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união, clube de futebol

A associação de recreio União Foot-Ball Club nasce em 1913 com o objetivo de promover os exercícios desportivos, náuticos e terrestres. Todavia, a vertente náutica deste clube, fortemente contemplada nos estatutos a que tivemos acesso, quer por fixar o registo das embarcações e material adquirido, quer pelas provas e concursos desportivos a desenvolver, não se viria a materializar. O União Foot-Ball Club, cuja nomenclatura deixava clara a intenção maior da sua origem, surge, à semelhança de inúmeros clubes da época, na R. de Santa Maria, no Funchal, fruto de uma contenda entre membros que integravam a equipa do Grupo União Marítimo, uma equipa de infantis constituída por jovens residentes junto ao campo D. Carlos, rapidamente batizado, com a República, campo Almirante Reis, em homenagem ao mártir Carlos Cândido Reis (1852-1910). Era uma equipa associada ao Marítimo até ter existido uma discussão em torno da compra, sem autorização, de duas balizas que haviam custado 2$70 e que eram pertencentes ao entretanto extinto Clube Operário Madeirense. Dessa discussão resultou a separação da equipa, tendo César da Silva levado para sua casa a primeira sede do União Foot-Ball Club, a 1 de novembro de 1913, coadjuvado por Ângelo Olim Marote, Luís Vieira Guerra, João Fernandes Rosa,  Alexandre de Vasconcelos,  José Anastácio do Nascimento  e  João Ferreira. O logótipo do União é aquele de que mais versões se conhecem. Muito semelhantes entre si, mantém-se o azul e o amarelo, listado, cores que mais tarde seriam escolhidas para representar a Região. O símbolo em forma de escudo com listas azuis e amarelas é rasgado por uma faixa branca com as iniciais do clube “U.F.C.”, mais tarde “C.F.U.”, tendo no cimo o capacete de Hermes, deus da fertilidade na mitologia grega. Nos primeiros anos do futebol na Madeira, sentiu-se a necessidade de contribuir para que a modalidade seguisse por um caminho de prestígio e de seriedade. Nesse âmbito, do União e do Insulano – grupo desportivo, inaugurado oficialmente a 4 de junho de 1916, que terá um papel muito importante no futebol da Madeira, uma vez que será, entre outros, o responsável pela redação dos primeiros estatutos da Associação de Futebol do Funchal, anos mais tarde denominada de Associação de Futebol da Madeira – partia a iniciativa de reunir as direções dos vários clubes, na sede do segundo, à R. da Queimada de Baixo, também no Funchal. O objetivo central seria a fundação de uma liga desportiva, o único meio de se acabar com as rivalidades que tanto prejudicavam o desporto madeirense. A proposta em discussão seria constituir na cidade uma liga entre clubes, destinando-se, inicialmente, a acordar entre todos os grupos, clubes ou associações desportivas um projeto de estatutos de uma associação, ao exemplo do que acontecia em Lisboa. Assim, em 1916, nascia a Associação de Futebol do Funchal (AFF), tendo sido organizado nesse mesmo ano o primeiro campeonato de futebol da Madeira. Nem oito dias depois da publicação, nos periódicos da época, do que é ser um bom futebolista, o jogo entre o União e o Marítimo, com vitória do primeiro sobre o segundo, acabava envolto em polémica. O jogo é anulado pela AFF com o intuito de ser repetido, mas o União não aceita a decisão, recorrendo junto deste órgão, que, pela pressão de não conseguir resolver o conflito, acabará por ficar inativo dois anos após a sua criação, e por dois anos, não havendo, por isso, competições oficiais em 1919 e 1920. A Associação ressuscita e, na época  1920/1921, a competição regressa, com a disputa do 3.º Campeonato da Madeira, acabando com a vitória do  União.  A partir da época 1921/1922, começa a realizar-se o  Campeonato de Portugal, mas o representante madeirense apenas entrará na competição na época seguinte. O União alcança esse feito na época 1927/1928, defrontando e quase vencendo o Sport Lisboa e Benfica. O União vivia muito para as atividades de lazer, para as excursões com jogos à volta da Ilha, mas também para causas solidárias. Na rubrica “Vida Sportiva” do Diário da Madeira de 4 de julho de 1915, anunciava-se que o União iria, em excursão, a Santa Cruz, acrescentando que “registamos sempre com prazer excursões desta natureza em que a nossa mocidade abandonando a vida ociosa da cidade vai retemperar o seu físico em exercícios proveitosos”(DM, 4 jul. 1915, 1). Outras notícias de 1917 davam conta de que o Club Sports Madeira e o União faziam reverter as entradas do jogo disputado entre ambos em benefício da viúva de António Fernandes, antigo jogador do Marítimo, provando, uma vez mais, que a solidariedade e a preocupação social não distinguem cores nem se alimentam de clubismos, realidade corroborada pelo sucedido no jogo noticiado pelo Diário da Madeira, na antevéspera do Natal de 1917, revelando que num jogo entre o Marítimo e uma equipa mista a verba angariada seria entregue a um fundador do União que à data se encontrava doente e em precárias circunstâncias. Na déc. de 40, o clube entra em crises sucessivas. A modalidade-rainha, o futebol, já não conseguia fazer ignorar os problemas internos. Em julho de 1945, o Diário de Notícias anunciava que o delegado da Direção-Geral dos Desportos havia dissolvido a direção do União, à exceção do presidente, após os desacatos entre jogadores e a direção, na final da Taça da Madeira. Depois de resolvido o conflito, o União vai entrar numa era de grande atividade desportiva, em muito devido ao mestre Medina, jogador que fez furor na déc. de 50 e que, através do hino, o União imortalizou. De facto, as décs. de 50 e 60 representaram as décadas de maior sucesso do clube. A nível regional, o União venceu, por sete vezes consecutivas, o Campeonato da Madeira, entre a época desportiva 1955/1956 e 1962/1963. Tomando presença na luta nacional contra o analfabetismo, o União dispõe, em 1954, de cursos de instrução primária na sua sede para os seus atletas, desde os infantis até à equipa de honra. O clube promove ainda, e sempre que possível, palestras e ações de formação, nomeadamente conferências técnicas e sociais destinadas aos árbitros. Com a autonomia política administrativa da Madeira, assiste-se à passagem de um desporto elitista para um desporto massificado. A ascensão do clube aos nacionais de futebol ocorreu na temporada 1979/1980, com o clube a entrar na III Divisão Nacional. Após duas épocas, sobe à II Divisão Nacional. Mas será na época de 1988/1989 que se viverá o momento mais alto da história do União, então liderado por Jaime Ramos e treinado por Rui Mâncio. Após vencer a Zona Sul da II Divisão Nacional, disputa a sua primeira época nos mais importantes palcos nacionais na época 1989/1990, juntando-se ao Marítimo e ao Nacional. Ficará no escalão máximo do campeonato nacional de futebol durante duas épocas até descer à  II Divisão de Honra, em  1991/1992. No entanto, volta a subir na época seguinte, igualando a melhor classificação obtida, em  1993/1994, na época em que regressa ao Campeonato Nacional da I Divisão, abandonando-a logo na época seguinte. Na época de 1998/1999, com o advento da Sociedade Anónima Desportiva (SAD), o clube cai na  II Divisão Zona Sul, conseguindo em 2001/2002 vencer a Zona Sul e regressar à II Liga. No entanto, os sucessivos sobe-e-desce teimam em repetir-se, ficando em último lugar, indo competir novamente na Zona Sul da II Divisão B. A estrutura da  competição onde o União está inserido muda no final de  2004/2005, passando a ter acesso às competições profissionais apenas dois clubes de um conjunto de quatro séries com 16 equipas. O União é colocado na Série B, conseguindo na primeira época o segundo lugar, tendo ganho a Série na época  2006/2007, contudo falha a qualificação ao perder com o Freamunde. O União consegue subir de divisão, garantindo lugar na Liga de Honra, após dois anos consecutivos a perder no play-off. Em 2011/2012, integrou a II Liga, lugar que ocupa até à época 2014/2015. Ao longo de 100 anos de existência, e apesar de se ter dedicado ao futebol, o União brilhou em outras modalidades importantes, como o andebol, o voleibol, o hóquei em patins, a esgrima, o basquetebol e o râguebi, modalidade introduzida na Madeira pelo clube, movimentando, na temporada de 2005/2006, cerca de 310 atletas federados e conquistando vários prémios, entre os quais a medalha de bons serviços desportivos, a medalha de prata do Instituto de Socorros a Náufragos e a medalha de ouro da Cidade do Funchal. Garantiu, ainda, 1 presença no Campeonato de Portugal (1927/1928), 6 presenças na I Liga (1989/1990, 1990/1991, 1991/1992, 1993/1994, 1994/1995 e 2015/2016), 5 presenças na Liga de Honra (1992/1993, 1995/1996, 1996/1997, 1997/1998 e 1998/1999), 6 presenças no Campeonato Nacional da II Liga (2002/2003, 2003/2004, 2011/2012, 2012/2013, 2013/2014 e 2014/2015), 2 presenças na III Divisão Nacional, 37 presenças na taça de Portugal, 62 presenças e 17 títulos no Campeonato da Madeira, 59 presenças e 15 títulos na taça da Madeira, 8 títulos na taça Cidade do Funchal e 3 títulos na taça de Honra e no torneio Autonomia.     Andreia Micaela Nascimento (atualizado a 04.01.2017)

Sociedade e Comunicação Social

teologia, ensino da

O estudo da Teologia faz parte da formação dos futuros padres e desenvolveu-se no Seminário do Funchal, tendo como objetivo primeiro a formação do clero e as necessidades concretas da pastoral das paróquias onde, para além da catequese, era necessário evangelizar os costumes religiosos do povo. Na prática, o ensino do Seminário dava a estrutura doutrinal e moral para lidar com as diferentes solicitações do múnus de pastor, mas diversas pastorais dos bispos diocesanos insistiram na formação do clero para além dos elementos iniciais recebidos no Seminário. A instituição dos seminários foi uma das obras mais importantes do Concílio de Trento. A 20 de setembro de 1566, D. Sebastião criava o Seminário do Funchal, apenas três anos depois do decreto do Concílio. Foi sobretudo D. Jerónimo Barreto, formado em colégios jesuítas e sagrado bispo do Funchal em 1573, que determinou o estabelecimento do seminário diocesano, com toda a probabilidade no decénio de 1575 a 1585. No início do séc. XVII, D. Luís de Lemos mandou construir o paço episcopal e instalou o Seminário numa casa anexa. Devido à proximidade do Colégio dos Jesuítas, os seminaristas frequentavam as aulas do Colégio, onde recebiam formação em letras, mas também em ciência sagrada. Num relatório de 1594, encontramos uma referência ao Seminário, ao seu reitor e aos seminaristas, que iam todos os dias às aulas dos padres da Companhia de Jesus, onde eram instruídos em virtudes e letras para depois desempenharem a cura de almas. O texto anónimo Memórias sobre a Creação e Aumento do Estado Eclesiástico na Ilha da Madeira referem que os Jesuítas estabeleceram no edifício do Colégio o ensino da doutrina, a confissão, a pregação, a moral, o latim e a retórica, disciplinas importantes não só para a formação dos seus próprios religiosos, mas também para os seminaristas diocesanos que aí encontravam as bases intelectuais e humanas do seu futuro ministério. Henrique Henriques de Noronha, que escreve por volta do ano de 1722, afirma que o Seminário se manteve até 1702 nas dependências do paço episcopal, altura em que passou para o mosteiro novo, situado na futura R. do Seminário. Foi nesta data que o bispo diocesano dispôs de estatutos para o Seminário, exigindo que os jovens nele admitidos tivessem entre 12 e 18 anos e aí permanecessem sete anos: os quatros primeiros dedicados ao estudo do latim e do canto, os três últimos à moral e à filosofia. Era condição para receber ordens menores o conhecimento do latim; para as outras ordens – subdiácono, diácono e presbítero –, importava que o ordinando conhecesse os procedimentos que pertenciam à missa, nomeadamente a matéria e a forma da consagração, e tivesse a disposição necessária de espírito e de corpo. Alguns sacerdotes prosseguiam estudos de nível superior em Coimbra, em Évora ou mesmo fora do país. Embora não se conheça o conteúdo da formação teológica dos seminaristas nesta data, sabe-se por uma pastoral do bispo D. Fr. Manuel Coutinho, de setembro de 1725, que a preparação do seu clero era superficial, sobretudo a nível espiritual. O bispo exigiu um prazo para que todos os clérigos se apresentassem a exame de confessores, aplicando-se ao estudo da moral e do latim. Os residentes no Funchal deviam frequentar as aulas de moral no colégio da Companhia de Jesus e não eram sujeitos a exame sem a frequência dessas lições. A liturgia dos sacramentos e as questões morais eram os pontos dominantes na preparação do clero diocesano ao longo do séc. XVIII. Em 1741, o bispo D. Fr. João do Nascimento aprovava novos estatutos para o seminário que nos interessam aqui pelas questões formativas que contêm. Em primeiro lugar, os referem as condições de entrada dos jovens no Seminário, cuja idade não devia ultrapassar os 18 anos. Depois determinam os requisitos relativos à disciplina e ao traje eclesiástico. O programa de estudos é exposto no capítulo v dos estatutos. Mantêm-se as disposições anteriores, que previam uma formação em 7 anos. Os alunos eram examinados antes da partida para férias e à chegada das férias. Os que estudavam moral deveriam prestar provas públicas duas vezes: a primeira no fim do 2.º ano e a segunda no termo do 3.º ano. Quanto ao estudo propriamente dito, havia exercícios práticos que serviam de complementos às aulas. O método era de tipo escolástico: exposição e defesa duma determinada posição, objeções e perguntas feitas pelos outros estudantes, resposta às perguntas e objeções. Cada um era avaliado pela maneira como respondia diante do reitor e dos outros seminaristas. Estes exercícios eram certamente uma réplica das lições que recebiam. Depois de os Jesuítas terem abandonado a Madeira, em julho de 1760, por virtude do decreto de expulsão das ordens religiosas, o problema dos formadores do clero voltou a colocar-se. Por um lado, o edifício do Seminário tinha sido fortemente danificado em virtude do terramoto de 1755; por outro lado, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão queixava-se da inexistência dum edifício digno para instalar o Seminário e da falta de mestres para ensinar as ciências eclesiásticas. Quando entrou na Diocese, D. Gaspar fazia-se acompanhar por dois padres lazaristas e pensou entregar o Seminário ao cuidado da Congregação da Missão. Efectivamente, os padres lazaristas começaram um trabalho de acompanhamento e ensino no Seminário, sobretudo na formação espiritual, na linha da escola francesa de espiritualidade fundada pelo Cardeal Bérulle e segundo o carisma de S. Vicente de Paulo. Em 1787, D. Maria I entregou o edifício do Colégio à Diocese e o bispo, D. José da Costa Torres, aí instalou o Seminário desde 1788 até 1802. Um edital deste bispo, de 1787, dá-nos uma ideia da formação no Seminário: só eram admitidos às ordens sacras aqueles que tivessem suficiente formação em latim, retórica, filosofia racional e moral; para o sacerdócio seriam promovidos os que estudassem com aproveitamento o direito canónico, a teologia moral e dogmática. Estas indicações do final do séc. XVIII permanecem válidas para o séc. XIX. Foi por iniciativa de D. Manuel Agostinho Barreto (1877-1911) que começou a ser construído um novo Seminário na cerca do extinto Convento da Encarnação. O Seminário passou a funcionar neste novo edifício em outubro de 1908 mas a lei de 20 de abril de 1911 extinguiu o Seminário e transferiu a posse do edifício para o Estado. D. Manuel Barreto chamou para a reorganização do Seminário o P.e Ernesto Schmitz (vice-reitor desde 1881), Lazarista, que foi um verdadeiro fundador da formação sacerdotal, organizando com profundidade os estudos desta instituição, numa iniciativa que marcou várias gerações de padres diocesanos. Outros sucederam-no também com grande empenho, como por exemplo o Cón. Barreto, reitor do seminário durante largos anos. Destacam-se nesta época alguns escritos do Cón. Manuel Gomes Jardim (1881-1949), professor de dogma no Seminário, escritos cuja temática ilustra o teor do ensino teológico da altura. O Cón. Jardim escreveu, em 1931, um estudo sobre as razões do protestantismo; em 1934, um livro sobre a existência de Deus à luz da razão; e em 1940, dois volumes sobre a Igreja e o protestantismo. O estilo destes escritos é expressamente apologético e visa rebater as posições protestantes expondo a contrario a perspetiva católica. As análises da Escritura servem de prova para as posições defendidas e a argumentação segue o estilo escolástico de exposição dos princípios católicos e resposta às objeções. O autor quer mostrar que o livre exame aceite pelo protestantismo põe em causa os fundamentos da fé e que a fé implica sempre uma dimensão social, institucional. Para o Cón. Jardim, quando se prescinde de Deus, nem democracias, nem totalitarismos podem resolver o problema do verdadeiro bem dos povos. Diferente é já a perspetiva duma revista do Seminário – Oásis – fundada em 1962 e com tiragem trimestral. Esta revista contém uma variedade de temas, que vão desde narrativa das atividades internas e externas do Seminário, a estudos literários feitos pelos seminaristas, peças de teatro, poemas, mas também alguns artigos teológicos, em especial ligados ao Concílio Vaticano II. Nestes últimos contam-se temas como o movimento litúrgico, que culmina com a reforma conciliar da liturgia, a renovação da vida da Igreja aberta pelo Concílio, a filosofia como caminho para a teologia, a importância e os limites da sociologia religiosa. Estas perspetivas exprimem uma progressiva transformação do pensamento teológico, aberto ao confronto com problemáticas coevas. Antes e durante o Concílio Vaticano II, os bispos do Funchal tiveram o cuidado de preparar alguns padres da Diocese em Roma, com especialização em diferentes áreas da Teologia, o que foi certamente importante para a formação teológica do clero madeirense. Entre eles contam-se: D. Teodoro de Faria, D Maurílio de Gouveia, D. Manuel Ferreira Cabral, P.e Abel Augusto da Silva, P.e Agostinho Faria, P.e Sidónio Gomes Peixe. Em 1972, o Seminário Maior do Funchal foi encerrado, mas já em 1968 os seminaristas do 1.º ano de Teologia começaram a ir para Lisboa, por iniciativa do bispo diocesano, onde frequentaram a Faculdade de Teologia da Universidade Católica, aberta nesse ano. Entretanto, o curso teológico continuou no Funchal até 1972 para os restantes seminaristas. Deste modo, o clero da Diocese que se formou nestes anos é, na sua quase totalidade licenciado em Teologia. D. Teodoro de Faria teve também o cuidado de preparar alguns padres através duma especialização em Teologia, em Roma e em Paris.   Vítor Reis Gomes (atualizado a 31.12.2016)

Religiões

vicentinos (padres da congregação da missão ou lazaristas, e filhas da caridade)

A presença dos filhos de S. Vicente de Paulo na Ilha da Madeira a partir da segunda metade do séc. XIX está intrinsecamente associada à fundação do Hospício da Princesa D. Maria Amélia, por iniciativa de sua mãe, a Imperatriz do Brasil, D. Amélia de Leuchtenberg, viúva de D. Pedro I, Imperador do Brasil, que foi também D. Pedro IV, Rei de Portugal. À procura de clima e ambiente propícios para cura dos males de que sofria, a jovem princesa D. Maria Amélia chegou ao Funchal a 30 de agosto de 1852, na companhia da mãe. Menos de meio ano depois, aí veio a falecer, no dia 4 de fevereiro de 1853. Em memória da filha, a Imperatriz tomou a decisão de fundar o Hospício da Princesa D. Maria Amélia. Para esse fim, foi arrendada uma casa onde o mesmo ficou instalado provisoriamente, a partir de 10 de julho desse ano de 1853, sob a direção clínica do Dr. António da Luz Pita. Para lhe assegurar condições de continuidade, foi aprovada em 19 de julho de 1853 e publicada no Diário do Governo de 5 de agosto desse ano uma lei que estabelecia as garantias necessárias. Adquirido o terreno para a construção do edifício definitivo, os trabalhos foram iniciados em 1856, sendo concluídos em 1859. Ao edifício material, juntou a Imperatriz D. Amélia as diligências necessárias para entregar o serviço dos doentes e dos pobres às Filhas da Caridade. A fundadora do Hospício determinou também que a assistência religiosa aos doentes e ao pessoal do estabelecimento fosse confiado aos sacerdotes da Congregação da Missão, fundada por S. Vicente de Paulo. Os superiores maiores acederam ao convite, que correspondia plenamente ao carisma vicentino, e, no dia 4 de fevereiro de 1862, o Hospício D. Maria Amélia recebia os primeiros doentes, conforme se lia na lápide de mármore preto que foi colocada a meio da escadaria de entrada. As Filhas da Caridade tinham entretanto chegado ao Funchal para se dedicarem ao tratamento dos doentes. Começava assim, na Madeira, a presença estável do serviço corporal e espiritual prestado a pobres e doentes por parte dos filhos e das filhas de S. Vicente de Paulo. Padres da Congregação da Missão A primeira presença de padres da Congregação da Missão no arquipélago da Madeira ocorrera em meados do séc. XVIII. Após as reiteradas solicitações de D. Gaspar Afonso Brandão (1703-1784), Bispo do Funchal, foram enviados, em agosto de 1757, dois padres da Congregação da Missão, destinados à direção do seminário diocesano. Uma vez chegados à Madeira, percebeu-se que não havia condições para instalar e pôr em marcha o estabelecimento de ensino eclesiástico e os dois missionários, João Alasia, piemontês de nascimento, e José Reis, tiveram de ficar hospedados no paço episcopal. Logo iniciaram trabalhos pastorais diversos, tais como pregação de exercícios espirituais aos ordinandos e ao clero, pregação de retiros a religiosos e religiosas de vários conventos, e missões populares nas paróquias da Madeira e Porto Santo. Ao longo de 10 anos, entregaram-se os missionários, muitas vezes na companhia do próprio bispo, a estas tarefas apostólicas próprias do carisma vicentino. Em virtude de persistir a falta de condições para se ocuparem da formação seminarística, finalidade que os levara à Madeira, regressam ao continente em dezembro de 1767, e só um século depois voltam à Ilha. No Hospício, começaram a assegurar o serviço religioso como capelães aquando da chegada das irmãs, em 1862, e depois ininterruptamente, a partir de 1871. Outras missões, além da capelania, lhes foram sendo atribuídas no contexto pastoral da Diocese do Funchal, nomeadamente funções de ensino e de direção no seminário, de pregação e de assistência espiritual, bem como a promoção e o acompanhamento de obras de natureza social e cultural. As tarefas de formação do clero madeirense por parte dos filhos de S. Vicente de Paulo começaram com a entrada de D. Manuel Agostinho Barreto na Diocese do Funchal, em 1877, e acompanharam praticamente os 34 anos do seu governo episcopal. Em 1878, partiu de Lisboa o P.e José Joaquim de Sena Freitas, incumbido da tarefa de pregar o retiro espiritual aos ordinandos e aos seminaristas. Nesse mesmo ano, foi colocado como capelão do Hospício o P.e Ernesto Schmitz que, pouco depois, começaria a colaborar no seminário como professor, embora a direção do estabelecimento só em 1881 tenha sido confiada aos Lazaristas. Aí se mantiveram até à implantação da República, como obreiros da “mais completa e radical transformação que nele [seminário] se operou em toda a sua já longa existência de quase quatro séculos” (SILVA, 1946, 117-118). Entre as duas dezenas de formadores lazaristas que trabalharam no seminário, merecem que aqui recordemos de modo muito particular os P.es Ernesto Schmitz e Léon Xavier Prévot. O primeiro distinguiu-se como prestigiado diretor, conselheiro e modelador de personalidades, a que juntava o apostolado como pregador de missões populares no período de férias escolares; notabilizou-se ainda enquanto reputado botânico e ornitólogo, a quem se ficou a dever, em 1882, a fundação do museu do seminário, onde reuniu importantes coleções no domínio da história natural. O P.e Prévot impôs-se como competente professor de filosofia tomista e, ao mesmo tempo, esteve profundamente empenhado em contribuir para a alfabetização das crianças, mobilizando vontades para abrir escolas nos meios mais pobres da cidade e noutros lugares da Ilha. Com esse objetivo fundou, em 1893, a Obra das Escolas de S. Francisco de Sales e, para torná-la mais conhecida e apoiada, criou o Boletim Mensal Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales, em 1894. Outro padre vicentino que, em condições muito difíceis, foi encarregado da formação do clero madeirense na direção do seminário foi o P.e Bráulio de Sousa Guimarães; jovem sacerdote de 26 anos, desempenhou, desde 1916 até 1919, o cargo de vice-reitor e professor, com reconhecida competência e grande apreço pelos bons serviços prestados à Diocese do Funchal. A dedicação dos Lazaristas à obra do seminário não se confinou aos seus muros. A formação contínua do clero nas componentes espiritual, moral e pastoral, assumiu, no decorrer dos tempos, diferentes formas, de que se regista a União Sacerdotal madeirense que teve como seu diretor espiritual, nomeado a 14 de janeiro de 1914, o P.e José Maria Luís Garcia, capelão do Hospício e antigo professor do seminário, que dinamizou a União Sacerdotal até 1919, ano em que faleceu. Sucedeu-lhe nessa função o P.e Henrique Janssen, que pertencia à comunidade dos padres do Hospício desde 1909. A república decretou a expulsão das ordens e congregações. O efeito dessa decisão anticongreganista foi a saída dos padres vicentinos que pertenciam à comunidade do Seminário diocesano; os capelães do Hospício puderam continuar e manter as atividades costumadas em virtude de o Hospício se encontrar sob tutela da Coroa da Suécia. Foram tempos cheios de dificuldades, mas também de novas oportunidades para desenvolver e alargar os trabalhos de assistência caritativa e de evangelização. O P.e Luís Garcia dedicou-se ao acompanhamento religioso das irmãs, dos doentes, das escolas e das obras que giravam em torno do Hospício; era o caso das Damas da Caridade e da Associação das Filhas de Maria. Mas estendeu o seu zelo muito para além dos muros da capelania, como grande pregador na Sé e em toda a Ilha, e como diretor de consciências. O P.e Manuel da Silveira, outro vicentino, também antigo professor do seminário, a quem foi confiada a capelania da Penha, tornou-a um bem organizado centro de catequese, que serviu de modelo às catequeses paroquiais. Uma das suas particularidades foi a criação de uma Biblioteca da Infância destinada a prolongar o ensino do catecismo, promovendo, através do livro e da leitura, a formação geral de crianças e jovens. Outra iniciativa do P.e Manuel da Silveira consistiu na criação, no Funchal e em meados da déc. de 1920, do Patronato de S. Pedro, um centro constituído por escola elementar para crianças, aulas diurnas e noturnas para adultos, sede de organismos para a juventude, sala de cinema e grupo de teatro. Os padres vicentinos estão igualmente ligados a duas obras de promoção da cultura católica na Madeira, pioneiras no seu tempo: a publicação da revista A Esperança e a criação da Biblioteca Utile Dulci. A Esperança começou a ser publicada a partir de março de 1919. Era uma revista que se propunha contribuir para a formação católica dos leitores. Sucedia ao Boletim Eclesiástico da Madeira, que se publicou desde 1911 até fevereiro de 1919. Embora o leigo António Alves Torres figurasse como diretor nominal da publicação, o diretor efetivo era o P.e José Maria Luís Garcia que, tendo falecido pouco depois, teve no P.e Henrique Janssen um dedicado e persistente animador da revista durante os 20 anos que durou a publicação. A redação e administração tinham a sede na residência dos capelães do Hospício. Entre os vários colaboradores que deram corpo doutrinal à revista contam-se as muitas dezenas de artigos sobre os mais diversos assuntos assinados por “Miles Christi”, isto é, o P.e Henrique Janssen. A orientação de fundo identificava-se com a conceção da democracia cristã baseada no magistério doutrinal do Papa Leão XIII. Dentro da imprensa católica da época, A Esperança chegou a ser considerada uma das melhores publicações periódicas que se publicavam em língua portuguesa. O compromisso com a promoção da cultura católica e da cultura geral no meio madeirense levou os padres do Hospício a fundar uma biblioteca a que foi dado o nome de Biblioteca Utile Dulci. Os primeiros passos são descritos nos termos seguintes por quem a viu nascer: “Aproveitando para a sua instalação, primitivamente, uma sala da escola paroquial da Sé, à rua Dr. Vieira, a biblioteca Utile Dulci foi muito modestamente iniciada a 26 de novembro de 1916 com 15 livros, aos quais não tardaram a juntar-se uns 300 volumes dos quais muitos haviam pertencido aos padres lazaristas, então ausentes no estrangeiro, P.es Pereira da Silva e Sebastião Mendes” (GUIMARÃES, 1962, V, 130). Em 1920, já a biblioteca contava 3000 volumes e o número foi sempre aumentando, bem como o número de empréstimos e o de leitores que frequentavam a sala de leitura. Em nota inserta no Diário da Madeira de 31 de janeiro de 1937, pode ler-se que a Biblioteca Municipal e a Utile Dulci são as duas únicas bibliotecas públicas do Funchal. A este contributo cultural, proporcionado através do livro que a biblioteca tornava acessível, outras iniciativas se juntaram, como o círculo de estudos e as quintas-feiras literárias que, no Instituto de Ensino Secundário e Comercial do Funchal, reuniam pessoas interessadas em enriquecer o âmbito dos seus conhecimentos. Pode dizer-se que, através dos Lazaristas que foram passando pela capelania do Hospício, a Madeira foi berço do movimento ecuménico. Foi no Funchal, no outono de 1889, que se deram os primeiros contactos entre o P.e Fernand Portal (1855-1926) e o anglicano lord Charles Wood Halifax que conduziriam mais tarde às promissoras Conferências de Malines, iniciadas a 6 de dezembro de 1921 e presididas pelo Cardeal Mercier. O P.e Portal, que durante muitos anos sofreu de doença pulmonar, chegou ao Funchal no dia 8 de outubro de 1889 e lá permaneceu até ao dia 4 de maio de 1890. Lord Halifax tinha, pela mesma altura, aportado à Madeira com a família, à procura de um clima suave e saudável. Como já tinha perdido um filho, levado pela tuberculose, e ele mesmo sofria desse mal, quis visitar o Hospício. Ao P.e Portal, um estudioso das instituições eclesiásticas para quem a teologia era apenas uma história do que Deus revelou aos homens, coube a tarefa de o receber. Começou assim uma relação de profunda estima pessoal e de infatigável colaboração na procura de caminhos para o diálogo e a unidade das igrejas. As conversações então iniciadas na Madeira tiveram o consentimento e estímulo do bispo do Funchal, D. Manuel Agostinho Barreto – que em maio de 1890 partiria para Roma, levando o P.e  Portal como seu secretário.  Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo A Companhia das Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo foi autorizada a estabelecer-se em Portugal por alvará de D. João VI, de 14 de abril de 1819. Dois anos depois, começava a organizar-se em Lisboa o primeiro núcleo de irmãs. As obras de assistência aos doentes, aos pobres e às crianças abandonadas foram-se multiplicando até que, no ano de 1834, chegou a legislação de Joaquim António de Aguiar que, extinguindo as ordens religiosas, inviabilizou a continuidade da instituição. Foi preciso esperar até ao outono de 1857 para as Filhas da Caridade, de nacionalidade francesa, voltarem a estabelecer-se em Portugal. À medida que a dedicação aos doentes, pobres e órfãos lhes iam granjeando o respeito e a gratidão das camadas populares mais humildes, nos jornais manipulados por políticos e mentores de orientação maçónica recrudesciam as campanhas contra as Filhas da Caridade. Depois de agitados debates nas mais altas instâncias políticas, esta Companhia recebeu nova ordem de expulsão do território nacional em maio de 1862, sem exceção da Madeira, onde as Filhas da Caridade tinham começado a trabalhar no Hospício D. Maria Amélia cerca de três meses antes. A opinião pública local e poderosas influências apoiaram sempre a presença das irmãs e as suas obras de bem fazer, mas elas acabaram mesmo por deixar o Funchal, em julho do mesmo ano em que tinham iniciado a obra do Hospício. Voltariam em 1871. Em agosto de 1900, as Filhas da Caridade foram convidadas a tomar conta de um pequeno Asilo de Mendicidade, onde eram acolhidos idosos e crianças abandonadas; mas tiveram de o abandonar em julho de 1902, devido a mudanças verificadas na administração. O anticongreganismo dominante deu origem a um decreto de Hintze Ribeiro, datado de 18 de abril de 1901, que obrigava a aprovação governamental as associações religiosas que se dedicassem a obras de beneficência e os respetivos estatutos. Os Estatutos da Associação Religiosa das Irmãs de S. Vicente de Paulo foram aprovados; deles faziam parte o hospital para tuberculosos no Funchal, escolas externas, asilo, ensino doméstico e, na mesma cidade, o já mencionado asilo de mendicidade. Em 1910, foi instaurada a república e com ela ganhou novo fôlego o anticongreganismo. Como todas as ordens e congregações, também as Filhas da Caridade foram intimadas a deixar o país. Acabaram, no entanto, por ficar, em virtude de, estatutariamente, o Hospício se encontrar, como já foi referido, sob a tutela da coroa sueca. Ao lado do Hospício, havia uma escola dirigida pelas irmãs e frequentada por mais de 700 crianças. As Filhas da Caridade que dela se ocupavam foram obrigadas a partir, e forçadas a abandonar a formação das crianças e as obras de assistência aos pobres. O poder republicano mais radical e hostil às congregações religiosas não deu tréguas às Filhas da Caridade nem aos capelães do Hospício. O ardil persecutório recorreu, em 1913, a um indivíduo alto, robusto e de cabelo loiro que, a falar inglês, se apresentou no Hospício como enviado do Rei da Suécia e com o intuito de verificar as contas a fim de as transmitir a Sua Majestade que, segundo dizia, estava descontente com o serviço das irmãs e se dispunha a entregar o estabelecimento a diaconisas protestantes inglesas. A pronta reação das irmãs e dos padres do Hospício consistiu em demonstrar que, segundo os estatutos da instituição, o estabelecimento podia ser fechado, mas nunca entregue a outra congregação ou associação. Tentativa semelhante, a pretexto de pagamento de impostos, seria repetida mais tarde, mas, uma vez mais, sem consequências. O Hospício sentiu os efeitos da guerra de 1914-1918, quando, a 3 de Dezembro de 1916, um submarino alemão atacou barcos ancorados na baía da cidade. Uma canhoneira francesa carregada de munições de guerra foi afundada e as respetivas munições explodiram. Dois obuses caíram no Hospício: um rebentou ao pé do jardim e o outro, sem explodir, alojou-se num edifício da escola, causando apenas danos materiais e um enorme susto. A comunidade do Hospício, ajudada por alguns colaboradores, dedicou-se, ao longo do seu primeiro século e meio de existência, a obras diversas, tais como jardim de infância, creche, escola, lar de idosos, lar para crianças carenciadas, além de obras de formação espiritual, como a Associação das Filhas de Maria Imaculada da Medalha Milagrosa, ereta no Hospício em 1880, as Damas da Caridade, e colaborações na catequese, na pastoral juvenil e no apoio às famílias. Ao findar o século XX, foram fundadas mais duas comunidades de Filhas da Caridade, as comunidades de Gaula e do Monte. Por iniciativa particular e a pedido do bispo do Funchal, as Filhas da Caridade fundaram em Gaula, para serviço dos pobres e de idosos, a Casa da Sagrada Família e Refúgio de S. Vicente de Paulo, que começou a funcionar no dia 1 de maio de 1988, dando apoio a muitas dezenas de pessoas. Em 1956, a Comunidade das Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo adquiriu no Monte, concelho do Funchal, um terreno amplo com moradia destinado a casa de formação e lugar de repouso para as irmãs. A agitação social que acompanhou a Revolução de 25 de abril de 1974 saldou-se pela ocupação do terreno e das instalações, que só foram recuperados pelas Filhas da Caridade depois de moroso processo. Em 1995, o conselho provincial criou aí a Fundação de Santa Luísa de Marillac, uma instituição particular de solidariedade social. A Comunidade do Monte-Quinta Betânia instalou um infantário e uma creche, colaborando com a paróquia na catequese e em serviços religiosos e conferências vicentinas.   Luís Machado de Abreu (atualizado a 30.12.2016)

Religiões

budismo

O Buda histórico, Siddhartha Gautama, era conhecido como Shakyamuni (de “Sakya”, país dos sakyas, e “muni”, sábio) e terá nascido no séc. VI a.C., num reino situado entre a Índia e o Nepal. A palavra “buda” deriva dos termos sânscritos “boud”, que significa totalmente desperto do sono da ignorância, e “dha”, eclosão perfeita da potencialidade fundamental, ou “bodhisattva”, ser iluminado (de “bodhi”, iluminado, e “sattva”, ser); refere-se a um estado de consciência plena ou presença amorosa para com toda a existência, beneficiando todos os seres sencientes. Este estado, que nos começos do séc. XXI recebeu a denominação de estado de mindfullness ou atenção plena, foi neste período muito preconizado como técnica de meditação com efeitos terapêuticos. No entanto, no budismo, não se trata de um estado momentâneo, mas sim de um estado permanente do ser com um objetivo espiritual. O budismo surgiu dentro do hinduísmo ou bramanismo (religião em que o conhecimento sagrado dos sacerdotes brâmanes passava de pai para filho) e tornou-se uma religião que, desde então, é um caminho para a superação do sofrimento e a autorrealização ou desenvolvimento da perfeita potencialidade humana. Não contempla a existência de um deus criador como as outras religiões, mas de um grande mestre, Buda; por isso, não é teísta. Trata-se do caminho da libertação, através do conhecimento do dharma (princípio de respeito pelas leis sagradas da natureza, ação correta no mundo, sabedoria) ou autorrealização. É aqui que encontramos o principal ponto de contacto com o Yoga e o Hinduísmo. Os ensinamentos de Buda são chamados Dhammapada, o caminho da retidão. Por isso, a essência do conhecimento alcançado e transmitido por Buda resume-se nas seguintes palavras: "Vós sois o vosso próprio mestre, tudo assenta sobre os vossos ombros, tudo depende de vós”. Deste modo, o nobre caminho da verdade, para a superação do sofrimento humano, é composto por oito preceitos: visão correta, intenção correta, fala correta, ação correta, viver corretamente, esforço correto, atenção correta e concentração correta ou plena atenção. A expansão dos ensinamentos de Buda na Ásia ocorreu a partir da Índia para o Nepal, Tibete (donde provém o Dalai Lama reinante em 2016: “Dalai”, oceano, e “Lama”, mestre – Oceano de Sabedoria), e outros países asiáticos, adquirindo métodos e estilos diferentes em cada cultura, o que originou diferentes tradições religiosas, sem comprometer, todavia, os seus valores essenciais. Assim, da história do budismo no Ocidente do séc. XX fazem parte várias tradições budistas, como o budismo zen, mas sobretudo o budismo tibetano, cujos primeiros Rinpoche (palavra do tibetano que significa precioso, título que se junta ao nome de um grande mestre) foram: Kalu Rinpoche (que estabeleceu vários centros do dharma na Europa) e, posteriormente, Dudjom Rinpoche, que foi para França juntamente com a família de Kangyur Rinpoche (entretanto falecido), nomeadamente a viúva, Amalá, que faleceu em Portugal (para onde tinha ido ensinar o budismo), em 1973, e o filho mais velho, Tulku Pema Rinpoche, a quem se deve a grande divulgação do budismo tibetano em Portugal. A União Budista Portuguesa (UBP) foi fundada para reunir todas as tradições budistas autênticas presentes em Portugal, apoiar as suas atividades, bem como exercer e promover a prática dos seus ensinamentos. A fundação da UBP, a 24 de junho de 1997, resultou da união de vários grupos do budismo zen e do budismo tibetano que faziam yoga e meditação em Portugal. A UBP organizou a primeira conferência budista na Madeira a 22 de novembro de 1998, passando a ir com frequência à região oradores e mestres para darem ensinamentos budistas. A delegação da UBP da Madeira foi criada a 27 de abril de 1999, tendo como sede a sala G do n.º 26 da R. das Mercês. No ano seguinte, Tulku Pema Rinpoche, na sua visita a Portugal, visitou pela primeira vez a Madeira, tendo-se deslocado novamente à Ilha em 2009 e em 2012, a convite da Delegação da UBP da Madeira, tal como muitos outros mestres budistas. A 19 de novembro de 2010, chegou à Madeira a Exposição de Relíquias do Buda e de Outros Grandes Mestres Budistas. A delegação da Madeira da UBP tem promovido, entre outras atividades, palestras, ensinamentos e retiros com vários mestres budistas. Na Madeira existe uma delegação do Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA), de inspiração budista, desde outubro de 2007 (um mês depois de esta associação ter começado a sua atividade na cidade de Lisboa, a 22 de setembro de 2007, no último dia de ensinamentos do Dalai Lama em Portugal, em que Tulku Pema Rinopoche distribuiu comida e roupas aos sem-abrigo), como forma de contribuir para atenuar o sofrimento dos mais pobres e para o bem-estar de todos os seres. Na Madeira, em finais de 2015, a associação tinha já 250 voluntários, no Funchal, Calheta, Ponta do Sol e Santa Cruz. Nas diferentes delegações da CASA, a chamada “Casa Amiga” – espalhada por muitos outros países da Europa e do mundo – também ia semanalmente à residência das pessoas desfavorecidas, para levar um cabaz de alimentos. A associação ecologista Mother Earth, outro projeto de Tulku Pema Rinpoche para proteger o planeta ou “mãe” Terra, está na Madeira desde 2014, tendo sido criada em Portugal a organização internacional Protector of Life, a 30 de maio de 2012, com o propósito de libertação de um milhão de vidas de animais por ano. Outra linha de orientação do budismo que existiu na Madeira foi a Nova Tradição Kadampa, do inglês New Kadampa Tradition (NKT), introduzida na Ilha em 2002. Esta linha do budismo surgiu em Inglaterra nos anos 80 do séc. xx e tem o seu principal centro no Noroeste de Inglaterra, onde se encontra o Kadampa World Peace Temple. Foi em maio de 1991 que Geshe Kelsang Gyatso deu o nome de NKT a esta orientação budista que segue a doutrina dos seus livros. Na Madeira, a Nova Tradição Kadampa teve um centro de meditação denominado Centro Avalokiteshvara (Buda da Compaixão), que oferecia aulas de meditação e organizou várias atividades de âmbito espiritual, como retiros espirituais budistas e ensinamentos de mestres budistas do NKT. Terminou as suas atividades no verão de 2008. No começo do séc. XXI, havia 400 milhões de budistas espalhados pelo mundo, nas suas diversas tradições, sendo o budismo a quarta grande religião mundial.     Naidea Nunes (atualizado a 14.12.2016)

Religiões

brasões de armas

A descrição e o estudo dos brasões de armas ou escudos encontra-se a cargo da heráldica, ciência muito complexa e com uma linguagem que escapa à maioria das pessoas não iniciadas nesse tipo de estudos. As origens da heráldica remontam aos tempos da Idade Média, em que era imperativo distinguir os participantes nas batalhas e nos torneios, pelo que havia a necessidade de utilizar bandeiras ou estandartes (Bandeiras) reconhecíveis a uma certa distância e, depois, de recorrer a outros elementos facilmente reconhecíveis a menor distância. A diferenciação era definida pelo soberano através da atribuição de determinadas cores e de outros elementos identificativos a serem pintados nos escudos dos seus principais servidores. A complexidade progressiva da corte portuguesa, entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, levou à nomeação de um rei de armas, que tinha por função organizar o arquivo dos brasões atribuídos e equacionar os novos, a atribuir, propondo quem os deveria possuir, juntamente com as cores e as peças que deveriam figurar nos respetivos escudos. Os primeiros brasões consistiam essencialmente numa cor, depois definida como sendo um esmalte ou um metal, este último quando se tratava de ouro ou de prata. Quase ao mesmo tempo, foi colocado sobre esse fundo, que em heráldica se designa campo, um animal ou uma parte do mesmo ou até outra figuração, nomeada peça e identificativa da personalidade em questão ou da família. Este elemento, ou um outro, era ainda geralmente colocado sobre o elmo, constituindo o chamado timbre. Acresce que, para os torneios medievais e outros exercícios militares, as cores utilizadas nos esmaltes e nos metais eram ainda aplicadas nas vestes, definindo-se também assim, heraldicamente, o paquife, herdeiro dos antigos mantos vestidos pelos cavaleiros, e o virol, formado por um entrelaçado, em princípio, feito com os mesmos tecidos, com uma das cores do esmalte do escudo e com uma outra de um dos metais, e colocado sobre o elmo, lembrando o torçal que defendia o cavaleiro dos golpes de espada. Portanto, os elementos definidores dos brasões de armas iniciais foram: o escudo, o paquife e o virol, e o timbre. Progressivamente, anexaram-se inúmeros outros, como os tenentes ou suportes do escudo, os coronéis de nobreza, por vezes, impropriamente designados por coroas (só se devem assim nomear quando reais), os listéis com motes, divisas, lemas e gritos de guerra, terrados, etc. A passagem de toda esta linguagem e figuração para a Madeira não foi direta. Com efeito, o aparente isolamento da sociedade insular propiciou, senão algumas inovações, pelo menos alguns abusos. Num contexto geral, o primeiro degrau de nobreza era constituído pelos escudeiros, como o nome indica, aqueles que levavam os escudos dos cavaleiros, sendo recrutados entre os pajens e tendo, na Idade Média, entre 7 a 14 anos. Conforme o seu desempenho e, inclusivamente, a sua posterior prestação em combate, ao atingir a idade adulta, entre os 18 e os 20 anos, podiam ser armados cavaleiros, ascendendo assim ao degrau de nobilitação seguinte. Sendo alguns escudeiros de origem fidalga, porventura, teriam já direito a possuir um brasão de armas próprias. Aqueles que eram armados cavaleiros, em princípio e num futuro mais ou menos próximo, seriam dotados com brasão de armas. Caso o cavaleiro tivesse o pai ainda vivo, e porque o brasão de armas era pessoal, este seria acrescido de uma brica ou diferença, geralmente colocada no cantão direito do chefe, ou seja, no canto superior direito do portador, dado a leitura de um brasão ser feita na perspetiva do utilizar e não do observador. A organização do povoamento da Madeira, até aos meados do séc. XV, inviabilizou um pouco esta organização, que era a que vigorava no continente do reino. João Gonçalves Zarco (c. 1395-c. 1471), p. ex., embora tenha sido armado cavaleiro, em princípio em Ceuta, antes de ser enviado na missão de que resultou o descobrimento da Madeira, só veio a ser agraciado com brasão de armas a 4 de julho de 1460. Tanto quanto se sabe, nem ele nem o filho João Gonçalves da Câmara (1414-1501) parecem ter utilizado o respetivo brasão de armas, pois estes não constam nas lápides sepulcrais de ambos, na capela-mor da igreja de S.ta Clara do Funchal. Em 1452, o primeiro capitão do Funchal terá solicitado, a D. Afonso V, quatro pequenos fidalgos para casarem com as suas filhas, uma vez que a Madeira era “terra nova”, não havendo “com quem pudessem casar, segundo o merecimento de suas pessoas”; segundo escreveu Gaspar Frutuoso, repetindo quase literalmente o que o cónego Jerónimo Dias Leite lhe mandara da Madeira, resultou destes casamentos “a mais ilustre e nobre geração da Ilha” (FRUTUOSO, 1968, 217). Túmulo de Martim Mendes de Vasconcelos. 1493. Ao que sabemos, nenhum dos genros de Zarco possuía brasão de armas e, embora fossem fidalgos, não eram primogénitos. Mas, num curto espaço de tempo, os mesmos ou os seus descendentes assumiram escudos com as armas plenas dos seus antepassados. Assim aconteceu com Martim Mendes de Vasconcelos (c. 1432-c. 1493), que casou com Helena Gonçalves da Câmara, “matrona de tanta virtude que se justifica falar-lhe muitas vezes o crucifixo milagroso de S. Francisco do Funchal”, como escreveu Henriques de Noronha (NORONHA, 1948, 518), numa alusão ao milagre ocorrido a 26 de dezembro de 1482, que depois foi mandado certificar e publicar pelo bispo D. frei Lourenço de Távora (1566-1618), por alvará episcopal de 24 de outubro de 1615 (Convento de São Francisco e Sé do Funchal). Com efeito, Martim Mendes de Vasconcelos era um terceiro filho e o seu pai e homónimo não era, quase certamente, o representante dos “Vasconcelos de Portugal”, como veio a referir depois, de modo abusivo, o mesmo Henriques de Noronha (Id., Ibid.). Porém, as armas que mandou lavrar no seu túmulo, ainda hoje existente na igreja de S.ta Clara do Funchal (Convento de Santa Clara), são as da principal linha dessa família. O mesmo terá acontecido com os restantes genros de Zarco, embora não tenha chegado até nós nenhum exemplar dos seus brasões de armas iniciais: Diogo Afonso de Aguiar, que casou com Isabel Gonçalves da Câmara e que se terá fixado em São Martinho do Funchal, sendo sepultado no convento de S. Francisco; Diogo Cabral (c. 1432-1496), que desposou Beatriz Gonçalves da Câmara e era o irmão mais novo do senhor de Belmonte e, em princípio, tio do futuro almirante Pedro Álvares Cabral, fixando-se o casal em Vale de Amores, na Calheta, e sendo aí sepultado; Garcia Homem de Sousa, que seria filho de João Homem de Sousa e que “se entendia ser” neto de Pedro Homem, um dos “doze de Inglaterra” (Id., Ibid., 329), que contraiu matrimónio com Catarina Gonçalves da Câmara e veio a levantar a chamada torre do capitão, a Santo Amaro do Funchal (Arquitetura senhorial). Não consta qualquer carta de brasão de armas destes parentes de Zarco. Também não possuímos informações concretas sobre as armas dos capitães de Machico, sendo o primeiro capitão, inicialmente, quase apenas designado por Tristão ou Tristão da Ilha e tendo o seu filho e segundo capitão usado o apelido da mãe, sendo assim Tristão Vaz Teixeira. O capitão do Porto Santo, Bartolomeu Perestrelo, possuiria já brasão, pois existiam armas de família, mas não temos muitas referências da sua utilização nessa época, muito menos naquela ilha, onde só se deslocava pontualmente. Bartolomeu Perestrelo foi o primeiro a ter carta de doação da sua capitania, passada a 1 de novembro de 1446, o que parece indiciar uma condição social mais elevada, tal como indicam os dois casamentos que contraiu no continente, sempre com famílias de elevada qualidade social. A sua descendência veio a entroncar-se na dos capitães de Machico e, depois, também na dos capitães do Funchal. Dentro dos arranjos matrimoniais da emergente nobreza madeirense, o segundo capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara, começou por casar com uma cunhada, Isabel Homem, filha de João Homem de Sousa e irmã de Garcia Homem de Sousa. Não houve geração desta união e, falecida D. Isabel, o segundo capitão voltou a casar, então em Ceuta, com D. Maria de Noronha, filha de D. João Henriques e D. Beatriz de Mirabel; D. Beatriz foi depois dada como fidalga aragonesa e o seu marido como filho segundo de D. Diogo Henriques, bastardo do infante D. Afonso de Noronha, conde de Gijón e filho de D. Henrique II de Castela. Os descendentes daquele casamento vieram a optar quase todos pelo apelido Noronha, salvo o primogénito, que, por determinação real e para poder aceder à capitania do Funchal, teve de voltar a usar o apelido anterior, Câmara de Lobos, ficando assim Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530). A partir dos meados do séc. XV, os principais filhos-família da Madeira passaram a combater no Norte de África, no quadro do serviço régio, recompondo-se assim, de certa forma, o quadro medieval de nobilitação. Ao mesmo tempo, estabeleceu-se uma rede de casamentos de primos cruzados entre as principais famílias terratenentes da Ilha, até para a manutenção do património fundiário. E muitas dessas famílias passaram a enviar os seus filhos para serem educados na corte de Lisboa, primeiro como pajens, em seguida como escudeiros; estes indivíduos, geralmente, viriam a ser referidos como tendo sido educados no paço. Nos finais de Quatrocentos, no entanto, emergiu também na Madeira uma nova sociedade de escudeiros, mas agora nobilitados pelo serviço régio da Fazenda e da Justiça, e que, logicamente, não tinham acesso a brasão de armas. As dificuldades iniciais do registo dos brasões de armas ficaram logo patentes nas insígnias dos Câmara de Lobos atribuídas a João Gonçalves Zarco e seus descendentes. Nelas deveriam figurar dois lobos-marinhos afrontando uma torre, porém, ao serem executadas, na corte de Lisboa, por alguém que nunca terá visto tal animal, no lugar dele foram representados dois lobos continentais, espécie que nunca existiu na Madeira, mas que passou a ser a utilizada por todos os descendentes de Zarco, nomeadamente o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (c. 1491-1569) e depois, e de forma plena, os vários ramos da família, especialmente o açoriano, dos condes da Ribeira Grande (embora, neste caso, com o campo do escudo de negro). As armas que parecem ter sido seguidamente atribuídas a um residente da Madeira foram as de António Leme; desta feita, por D. Afonso V, a 2 de novembro de 1475 e por intercedência do príncipe D. João, devido à sua participação na tomada de Arzila e de Tânger, para onde foi enviado pelo pai, Martim Leme de Bruges, da Flandres. A carta de armas refere, inclusivamente, que, embora “da parte de seu pai pudesse trazer armas com diferença”, D. Afonso V lhe atribuía armas “sem diferença alguma” e como “chefe delas” (ANTT, Leitura Nova, Místicos, liv. 3, fl. 15). Trata-se de uma distinção excecional, somente compreensível à luz de um conjunto de serviços muito importantes prestados à coroa pelo seu destinatário, incluindo, certamente, os das navegações executadas a cargo do futuro D. João II. António Leme, nos finais da déc. de 70, encontrava-se radicado na vila do Funchal, fornecendo informações a Cristóvão Colombo sobre a existência de terras para ocidente. Em março de 1485, apareceu na Câmara como um dos homens-bons do concelho e, em agosto, foi citado como cavaleiro e morador na mesma vila, passando a assumir os negócios da família, dado o falecimento do irmão, Martim Leme, que tinha negócios na Madeira, pelo menos, desde agosto de 1481 e usava também armas plenas em Portugal. A partir de outubro, passou a surgir como vereador ao lado do também navegador Álvaro de Ornelas, sendo de abril de 1489 a última referência que temos da sua atividade nesse cargo e da sua presença no Funchal. De 20 de fevereiro de 1485 são as armas de João Fernandes do Arco, filho do segundo casamento de Fernão Dias de Andrada e que adquirira as propriedades de seu irmão, Diogo Fernandes de Andrada, que regressara a Castela, no Arco da Calheta. As armas em questão, com um sagitário em campo de ouro, encontram-se registadas tanto no Livro do Armeiro-Mor de João de Cró, de 1509, como no Livro da Nobreza e da Perfeição das Armas de António Godinho, elaborado depois, entre 1521 e 1541, com o pormenor de estar o sagitário virado para a direita neste e para a esquerda no outro. Parece que nenhum ramo dos seus descendentes voltou a utilizar estas armas, não as reivindicando, até porque passaram a usar o apelido Abreu. Com efeito, João Fernandes do Arco (c. 1450-1527) casou com Beatriz de Abreu e deste matrimónio houve 13 descendentes, todos conhecidos pelo apelido Abreu. Os filhos distinguiram-se no Norte de África, inclusivamente acompanhando o pai, passando depois à Índia, onde António de Abreu ganhou uma notável reputação. A maioria da descendência masculina passou assim à Índia e, depois, ao Brasil, tendo poucos fixado residência na Madeira. As filhas entraram para as principais famílias madeirenses, mas não só, pois Beatriz de Abreu, homónima de sua mãe, casou com Bartolomeu de Paiva, vindo a ser ama-de-leite do futuro D. João III e uma das principais figuras da corte de D. Manuel I, pelo que o marido passou a ser conhecido como o Amo. Uma outra filha de João Fernandes do Arco, D. Joana de Abreu, p. ex., veio a casar, por volta de 1510, com D. João Henriques, segundo filho de D. Fernando Henriques, senhor das Alcáçovas, e de D. Filipa de Noronha, filha do terceiro capitão do Funchal, tomando assento na Ponta do Sol. Desta família notabilizou-se o padre jesuíta D. Leão Henriques (c. 1515-1589), que fora criado em Lisboa, em casa de seu tio D. Fernando Henriques, e veio a ser o primeiro reitor do colégio do Espírito Santo, universidade de Évora, confessor do cardeal D. Henrique, ao longo de 24 anos e, depois, seu testamenteiro (Henriques, Leão). Uma pedra de armas desta família, dos meados do séc. XVII, encontra-se hoje na casa do Pé do Pico, em Câmara de Lobos, propriedade da família Henriques de Gouveia. Entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, devem ter sido atribuídas, ou pelo menos confirmadas, várias cartas de armas, mas cuja documentação não perdurou. Tiveram carta de brasão, muito provavelmente, Álvaro de Ornelas, o Velho, pois o filho, Álvaro de Ornelas Saavedra, requereu e recebeu nova carta de armas, como as que usavam seu pai e avô, em 1513; ainda consultámos o documento original na Quinta das Almas, encontrando-se atualmente com os descentes, em Paris. O referido Livro do Armeiro-Mor de João de Cró já regista este brasão; e a magnífica laje sepulcral de Álvaro de Ornelas Saavedra, em calcário-brecha da serra da Arrábida, com as suas armas esculpidas em baixo-relevo, já existiria na sé do Funchal, onde ainda hoje se encontra, por volta de 1515 e 1526, como se infere dos codicilos do seu testamento, de mão comum com a sua segunda mulher, D. Branca Fernandes de Abreu (Lápides sepulcrais e Sé do Funchal). Mais tarde, também recebeu carta de armas o flamengo João Esmeraldo, com data de 1520 e depois registada no Livro da Perfeiçam das Armas de António Godinho, elaborado entre 1521 e 1541. Este códice regista uma série de brasões de armas que não vêm no livro de João de Cró, que aliás simplifica a emblemática, não registando os timbres, e apresenta também o dos Câmara de Lobos, na mesma página do de João Esmeraldo, o dos Perestrelo e o de João Fernandes do Arco, entre outros. João Esmeraldo tinha casado com Joana Gonçalves da Câmara, filha de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves da Câmara e, enviuvando, casou com Águeda de Abreu, filha de João Fernandes do Arco, vindo a falecer em 1536. No entanto, a sua laje tumular não tem brasão de armas, mas sim o seu retrato e da sua segunda mulher, que terá mandado fazer a peça na Flandres. Entre as cartas de brasão mais antigas que não chegaram até nós estará a de Gonçalo de Freitas, filho do tesoureiro do infante D. João, mestre da Ordem de Santiago, que se mudou para a Madeira com o filho, João de Freitas, na sequência do assassinato do duque de Viseu, em Setúbal, por D. João II, a 28 de agosto de 1484 e a cuja casa então pertenciam. Fixaram-se na área de Santa Cruz, na capitania de Machico e, muito provavelmente, a eles se deve a determinação da instalação da alfândega ducal naquele local, decidida anteriormente, em 1477, pela infanta D. Beatriz, filha do falecido infante D. João. Em julho de 1486, João de Freitas representou, com mestre Batista, os proprietários de Santa Cruz numa reunião ocorrida no Funchal; a partir de março de 1496, surge na documentação como homem-bom de Machico, em abril, como vereador e, em maio, como juiz. Desconhecemos a sua carta de armas, como afirmámos, mas conhecemos o pedido que fez para ser enterrado com a sua mulher, Guiomar de Lordelo, na capela da matriz do Salvador de Santa Cruz, de cuja construção fora encarregado, em 1500. Esse pedido foi deferido a 19 de setembro de 1533, atendendo ao dinheiro que gastara na igreja “e à qualidade da sua pessoa” (NORONHA, Ibid., 283-284). A laje tumular veio da Flandres e o brasão de armas que exibe deve ser o mais interessante que hoje existe dessa época, caracterizando-o uma grande qualidade formal, com cinco estrelas de seis pontas e utilizando como timbre uma estrela idêntica entre duas asas, marcando a diferença para os Freitas do continente, que utilizavam como timbre duas garras de leão segurando uma flecha. Com a importância económica da cultura açucareira, inúmeros comerciantes italianos, flamengos e de outras origens tiveram igualmente carta de brasão, nos inícios do séc. XVI, embora a maioria das armas atribuídas não figurem nos livros de João de Cró e de António Godinho, dado serem, em princípio, versões de armas que apresentaram como pertencentes às suas famílias de origem. Provavelmente, esse será o caso dos Bettencourt, Berenguer, Catanho, Drumond ou Escórcio, Florença, Lomelino, Salvago, Spínola, Teive, Valdavesso e outros. Existem algumas arcas tumulares destas famílias de origem estrangeira, p. ex., na matriz de Santa Cruz, igreja de S. Salvador, mas, infelizmente, os brasões iniciais foram apagados. O principal panteão insular destas famílias terá sido o convento de S. Francisco do Funchal, mas as constantes obras a que foi sendo sujeito e a sua própria demolição, nos finais do séc. XIX, levaram a que se tivesse perdido quase todo esse património. Ao longo do séc. XVII, as principais famílias madeirenses ganharam um novo ascendente social, principalmente advindo da sua participação na expansão ultramarina ibérica e do seu desempenho na América Latina. Neste quadro, construindo algumas das famílias em causa as suas capelas, assumiram, pura e simplesmente, as armas que entenderam. O exemplo mais evidente será o dos túmulos parietais da igreja do Carmo do Funchal, onde António de Carvalhal Esmeraldo, casado com Maria Brandoa, usou as armas plenas dos Câmara, e os seus cunhados, no túmulo em frente, as dos Brandões do continente, embora a família fosse proveniente de lavradores da Ribeira Brava (Igreja e recolhimento do Carmo). Existe um certo vazio de documentação sobre a atribuição de cartas de armas ao longo desse século e mesmo do XVIII. Mas a atividade conheceu novo incentivo nos finais da última centúria e propagou-se exponencialmente ao longo de Oitocentos, justificando-se, sobretudo, enquanto retribuição de serviços políticos, com a correspondente componente económica, deixando de ser apenas um retrato da antiga fidalguia. Divulgaram-se então armas de costados com as representações das armas dos avós, quando não dos bisavós, trisavós, ou outros, inclusivamente, pelo nome e nem sempre pertencendo a essas linhagens (Genealogias). Em pouco tempo, o cartório de nobreza da corte de Lisboa abandonaria a relação com os anteriores elementos heráldicos de identificação, passando a emitir as chamadas armas novas, quase nada relacionadas com o pensamento subjacente às do passado. De facto, esta nova cultura desenvolveu-se um pouco por toda a Europa, em especial, na Alemanha. A questão das mercês novas foi objeto de vários trabalhos, mostrando, inclusivamente, a incongruência de algumas das soluções apontadas. Se algumas armas novas dificilmente encontrariam enquadramento na heráldica tradicional, outras há em relação às quais não se compreende a opção tomada. Na primeira situação, encontra-se, e.g., o caso de João Rodrigues Leitão (1843-1925) que, tendo tido larga atividade comercial em Cabinda e conseguindo estabelecer muito boas relações na área, foi um dos responsáveis pelo reconhecimento da presença portuguesa naquele território pelos membros da Conferência de Berlim, em 1883. Sendo agraciado com o título de visconde de Cacongo, em 1900 (Visconde de Cacongo), houve que encontrar elementos algo abstratos para as armas que lhe eram atribuídas: campo de prata com três faixas vermelhas carregadas com flores-de-lis, tendo como tenentes ou suportes um leão e um grifo. Por sua vez, uma das soluções pouco felizes, e logo no título escolhido, foi a encontrada para o visconde e depois conde do Canavial (Visconde e conde do Canavial), João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), a quem se atribuiu um escudo partido, tendo, num lado, uma figura de mulher vestida de azul, sentada num rochedo sobre o mar, com um ramo de videira e um pão-de-açúcar em cada mão, em alusão à ilha da Madeira, e no outro, uma mão de prata com uma pena de oiro, numa alegoria às suas imensas publicações, não se tendo optado pelos elementos das inúmeras famílias de que descendia, o que é um paradoxo. A partir dos meados do séc. XVIII e depois no XIX, foram ainda utilizados inúmeros brasões de armas pelos elementos da feitoria britânica radicada no Funchal, especialmente em ex-líbris e em sepulturas do cemitério britânico, mostrando todas uma certa economia de meios e contenção, e que não eram comuns na Europa coeva. O brasão mais antigo será o de James Murdoch (1744-1806), seguindo-se o de Thomas Holloway (1751-1816), o de William Mills (1994-1834) e outros tantos. Entre os abundantes ex-líbris podemos citar os do Robert Page (1775-1829), com as armas circundadas pelas insígnias da Ordem Militar da Torre e Espada, de que era somente titular honorário, por despacho do Rio de Janeiro, de 15 de novembro de 1817, ou referir os de James Charles Duff, de cerca de 1860, cuja família chegou a deter o palacete da R. do Esmeraldo, através da firma Gordon and Duff e em cujo logradouro chegou a funcionar o primeiro cemitério britânico. Relativamente à heráldica eclesiástica, o seu uso não se deve ter estendido de imediato à Madeira. Os Franciscanos, que forneceram os primeiros quadros eclesiásticos durante as décadas iniciais do povoamento, não eram propensos a esse tipo de ostentação e os primeiros vigários paroquiais, nomeados pela Ordem de Cristo e que não provinham especialmente da nobreza senhorial portuguesa, também não. Os primeiros bispos da diocese do Funchal não se deslocaram pessoalmente ao território, pelo que, até aos meados do séc. XVI, não terá havido heráldica eclesiástica na Madeira. O primeiro prelado a viajar até à Ilha, D. João Lobo (?-1542), bispo titular de Tânger e com armas atribuídas por D. Manuel I, não parece ter tido especiais cuidados nesse campo, não tendo ficado qualquer referência sobre o tema na sua passagem pela Madeira, em meados de 1508. A base da heráldica eclesiástica comunga das normas que regem o desenho geral dos brasões, embora nela se use, prioritariamente, a forma oval para o escudo; assim, diferencia-se, em especial, nos ornamentos exteriores, seguindo os cânones e disposições da Igreja. Com efeito, não utiliza o conjunto elmo, paquife e virol, identificativo do exercício da função militar, mas sim o galero, chapéu eclesiástico por excelência, descendente dos chapéus de abas largas dos peregrinos, sendo a hierarquia definida pela ordem de borlas do mesmo. Pontualmente, podem usar coronéis de nobreza, como aconteceu com o 11.º bispo do Funchal, D. frei António Teles da Silva (c. 1610-1682), que se fez sepultar com coronel de conde, título que nunca teve. Mais tarde, sob o galero, apareceu uma cruz episcopal e, por vezes, um báculo; depois, ao longo do séc. XX, surgiu uma mitra a substituir o galero, podendo figurar sob ela uma cruz episcopal e um báculo cruzados. Os elementos do alto clero sempre assumiram armas próprias, em especial, após a divulgação das normas do Concílio de Trento, ganhando elas um sentido quase pessoal e afastando-se das regras específicas da heráldica familiar, nomeadamente, com o uso de brica e de diferenças. Se tal aspecto ainda aparece em 1509, quando João de Cró representa as armas do bispo D. João Lobo, marcando as armas dos Lobo com um castelo de ouro como diferença, por certo em alusão à praça-forte de Tânger, o mesmo não sucede depois na maioria das armas eclesiásticas, que assumem a diferença somente nos ornatos. Assim fez o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (c. 1491-1569), empregando as armas plenas dos Câmara, usadas pelo pai, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530) e pelo irmão mais velho, João Gonçalves da Câmara (III) (1489-1536). O seu isolamento em Lamego e o facto de ter estado em Roma levaram a que se intitulasse camareiro secreto do Papa Leão X (1475-1521), fazendo-se enterrar sob laje sepulcral com quatro ordens de borlas, insígnias de arcebispo que nunca foi. Determinadas liberdades ocorreram, depois, com outros prelados do Funchal. P. ex., D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) assumiu as armas dos apelidos dos quatro avós, da ilha de Santa Maria, Açores: Velho, Figueiredo, Cabral e Lemos. Como pormenor, nas várias representações das suas armas, mandou carregar as dos Figueiredo com uma merleta, que na Madeira era usada pelos Leme, de origem flamenga. Esta diferença, em princípio, identificativa do prelado Leme, manteve-se, no entanto, no quartel dos Figueiredo, quando mandou, num outro quartel, lavrar as armas dos Lemos, como aparecem na sua lápide tumular. Não se encontram levantados os brasões de armas dos bispos do Funchal, salvo a partir dos meados do séc. XIX; os iniciais terão que ser apurados a partir dos selos de armas dos primeiros prelados. Não constam, inclusivamente, da maior parte dos retratos mandados pintar para a sala do cabido da sé do Funchal, a partir de 1790, em princípio. Assim acontece com o de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), que utilizou as armas dos Barreto na impressão das Constituições Synodaes de 1579, mas que não figura com elas no retrato que lhe mandaram pintar, muito depois. No entanto, tal não se verifica no retrato do seu sucessor, D. Luís Figueiredo de Lemos, que, tendo também mandado imprimir as suas insígnias nas Extravagantes, m 1601, surge com elas representado. Os retratos dos bispos do Funchal parecem ter tido inicio com o de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que o terá mandado pintar em Lisboa, por volta de 1757; na sequência deste, e usando-o vagamente como modelo, depois, foram sendo pintados os dos prelados anteriores. Parece que o cabido não era muito sensível aos aspectos heráldicos, embora ele próprio utilizasse selo com armas, pois só um número muito reduzido de retratos apresenta brasão de armas. Nos retratos dos bispos mais antigos, tal só acontece no de D. Luís Figueiredo de Lemos, talvez porque as respetivas armas se encontram na fachada da sua capela de S. Luís, no paço episcopal e na sua lápide sepulcral. No entanto, não figuram armas no retrato de D. frei António Teles da Silva (c. 1620-1682), que as havia mandado gravar na sua lápide tumular, na capela-mor da sé do Funchal, inclusivamente, encimadas por coronel de 11 pérolas, atributo dos condes. Esse espírito algo laico da sociedade madeirense parece ter sido corrente em muita da sociedade madeirense nos finais do séc. XVIII, pois, tendo sido pintados também os retratos de alguns antigos governadores e capitães-generais para o palácio de S. Lourenço, também ali existem poucos brasões de armas, o que é algo surpreendente, quando verificamos que todos os governadores, até ao liberalismo, eram obrigatoriamente oriundos da nobreza de corte, pelo que eram todos portadores de armas pessoais. Com efeito, recorreram a elas para autenticar a correspondência oficial, tendo passado a fazê-lo, depois, para a correspondência governamental da Madeira, com o selo das armas reais. A heráldica estendeu-se também às ordens religiosas, embora os exemplares existentes na Madeira sejam, em princípio, bastantes tardios. Quase todos os edifícios foram da responsabilidade da Fazenda Régia, pelo que, tanto o paço episcopal, datável de 1610 (Paço episcopal), como o colégio dos Jesuítas do Funchal, cujo elemento heráldico mais antigo, a antiga porta da cerca da R. dos Ferreiros, está datado de 1619, ostentam as armas reais. Chegaram até nós algumas armas de fé dos Franciscanos, entre elas, a pedra de armas do antigo convento do Funchal, datável de cerca de 1750 e hoje no jardim municipal, associada às armas reais, indicativo de que a campanha de obras em causa fora paga pela Fazenda Régia; ou, p. ex., as armas existentes no convento de S. Bernardino de Câmara de Lobos, provavelmente da campanha de 1763 (Convento de São Bernardino). A pedra de armas similar que está no portal da entrada do convento de S.ta Clara, datável, talvez, de data próxima a 1770, poder ter vindo do demolido convento masculino do Funchal, pois dali também vieram outros elementos, designadamente, painéis de azulejos. É ainda possível que tenha existido, como é vulgar no continente, loiça conventual decorada com armas religiosas, em S. Francisco do Funchal e em S.ta Clara, mas, até ao momento e nas escavações arqueológicas realizadas nessas áreas, embora haja milhares de fragmentos de faiança exumada, nada parece ter sido detetado. Nas coleções do paço episcopal, no entanto, existe uma bilha ou pote de faiança com as armas de fé dos Franciscanos que a tradição aponta como sendo proveniente do convento do Funchal. Das restantes ordens religiosas somente conhecemos as armas de fé dos Carmelitas, na fachada da igreja do recolhimento do Carmo, que devem ser dos finais do séc. XVIII, período em que toda a fachada da igreja foi remodelada. Os Jesuítas nunca usaram armas de fé, propriamente ditas, somente uma espécie de emblemática, que, aliás, copiaram do franciscano S. Bernardino de Siena: o trigrama cristológico IHS, que significa Jesum Habemus Socium (“temos Jesus como companheiro”), colocado sobre um sol, como aparece na fachada da igreja de S. João Evangelista do Funchal, logo abaixo das armas reais. Este símbolo ou monograma aparece, por vezes, acompanhado da legenda Ad Maiorem Dei Gloriam (“para a maior glória de Deus”), surgindo invertida, no teto da mesma igreja, em princípio, para ser lida do alto pelo Pai e não pelos filhos que demandam o interior do templo. Existem mais duas pedras com este símbolo ou emblema, uma delas encontra-se numa situação muito interessante: na porta do paço episcopal do Funchal, no acesso à antiga cerca, depois Lg. do Município. O facto de este bloco do paço ter sido mandado edificar pelo bispo jacobeu D. João do Nascimento (c. 1690-1753), que professara no convento franciscano de Varatojo e dirigira pessoalmente parte das obras do novo corpo edificado, levanta a hipótese de ter sido o próprio prelado a mandar colocar ali aquele emblema, precisamente quase perante a fachada da igreja dos Jesuítas, recuperando assim, para os Franciscanos, a sua antiga simbologia. A outra pedra hoje existente está no pequeno jardim do pátio da Assembleia Legislativa e foi encontrada na intervenção de reabilitação ali efetuada, em 1990, podendo ter vindo de obras realizadas no edifício do colégio dos Jesuítas pela antiga Fazenda Régia. As ilhas da Madeira e do Porto Santo possuem uma quantidade apreciável de brasões de armas reais portuguesas, uma vez que a grande maioria do património edificado, militar, civil e religioso foi construído sob a responsabilidade da Fazenda Régia. Tal é o caso da sé do Funchal e, depois, do baluarte de S. Lourenço e demais fortificações militares (Arquitetura militar e República). Mas, também, da maior parte das igrejas matrizes, cujos edifícios eram incumbência régia (Arquitetura religiosa), acontecendo o mesmo com o respetivo recheio, encontrando-se brasões de armas reais em grande parte dos retábulos das suas capelas-mores. O mesmo se verifica em outros edifícios: referimos antes o do paço episcopal, mas poderíamos apontar ainda os das misericórdias insulares. Este aspecto transitou, igualmente, para os edifícios das câmaras municipais, parte dos quais levantados também com verbas da Fazenda Régia, levando a que as armas reais rematassem grande número deles, inclusivamente, o da Câmara do Funchal, onde figurariam, juntamente com as armas da cidade, na fachada ou no interior. Do antigo edifício do Lg. da Sé que pertencera à casa comercial de D. Guiomar, onde a Câmara do Funchal se instalou, nos últimos anos do séc. XVIII, subsiste um importante brasão de armas nacional, assente em esfera armilar, datável, assim, de data próxima a 1819 ou 1820, quando se criou o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O imóvel foi demolido em 1916, dentro da reforma programada pelo arquiteto Ventura Terra (Urbanismo) e o brasão recolheu, então, ao palácio de S. Pedro (Palácios), onde se previa organizar um museu regional. O Funchal deve ter tido armas próprias ainda no séc. XV, mas só conhecemos exemplares da centúria seguinte. O mais antigo, em princípio, é o que está gravado na campainha de prata da Câmara, que serviria para chamar um empregado, p. ex., ou para mandar entrar os peticionários, e que se encontra datado de 1584. Apresenta cinco pães de açúcar dispostos em cruz e ladeados por duas canas-de-açúcar. Mais tarde, o poeta e intérprete dos navios estrangeiros Manuel Tomás (1585-1665), na sua Insulana, de 1635, refere cinco formas de açúcar, “cor de fogo”, colocadas num campo de prata e rodeadas por duas canas-de-açúcar (TOMÁS, 1635, 128), o que repete Henrique Henriques de Noronha, em 1722 (NORONHA, 1996, 43). As armas do Funchal voltam a surgir numa salva de prata dos inícios do séc. XVII, neste caso, encimadas por uma cruz de Cristo, e num areeiro de tinteiro do mesmo período. No séc. XVIII, começam a aparecer informações de se usar também um ramo de videira nas armas da cidade do Funchal, existindo uma pedra de armas, hoje no núcleo museológico da Prç. Colombo, com a data de 1758, onde já não figuram as formas de açúcar, mas pães, estando o escudo ladeado por uma cana e um ramo de videira e as armas encimadas por coronel de nobreza. Sendo os pães-de-açúcar representados em prata, não poderiam, heraldicamente, assentar igualmente em prata, devendo datar dessa época a definição do campo do escudo em verde, pelo que, tanto a cana-de-açúcar como o ramo de videira passaram para o enquadramento do escudo. A partir de então, começou a vigorar, assim, campo verde, com cinco pães de açúcar de prata ladeados por uma cana-de-açúcar e um ramo de videira, embora com pequenas variantes, pois podem aparecer duas canas-de-açúcar e as armas podem apresentar-se com coronel de nobreza e com coroa real. Na segunda metade do séc. XIX, entre 1860 e 1862, foi editada, por Inácio de Vilhena Barbosa, a vasta obra As Cidades e Villas da Monarchia Portugueza que teem Brasão d’Armas, onde as armas do Funchal aparecem ladeadas por uma cana-de-açúcar e um ramo de videira. Nesta publicação, figuram, igualmente, as armas da vila do Porto Santo, ostentando um dragoeiro, mas não as das restantes vilas madeirenses. Este conjunto de brasões teve reedição, em 1881, com um outro emolduramento, mas só conhecemos os dos referidos locais do arquipélago. A configuração das armas do Funchal manteve-se até à proposta do heraldista Afonso de Ornelas Cisneiros (1880-1944), que assinava por vezes “Affonso Dornellas”. Nos inícios da déc. de 30 do séc. XX, ele bateu-se pela reforma da heráldica municipal, conseguindo fazer aprovar, em 1935, armas novas para a Câmara Municipal do Funchal, bem ao gosto dito tradicionalista do Estado Novo. As armas mantiveram o campo verde, mas os pães de açúcar passaram a ouro e foram avivados com um espiralado a púrpura, cor do domínio eclesiástico, em memória do protagonismo da Diocese do Funchal nos Descobrimentos; foram ainda acrescentados quatro cachos de uvas de sua cor, carregados com as quinas de Portugal, tornando o conjunto, à primeira vista, perfeitamente irreconhecível. Não possuímos qualquer referência sobre as primeiras armas municipais de Machico, Santa Cruz, Calheta, Ponta do Sol e Porto Santo, sendo certo que todas as tiveram, pelo menos, na época manuelina. Tem havido alguma confusão com as armas de Machico, que são dadas, nos meados do séc. XX, como tendo tido a esfera armilar manuelina, o que seria inviável, na medida em que um brasão de armas é uma forma de identificar uma entidade pessoal ou coletiva e um rei não poderia ter os elementos das suas armas individuais a identificar uma câmara municipal. O mesmo se passa com a Câmara de Santa Cruz, que, por vezes, alega serem suas as armas reais que encimam a porta do edifício municipal, o que também não é possível. Os paços do concelho do Porto Santo são igualmente encimados pelas armas reais, mas elas indicam apenas que o edifício foi feito pelo mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), em 1774, e que as obras correram pela Fazenda Régia, um aspecto que referenciámos antes. A grande reforma da heráldica municipal iniciou-se com a circular de 14 abril de 1930 da Direção-geral da Administração Pública, que, tentando regularizar a situação, obrigava as comissões administrativas das câmaras municipais a legalizar os brasões segundo o parecer compulsório da secção de heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses. A situação do estabelecimento de selo, armas e bandeira de cada localidade veio a integrar, inclusivamente, através do dec. 31.095, de 31 de dezembro de 1940, o Código Administrativo, através dos artigos 14 e 48. Data desses anos a instituição do coroamento dos escudos municipais com coronéis de torres aparentes, hierarquizadas entre as cidades e as vilas com cinco e quatro torres, o que foi alargado às juntas de freguesia, em 1991, com três. Entretanto, também na RAM se procedeu a reforma idêntica, parte da qual assumida pelas autarquias, como aconteceu na vila de São Vicente, onde se aprovou uma raridade iconográfica, com o orago a empunhar uma grelha em vez de uma embarcação. Outras entidades terão tido instrumentos bélicos, como é o caso da Alfândega do Funchal e, provavelmente, de Santa Cruz, conhecendo-se dois selos de chumbo daquela, datáveis de 1520 a 1550, exumados nas escavações arqueológicas na Prç. Colombo, em 1989, com a esfera armilar envolta pela legenda “Alfândega do Funchal”, com o pormenor de estar rematada por um pequeno escudete com as quinas de Portugal e, do outro lado, ter as armas reais com coroa aberta. Pontualmente, os elementos heráldicos foram utilizados por instituições de ensino, como a Escola Afonso Domingues, em 1889, que veio a dar origem à Escola Industrial e Comercial do Funchal, e, em 1989, a UMa. Data dos meados e dos finais do séc. XIX o aparecimento, na Madeira, de um esboço de heráldica corporativa, assumida, entre outras, pelas sociedades agrícolas e, depois, pelos grémios, sindicatos e diversas associações. Com o advento do Estado Novo, o assunto veio a ser encarado noutros moldes, solicitando-se propostas a essas instituições, mas, na maior parte das vezes, impondo-se as soluções finais. Tal ocorreu nas associações mais caras ao governo, designadamente, nas casas do povo e dos pescadores, conhecendo-se o brasão da Casa do Povo de Santo António, no Funchal e o brasão da Camacha, em Santa Cruz, ambos apresentados em Lisboa na Exposição de Heráldica do Trabalho, por altura dos festejos do XX aniversário da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). No ano seguinte, Franz Paul de Almeida Langhans editou o Manual de Heráldica Corporativa, onde figura ainda o da Casa dos Pescadores do Funchal. No catálogo da exposição dos 20 anos da FNAT, o organizador da mesma, Mário de Albuquerque, ao apresentar o brasão da casa do Povo da Camacha, comenta ter sido deixado em branco o brasão da Câmara Municipal de Santa Cruz por o concelho “não as ter ordenadas e aprovadas” (ALBUQUERQUE, 1955, 114). As unidades militares não terão usado brasões de armas próprios até ao séc. XX, devendo ter-se limitado a utilizar bandeiras com as armas reais e com uma legenda da unidade em questão. O mesmo não se terá passado com as unidades de ocupação britânicas, nos inícios do século anterior, de que se exumaram, nas escavações de emergência de 1992, efetuadas no pátio dos estudantes do antigo quartel do colégio dos Jesuítas, alguns botões de farda, indicativos de terem distintivos próprios, pelo menos, os correspondentes aos uniformes de artilharia. Ao longo desse século, as unidades portuguesas destacadas para a Madeira parecem ter utilizado somente uma emblemática com o número da força em causa, algarismos que foram ficando registados na calçada da antiga parada do mesmo quartel do colégio, hoje integrada na reitoria da UMa. Data das décs. de 80 e 90 a reforma geral heráldica do Exército, passando as unidades militares da Madeira a possuir brasão de armas próprio. Estas armas foram sendo adaptadas ao longo das várias reformas das forças em causa (Guarnição militar). A reforma estendeu-se, entretanto, às restantes forças militares da Marinha e da Força Aérea, depois, ao Comando-Chefe das Forças Armadas da RAM, tal como à Companhia Independente da Guarda Fiscal (Guarda Fiscal) e ao Comando da Polícia de Segurança Pública (Polícia de Segurança Pública). O assumir de armas próprias pela RAM foi feito de forma consistente, em 1991, quando a Região completou as armas do seu brasão. O arquipélago tinha constituído os seus símbolos próprios numa relação direta com as suas origens, assentando a bandeira e o escudo com campo de azul, uma pala de ouro e a mesma carregada com a cruz Ordem de Cristo. As insígnias foram discutidas, na generalidade, a 26 de julho, sendo aprovadas dois dias depois; a respetiva regulamentação foi publicada a 12 de setembro. Estas armas foram completadas, depois, por proposta de dois historiadores locais, decidindo-se a utilização do elmo de “boca-de-sapo”, geralmente atribuído a D. João I e existente no Museu Militar de Lisboa, dado ter sido este Rei quem determinou o povoamento do arquipélago; no entanto, em rigor, esse elmo será, muito mais provavelmente, aquele que veio do mosteiro da Batalha, em 1901, e que se encontrava no túmulo de D. João II. Assim, o elmo de ouro apresenta-se de frente e forrado a vermelho. Como timbre, optou-se por uma esfera armilar, pela sua ligação aos Descobrimentos e a D. Manuel I, existindo este elemento em inúmeros edifícios públicos do Funchal. Como suportes, dois lobos-marinhos, vivos e de sua cor, simbolizando a homenagem da Região aos únicos grandes mamíferos encontrados quando da chegada dos primeiros povoadores. Como divisa, inicialmente, foi proposto o seguinte fragmento de Os Lusíadas alusivo à Madeira: “Das que nós povoámos a primeira” (CARITA e SAINZ-TRUEVA, 1990, 103-107). Porém, nos inícios do ano seguinte, em reunião de Governo, veio a decidir-se pelo verso “Das ilhas as mais belas e livres” (Decreto Legislativo Regional n.º 11/91/M, de 24 de abril).   Rui Carita (atualizado a 12.10.2016)

Património História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

branco, josé de sousa de castelo

Nasceu em Leiria a 2 de novembro de 1654, sendo filho de Heitor Vaz de Castelo Branco, “senhor do Lagar do Rei e comendador de Santa Marinha”, e de sua mulher, D. Luísa Maria da Silva Arnault, senhora de morgado (NORONHA, 1996, 126). Tal como o seu antecedente, D. Fr. José de Santa Maria, este prelado foi recrutado nas fileiras da pequena nobreza de província. Enquanto jovem, foi para Coimbra estudar, e aí se formou em teologia, tendo, de seguida, ocupado um canonicato na sé de Leiria. Encetou, depois, uma carreira na Inquisição, instituição que serviu como deputado em Évora, como promotor em Lisboa, como inquisidor, de novo em Évora, e, finalmente, como presidente do tribunal de Coimbra. Nessa posição se encontrava quando, em 1697, foi designado por D. Pedro II para bispo do Funchal. A sagração aconteceu em Lisboa, no oratório de S. Filipe de Nery, a 28 de junho de 1698, ano em que se deslocou para a diocese, fazendo, na viagem, um desvio por Mazagão, onde se deteve “a ensinar os moradores” e a crismar 1400 pessoas (Id., Ibid., 127). Ainda durante a viagem, começou, de acordo com um manuscrito intitulado Memorias sobre a Creacção e Augmento do Estado Eccleziastico na Ilha da Madeira, a dar indícios de um comportamento singular, pois, segundo reza o texto, “foi este Bispo o Prelado mais amante da nobreza que tem vindo a esta Ilha”. A fundamentação desta apreciação encontra-se, logo de seguida, na descrição de um episódio com Gaspar Mendes de Vasconcelos, cujo pai, o Ten.-Gen. Inácio Bettencourt de Vasconcelos, o mandara para o reino assentar praça; segundo se conta, o bispo logo o trouxera para bordo, atribuindo-lhe no caminho uma conezia, tendo mandado, assim que chegou a terra, o mordomo avisar o general que “ali lhe mandava o filho cónego” esperando que ele lhe perdoasse “o vir contra as suas determinações” (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 273, fl. 93v.). O mesmo documento insiste nesta tónica quando acrescenta que não “houve casa que não beneficiasse, criando-lhe alguns dos seus filhos em cónegos da catedral”, e, de facto, é possível constatar que da família dos Correias e da dos Ornelas saíram três capitulares, da dos Freitas dois e da dos Berengueres um, registando-se, ainda, a atribuição de benefícios que favoreceram outros agregados nobres da Ilha. Com efeito, as Memorias acrescentam que “continuamente lhe estava fazendo a eles presentes de trastes e ainda cortes de vestido” e que ia “passar dias de verão nas Quintas dos Cavaleiros da terra e com todos fez uma boa harmonia (Ibid., fl. 97). Se esta era uma estratégia de minimização de conflitos, não resultou em pleno, porque o episcopado de D. José não foi isento de confrontos que opuseram o bispo a mais do que uma entidade na Ilha. Um dos cenários dessa conflitualidade ocorreu com dois dos três governadores com quem se cruzou no exercício de funções, sendo que, logo com o primeiro, João da Costa Ataíde, se registaram atritos que também envolveram o provedor da fazenda, Manuel Mexia Galvão. Este último, acusado de mancebia pelo vigário-geral, virou-se contra aquele eclesiástico “mais por vingança e por ódio que por defensa […] com ânimo vingativo de injuriar a pessoa de um prelado […] a quem devia tratar com respeito de Pai”, o que determinou a apresentação de queixas mútuas para o reino. Do reino veio, assim, um desembargador, Diogo Salter de Macedo, incumbido de averiguar o que na realidade se passara. Em virtude da sua ação, o provedor foi chamado à câmara a fim de lhe ser aplicada pública e áspera repreensão, e o mesmo teria acontecido ao governador, não fosse ter falecido entretanto. Quanto aos autos do processo, determinou o desembargador que se queimassem para “que de tão estranho modo de recusa não haja em tempo algum memoria nem lembrança”. Em contrapartida, as referências contidas na provisão trazida por Diogo Salter de Macedo dizem que ao bispo se deveria dar notícia da anterior resolução, a fim de que “reconheça a consideração que a minha Real justiça [tem] a quem com menos decoro fala em autos públicos das pessoas dos prelados que justamente se queixam das ofensas que lhes fazem”, o que é o bastante para se perceber que o bispo saiu com grande vantagem desta contenda (ARM, Arquivo do Paço..., doc. 270, fl. 7). Com o governante seguinte, Duarte Sodré Pereira, gozou o prelado da melhor das relações, chegando, inclusivamente, a ser padrinho de um dos seus filhos e estabelecendo-se, portanto, entre os dois, uma relação de compadrio. Já com o seu sucessor, Pedro Alves da Cunha, voltaram as coisas a correr mal, designadamente por terem surgido diferendos quanto ao lugar que o governador pretendia ocupar na sé. Terminada a comissão de Pedro Alves da Cunha, foi o prelado cumprimentar o novo governador, João Saldanha da Gama, mas, da conversa que tiveram, ficou o bispo com a impressão de que o novo titular do cargo seria “do mesmo caráter” do anterior, e essa constatação terá apressado a decisão de D. José de Castelo Branco abandonar a diocese. Com efeito, e embora publicamente evocasse razões de saúde como motivo da ida para Lisboa, a verdade é que ficaram registos de que a bordo da nau “ia aquele por cuja causa ele largava o bispado”, ou seja, Pedro Alves da Cunha, o que motiva alguma dúvida sobre as reais motivações do abandono episcopal. A confirmar esta asserção, acrescentam as Memorias que, a bordo, o ex-governador fez ao bispo “muitos obséquios, de sorte que ele se arrependeu de ter partido”, mas, apesar deste sentimento, e de se ter mantido como titular da diocese por mais sete anos, nunca mais regressou à Madeira. Embora tivesse renunciado à mitra do Funchal em finais de 1721, por, segundo afirma Noronha, os médicos considerarem que o clima da Ilha não era favorável à sua doença, a verdade é que D. José só veio a falecer bastantes anos mais tarde, em 1740, facto que contribui para infirmar a tese da doença como real motivo para a saída do arquipélago (NORONHA, 1996, 128). Para além dos dois governadores, outra das entidades com quem D. José registou desentendimentos graves foi com a comunidade franciscana, a qual, em consequência disso, se viu quase completamente destituída de confessores. O desaguisado começou com a determinação exarada pelo bispo de que todos os clérigos, regulares e seculares, do bispado teriam de se fazer examinar para confessores, do que discordou o custódio de S. Francisco, padre frei Jacinto da Esperança, que recorreu ao rei por causa da “perseguição” que considerava estar a ser-lhe movida pelo prelado. Queixava-se, então, o custódio, em seu nome e no dos religiosos da Ordem, “da notória força e violência com que os oprime o reverendo bispo da dita Ilha”, consubstanciada na privação da autorização para confessar sem se submeterem a novo exame, o que se repercutia negativamente não só na reputação da Ordem, como nos proventos arrecadados (PAIVA, 2009, 37). Além disso, acrescentava, estas ordens do prelado tinham levado à suspensão de todos os frades da Calheta, e não se poderia aceitar a ideia de que fossem “todos criminosos” (DGARQ, Cabido da Sé..., mç. 12, doc. 34, fl. n.n.). A estes argumentos contrapunha D. José o de que “como os confessores tratam de matéria mais arriscada não só pelo foro da consciência e utilidade, ou prejuízo das Almas, mas também porque doutrinam em segredo, é mais perigosa e mais arriscada esta matéria que a dos pregadores”, pelo que não podia ser “tão liberal” neste tema quanto era na concessão de licenças para pregar. A isto acrescia o bispo que poderia acontecer que desta sua “severidade” resultasse estímulo para aplicação ao estudo de que “até aqui pouco se cuidava”, e, usando de uma ironia fina, ainda fazia notar que, sendo os franciscanos pobres, “pelos pregadores haveriam os proventos temporais que das confissões não podem tirar; e da suspensão destes [confessores] lhes resultará viverem com mais descanso que sempre é apetecido da natureza” (Ibid.). Os antecedentes deste conflito derivariam, possivelmente, de uma pastoral publicada a 20 de dezembro de 1699, na qual o prelado derrogava todas as facilidades anteriormente concedidas a pregadores e confessores, condicionando-as, agora, à realização de novo exame. Esta atitude decorria do facto de ter o prelado sido informado de que alguns clérigos, “esquecidos de suas obrigações”, se não aplicavam no estudo da Moral, “não usando do sacerdócio mais que só na missa, pelo interesse temporal que dela tiram”, situação que lhe parecia intolerável, e à qual procurava, então, obviar (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx, 45, doc. 8). Porém, se as relações com os franciscanos foram tensas, o mesmo não se passou com os jesuítas, cujo reitor, o padre Miguel Vitus, era, nas palavras endereçadas pelo prelado à inquisição de Lisboa, “coisa muito singular em tudo, na capacidade, letras, virtude e ardente zelo na conversão dos hereges, e no cuidado que tem nos reduzidos”, pelo que seria homem a quem se poderia fiar tudo e “só a ele se devem cometer os negócios de maior importância e risco” (FARINHA, 1993, 887). Vinha este elogio a propósito daquela que, no entender do prelado, seria a melhor opção para se tratar dos assuntos respeitantes ao Santo Ofício na Ilha, pois, apesar de na Madeira haver dois comissários, os desentendimentos entre eles poderiam comprometer a objetividade necessária nos julgamentos. Durante este episcopado, e por razões que se poderão atribuir, por um lado, ao facto de o bispo ter sido recrutado das fileiras da Inquisição, e, por outro, à recente reativação do funcionamento do tribunal, assiste-se a um certo aumento das denúncias apresentadas, cujo número, para o período de 1690 a 1719, se cifra em 59 casos. Apesar de o bispo ter referido a meritória ação do reitor do colégio no combate aos hereges, ou talvez por isso, as ocorrências de heresia são escassas, pois só aparecem dois suspeitos, enquanto a grande incidência das faltas se dá nos domínios das curas supersticiosas e das blasfémias, com 13 acusados em cada área. O saldo final destas denúncias cifra-se em apenas 3 processos, 1 de judaísmo e 2 de bigamia, mas a correspondência trocada entre o bispo e a Inquisição, em Lisboa, permite saber-se que a boa opinião que o prelado tinha da nobreza insular não se estendia ao resto da população da Ilha. Assim, em carta escrita a 11 de novembro de 1707, D. José lamentava-se, dizendo que “a assistência de dez anos e o trabalho de sofrer esta gente me tem dado conhecimento do seu orgulho, e dos seus atrevimentos. Saiba Vossa Senhoria que não estou entre gente, senão em um bosque de feras sem nenhum conhecimento, sem obediência da razão, levados tão-somente de suas paixões como brutos sem temor de Deus, nem honra nem previsão de futuros” (Ibid., 887), o que, por sua vez, se harmoniza com a impressão que colhe dos seus fregueses, os quais, em visita a Ponta Delgada, considera “muito rudes” na doutrina, não só os meninos, como também os pais que, se falhassem no envio dos filhos à estação da missa, deveriam ser publicamente inquiridos sobre os ensinamentos religiosos (ARM, Paroquiais, Livro 116-B, fl. 5). Num outro sítio e num outro contexto, expandia ainda o prelado a má opinião que tinha dos ilhéus, que considerava, pela sua ambição “fáce[i]s de levantar testemunhos uns aos outros para melhorarem as suas pretensões” (ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Eusébio, mç. 1, doc. 21). Para tentar obviar às falhas de caráter e às omissões de doutrina, envidou D. José alguns esforços, traduzidos na realização de um plano de visitação com a periodicidade devida, complementado por missões de interior, para as quais recorria aos meios ao seu dispor. Assim, em 31 de janeiro de 1700, enviava para as paróquias rurais, “armados de todos os poderes da sua jurisdição”, dois jesuítas, os padres mestres Inácio de Bulhões e Domingos de Melo, a fim de que, por ser o tempo de “grande calamidade de doenças e mortes”, ajudassem os vigários nas confissões. A esses missionários cometia, ainda, a responsabilidade de “aprovar e reprovar confessores na forma que lhes parecer”, voltando a demonstrar a preocupação que a correta prática do sacramento da penitência lhe despertava. Como nota curiosa, pode ainda acrescentar-se o facto de, para além da saúde moral das populações, o prelado zelar, ainda, pela cura dos males do corpo, pelo que, a acompanhar os jesuítas, ia também um cirurgião “aprovado para que visite os enfermos e lhes aplique os remédios necessários” (AHDF, Arquivo da Câmara Eclesiástica..., cx. 45, doc. 9). No mesmo ano, mas em agosto, realizava-se nova missão, desta vez resultante da oferta dos serviços de um frade, frei João de Santo Ambrósio, que “movido do fervor do seu zelo e caridade determina fazer missão em todas as freguesias deste nosso bispado” (Ibid., doc. 10). Os cuidados que o bispo dispensava à qualificação dos ministros autorizados a confessar voltam a evidenciar-se em edital publicado em 1710, onde se determinava que se não lançassem no rol dos habilitados a apresentar-se a exame os indivíduos que não mostrassem certidão de matrícula, ou aprovação, na aula de moral do colégio da Companhia “por serem muito poucos os sacerdotes capazes de servir a Igreja no exercício do confessionário” (Ibid., cx. 32, doc. 39). Para além disso, destaca-se uma lista dos clérigos do bispado feita em 27 de agosto de 1715, onde constam para a freguesia da sé, por exemplo, 131 eclesiásticos, dos quais apenas 24 estão habilitados a confessar, o que vem, mais uma vez, demonstrar que os critérios para acesso àquele ministério eram severos (Ibid., Livro 2.º da Câmara Eclesiástica, fls. 17-17v.). Para além dos cuidados já expressos com alguns aspetos do exercício do múnus episcopal no tocante à formação dos clérigos, D. José ainda dedicou uma atenção particular ao seminário, o qual fez transferir das antigas instalações no paço onde residia para um novo espaço, situado na rua que passou a chamar-se “do Seminário”, e onde se situavam uns aposentos inicialmente destinados a um mosteiro, o “Mosteiro Novo”, que nunca chegou a funcionar para o fim a que se destinara. O bispo dotou, ainda, o seminário de novos estatutos. Outra das tarefas com as quais se comprometeu o antístite foi a de provedor da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, a cujos destinos presidiu nos anos de 1704 e 1709. Depois de 15 anos em que esteve presencialmente à frente da diocese do Funchal, retirou-se, então, o prelado para Lisboa, conforme já se viu, mantendo-se em funções por mais sete anos, findos os quais renunciou, ficando o bispado à guarda de um governador, Pedro Álvares Uzel, que dele se ocupou até à chegada do novo titular da mitra, D. frei Manuel Coutinho.     Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 22.12.2016)

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