso V lhe atribuía armas “sem diferença alguma” e como “chefe delas” (ANTT, Leitura Nova, Místicos, liv. 3, fl. 15). Trata-se de uma distinção excecional, somente compreensível à luz de um conjunto de serviços muito importantes prestados à coroa pelo seu destinatário, incluindo, certamente, os das navegações executadas a cargo do futuro D. João II. António Leme, nos finais da déc. de 70, encontrava-se radicado na vila do Funchal, fornecendo informações a Cristóvão Colombo sobre a existência de terras para ocidente. Em março de 1485, apareceu na Câmara como um dos homens-bons do concelho e, em agosto, foi citado como cavaleiro e morador na mesma vila, passando a assumir os negócios da família, dado o falecimento do irmão, Martim Leme, que tinha negócios na Madeira, pelo menos, desde agosto de 1481 e usava também armas plenas em Portugal. A partir de outubro, passou a surgir como vereador ao lado do também navegador Álvaro de Ornelas, sendo de abril de 1489 a última referência que temos da sua atividade nesse cargo e da sua presença no Funchal. De 20 de fevereiro de 1485 são as armas de João Fernandes do Arco, filho do segundo casamento de Fernão Dias de Andrada e que adquirira as propriedades de seu irmão, Diogo Fernandes de Andrada, que regressara a Castela, no Arco da Calheta. As armas em questão, com um sagitário em campo de ouro, encontram-se registadas tanto no Livro do Armeiro-Mor de João de Cró, de 1509, como no Livro da Nobreza e da Perfeição das Armas de António Godinho, elaborado depois, entre 1521 e 1541, com o pormenor de estar o sagitário virado para a direita neste e para a esquerda no outro. Parece que nenhum ramo dos seus descendentes voltou a utilizar estas armas, não as reivindicando, até porque passaram a usar o apelido Abreu. Com efeito, João Fernandes do Arco (c. 1450-1527) casou com Beatriz de Abreu e deste matrimónio houve 13 descendentes, todos conhecidos pelo apelido Abreu. Os filhos distinguiram-se no Norte de África, inclusivamente acompanhando o pai, passando depois à Índia, onde António de Abreu ganhou uma notável reputação. A maioria da descendência masculina passou assim à Índia e, depois, ao Brasil, tendo poucos fixado residência na Madeira. As filhas entraram para as principais famílias madeirenses, mas não só, pois Beatriz de Abreu, homónima de sua mãe, casou com Bartolomeu de Paiva, vindo a ser ama-de-leite do futuro D. João III e uma das principais figuras da corte de D. Manuel I, pelo que o marido passou a ser conhecido como o Amo. Uma outra filha de João Fernandes do Arco, D. Joana de Abreu, p. ex., veio a casar, por volta de 1510, com D. João Henriques, segundo filho de D. Fernando Henriques, senhor das Alcáçovas, e de D. Filipa de Noronha, filha do terceiro capitão do Funchal, tomando assento na Ponta do Sol. Desta família notabilizou-se o padre jesuíta D. Leão Henriques (c. 1515-1589), que fora criado em Lisboa, em casa de seu tio D. Fernando Henriques, e veio a ser o primeiro reitor do colégio do Espírito Santo, universidade de Évora, confessor do cardeal D. Henrique, ao longo de 24 anos e, depois, seu testamenteiro (Henriques, Leão). Uma pedra de armas desta família, dos meados do séc. XVII, encontra-se hoje na casa do Pé do Pico, em Câmara de Lobos, propriedade da família Henriques de Gouveia. Entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, devem ter sido atribuídas, ou pelo menos confirmadas, várias cartas de armas, mas cuja documentação não perdurou. Tiveram carta de brasão, muito provavelmente, Álvaro de Ornelas, o Velho, pois o filho, Álvaro de Ornelas Saavedra, requereu e recebeu nova carta de armas, como as que usavam seu pai e avô, em 1513; ainda consultámos o documento original na Quinta das Almas, encontrando-se atualmente com os descentes, em Paris. O referido Livro do Armeiro-Mor de João de Cró já regista este brasão; e a magnífica laje sepulcral de Álvaro de Ornelas Saavedra, em calcário-brecha da serra da Arrábida, com as suas armas esculpidas em baixo-relevo, já existiria na sé do Funchal, onde ainda hoje se encontra, por volta de 1515 e 1526, como se infere dos codicilos do seu testamento, de mão comum com a sua segunda mulher, D. Branca Fernandes de Abreu (Lápides sepulcrais e Sé do Funchal). Mais tarde, também recebeu carta de armas o flamengo João Esmeraldo, com data de 1520 e depois registada no Livro da Perfeiçam das Armas de António Godinho, elaborado entre 1521 e 1541. Este códice regista uma série de brasões de armas que não vêm no livro de João de Cró, que aliás simplifica a emblemática, não registando os timbres, e apresenta também o dos Câmara de Lobos, na mesma página do de João Esmeraldo, o dos Perestrelo e o de João Fernandes do Arco, entre outros. João Esmeraldo tinha casado com Joana Gonçalves da Câmara, filha de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves da Câmara e, enviuvando, casou com Águeda de Abreu, filha de João Fernandes do Arco, vindo a falecer em 1536. No entanto, a sua laje tumular não tem brasão de armas, mas sim o seu retrato e da sua segunda mulher, que terá mandado fazer a peça na Flandres. Entre as cartas de brasão mais antigas que não chegaram até nós estará a de Gonçalo de Freitas, filho do tesoureiro do infante D. João, mestre da Ordem de Santiago, que se mudou para a Madeira com o filho, João de Freitas, na sequência do assassinato do duque de Viseu, em Setúbal, por D. João II, a 28 de agosto de 1484 e a cuja casa então pertenciam. Fixaram-se na área de Santa Cruz, na capitania de Machico e, muito provavelmente, a eles se deve a determinação da instalação da alfândega ducal naquele local, decidida anteriormente, em 1477, pela infanta D. Beatriz, filha do falecido infante D. João. Em julho de 1486, João de Freitas representou, com mestre Batista, os proprietários de Santa Cruz numa reunião ocorrida no Funchal; a partir de março de 1496, surge na documentação como homem-bom de Machico, em abril, como vereador e, em maio, como juiz. Desconhecemos a sua carta de armas, como afirmámos, mas conhecemos o pedido que fez para ser enterrado com a sua mulher, Guiomar de Lordelo, na capela da matriz do Salvador de Santa Cruz, de cuja construção fora encarregado, em 1500. Esse pedido foi deferido a 19 de setembro de 1533, atendendo ao dinheiro que gastara na igreja “e à qualidade da sua pessoa” (NORONHA, Ibid., 283-284). A laje tumular veio da Flandres e o brasão de armas que exibe deve ser o mais interessante que hoje existe dessa época, caracterizando-o uma grande qualidade formal, com cinco estrelas de seis pontas e utilizando como timbre uma estrela idêntica entre duas asas, marcando a diferença para os Freitas do continente, que utilizavam como timbre duas garras de leão segurando uma flecha. Com a importância económica da cultura açucareira, inúmeros comerciantes italianos, flamengos e de outras origens tiveram igualmente carta de brasão, nos inícios do séc. XVI, embora a maioria das armas atribuídas não figurem nos livros de João de Cró e de António Godinho, dado serem, em princípio, versões de armas que apresentaram como pertencentes às suas famílias de origem. Provavelmente, esse será o caso dos Bettencourt, Berenguer, Catanho, Drumond ou Escórcio, Florença, Lomelino, Salvago, Spínola, Teive, Valdavesso e outros. Existem algumas arcas tumulares destas famílias de origem estrangeira, p. ex., na matriz de Santa Cruz, igreja de S. Salvador, mas, infelizmente, os brasões iniciais foram apagados. O principal panteão insular destas famílias terá sido o convento de S. Francisco do Funchal, mas as constantes obras a que foi sendo sujeito e a sua própria demolição, nos finais do séc. XIX, levaram a que se tivesse perdido quase todo esse património. Ao longo do séc. XVII, as principais famílias madeirenses ganharam um novo ascendente social, principalmente advindo da sua participação na expansão ultramarina ibérica e do seu desempenho na América Latina. Neste quadro, construindo algumas das famílias em causa as suas capelas, assumiram, pura e simplesmente, as armas que entenderam. O exemplo mais evidente será o dos túmulos parietais da igreja do Carmo do Funchal, onde António de Carvalhal Esmeraldo, casado com Maria Brandoa, usou as armas plenas dos Câmara, e os seus cunhados, no túmulo em frente, as dos Brandões do continente, embora a família fosse proveniente de lavradores da Ribeira Brava (Igreja e recolhimento do Carmo). Existe um certo vazio de documentação sobre a atribuição de cartas de armas ao longo desse século e mesmo do XVIII. Mas a atividade conheceu novo incentivo nos finais da última centúria e propagou-se exponencialmente ao longo de Oitocentos, justificando-se, sobretudo, enquanto retribuição de serviços políticos, com a correspondente componente económica, deixando de ser apenas um retrato da antiga fidalguia. Divulgaram-se então armas de costados com as representações das armas dos avós, quando não dos bisavós, trisavós, ou outros, inclusivamente, pelo nome e nem sempre pertencendo a essas linhagens (Genealogias). Em pouco tempo, o cartório de nobreza da corte de Lisboa abandonaria a relação com os anteriores elementos heráldicos de identificação, passando a emitir as chamadas armas novas, quase nada relacionadas com o pensamento subjacente às do passado. De facto, esta nova cultura desenvolveu-se um pouco por toda a Europa, em especial, na Alemanha. A questão das mercês novas foi objeto de vários trabalhos, mostrando, inclusivamente, a incongruência de algumas das soluções apontadas. Se algumas armas novas dificilmente encontrariam enquadramento na heráldica tradicional, outras há em relação às quais não se compreende a opção tomada. Na primeira situação, encontra-se, e.g., o caso de João Rodrigues Leitão (1843-1925) que, tendo tido larga atividade comercial em Cabinda e conseguindo estabelecer muito boas relações na área, foi um dos responsáveis pelo reconhecimento da presença portuguesa naquele território pelos membros da Conferência de Berlim, em 1883. Sendo agraciado com o título de visconde de Cacongo, em 1900 (Visconde de Cacongo), houve que encontrar elementos algo abstratos para as armas que lhe eram atribuídas: campo de prata com três faixas vermelhas carregadas com flores-de-lis, tendo como tenentes ou suportes um leão e um grifo. Por sua vez, uma das soluções pouco felizes, e logo no título escolhido, foi a encontrada para o visconde e depois conde do Canavial (Visconde e conde do Canavial), João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), a quem se atribuiu um escudo partido, tendo, num lado, uma figura de mulher vestida de azul, sentada num rochedo sobre o mar, com um ramo de videira e um pão-de-açúcar em cada mão, em alusão à ilha da Madeira, e no outro, uma mão de prata com uma pena de oiro, numa alegoria às suas imensas publicações, não se tendo optado pelos elementos das inúmeras famílias de que descendia, o que é um paradoxo. A partir dos meados do séc. XVIII e depois no XIX, foram ainda utilizados inúmeros brasões de armas pelos elementos da feitoria britânica radicada no Funchal, especialmente em ex-líbris e em sepulturas do cemitério britânico, mostrando todas uma certa economia de meios e contenção, e que não eram comuns na Europa coeva. O brasão mais antigo será o de James Murdoch (1744-1806), seguindo-se o de Thomas Holloway (1751-1816), o de William Mills (1994-1834) e outros tantos. Entre os abundantes ex-líbris podemos citar os do Robert Page (1775-1829), com as armas circundadas pelas insígnias da Ordem Militar da Torre e Espada, de que era somente titular honorário, por despacho do Rio de Janeiro, de 15 de novembro de 1817, ou referir os de James Charles Duff, de cerca de 1860, cuja família chegou a deter o palacete da R. do Esmeraldo, através da firma Gordon and Duff e em cujo logradouro chegou a funcionar o primeiro cemitério britânico. Relativamente à heráldica eclesiástica, o seu uso não se deve ter estendido de imediato à Madeira. Os Franciscanos, que forneceram os primeiros quadros eclesiásticos durante as décadas iniciais do povoamento, não eram propensos a esse tipo de ostentação e os primeiros vigários paroquiais, nomeados pela Ordem de Cristo e que não provinham especialmente da nobreza senhorial portuguesa, também não. Os primeiros bispos da diocese do Funchal não se deslocaram pessoalmente ao território, pelo que, até aos meados do séc. XVI, não terá havido heráldica eclesiástica na Madeira. O primeiro prelado a viajar até à Ilha, D. João Lobo (?-1542), bispo titular de Tânger e com armas atribuídas por D. Manuel I, não parece ter tido especiais cuidados nesse campo, não tendo ficado qualquer referência sobre o tema na sua passagem pela Madeira, em meados de 1508. A base da heráldica eclesiástica comunga das normas que regem o desenho geral dos brasões, embora nela se use, prioritariamente, a forma oval para o escudo; assim, diferencia-se, em especial, nos ornamentos exteriores, seguindo os cânones e disposições da Igreja. Com efeito, não utiliza o conjunto elmo, paquife e virol, identificativo do exercício da função militar, mas sim o galero, chapéu eclesiástico por excelência, descendente dos chapéus de abas largas dos peregrinos, sendo a hierarquia definida pela ordem de borlas do mesmo. Pontualmente, podem usar coronéis de nobreza, como aconteceu com o 11.º bispo do Funchal, D. frei António Teles da Silva (c. 1610-1682), que se fez sepultar com coronel de conde, título que nunca teve. Mais tarde, sob o galero, apareceu uma cruz episcopal e, por vezes, um báculo; depois, ao longo do séc. XX, surgiu uma mitra a substituir o galero, podendo figurar sob ela uma cruz episcopal e um báculo cruzados. Os elementos do alto clero sempre assumiram armas próprias, em especial, após a divulgação das normas do Concílio de Trento, ganhando elas um sentido quase pessoal e afastando-se das regras específicas da heráldica familiar, nomeadamente, com o uso de brica e de diferenças. Se tal aspecto ainda aparece em 1509, quando João de Cró representa as armas do bispo D. João Lobo, marcando as armas dos Lobo com um castelo de ouro como diferença, por certo em alusão à praça-forte de Tânger, o mesmo não sucede depois na maioria das armas eclesiásticas, que assumem a diferença somente nos ornatos. Assim fez o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (c. 1491-1569), empregando as armas plenas dos Câmara, usadas pelo pai, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530) e pelo irmão mais velho, João Gonçalves da Câmara (III) (1489-1536). O seu isolamento em Lamego e o facto de ter estado em Roma levaram a que se intitulasse camareiro secreto do Papa Leão X (1475-1521), fazendo-se enterrar sob laje sepulcral com quatro ordens de borlas, insígnias de arcebispo que nunca foi. Determinadas liberdades ocorreram, depois, com outros prelados do Funchal. P. ex., D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) assumiu as armas dos apelidos dos quatro avós, da ilha de Santa Maria, Açores: Velho, Figueiredo, Cabral e Lemos. Como pormenor, nas várias representações das suas armas, mandou carregar as dos Figueiredo com uma merleta, que na Madeira era usada pelos Leme, de origem flamenga. Esta diferença, em princípio, identificativa do prelado Leme, manteve-se, no entanto, no quartel dos Figueiredo, quando mandou, num outro quartel, lavrar as armas dos Lemos, como aparecem na sua lápide tumular. Não se encontram levantados os brasões de armas dos bispos do Funchal, salvo a partir dos meados do séc. XIX; os iniciais terão que ser apurados a partir dos selos de armas dos primeiros prelados. Não constam, inclusivamente, da maior parte dos retratos mandados pintar para a sala do cabido da sé do Funchal, a partir de 1790, em princípio. Assim acontece com o de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), que utilizou as armas dos Barreto na impressão das Constituições Synodaes de 1579, mas que não figura com elas no retrato que lhe mandaram pintar, muito depois. No entanto, tal não se verifica no retrato do seu sucessor, D. Luís Figueiredo de Lemos, que, tendo também mandado imprimir as suas insígnias nas Extravagantes, m 1601, surge com elas representado. Os retratos dos bispos do Funchal parecem ter tido inicio com o de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que o terá mandado pintar em Lisboa, por volta de 1757; na sequência deste, e usando-o vagamente como modelo, depois, foram sendo pintados os dos prelados anteriores. Parece que o cabido não era muito sensível aos aspectos heráldicos, embora ele próprio utilizasse selo com armas, pois só um número muito reduzido de retratos apresenta brasão de armas. Nos retratos dos bispos mais antigos, tal só acontece no de D. Luís Figueiredo de Lemos, talvez porque as respetivas armas se encontram na fachada da sua capela de S. Luís, no paço episcopal e na sua lápide sepulcral. No entanto, não figuram armas no retrato de D. frei António Teles da Silva (c. 1620-1682), que as havia mandado gravar na sua lápide tumular, na capela-mor da sé do Funchal, inclusivamente, encimadas por coronel de 11 pérolas, atributo dos condes. Esse espírito algo laico da sociedade madeirense parece ter sido corrente em muita da sociedade madeirense nos finais do séc. XVIII, pois, tendo sido pintados também os retratos de alguns antigos governadores e capitães-generais para o palácio de S. Lourenço, também ali existem poucos brasões de armas, o que é algo surpreendente, quando verificamos que todos os governadores, até ao liberalismo, eram obrigatoriamente oriundos da nobreza de corte, pelo que eram todos portadores de armas pessoais. Com efeito, recorreram a elas para autenticar a correspondência oficial, tendo passado a fazê-lo, depois, para a correspondência governamental da Madeira, com o selo das armas reais. A heráldica estendeu-se também às ordens religiosas, embora os exemplares existentes na Madeira sejam, em princípio, bastantes tardios. Quase todos os edifícios foram da responsabilidade da Fazenda Régia, pelo que, tanto o paço episcopal, datável de 1610 (Paço episcopal), como o colégio dos Jesuítas do Funchal, cujo elemento heráldico mais antigo, a antiga porta da cerca da R. dos Ferreiros, está datado de 1619, ostentam as armas reais. Chegaram até nós algumas armas de fé dos Franciscanos, entre elas, a pedra de armas do antigo convento do Funchal, datável de cerca de 1750 e hoje no jardim municipal, associada às armas reais, indicativo de que a campanha de obras em causa fora paga pela Fazenda Régia; ou, p. ex., as armas existentes no convento de S. Bernardino de Câmara de Lobos, provavelmente da campanha de 1763 (Convento de São Bernardino). A pedra de armas similar que está no portal da entrada do convento de S.ta Clara, datável, talvez, de data próxima a 1770, poder ter vindo do demolido convento masculino do Funchal, pois dali também vieram outros elementos, designadamente, painéis de azulejos. É ainda possível que tenha existido, como é vulgar no continente, loiça conventual decorada com armas religiosas, em S. Francisco do Funchal e em S.ta Clara, mas, até ao momento e nas escavações arqueológicas realizadas nessas áreas, embora haja milhares de fragmentos de faiança exumada, nada parece ter sido detetado. Nas coleções do paço episcopal, no entanto, existe uma bilha ou pote de faiança com as armas de fé dos Franciscanos que a tradição aponta como sendo proveniente do convento do Funchal. Das restantes ordens religiosas somente conhecemos as armas de fé dos Carmelitas, na fachada da igreja do recolhimento do Carmo, que devem ser dos finais do séc. XVIII, período em que toda a fachada da igreja foi remodelada. Os Jesuítas nunca usaram armas de fé, propriamente ditas, somente uma espécie de emblemática, que, aliás, copiaram do franciscano S. Bernardino de Siena: o trigrama cristológico IHS, que significa Jesum Habemus Socium (“temos Jesus como companheiro”), colocado sobre um sol, como aparece na fachada da igreja de S. João Evangelista do Funchal, logo abaixo das armas reais. Este símbolo ou monograma aparece, por vezes, acompanhado da legenda Ad Maiorem Dei Gloriam (“para a maior glória de Deus”), surgindo invertida, no teto da mesma igreja, em princípio, para ser lida do alto pelo Pai e não pelos filhos que demandam o interior do templo. Existem mais duas pedras com este símbolo ou emblema, uma delas encontra-se numa situação muito interessante: na porta do paço episcopal do Funchal, no acesso à antiga cerca, depois Lg. do Município. O facto de este bloco do paço ter sido mandado edificar pelo bispo jacobeu D. João do Nascimento (c. 1690-1753), que professara no convento franciscano de Varatojo e dirigira pessoalmente parte das obras do novo corpo edificado, levanta a hipótese de ter sido o próprio prelado a mandar colocar ali aquele emblema, precisamente quase perante a fachada da igreja dos Jesuítas, recuperando assim, para os Franciscanos, a sua antiga simbologia. A outra pedra hoje existente está no pequeno jardim do pátio da Assembleia Legislativa e foi encontrada na intervenção de reabilitação ali efetuada, em 1990, podendo ter vindo de obras realizadas no edifício do colégio dos Jesuítas pela antiga Fazenda Régia. As ilhas da Madeira e do Porto Santo possuem uma quantidade apreciável de brasões de armas reais portuguesas, uma vez que a grande maioria do património edificado, militar, civil e religioso foi construído sob a responsabilidade da Fazenda Régia. Tal é o caso da sé do Funchal e, depois, do baluarte de S. Lourenço e demais fortificações militares (Arquitetura militar e República). Mas, também, da maior parte das igrejas matrizes, cujos edifícios eram incumbência régia (Arquitetura religiosa), acontecendo o mesmo com o respetivo recheio, encontrando-se brasões de armas reais em grande parte dos retábulos das suas capelas-mores. O mesmo se verifica em outros edifícios: referimos antes o do paço episcopal, mas poderíamos apontar ainda os das misericórdias insulares. Este aspecto transitou, igualmente, para os edifícios das câmaras municipais, parte dos quais levantados também com verbas da Fazenda Régia, levando a que as armas reais rematassem grande número deles, inclusivamente, o da Câmara do Funchal, onde figurariam, juntamente com as armas da cidade, na fachada ou no interior. Do antigo edifício do Lg. da Sé que pertencera à casa comercial de D. Guiomar, onde a Câmara do Funchal se instalou, nos últimos anos do séc. XVIII, subsiste um importante brasão de armas nacional, assente em esfera armilar, datável, assim, de data próxima a 1819 ou 1820, quando se criou o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O imóvel foi demolido em 1916, dentro da reforma programada pelo arquiteto Ventura Terra (Urbanismo) e o brasão recolheu, então, ao palácio de S. Pedro (Palácios), onde se previa organizar um museu regional. O Funchal deve ter tido armas próprias ainda no séc. XV, mas só conhecemos exemplares da centúria seguinte. O mais antigo, em princípio, é o que está gravado na campainha de prata da Câmara, que serviria para chamar um empregado, p. ex., ou para mandar entrar os peticionários, e que se encontra datado de 1584. Apresenta cinco pães de açúcar dispostos em cruz e ladeados por duas canas-de-açúcar. Mais tarde, o poeta e intérprete dos navios estrangeiros Manuel Tomás (1585-1665), na sua Insulana, de 1635, refere cinco formas de açúcar, “cor de fogo”, colocadas num campo de prata e rodeadas por duas canas-de-açúcar (TOMÁS, 1635, 128), o que repete Henrique Henriques de Noronha, em 1722 (NORONHA, 1996, 43). As armas do Funchal voltam a surgir numa salva de prata dos inícios do séc. XVII, neste caso, encimadas por uma cruz de Cristo, e num areeiro de tinteiro do mesmo período. No séc. XVIII, começam a aparecer informações de se usar também um ramo de videira nas armas da cidade do Funchal, existindo uma pedra de armas, hoje no núcleo museológico da Prç. Colombo, com a data de 1758, onde já não figuram as formas de açúcar, mas pães, estando o escudo ladeado por uma cana e um ramo de videira e as armas encimadas por coronel de nobreza. Sendo os pães-de-açúcar representados em prata, não poderiam, heraldicamente, assentar igualmente em prata, devendo datar dessa época a definição do campo do escudo em verde, pelo que, tanto a cana-de-açúcar como o ramo de videira passaram para o enquadramento do escudo. A partir de então, começou a vigorar, assim, campo verde, com cinco pães de açúcar de prata ladeados por uma cana-de-açúcar e um ramo de videira, embora com pequenas variantes, pois podem aparecer duas canas-de-açúcar e as armas podem apresentar-se com coronel de nobreza e com coroa real. Na segunda metade do séc. XIX, entre 1860 e 1862, foi editada, por Inácio de Vilhena Barbosa, a vasta obra As Cidades e Villas da Monarchia Portugueza que teem Brasão d’Armas, onde as armas do Funchal aparecem ladeadas por uma cana-de-açúcar e um ramo de videira. Nesta publicação, figuram, igualmente, as armas da vila do Porto Santo, ostentando um dragoeiro, mas não as das restantes vilas madeirenses. Este conjunto de brasões teve reedição, em 1881, com um outro emolduramento, mas só conhecemos os dos referidos locais do arquipélago. A configuração das armas do Funchal manteve-se até à proposta do heraldista Afonso de Ornelas Cisneiros (1880-1944), que assinava por vezes “Affonso Dornellas”. Nos inícios da déc. de 30 do séc. XX, ele bateu-se pela reforma da heráldica municipal, conseguindo fazer aprovar, em 1935, armas novas para a Câmara Municipal do Funchal, bem ao gosto dito tradicionalista do Estado Novo. As armas mantiveram o campo verde, mas os pães de açúcar passaram a ouro e foram avivados com um espiralado a púrpura, cor do domínio eclesiástico, em memória do protagonismo da Diocese do Funchal nos Descobrimentos; foram ainda acrescentados quatro cachos de uvas de sua cor, carregados com as quinas de Portugal, tornando o conjunto, à primeira vista, perfeitamente irreconhecível. Não possuímos qualquer referência sobre as primeiras armas municipais de Machico, Santa Cruz, Calheta, Ponta do Sol e Porto Santo, sendo certo que todas as tiveram, pelo menos, na época manuelina. Tem havido alguma confusão com as armas de Machico, que são dadas, nos meados do séc. XX, como tendo tido a esfera armilar manuelina, o que seria inviável, na medida em que um brasão de armas é uma forma de identificar uma entidade pessoal ou coletiva e um rei não poderia ter os elementos das suas armas individuais a identificar uma câmara municipal. O mesmo se passa com a Câmara de Santa Cruz, que, por vezes, alega serem suas as armas reais que encimam a porta do edifício municipal, o que também não é possível. Os paços do concelho do Porto Santo são igualmente encimados pelas armas reais, mas elas indicam apenas que o edifício foi feito pelo mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), em 1774, e que as obras correram pela Fazenda Régia, um aspecto que referenciámos antes. A grande reforma da heráldica municipal iniciou-se com a circular de 14 abril de 1930 da Direção-geral da Administração Pública, que, tentando regularizar a situação, obrigava as comissões administrativas das câmaras municipais a legalizar os brasões segundo o parecer compulsório da secção de heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses. A situação do estabelecimento de selo, armas e bandeira de cada localidade veio a integrar, inclusivamente, através do dec. 31.095, de 31 de dezembro de 1940, o Código Administrativo, através dos artigos 14 e 48. Data desses anos a instituição do coroamento dos escudos municipais com coronéis de torres aparentes, hierarquizadas entre as cidades e as vilas com cinco e quatro torres, o que foi alargado às juntas de freguesia, em 1991, com três. Entretanto, também na RAM se procedeu a reforma idêntica, parte da qual assumida pelas autarquias, como aconteceu na vila de São Vicente, onde se aprovou uma raridade iconográfica, com o orago a empunhar uma grelha em vez de uma embarcação. Outras entidades terão tido instrumentos bélicos, como é o caso da Alfândega do Funchal e, provavelmente, de Santa Cruz, conhecendo-se dois selos de chumbo daquela, datáveis de 1520 a 1550, exumados nas escavações arqueológicas na Prç. Colombo, em 1989, com a esfera armilar envolta pela legenda “Alfândega do Funchal”, com o pormenor de estar rematada por um pequeno escudete com as quinas de Portugal e, do outro lado, ter as armas reais com coroa aberta. Pontualmente, os elementos heráldicos foram utilizados por instituições de ensino, como a Escola Afonso Domingues, em 1889, que veio a dar origem à Escola Industrial e Comercial do Funchal, e, em 1989, a UMa. Data dos meados e dos finais do séc. XIX o aparecimento, na Madeira, de um esboço de heráldica corporativa, assumida, entre outras, pelas sociedades agrícolas e, depois, pelos grémios, sindicatos e diversas associações. Com o advento do Estado Novo, o assunto veio a ser encarado noutros moldes, solicitando-se propostas a essas instituições, mas, na maior parte das vezes, impondo-se as soluções finais. Tal ocorreu nas associações mais caras ao governo, designadamente, nas casas do povo e dos pescadores, conhecendo-se o brasão da Casa do Povo de Santo António, no Funchal e o brasão da Camacha, em Santa Cruz, ambos apresentados em Lisboa na Exposição de Heráldica do Trabalho, por altura dos festejos do XX aniversário da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). No ano seguinte, Franz Paul de Almeida Langhans editou o Manual de Heráldica Corporativa, onde figura ainda o da Casa dos Pescadores do Funchal. No catálogo da exposição dos 20 anos da FNAT, o organizador da mesma, Mário de Albuquerque, ao apresentar o brasão da casa do Povo da Camacha, comenta ter sido deixado em branco o brasão da Câmara Municipal de Santa Cruz por o concelho “não as ter ordenadas e aprovadas” (ALBUQUERQUE, 1955, 114). As unidades militares não terão usado brasões de armas próprios até ao séc. XX, devendo ter-se limitado a utilizar bandeiras com as armas reais e com uma legenda da unidade em questão. O mesmo não se terá passado com as unidades de ocupação britânicas, nos inícios do século anterior, de que se exumaram, nas escavações de emergência de 1992, efetuadas no pátio dos estudantes do antigo quartel do colégio dos Jesuítas, alguns botões de farda, indicativos de terem distintivos próprios, pelo menos, os correspondentes aos uniformes de artilharia. Ao longo desse século, as unidades portuguesas destacadas para a Madeira parecem ter utilizado somente uma emblemática com o número da força em causa, algarismos que foram ficando registados na calçada da antiga parada do mesmo quartel do colégio, hoje integrada na reitoria da UMa. Data das décs. de 80 e 90 a reforma geral heráldica do Exército, passando as unidades militares da Madeira a possuir brasão de armas próprio. Estas armas foram sendo adaptadas ao longo das várias reformas das forças em causa (Guarnição militar). A reforma estendeu-se, entretanto, às restantes forças militares da Marinha e da Força Aérea, depois, ao Comando-Chefe das Forças Armadas da RAM, tal como à Companhia Independente da Guarda Fiscal (Guarda Fiscal) e ao Comando da Polícia de Segurança Pública (Polícia de Segurança Pública). O assumir de armas próprias pela RAM foi feito de forma consistente, em 1991, quando a Região completou as armas do seu brasão. O arquipélago tinha constituído os seus símbolos próprios numa relação direta com as suas origens, assentando a bandeira e o escudo com campo de azul, uma pala de ouro e a mesma carregada com a cruz Ordem de Cristo. As insígnias foram discutidas, na generalidade, a 26 de julho, sendo aprovadas dois dias depois; a respetiva regulamentação foi publicada a 12 de setembro. Estas armas foram completadas, depois, por proposta de dois historiadores locais, decidindo-se a utilização do elmo de “boca-de-sapo”, geralmente atribuído a D. João I e existente no Museu Militar de Lisboa, dado ter sido este Rei quem determinou o povoamento do arquipélago; no entanto, em rigor, esse elmo será, muito mais provavelmente, aquele que veio do mosteiro da Batalha, em 1901, e que se encontrava no túmulo de D. João II. Assim, o elmo de ouro apresenta-se de frente e forrado a vermelho. Como timbre, optou-se por uma esfera armilar, pela sua ligação aos Descobrimentos e a D. Manuel I, existindo este elemento em inúmeros edifícios públicos do Funchal. Como suportes, dois lobos-marinhos, vivos e de sua cor, simbolizando a homenagem da Região aos únicos grandes mamíferos encontrados quando da chegada dos primeiros povoadores. Como divisa, inicialmente, foi proposto o seguinte fragmento de Os Lusíadas alusivo à Madeira: “Das que nós povoámos a primeira” (CARITA e SAINZ-TRUEVA, 1990, 103-107). Porém, nos inícios do ano seguinte, em reunião de Governo, veio a decidir-se pelo verso “Das ilhas as mais belas e livres” (Decreto Legislativo Regional n.º 11/91/M, de 24 de abril).   Rui Carita (atualizado a 12.10.2016)

Património História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

azevedo, álvaro rodrigues de

Álvaro Rodrigues de Azevedo foi um advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador, que viveu na Madeira durante cerca de 26 anos e que contribuiu para a valorização do panorama literário e cultural da Ilha. É autor de uma bibliografia diversificada e, do seu legado, destaca-se a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), de Gaspar Frutuoso, que inclui 30 extensas notas da sua autoria, que complementam e esclarecem alguns pontos acerca da história da Madeira. Palavras-chave: Madeira; literatura; jornalismo; história; historiografia; cultura. Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de janeiro de 1898, dois meses antes de completar 73 anos. Apesar de ter nascido no continente, viveu na Madeira durante muitos anos e considerava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado de nome quando ingressou na universidade. Era filho de António Plácido de Azevedo, natural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de quem teve geração. Concluiu o curso de Direito, em 1849, na Universidade de Coimbra, e foi para Lisboa, onde residiu durante cerca de seis anos. Seguiu posteriormente para a ilha da Madeira, onde exerceu funções de professor, ocupando uma vaga através de concurso público. Anteriormente, tinha tentado um lugar na magistratura judicial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Litterário (1866), explicava a razão pela qual não tinha conseguido aquele emprego e se considerava injustiçado. No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a cadeira de Oratória, Poética e Literatura, que regeu durante 26 anos. Também no mesmo Liceu, foi professor de Português e Recitação e fez parte, como sócio e secretário, da Associação de Conferências, inaugurada a 9 de maio de 1856, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos princípios da educação popular e de elaborar uma discussão com vista à escolha dos melhores métodos de ensino. A Associação de Conferências era composta por professores do ensino público e particular da capital do distrito da Madeira. Em 1856, por ocasião da epidemia de cólera (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha, causando uma elevada taxa mortalidade, prestou relevantes serviços no desempenho do cargo de administrador do concelho do Funchal. A 24 de julho de 1856, escrevia no periódico A Discussão, revelando as medidas tomadas pela Câmara Municipal que, no sentido de tentar combater a epidemia, concedeu 150$000 reis mensais para que o administrador do concelho estabelecesse uma sopa económica, a ser distribuída, uma vez por dia, aos mais necessitados. Referia ainda que medidas idênticas tinham extinguido a cólera em algumas regiões continentais. Mencionando nomes de personalidades e respetivos donativos para a causa, reforçava a ideia da importância da alimentação no combate daquele flagelo e considerava que os mais afetados pela doença eram geralmente pobres, pois a principal causa do seu desenvolvimento era a fome e a miséria. Foi procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, tendo recusado, em 1870, o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Foi ainda membro do Partido Reformista, participando ativamente na política madeirense e revelando aspirações liberais, sobretudo num período agitado da vida local, iniciado em 1868. Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Azevedo colaborou na imprensa periódica madeirense, sendo redator nos jornais A Discussão, A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Funchal e Revista Judicial, e tendo redigido também alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira. Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madeira para os anos de 1867 e de 1868. Os artigos publicados na imprensa foram de natureza variada, desde folhetins e artigos de crítica literária até assuntos de interesse social, relacionados com a vida no arquipélago e com o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de 1856, no periódico A Discussão, inicia a publicação de um artigo de crítica literária, sob o título “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal, nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março de 1856. Em 1866, edita um estudo em volume, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosquejo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo), no qual menciona o seu primeiro artigo crítico à obra daquele autor. No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, um estudo histórico intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”, identificando e descrevendo a casa de Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodrigues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de temas diversos. Ainda na juventude, escreveu um drama sob o título Miguel de Vasconcelos, que não chegou a ser editado. No entanto, este texto originou uma polémica na imprensa, em 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Inocêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota bibliográfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Azevedo no referido Dicionário, Inocêncio Francisco da Silva afirma que terá confundido uma crítica desfavorável a outro texto com o mesmo título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro autor, que terá lido nas Memórias do Conservatório Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo conhecimento do texto escrito por Azevedo, que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título idêntico, mas apenas um foi publicado nas Memórias do Conservatório, tendo outro ficado em arquivo. Este equívoco terá desencadeando a referida controvérsia, suscitando uma troca de correspondência entre ambos, através da imprensa periódica. Nas suas produções literárias encontram-se, entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em um Acto (1859), uma crítica de costumes madeirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869), no qual pretende desenvolver competências de produção linguística. Como escritor e historiador, produziu importantes trabalhos sobre o arquipélago da Madeira. O seu legado mais importante para a historiografia madeirense foi a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues de Azevedo redigiu 30 notas que acrescentou ao manuscrito, na parte que diz respeito à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns pontos da história do arquipélago. O trabalho de investigação, de pesquisas e de consultas em livros, manuscritos ou outras fontes, que empreendeu para a elaboração das anotações presentes na edição de As Saudades da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvimento do seu gosto pelo estudo da história da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro Rodrigues de Azevedo “poderá ser considerado o pioneiro da historiografia hodierna na ilha. O seu trabalho publicado em anotação a As Saudades da Terra, em 1873, é modelar e surge como uma peça-chave para todos os que se debruçam sobre a história da ilha” (VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Azevedo confessou que teve muitas dificuldades na elaboração destas notas, que foi um processo moroso, fruto de muito trabalho de investigação, de dia, e de escrita, à noite, acumulado com a sua profissão. A obra, encetada em meados de 1870, demorou cerca de três anos a completar. Os trabalhos de investigação foram feitos nos arquivos da Ilha, nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câmara Militar e no cabido da Sé. Também foram relevantes os textos que reuniu de cronistas como Zurara, João de Barros e Damião de Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo Braga, seu amigo, com quem se correspondia, teve uma grande influência no seu pensamento e na sua escrita, sendo através deste que tomou contacto com a teoria da história positivista, em voga na época. Contou ainda com a colaboração de João Joaquim de Freitas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que o ajudou nos trabalhos de revisão textual. Apesar de todas as dificuldades que teve de ultrapassar, e da obra inédita que deu à estampa, em 1873, não obteve o devido valor e reconhecimento por parte dos seus coevos. Só muitos anos mais tarde é que o seu trabalho foi valorizado pelos eruditos madeirenses. Na verdade, esta obra pioneira na historiografia insular abriu caminho para que outros madeirenses começassem a interessar-se pelo estudo da sua história, do seu passado e das suas raízes. As suas anotações constituíram uma fonte importante para outros estudiosos, sobretudo para os intelectuais da primeira metade do séc. XX e para os homens da chamada Geração do Cenáculo, que recorreram com frequência às investigações do seu antecessor. Antes do trabalho feito nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, os estudos relativos à história do arquipélago eram muito vagos, circunscrevendo-se a breves notas e estudos. A sua obra teve, assim, um grande impacto em estudiosos como, entre outros, Alberto Artur Sarmento, Fernando Augusto da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto da Cruz, sendo mesmo uma base de referência para a elaboração de obras como o Elucidário Madeirense (1921). De facto, são muitas as referências aos apontamentos e ao nome de Álvaro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que compõem o Elucidário, tendo os seus autores confessado que “são as Saudades da Terra, e sobretudo as suas valiosas e abundantes notas, o mais rico, copioso e seguro repositório de elementos que possuímos para a história do nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, vol. II, 1998, 126). Neste sentido, também outros autores terão consultado e referenciado as notas a Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes de Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (1949-1953). Ainda relativamente à história da Madeira, Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de uma série de artigos, nomeadamente, “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário Universal Português Ilustrado, dirigido por Fernandes Costa. Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Romanceiro do Arquipélago da Madeira, um volume de 514 páginas, resultado das suas recolhas da tradição oral em diversas freguesias da Madeira e do Porto Santo, para o qual terão contribuído as influências de Teófilo Braga. As composições foram classificadas por géneros, a saber, “Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por sua vez, foram divididos em espécies. Nas “Histórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu as seguintes espécies: “Romances ao divino”; “Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: “Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Contos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlengas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”, contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos para a elaboração do cancioneiro, que, porém, não chegou a publicar. No ano seguinte à publicação do Romanceiro, em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido com a ingratidão dos madeirenses pelo seu trabalho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou residência até ao fim da sua vida. Deixou uma coleção de apontamentos avulsos sobre a história, o romanceiro e o cancioneiro da Madeira, que foi coligindo ao longo do tempo que ali passou, os quais foram adquiridos pela Biblioteca Nacional de Lisboa, após a sua morte. No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qualquer homenagem a este homem que se empenhou pelo progresso da Ilha. Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso proferido na Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em Que Se Expõe e Combate esta Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista. Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); Corografia do Arquipélago da Madeira (1873); “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880); Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma, Continuada e Editada por Ruy d'Azevedo (1926).   Sílvia Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Antropologia e Cultura Material História Económica e Social Literatura Personalidades

bilhardice

O estudo do regionalismo madeirense “bilhardice” tem como escopo a sua individualização em relação a outros termos que a língua portuguesa oferece e que poderiam aparecer como sinónimos deste regionalismo sem qualquer diferenciação semântica. A riqueza semântica do termo “bilhardice” (Regionalismos) obrigará a testes vários no eixo paradigmático e no eixo sintagmático, consoante a nomenclatura de Ferdinand Saussure. A semântica deste termo é mais sustentada em conhecimentos pragmáticos resultantes da sua realização em concreto, da experiência própria de sujeito falante do português madeirense e da sustentação ideológica em diferentes campos científicos, mais ou menos implícitos, nomeadamente da linguística, da semântica, da psicologia, da sociologia e de outros ramos gnosiológicos, incluindo o da filosofia. Com efeito, a consulta de dicionários e enciclopédicas da língua portuguesa revela que este vocábulo não regista nenhuma entrada nessas obras. Exceção a esta situação é o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (DPLP), online, que o regista como tendo o mesmo significado de “bisbilhotice”. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, autoridade científica de reconhecido prestígio, na sua edição de 1936, registava uma entrada de um termo cognato de “bilhardice”, e definia assim “bilhardeira”: “o mesmo que mexeriqueira, intrigante, na ilha da Madeira; ordinária ou de fraco valor moral em Évora. Em Beja, mulher de mau génio”. Já nas últimas edições, entre 1998 e 1999, o termo deixa de aparecer. A sua formação morfológica fez uso das potencialidades do sistema aplicadas à forma, tendo-se o sujeito falante, por intuição linguística, limitado a acrescentar ao radical adjetival “bilhard-” o sufixo “-ice”, que se junta a adjetivos para formar nomes, como em: sovin- + ice > sovinice; tol- + ice > tolice. Assim, sem grandes meios de consulta do ponto de vista de dicionários ou enciclopédias que registassem o verbete do regionalismo “bilhardice”, i.e., aquilo a que a lexicografia designa o conjunto de aceções, exemplos e informações acerca de um termo, o recurso a exemplos construídos em situações possíveis de comunicação de fala foi a base essencial do estudo deste regionalismo. Em tal situação, este trabalho não pôde contar com o registo sistemático do termo “billhardice” em dicionários ou enciclopédias, que costumam reivindicar para si a objetividade, como se se situassem acima das determinações sócio-históricas em que um vocábulo surge e é usado, quando é certo que as definições de um verbete, em dicionários e enciclopédias, podem trazer implícitas perspetivas ideológicas e culturais, mesmo que possam não ter sido objeto de um ato reflexivo. Contudo, esse obstáculo tornou-se um desafio e determinou o método da pesquisa e da elaboração do mesmo, partindo da consulta de trabalhos já efetuados sobre o mesmo assunto, os quais tiveram e anotaram as mesmas dificuldades, mas cujos autores têm o conhecimento da realidade da língua em contexto, o contexto sociocultural madeirense, a língua portuguesa tal como é falada na Madeira e o uso muito peculiar do termo “bilhardice” pela população da região. Com efeito, as diferentes aceções de um termo resultam também daquilo a que Saussure chama “realidade da língua”, ou seja, da relação do sujeito com os signos que usa, porque a compreensão do signo linguístico e a sua realização se dão num determinado contexto sociocultural e, nesse contexto, adquire uma significação que vai para além da mera equivalência de significantes inscritos na paradigmática da sinonímia, o que implica a variação de valores de acordo com a realidade sociocultural em que se movimenta o sujeito falante, pois cada palavra de uma linha sintagmática se relaciona com as entidades no sintagma, mas igualmente com outras que são suscetíveis de o substituir na coluna paradigmática. Para além disso, os dicionários e enciclopédias são produto de autores que são fruto de contextos socioculturais que os condicionam e lhes proporcionam o material necessário para o seu trabalho, em que um exemplo ilustrativo pode ser, exatamente, este excurso sobre o termo “bilhardice”. Já o uso do verbo “bilhardar” e de “bilhardeiro” pode anotar-se no DPLP (“Bilhardar: Picar duas vezes a bola com o taco. Picar duas bolas ao mesmo tempo quando estão juntas. Jogar a bilharda. Regionalismo, o mesmo que bisbilhotar”; “Bilhardeiro: Jogador de bilharda. Mandrião, calaceiro.  O mesmo que bisbilhoteiro”) e na versão online da edição de 1913 do Novo Diccionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, encontram-se duas entradas para o verbo “bilhardar” e uma para “bilhardeiro”: “bilhardar, 1 v. I. Dar duas vezes na bola com o taco ou tocar duas bolas ao mesmo tempo, no jogo do bilhar. (Fr. billarder); bilhardar, 2 v. i. Jogar a bilharda. Pop. Vadiar”. “Bilhardeiro m. Jogador de bilharda. Vadio, garoto”. O termo “bilhardice” também não se encontra neste dicionário, facto já observado por outros autores, que, por sua vez, citam outros: “A palavra bilhardice é um termo regional para as palavras bisbilhotice, mexerico, coscuvilhice. O que a torna interessante, de facto, é tratar-se de um regionalismo, e ser usada, frequentemente, em detrimento das anteriores. Curiosamente, não constitui entrada de dicionários e é apenas referida como ‘falso testemunho, alveiosia. Aquelas raparigas não fazem senão bilhardar’” (BARBEITO, “Para a Compreensão…”). Note-se que o trecho da citação colocado em itálico tem por autor Jaime Vieira dos Santos, em “Vocabulário do Dialecto Madeirense”, artigo publicado na Revista de Portugal. Em Ana Cristina de Figueiredo, o termo aparece registado com várias aceções: “Ato de conversar animadamente (Cavaqueira). ‘Aquelas parecem duas comadres: sempre na bilhardice!’” Ou como “ação de comentar a vida alheia e de arranjar intrigas ou mexerico sobre a vida de outrem (alcovitice, bisbilhotice, coscuvilhice, mexerico)” (FIGUEIREDO, 2011, 104-105). Interessante será referir o que diz sobre “bilhardice” David Pinto-Correia: “Quanto à ‘bilhardice’, termo felicíssimo exclusivamente madeirense, que sintetiza, com os seus próximos ‘bilhardeiro’ e ‘bilhardeira’ e ‘bilhardar’ (interessante será verificar que este verbo quase só se conjuga no infinitivo ou em formas perifrásticas), e com uma sonoridade bem expressiva, muito do que outras palavras de sentido próximo (como, por exemplo, ‘intriga’, ‘bisbilhotice’, ‘mexeriquice’) não conseguem exprimir: a sua complexidade semântica integra a principal significação de ‘difundir uma situação’, mormente ‘reservada’, ‘que não era necessariamente divulgável’, ou mesmo ‘que devia ser mantida em segredo’, mas também a de uma crítica velada ou de reprovação ao ato em si, ao mesmo tempo que contém muito de ironia, e de caracterização de tal prática como lúdica (como se se quisesse indicar que ‘é um dizer por dizer’, ‘divulgar por divulgar’, sem procurar consequências graves para o que é divulgado ou sobretudo para quem é posto em causa pela divulgação, o que está longe de ser verdade), uma espécie de hábito atavicamente gratuito, inofensivo” (PINTO CORREIA, 2000, 25). Esta longa citação justifica-se não só pela autoridade científica do autor, mas, sobretudo, por colmatar a ausência já anotada do termo em dicionários académicos, na medida em que a sua riqueza semântica serve de fonte autorizada para este verbete. Na mesma linha do carácter lúdico-narrativo para aqueles que praticam a “bilhardice” envereda Teresa Brazão ao dizer “A bilhardice é o curioso e permanente hábito que têm as pessoas, de saber pormenores acerca daquilo que não lhes diz respeito, especialmente quando se trata da vida alheia. De cultivar e fazer crescer desmesuradamente esses pormenores, que acabam tão maiores quão enorme o desejo dos seus insaciáveis criadores […] A Madeira, meio pequeno, que, apesar de tudo, já não é assim tão pequeno, foi, desde tempos imemoriais, solo fértil para o cultivo de tal hábito social” (BRAZÃO, 2005, 68). A autora não deixa, contudo, de notar não só o jogo social que estava por detrás da sua prática em favor de elementos mais bem situados na esfera social, mas igualmente os efeitos que tal poderia provocar nos alvos da “bilhardice”, que, nesse caso, seriam mais frágeis na hierarquia social ou a desigualdade entre o homem e a mulher: “Era mesmo assim. Na mesma medida em que se exageravam e chafurdavam os defeitos de alguns, exaltava-se e engrandecia-se a virtude de outros. Esses outros alimentavam a bilhardice, porque ela lhes era favorável. Quanto mais mal se dissesse dos outros, mais bem se diria deles próprios, numa espécie de equação matemática ou regra dos termos da lógica aristotélica. Assim, as suas poses, estudadíssimas e refinadíssimas, refletiam a sua enorme embora só aparente virtude. […] As principais vítimas eram os mais fracos, ou senão mais fracos, os menos compensados socialmente” (BRAZÃO, 2005, 68). Neste jogo social, a autora observa a mudança que a liberdade política e cultural veio a ter na mudança das mentalidades: “A liberdade tendeu a desmontar esta coisa toda, graças a Deus. Foram inúmeras as personagens desmascaradas, e hoje fala-se das pessoas doutra maneira. Parecia que a mentalidade dos madeirenses estava a crescer. O número de pessoas aumentou, e deixou de ter o mesmo impacto saber que a dona Sílvia do monte andava a encontrar-se com o senhor Silva da zona velha. Porque ninguém os conhece. E também hoje as pessoas assumem muito mais o que fazem, e não tem graça nenhuma falar de coisas que as próprias pessoas assumem”. E recomenda, nessa sua abordagem sociocultural da liberdade, “A iliteracia do estado novo alimentava a bilhardice. Por isso, agora, temos de investir mais em cultura. Só assim a sociedade ficará melhor, para todos vivermos confortavelmente nela, com a tão propagada qualidade de vida” (Id., Ibid.). Este excurso de Teresa Brazão revela-se bastante pertinente neste verbete porque a autora, ao situar socioculturalmente a “bilhardice” num meio pequeno e ao perspetivá-la em outras vertentes, nomeadamente a político-cultural, confere a esta característica um cunho marcadamente regional, pela importância que ela assume na sociedade madeirense em todos os extratos socioculturais; ou seja, fica aqui claro não se tratar de uma característica exclusivamente popular, como, por vezes, se possa pensar ou dizer. O conhecimento desta realidade contribui para o enriquecimento da semântica do vocábulo “bilhardice” e, de certo modo, ajuda a preencher a lacuna que deriva da sua ausência sistemática em dicionários e enciclopédias. No estudo de um determinado regionalismo, a primeira questão que se coloca é a de saber se existem palavras no idioma que possam substituir, com propriedade ou total equivalência, esse regionalismo. E logo aqui deparamos com a questão da sinonímia. Outra é a de saber se a palavra em questão cumpre uma função que nenhuma outra cumpre para os sujeitos falantes dessa região. Posta assim a questão, o madeirensismo “bilhardice” pode ser comparado com outros termos que lhe são correlatos na língua portuguesa, como “coscuvilhice”, “mexerico”, “bisbilhotice”, “intriga”, “alcovitice”, ou até mesmo “fofoca”, que, note-se, nos remete mais para o português brasileiro pois não provém do português lusitano e tem etimologia africana, mais propriamente da língua banta. Apesar os dicionários darem de “fofoca” o sinónimo “mexerico”, esse termo não deixa de ter um contexto de significação que, não obstante a etimologia africana, tem ressonância nitidamente brasileira. Assim, ao ouvir o termo “fofoca”, um europeu tende a evocar de forma espontânea contextos exóticos, aquilo a que Sartre chama o “estado de consciência”, que implica uma espécie de inércia, de passividade reflexiva ao ouvir um determinado signo face à realidade que ele designa. Assim, se é certo que pode haver múltiplos sinónimos para o termo “fofoca”, tantos quantos aqueles que nos devolve um bom dicionário, a verdade é que nenhum deles ecoará melhor no nosso imaginário como significativo de um ambiente brasileiro. O que fica dito acerca do brasileirismo “fofoca” aplica-se, com a mesma propriedade, ao madeirensismo “bilhardice”. O uso de um signo provoca uma atitude de consciência que integra esse signo numa estrutura mental que não depende de um objeto particular (o signo “árvore” é o universal de todas as árvores, mas não se esgota em nenhuma delas em particular). O signo “bilhardice”, que não designa um objeto, uma realidade física, tangível, mas uma realidade fisicamente intangível, só pode ser entendido ligando-o à realidade exterior que lhe deu origem, em correlação com uma linguagem interior traduzida em imagens mentais que não se ativam de forma reflexiva, mas de forma inconsciente e automática, o que remete não só para o campo da psicologia, da sociologia, da cultura, do folclore, dos hábitos, da geografia e do meio, mas para uma fronteira que define o que é ser madeirense. Nessa perspetiva, o madeirensismo “bilhardice” não é suscetível de ser substituído por outros termos que se reivindiquem como seus sinónimos sem que isso tenha um custo de esvaziamento mental, do ponto de vista cultural, em quem ouve e em quem fala, no caso de falantes madeirenses, perdendo-se o contexto sociocultural de uma mundividência que só pode ser traduzida por este termo enquanto regionalismo compósito de uma realidade cultural. Esteja o sujeito falante na Madeira ou em qualquer parte do mundo, a “bilhardice” evoca a ida à igreja, os arraiais em seu redor, a conversa entre vizinhas, ou vizinhos, a aldeia, a rua, o bairro, a cidade e o campo, enfim, a Madeira e as suas duas ilhas. Ou seja, a relação necessária do uso de um signo com determinado contexto habita no sujeito falante em função de uma opção que lhe é imposta por um contexto sociocultural. A opção do sujeito falante pelo termo “bilhardice”, nesse caso, deriva de ele julgar que é o que melhor traduz a realidade que quer transmitir. Pode haver a tentação de o argumento do nível sociocultural do falante explicar o uso deste termo em detrimento de outros que poderiam ser tomados como sinónimos e com a mesma eficácia; contudo, tal não se verifica, pois observa-se o seu uso por indivíduos de diferentes extratos sociais. Também quando à questão diafásica, a opção ou não por este termo não difere da que é feita por qualquer outro que se apresente como sinónimo, e.g., em situação solene, onde não se fala de coscuvilhice e termos equivalentes; e se, após o ato solene, houver cavaqueira, o termo “bilhardice”, mesmo nos salões dos diferentes fora regionais – políticos, culturais, sociais – antepor-se-á a outros tomados como equivalentes. Resta a variação diatópica, e é nela que devemos prosseguir, visto tratar-se de um regionalismo. Sobre a questão da relação intrínseca entre o significante e o significado no interior do signo, ressalvando a voluntária construção pleonástica da frase, e se o significado de um signo é assumido como representação mental coletiva de um ente, ser concreto ou abstrato, aduz-se que um signo não pode subsistir, ontologicamente, numa espécie de mundo platónico das ideias, sem uma necessária ligação a um referente exterior a si, que é a razão da sua existência. As situações em concreto do uso da palavra remetem para a sua riqueza semântica e negam qualquer sinonímia simplificada. Tal implica considerar, para além do nome abstrato “bilhardice”, o verbo “bilhardar” e o adjetivo “bilhardeiro” (incluindo a sua forma correspondente ao grau aumentativo, “bilhardão”), classes morfológicas importantes para um quadro semântico variado destes termos. Vejamos casos concretos de aplicação: “Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice”. Nesta enunciação, está pressuposta a cumplicidade entre os dois sujeitos falantes, a confiança e a proximidade, quer humanas, quer geográficas, tipo porta com porta, no aspeto espacial. Que significará, então, aqui “bilhardice”? Confidência, segredo, maledicência ou não, dependendo do conteúdo. Imaginemos vários exemplos: “– Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice. Sabe que Maria tem um amante?! – Não me diga! E ela que se tinha por melhor que as outras!”: aqui, o caso é nitidamente de conversa de maldizer. “– Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice. Sabia que Maria tem um tumor? – Ah, coitada da rapariga, tão nova, com filhos pra criar!”: aqui, o caso é de solidariedade, uma confidência, em que a “bilhardice” implica uma obrigação solidária, em que todos sabem de uma triste realidade que merece discrição, pelo menos perante a Maria, e todos têm o dever de passar a ser compassivos com ela. Como se vê, a imagem mental do signo “bilhardice” varia de acordo com as circunstâncias e a sua prática só pode ser entendida em meios geográficos pequenos, em que todos se conhecem. O mais importante, contudo, é que não é possível criar uma rede de sinónimos do mesmo campo semântico, visto que o vocábulo se estende em várias linhas significativas. Perguntar-se-á se nos casos exemplificados o termo “bilhardice” poderia ser substituído por outras palavras no campo da sinonímia. A resposta é que não, uma vez que, entre os sujeitos falantes, se dá ao termo “bilhardice” um significado de acordo com as circunstâncias, o que é relevante, porque os significados chegam a cair no campo da antonímia. Retenham-se, além dos exemplos já dados, mais dois: “Maria é uma pessoa a quem se pode fazer uma bilhardice!”: aqui, o sinónimo é confidência, claramente antónimo de coscuvilhice, a ideia de que Maria é discreta. “Helena andou a fazer bilhardices sobre Maria”: aqui, o termo “bilhardice” é sinónimo de coscuvilhice, veiculando a ideia de que Helena é indiscreta. Ou ainda outros casos, desta vez ilustrativos dos vários sentidos do nome “bilhardice”: “Não me venhas com bilhardices, que eu já te conheço, gostas é de espalhar confusão!”: aqui, significa intriga e origem de conflito. “Aquelas três estão há mais de duas horas numa bilhardice pegada!”: aqui, o termo adquire o sentido de cavaqueira, conversa, sem qualquer tipo de insinuação ou acusação. Para completar este excurso argumentativo e afastar de vez a hipótese de sinonímia absoluta de “bilhardice” com outros vocábulos da nossa língua, aduzo, em defesa da diferenciação deste vocábulo em relação a termos que se apresentam como sinónimos, outros exemplos: com um adjetivo da mesma família: “António é um bilhardeiro, contei-lhe um segredo e logo espalhou por todo o lado!”: António, aqui, é um indivíduo que não merece confiança. “Maria é um bilhardão! Ouve aqui e conta acolá e, ainda por cima, distorce tudo!”: Maria, além de coscuvilheira, é enredadeira e, subentende-se, mentirosa. Outro exemplo, em que o significado muda radicalmente, com recurso ao verbo “bilhardar”: “Estás a bilhardar, eu não disse nada disso!”: neste caso, a mentira é a base da significação. Como se pode inferir destes exemplos de vocábulos cognatos de “bilhardice”, cada palavra é o centro de uma gramática de interpretação da vivência humana em cada lugar e em cada circunstância, e há que concluir que os madeirenses procuraram novas palavras por necessidade de traduzir aquilo que mais nenhuma comunidade viveu. Por isso, a palavra “bilhardice” pode ser sinónimo de outras palavras, mas essoutras palavras não traduzem exatamente aquilo que os madeirenses viveram. Vejamos, a propósito deste assunto, a teoria de Gottlob Frege, esclarecendo, porém, a priori, a nomenclatura deste autor com a equivalente terminologia saussuriana: o sinal ou nome próprio é equivalente a signo; a referência ou realidade designada é o referente saussuriano; o significado é o mesmo que em Saussure (significado). Como é que a relação no interior do sinal ou nome próprio, em Frege, estabelece a ligação entre a referência (que é realidade designada) e o significado, ou seja, qual é a diferença entre o significado em Saussure e em Gottlob Frege, se ambos usam o mesmo termo? É que em Saussure tudo se passa no interior do signo, que é um universal abstrato, mas em Frege o significado é o modo como o referente, físico ou abstrato, se realiza na mente do sujeito falante: aquilo que cada um pensa ou sente ao ouvir um signo, seja ele qual for, é determinado pela sua experiência subjetiva, como adiante veremos. No caso em estudo, a mesma realidade pode ser designada por um sujeito falante não madeirense por outro termo que não “bilhardice”; já para um sujeito falante madeirense, a imagem da realidade contextual que ele pretende transmitir a outro sujeito madeirense só tem uma representação mental adequada se for designada pela palavra “bilhardice”. Para corroborar esta ideia, recorro-me do exemplo clássico de Frege, que vai mais longe, ao defender que a mesma referência pode, inclusive, ter significados diferentes em função do contexto em que é dita. O planeta Vénus não deixa de ser o mesmo em qualquer altura do dia, mas o ato elocutório ganha semânticas diferentes consoante a hora em que é designado, “estrela da manhã” ou “estrela da tarde”. Ou seja, a representação subjetiva do signo linguístico “estrela” muda de acordo com o contexto e a sua vivência. Por sua vez, enquanto o signo saussuriano é uma imagem universal e objetiva, apreendida coletivamente, ao sinal (o signo de Saussure, recorde-se) Frege associa outra componente: a representação que o sujeito falante associa a esse sinal, e que é inteiramente subjetiva. Entre o signo de Saussure e o sinal de Frege não há diferença quanto à universalidade e à representação de uma imagem apreendida coletivamente. A questão está em que, para Frege, a representação mental associada ao sinal é inteiramente subjetiva. Não é fácil encontrar na língua portuguesa um termo que traduza, com a mesma eficácia e fidelidade, a realidade sociológica madeirense veiculada pelo termo “bilhardice”, até porque ela mesma, como vimos nos exemplos expostos ao longo deste excurso, tem uma pluralidade semântica que difere de acordo com o sintagma em que se insere. Convém ler, para estabelecer um paralelo de situação, o seguinte texto sobre a palavra “saudade”: “Saudade é substantivo abstrato, tão abstrato que só existe na língua portuguesa. Os outros idiomas têm dificuldade em traduzi-la ou atribuir-lhe um significado preciso: ‘Te extraño’ (castelhano), ‘J’ai [du] regret [de] (francês) e ‘Ich vermisse dish’ (alemão). No inglês têm-se várias tentativas: ‘homesickness’ (equivalente a saudade de casa ou do país), ‘longing’ e ‘to miss’ (sentir falta de uma pessoa), e nostalgia (nostalgia do passado, da infância). Mas todas essas expressões estrangeiras não definem o sentimento luso-brasileiro de saudade. São apenas tentativas de determinar esse sentimento que sentem os povos de cultura portuguesa. Assim, essa palavra ‘saudade’ não é apenas um obstáculo ou uma incompatibilidade da linguagem, mas antes, e principalmente, uma característica cultural daqueles que falam a língua portuguesa” (LESSA, “O Mito da Palavra Saudade”). Donde se deduz que “bilhardice” está para o falar madeirense como “saudade” está para a língua portuguesa, no sentido em que nenhuma delas, no seu âmbito, encontra um sinónimo que a possa traduzir absolutamente. Explanada na sua polivalência semântica e, ao mesmo tempo, na sua singularidade, e mesmo reconhecendo que o termo “bilhardice” se integra na categoria de regionalismo, podia acontecer que adquirisse um estatuto idêntico ao de outros termos que também não são considerados como parte da norma padrão, nomeadamente os brasileirismos, como é o caso de “fofoca”, mas nem por isso deixam de ser usados correntemente como se o fossem. Para que a riqueza cultural, psicológica, linguística, sociológica e humana de “bilhardice” se tornasse comum ao mundo da lusofonia, como aconteceu, nos começos do séc. XXI, com alguns brasileirismos, veiculados, nomeadamente, pelas telenovelas produzidas no Brasil, seria necessário que houvesse a mesma intensidade de produção mediático-cultural do lado lusitano, sobretudo no rincão madeirense, que existe do lado brasileiro. Se uma mesma palavra tem um sentido geral e abstrato e, todavia, tem em cada sujeito falante uma representação mental que é subjetiva, o que acontece quando estamos perante um signo diferente, como “bilhardice”, oriundo de uma determinada região, no contexto mais geral da língua portuguesa? Já vimos isso com o signo “árvore” ou outro signo qualquer: o que pensa cada um quando o profere ou quando o ouve está dependente da experiência subjetiva. O signo “bilhardice” obteve, desde há muito, um significado que é geral e abstrato no contexto cultural madeirense, que deriva da vivência de uma comunidade e que se concretiza em cada ato de fala particular, como resultado da memória, da experiência e da vivência do falante, as quais conferem a essa palavra uma representação mental segundo a tese de Frege. É esta referência ao mundo real, à própria vida dos sujeitos falantes, que justifica a diferença que, de facto, existe, entre o termo “bilhardice” e os vocábulos que se apresentam como seus sinónimos na nossa língua. A bilhardice é, portanto, um conceito em cuja amplitude semântica não encontra paralelo em qualquer outro termo da língua portuguesa.   Miguel Luís da Fonseca (atualizado a 12.10.2016)

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