alimentação
A mesa é um espaço importante; nela selam-se contratos, decide-se o destino de um país ou celebra-se um evento particular. A culinária e alimentação da ilha são fruto de uma herança europeia, dos colonos que lançaram a semente no séc. XV e dos demais que percorreram o mundo à descoberta de novas culturas e produtos. Depois, os ingleses e outros que os seguiram trouxeram o requinte da arte de bem comer. A mesa na ilha tornou-se assim variada e rica, ajustando-se ao paladar dos convivas e à disponibilidade dos produtos.
Note-se que os produtos identificam, muitas vezes, as regiões. À Madeira associa-se, desde há muito tempo, os doces, com o bolo de mel à cabeça, mas também, desde o séc. XX, a espetada, em espeto de louro e o bolo do caco. Todavia, sabemos que esta identificação culinária dos lugares começou a perdeu importância a partir de Setecentos com o processo de globalização que começou com os descobrimentos europeus. As ementas e os produtos universalizaram-se e a Madeira foi um espaço potencializador disso.
Durante muito tempo, as dificuldades na conservação dos produtos perecíveis obrigaram ao estabelecimento de regras para o seu uso e consumo. A maior parte deles, como foi o caso dos frutos, tinha uma limitada durabilidade, sendo consumidos apenas na época de maturação; poucos resistiam algum tempo, como os peros e as maçãs, que na ilha se guardavam para a lapinha e a mesa da Festa que se celebrava em de 25 de dezembro. As condições climáticas definiam a sazonalidade do quadro vegetativo e a variedade e momento de disponibilidade dos produtos alimentares, fazendo com que a sua entrada na alimentação estivesse dependente dos condicionalismos do ciclo vegetativo das plantas.
Para a Madeira, acresce ainda outro fator significativo e com peso na história do arquipélago: a dificuldade sentida, desde o séc. XV, em encontrar na ilha a garantia de mantimento para a população, obrigando-a a uma extrema dependência do exterior. As crises de fome e subsistência foram assim uma constante da história da Madeira, sendo as duas últimas, resultantes das guerras mundiais de 1914-18 e 1939-45.
A religião, por força dos preceitos limitadores ou da valorização de alguns produtos e bebidas no ritual religioso, foi responsável pela forma como se definiram os hábitos alimentares dos crentes, conduzindo à diferenciação culinária entre diversos povos e espaços geográficos. Ao mesmo tempo, promoveu os produtos no quotidiano dos devotos, definindo proibições ou limitações ao seu consumo. É aqui que podemos encontrar a explicação para a valorização dos cereais e do vinho na civilização ocidental cristã ou do arroz e do chá nas civilizações orientais. Na Madeira, o fenómeno religioso esteve também presente na definição dos hábitos alimentares.
A mesa madeirense foi sempre muito frugal, situação que era quebrada nos momentos festivos, nomeadamente, no natal, na celebração do Espírito Santo e nas festividades em honra dos diversos oragos das paróquias da ilha (Espírito Santo, Festa do). Foi em torno do calendário religioso que o madeirense estabeleceu os vários momentos que vieram a marcar a sua gastronomia. O natal é a celebração da Festa e da culinária ilhoa. Aqui a devoção religiosa mistura-se com os folguedos e as delícias da mesa.
A tradição anota mesmo um calendário para este ritual: a 8 de dezembro, faz-se o bolo de mel; a 15 de dezembro, mata-se o porco, de modo a que as linguiças e a carne de vinho e alhos fiquem prontas para o natal; no dia 25, no regresso da Missa do Galo, prova-se a carne. A mesa mantém-se farta de licores, doces e bolos para gáudio dos que estão e dos visitantes. O caldo de galinha caseira e a carne assada com cuscuz, uma espécie de massa granulada cozida, completavam habitualmente o repasto natalício. Assim, foi em torno desta quadra religiosa que o madeirense estabeleceu o momento nobre da sua gastronomia.
O calendário religioso e o ano agrícola determinaram o resto; p. ex., na Sexta-feira Santa, o prato tradicional é inhame cozido com bacalhau, no S. Martinho, atum salpresado. Mas este calendário gastronómico perdeu algumas das suas razões de ser, uma vez que as atuais técnicas de conservação dos produtos e a mobilidade dos mesmos levaram a que a sua disponibilidade e utilização na alimentação deixasse de ser sazonal.
O vinho, uma constante indelével no devir histórico da cristandade ocidental. A sua dupla disponibilidade para o ato litúrgico e para a alimentação traçou-lhe o caminho e o protagonismo. As ilhas atlânticas são exemplo disso. De facto, no princípio da ocupação da Madeira, as necessidades da alimentação e do ritual cristão comandaram a seleção das sementes levadas pelos primeiros povoadores. Assim, o cereal acompanhou os cavalos de cepas peninsulares no processo de transmigração dos europeus. A fecundidade do solo, pelo estado virgem das terras e das cinzas fertilizadoras resultantes das queimadas, fez elevar a produção a níveis impressionantes, criando excedentes que acabaram por suprir as necessidades de mercados carentes, como Lisboa e as praças do norte de África. Segundo alguns autores, eles foram a base do processo de povoamento da Madeira, uma vez goradas as iniciativas de penetração no comércio do produto no norte de África.
A valorização e divulgação da cana-de-açúcar está ligada também ao fenómeno religioso, pois foi a valorização pelo budismo e islamismo que favoreceu a sua expansão. No Oriente, a sua propagação acompanhou a expansão do budismo na Índia e na China, entre os sécs. I e VI a.C.. Depois, a expansão do islão, entre os sécs. VI e VIII, favoreceu a difusão da Cultura e o crescimento da cana-de-açúcar no Mediterrâneo. E daí chegou à Madeira, por influência dos cristãos (Açúcar; Cana-de-açúcar).
A ilha teve um papel fundamental na culinária ocidental, pelo facto de ter contribuído para a afirmação e divulgação do doce e por ter contribuído para a divulgação de muitos produtos alimentares do Novo Mundo.
O consumidor preferencial das conservas e doçarias madeirenses era a casa real portuguesa. De facto, foi D. Manuel quem divulgou as qualidades dos produtos na Europa. Os doces e conservas da ilha tornaram-se o principal presente, dentro e fora do reino. Com efeito, Vasco da Gama ofereceu conservas madeirenses ao xeque de moçambique. Os confeiteiros que fabricavam as conservas eram pagos pela Fazenda Real.
Outra evidência importante da mesa madeirense prende-se com a variedade de tubérculos, vegetais e frutos. Os descobrimentos foram um fator determinante, sendo a Madeira um referencial de partida para esta afirmação da riqueza e variedade dos produtos alimentares. O processo de povoamento implicava obrigatoriamente um processo de migração de plantas, animais e técnicas de recoleção, cultivo e transformação (Agricultura). De acordo com João de Barros, os portugueses levavam todas as sementes e plantas, entre outras coisas, com aqueles que iam povoar a terra. O retorno foi igualmente rico e, paulatinamente, revolucionou o quotidiano europeu, de tal forma que algumas das novas plantas entraram rapidamente nos hábitos das populações, cedo se perdendo o rastro da sua origem e passando a ser consideradas como indígenas.
A posição geográfica da Madeira, o seu protagonismo histórico na mobilidade de plantas e produtos, contribuiu para que se afirmasse uma variedade de artigos. A viagem de Vasco da Gama à Índia (1497-1499) contribuiu para a generalização do consumo das especiarias; eram já conhecidas dos europeus, mas só então passaram a ter uma rota segura de divulgação. Assim, ao tradicional açafrão, a apurar a mesa, juntaram-se as pimentas orientais. O bolo de mel, pela variedade das especiarias utilizadas, é resultado disso.
As ligações da Madeira com outras regiões tiveram um impacto direto na culinária. Assim, a presença dos escravos das Canárias ou a iniciativa de madeirenses que mantiveram contactos com esse arquipélago foram responsáveis pela presença do gófio ou gofe, uma farinha de cevada torrada com leite de cabra ou de vaca. Sabemos do seu uso na alimentação no séc. XVIII na ilha do porto santo e também que as freiras do Convento da Encarnação o tinham na ementa. Do Norte de África terá vindo o cuscuz, a escarpeada e o bolo do caco.
Dos inúmeros produtos que chegaram à ilha, alguns afirmaram-se com especial êxito na dieta local. Foram eles a batata comum, o inhame e o milho que, no decurso da segunda metade do séc. XIX, destronaram rapidamente a hegemonia dos cereais na dieta alimentar madeirense. Da farinha de trigo (Trigo) nasceram as rosquilhas, o bolo do caco e o cuscuz ou então o frangolho, uma papa feita com farinha integral. Ao bolo do caco e cuscuz aponta-se a reminiscência da presença mourisca na ilha. Foram também diversos os usos dados ao milho (milho). O seu grão consome-se cozido, escaldado ou estraçoado em sopa; da sua farinha faz-se uma papa, com a qual se produz o conhecido milho frito que acompanha muitos dos pratos da gastronomia local. No princípio do séc. XX, é ainda visível a expansão dos produtos hortícolas e dos tubérculos em desfavor dos cereais. A batata comum foi e continua a ser um produto essencial da alimentação do mundo rural. Por isso, a aposta na sua Cultura, de modo que, em 1908, a produção média por hectare era de 15.000 kg, dando a ilha 25 t.
Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café, chá, baunilha, ananás, banana, milho e batata chegaram à mesa europeia. As ilhas, e de modo especial a Madeira, foram o viveiro da sua aclimatação aos solos europeus. A variedade de frutos na alimentação e quotidiano da ilha é resultado disso. A banana é conhecida na ilha desde o séc. XVII e outros mais frutos tropicais foram chegando e contribuindo paulatinamente para o alargamento das opções de escolha. A mais antiga referência à banana na ilha surge em 1687, no testemunho de Hans Sloane repetido por John Ovington, em 1689. Aos poucos, impôs-se na dieta alimentar, tornando-se numa importante fonte de riqueza da Madeira.
A batata comum é originária dos Andes, mas foi a Irlanda o principal centro difusor na Europa. Na ilha, é conhecida como semilha. A presença do tubérculo na Madeira está documentada a partir de 1760, mas a sua generalização só aconteceu no princípio do séc. XIX. A batata-doce, também oriunda da América do Sul, apareceu na ilha no séc. XVII, surgindo referenciada como a fonte principal de sustento do camponês na déc. de 70 do século seguinte. Ambos os tubérculos só tiveram um consumo generalizado a partir de 1845, com a introdução de uma nova variedade proveniente de demerara. Mas, em 1842, o míldio atacou a batata irlandesa e a situação teve eco noutros espaços europeus, como foi o caso da Madeira, em 1846 e 1847. Tendo em conta que esta batata havia adquirido um lugar dominante na alimentação, é fácil adivinhar as dificuldades daqui resultantes para a Madeira. Em 1847, o próprio governador José Silvestre Ribeiro testemunhou a situação, observando que a batata era de há longos anos o alimento principal dos camponeses, que viviam sofrivelmente mesmo quando as colheitas eram abundantes. Tudo isto porque os madeirenses quase só se alimentavam de batatas com cebola, variando apenas com algum inhame e pouco milho. O milho cedo conquistou a ilha, tornando-se, em parceria com a batata, no sustento preferencial dos madeirenses.
A crise da batata conduziu inevitavelmente a uma outra revolução alimentar: a plena afirmação do milho na dieta local. Sob a forma de pão ou de farinha, o milho transformou-se rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do séc. XX. Em 1847, a Madeira produzia apenas 20 moios, tendo necessidade de importar o restante. Em 1841, foram importados 9000 moios de milho e 8 mil de trigo, passando, em 1852, para cerca de 10.000 de milho e 5500 de trigo. Já nas décs. de 70 e 80, o milho era a base da alimentação das populações mais pobres. Em câmara de lobos, no princípio do séc. XX, o milho dominava a dieta alimentar.
A imprensa fez eco desta realidade, afirmando o milho como o principal alimento do povo. E quase todo o que a Madeira precisava era importado do estrangeiro ou das colónias, pois a ilha produzia uma ínfima parte daquilo que consumia. O milho era servido de diversas formas na mesa rural madeirense. Com a farinha, fazia-se papas de milho e, com o milho pilado, um caldo, condimentado com cebo de carneiro ou boi e ainda umas papas feitas com leite.
No Diário de Notícias de 4 de setembro de 1941, dizia-se: “o milho é, há muitos anos, um elemento fundamental da alimentação das nossas classes menos remediadas. Barato, de fácil preparação e de forte poder alimentar, nenhum produto da terra o pode substituir ou sequer igualar”. Daí terá surgido a expressão popular “Vai-se ganhando para o milhinho...”. O milho era o alimento das classes pobres e a sua ausência atingia principalmente estes, por isso, o articulista do mesmo periódico, em 7 agosto de 1943, apelou às classes mais abastadas para que lhes reservassem este privilégio: “O milho é o alimento das classes pobres, das classes populares [...] o milho, repetimos, é o alimento dos pobres: assim aqueles que o podem dispensar, deixem-no aos pobres – porque para as almas bem formadas, deve constituir amargura, provocar, impensadamente, as faltas de alimentação nos lares onde o dinheiro não abunda”. No inverno de 1945, em face de novas dificuldades, as páginas de abertura desse jornal expressam o grito plangente, ecoado por todos os madeirenses em surdina. Na mesma altura, o racionamento de 1 kg semanal por cabeça propiciou o comentário de que a quantidade não era bastante para as necessidades de uma população cuja economia doméstica se baseava no consumo quase diário daquele produto, numa terra onde o milho se podia chamar “o pão nosso de cada dia”. Na época, o abastecimento da Madeira em milho dependia da importação anual de 13.000 t. Todo o cuidado era pouco, face às dificuldades geradas pela guerra, para assegurar o milho. Em 1941, as reservas de cereais e a frequência de embarcações eram ainda grandes. Os problemas de abastecimento só começaram a surgir no outono de 1943, mas o racionamento e distribuição do milho começou no ano anterior. Graças à iniciativa da Comissão Reguladora do comércio de cereais, a situação não foi tão gravosa como no decurso da Primeira Guerra Mundial.
Em 1938, a política de intervencionismo económico definida por Salazar levou à criação do Grémio do milho Colonial Português, cinco anos depois, surgiu a delegação madeirense da Junta de Exportação dos cereais, que passou a coordenar todo o processo de abastecimento e fixação de preços do grão e da farinha. Um dos seus responsáveis foi Ramon Honorato Rodrigues que, em 1962, no momento de extinção da junta, publicou uma memória sobre os serviços prestados por esse organismo. Por aí se ficou a saber das dificuldades sentidas nos anos da guerra e da ação da mesma junta e governador civil para solucionar a situação por meio do racionamento do milho e da solicitação de carregamento à ordem do governo. Para termos uma ideia das dificuldades sentidas, basta-nos aludir à capitação estabelecida pelo racionamento e relacioná-la com a média anterior à guerra: entre 1937 e 1939, ela foi de 123 kg por ano, de 1942 a 1944, passou para apenas 80 kg. Mas houve momentos em que a situação se agravou: p. ex., em março e abril de 1945, a ração semanal por cabeça era de apenas 550 g de milho. A partir de 1941, o racionamento foi determinado por concelho, de acordo com o número de cabeças de casal, variando o quantitativo conforme os estoques disponíveis.
Os forasteiros dos sécs. XVIII e XIX foram os principais divulgadores da gastronomia madeirense. Habituados às laudas mesas, reprovaram a frugalidade da mesa rural madeirense. O gáudio estava no Funchal, nos salões das quintas ou do palácio do governador. Em 1793, John Barrow saiu da Madeira agradado com a mesa do governador da ilha, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, descrevendo-a como das mais variadas e delicadas, com travessas esplêndidas que apresentavam animais inteiros, nomeadamente, um porquinho recheado rodeado de laranjas, uma lebre armando um salto e faisões a tentar levantar voo.
Todos os relatos estrangeiros insistem neste contraste entre a mesa das famílias distintas e a mesa da maioria da população. Esta ideia é também corroborada por autores portugueses, como Eduardo Grande, que é perentório em afirmar que o regime alimentar das classes menos abastadas do Funchal era pobríssimo, constando quase sempre de pão de má qualidade.
Com a aristocracia e o clero estávamos perante a boa e rica mesa e os frequentes excessos de comida. As evidências aí estavam, com a obesidade a ser uma caraterística deste grupo social e do clero. Rodolfo Schultze, em 1864, chamou a atenção para o facto de os jovens das famílias mais importantes, entre os 10 e 14 anos, terem tendência para o peso excessivo.
John Ovington, em 1689, refere que a alimentação dos madeirenses era muito pouco variada e que os pobres se alimentavam apenas de uvas e pão no tempo das vindimas. Esta ideia é corroborada por George Forster, para quem os camponeses eram excecionalmente sóbrios, nutrindo-se de pão, cebolas, de vários tubérculos e pouca carne. Na verdade, esta alimentação consistia em vegetais, algum pão, inhame, castanha e os frutos da época.
A frugalidade dos produtos espelha-se ainda na expressão do espaço onde as refeições acontecem. Para a maioria da população a cozinha é um espaço simples e raramente existe a sala de jantar. Esta divisão do espaço da casa em torno da alimentação acontecia só nas habitações de famílias abastadas, dos párocos e das autoridades que tinham o hábito de comer à mesa e receber convivas. A casa rural da maioria da população era um casebre coberto de colmo com chão de terra batida, área que servia de cozinha, sala de estar e de dormir. Perante isto, o espaço deveria ser bem gerido. A um canto, a cama e a caixa, no outro, a lareira com os diversos apetrechos e a “gaiola”, a dispensa de guarda e conservação dos alimentos que antecedeu o aparecimento dos frigoríficos.
Nos utensílios de cozinha, era ainda evidente a sobriedade: poucos tachos, ausência de talheres e o recurso às mãos, situação que provocava a admiração e reprovação dos ingleses. No meio rural, destacava-se a imagem de uma tampa, cestos de vimes, com comida de onde todos tiravam à mão. A loiça era uma raridade, pois muitos dos utensílios eram feitos em madeira. Somente na segunda metade do séc. XIX começaram a aparecer os instrumentos de cobre e latão para a cozinha rural.
O forno era uma exigência apenas em algumas casas. As demais estavam dependentes do forno público que, no início, era propriedade do capitão. Algumas das casas solarengas do meio rural apresentavam mais do que um forno, utilizando-o para cozer o pão para a família, colonos e criados.
Dos diversos testemunhos que temos compilado, verificamos que a mesa do governador era um espaço especial de encontro de convivas e de receção de visitantes que chegavam ao porto. Desta forma, nas recomendações dadas em 1698 ao governador D. António Jorge de Mello, assinala-se a necessidade de ter uma mesa grande para comer, de ter um copeiro e um cozinheiro. Só assim seria possível assegurar a imagem de excelência da mesa tão celebrada pelos estrangeiros que tiveram oportunidade de a fruir.
O requinte que dominava muitas destas mesas era notado pelos convidados estrangeiros. Em meados do séc. XIX, Isabella de frança registou o aprumo dos criados que serviam à mesa, a finura da decoração, dos guardanapos e flores. Até o pormenor das flores purificadoras embebidas na água foi realçado, desta feita por D. Carlota, imperatriz do México, que ficou encantada com a prática de lavar as mãos depois do jantar em bacias cheias de pétalas de rosas. O luxo era evidente para os forasteiros, que não se cansaram de o enunciar. A cozinha ligava-se à faustosa sala de jantar, um espaço coberto por um teto ricamente decorado com estuques, pintados ou não. A maior na ilha, em meados do séc. XIX, segundo Isabella de frança, era a do morgado Nuno de Freitas, na Qt. do Carvalhal, nos Canhas.
Foram os ingleses, no séc. XVIII, que trouxeram para a Madeira a valorização deste espaço com os estuques. A mesa estava sempre a condizer com o ambiente. Loiças e porcelanas brasonadas, da Companhia das Índias, rivalizavam com os apetitosos conteúdos de acepipes, carne, peixe, doces e frutas. Tudo isto era rematado por toalhas de linho bordadas e ramos de flores de garridas cores. Os testemunhos da opulência de algumas das mesas madeirenses repetem-se, destacando-se o da referida imperatriz do México, que ficou impressionada com todo este luxo.
Os forasteiros e visitantes que não tinham a oportunidade de usufruir da hospitalidade da mesa do madeirense estavam sujeitos aos poucos espaços públicos onde se servia comida. Não podemos falar ainda de restaurantes, mas a informação que recolhemos das posturas municipais nos sécs. XV e XVI referem serviços afins prestados por regateiras, vendeiras, taverneiras e estalajadeiras. No séc. XVIII, com o advento do turismo, os diversos hotéis começaram a disponibilizar alguns desses serviços. Mesmo assim, parece que estávamos perante algo incipiente, uma vez que a maioria dos aristocratas que buscavam a ilha para a cura da tísica fazia-se acompanhar de cozinheira. Aliás, o Reid’s Palace Hotel apresentava os quartos com cozinha e anexos para os criados. Também muitas das quintas madeirenses eram alugadas a forasteiros com louça, roupa e mobília. Fora da cidade, os únicos espaços de acolhimento e apoio eram as diversas vendas, estrategicamente colocadas nos caminhos principais da ilha que passavam pelas povoações. A venda foi, durante muito tempo, um espaço de convívio. Era aí que acudiam os viandantes à procura de guarida e de uma ração de pão para matar a fome.
Os primeiros restaurantes são mais recentes. Ficou célebre o Golden Gate, que mereceu de Ferreira de Castro o epíteto de “esquina do Mundo”; a posição estratégica à entrada da cidade, uma vez que se situou primeiro no princípio da Av. Zarco, fazia com que fosse o ponto de encontro de todos os forasteiros. As casas de chá, como a do Terreiro da Luta (1939), deram o mote para a mudança no sentido da restauração nos anos 60. A afirmação do turismo no pós-guerra conduziu ao aparecimento destas infraestruturas de serviços, como foi o caso da Seta (1966), do Cachalote no porto moniz (1969), da Romana (1969), do Galo (1970), do Facho (1973) e da Cervejaria Coral (1972).
Por outro lado, podemos afirmar que não é fácil perceber o que caía diariamente na mesa madeirense. Apenas temos alguns dados avulsos sobre a mesa do governador, estrangeiros e famílias importantes. Mas, para além deste eventual encontro com a mesa festiva, podemos acompanhar o quotidiano nos conventos e no Colégio dos Jesuítas. Este parece apresentar uma das mais fartas mesas da ilha, acorrendo a ela diversas entidades, inclusive o governador. O Colégio dos Jesuítas detinha uma importante retaguarda, com as quintas do Pico Frias, do Cardo e Grande, servidas de celeiros e adegas. No séc. XVII, a casa das quintas do Cardo e Frias acolhia com frequência o governador, nomeadamente, D. Diogo de Mendonça Furtado (1659-1665), que parecia ser amante de doces, fruta, queijos alentejanos e flamengos. A ementa de carnes era variada, continha galinha, peru, frango, leitão, coelho, cabrito, carne de porco e presuntos.
Para os conventos, através dos livros de receita e despesa, podemos acompanhar o dia-a-dia da mesa. No eixo de S.ta Clara, Mercê e Encarnação estava o melhor da doçaria madeirense. Para além da doçaria, era insistente a presença da carne e peixe, em versão fresca ou salgada; diga-se que a galinha assumiu um lugar de destaque em épocas festivas, isto é, nas festas do Advento, Quaresma, natal, Páscoa e dia de S.ta Clara. A carne e o peixe podiam ser servidos com pão, por norma, demolhado. Nos cereais, dominava o trigo, produto que as freiras obtinham através dos proventos das suas benfeitorias ou, por vezes, comprando. O trigo era convertido na farinha que estava na origem do pão, dos bolos, empadas, pastéis, doces e cuscuz.
No Convento da Encarnação, nos sécs. XVII e XVIII, a mesa era das mais fartas da ilha. O pão corria todos os dias à mesa, por isso, havia duas amassaduras à semana, uma à quarta e outra ao sábado, sendo acompanhado de carne ou peixe. A carne era aí mais abundante, pois a falta de peixe no mercado local não facilitava a sua disponibilidade. Mesmo assim, comia-se peixe às quartas, sextas, sábados e dias prescritos pela igreja; podia ser bacalhau, atum, sardinha, arenque, pargo ou chicharro. Em dias festivos, a mesa era mais rica e recheada de doces, como pão-de-leite, massapão, laranjada, cidrada e coscorões. Também aqui era notória a diferenciação social da mesa das freiras e dos servos e trabalhadores; a carne de porco e o milho, p. ex., não iam à mesa das freiras mas estavam sempre presentes na dos criados e dos trabalhadores.
A mesa do mundo rural e da gente pobre é pouco conhecida. O que se sabe resulta do testemunho de alguns estrangeiros. Estes serviam-se quase só do que a terra dava, isto é, de frutas, passas de uvas, figos passados e inhame. Na primavera e no verão, dominavam as frutas, nomeadamente, laranja, pera e maçã, enquanto no outono eram as castanhas e as nozes. Consumia-se algum peixe fresco ou seco, pescado na costa, que os pescadores trocavam por produtos da terra, mas a carne parece ter sido uma raridade. A frugalidade da alimentação do povo é um apontamento constante em todos os testemunhos de estrangeiros, destacando-se o pão, as cebolas, vários tubérculos e pouca ou nenhuma carne. Depois, na segunda metade do séc. XVIII, temos mais o milho americano, o inhame e a batata-doce, que eram o alimento principal consumido pelo camponês. A isto juntava-se o consumo de peixe fumado ou conservado em salmoura, importado pelos ingleses, que servia de conduto ao inhame, à batata e ao pão.
Com dissemos, à mesa do povo, a carne e o peixe eram uma exceção. O peixe, por vezes, era importado, o que demonstra o pouco desenvolvimento da pesca local; consistia em bacalhau, dos EUA, e outro seco, salgado ou em salmoura, do norte da Europa, destacando-se o arenque de fumo ou salmoura, muito apreciado pelo povo. De acordo com Isabella de frança, em medos do séc. XVIII, o gaiado e o chicharro eram espécies raramente comidas por pessoas que não fossem pobres. Esta situação ainda perdurava na déc. de 50 do séc. XX, altura em que as capturas de pescado de cerca de 2 t eram ainda incipientes para satisfazer o consumo e a indústria conserveira. É de notar que este era pouco variado, assentando em atum, peixe-espada, chicharro, carapau e cavala. Em 1904, Anna Von Werner queixa-se de que a carne que comeu no Hotel Royal não se podia trincar e dá-nos conta do ambiente pouco salubre que rodeava a cozinha, referindo uma casa com uma velhota que assava castanhas e fritava peixe pouco fresco numa “frigideirinha” com óleo.
A carne parece ter sido rara e, a ter em conta alguns testemunhos estrangeiros, de má qualidade. Durante muito tempo, a informação sobre o gado para engorda é escassa, o que significa que era quase inexistente a carne, motivando o aumento do preço de venda ao público e reduzindo a possibilidade de consumo por todos os estratos sociais. Mas, a partir de meados do séc. XIX, é evidente o aumento da disponibilidade de carne, o que se repercutiu no crescimento da capitação média do consumo na ilha.
É bastante notória a falta de tradição de criação de gado para engorda e abate, o que gerou uma situação deficitária na oferta dos açougues e da necessidade de estabelecer uma regra para a sua venda. Esta dificuldade permanente de abastecimento dos açougues, que se manifesta desde o séc. XV, levou algumas instituições a solicitarem à coroa a possibilidade de disporem de açougue próprio. Aconteceu assim com o cabido da sé do funchal, o Colégio dos Jesuítas e os conventos. Isto permitiu que o abastecimento destas mesas fosse feito com regularidade, estando liberto das regras que regiam o mercado.
Os açougues públicos existem desde o séc. XV, estando sob a alçada da câmara. O primeiro matadouro oficial surgiu em 1791, no Cabo do Calhau, sendo transferido, em 1825, para a proximidade da ribeira de S.ta Luzia. Foi demolido em 1851 e só em 1941 houve um novo matadouro, na margem da ribeira de S. João. Hoje, o serviço de abate é garantido pelo CARAM – Centro de Abate da região autónoma da Madeira, EPE, no Santo da Serra, criado em 16 de março de 2006.
Para a maioria dos madeirenses o porco tinha um papel fundamental na dieta familiar; em torno dele, existia um ritual que acompanhava a sua matança. Não havia casa onde não acontecesse a célebre matança do porco por altura do S. João e do natal. Com o porco, conseguia-se a carne salgada, os enchidos e a banha, produtos que tornavam mais rica a dieta alimentar. Do mesmo se extraia o principal tempero da alimentação. A sua importância está bem patente no recenseamento do gado: em 1873, havia 23.510 suínos, número que entrou em queda no séc. XX, registando-se 22.772, em 1928, 16.462, em 1940, e 23.046, em 1950.
Dentro dos derivados com valor alimentar valorizava-se quase só a manteiga, que existia desde os inícios da ocupação da ilha. Mas só a partir da déc. de 60 do séc. XIX temos notícia da sua importação de Londres. A produção comercial na ilha deverá ter tido início após esta data. A primeira referência à exportação da manteiga de produção madeirense aconteceu em 1881, com 129 kg, subindo para 48.124, em 1893. Com efeito, o final do século é o momento de afirmação da pecuária, permitindo um melhor e mais alargado uso do leite e derivados na dieta alimentar.
Ficaram famosas as sobremesas madeirenses, baseadas na doçaria. Parte significativa do açúcar produzido na ilha, e mais tarde importado do Brasil, era usado no fabrico de conservas e de doçaria. São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes produtos. Entre eles, um documento de 1469, indicando que o fabrico de conservas era uma atividade importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava “mulheres de boas pessoas e muitos pobres que lavraram os açucares baixos em tantas maneiras de conservas e alfenim e confeitos de que têm grandes proveitos que dão remédio a suas vidas e dão grande nome a terra nas partes onde vão” (AHMa, 1972, 47-49). Os livros do quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispêndio que dele se fazia no fabrico de conservas, frutas secas e marmelada.
A fama da arte da confeitaria madeirense espalhou-se por toda a Europa e teve o seu expoente máximo na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao papa. Segundo Gaspar Frutuoso, esta compreendia “muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio todo feito de açúcar, e os cardiais todos feitos de alfenim, dornados a partes, o que lhes dava muita graça, e feitos de estatura de um homem” (FRUTUOSO, 1968, 248-249).
No séc. XIX, eram também muito apreciados os sorvetes e doces gelados feitos com neve trazida do alto das montanhas para o Funchal. Neste contexto, destacou-se o Poço da Neve do Pico do Areeiro. Ficou famosa a casa de Baxixa, tal como testemunhou John Dix, pois fabricava os melhores sorvetes, servindo-se da neve que recolhia da casa de gelo das montanhas. A partir de 1867, o fabrico de gelo por John Peyne & Son, utilizando água das fontes de João Diniz, tornou mais fácil o fabrico de sorvetes. Na déc. de 1920, persistiam ainda duas fábricas de gelo que continuaram por muito tempo a deliciar a gulodice dos amantes dos refrescos de verão.
A sobremesa não se resumia só à rica doçaria, pois desde o começo do povoamento que a ilha se mostrou terra fértil onde medrava todo o tipo de árvores de fruto. Primeiro, foi o domínio daquelas frutas conhecidas na Europa e, depois, a partir do séc. XVI, das exóticas, provenientes de África e da América. Enquanto as primeiras se anicham nas áreas acima dos 300 m de altitude, as segundas preferem as zonas ribeirinhas e soalheiras. A mais antiga referência que temos às frutas exóticas menciona a banana, indicada em 1552 por Thomas Nichols, mas a sua lista é variada e inclui o abacate, as ameixas, amoras, anonas, goiabas, a manga, o ananás, o araçá e o maracujá. Esta diversidade de frutos, sempre servidos à mesa na respetiva época, não era do agrado de todos os forasteiros. P. ex., Maria Carlota da Bélgica, em 1860, não era adepta de bananas, goiabas e maracujás, que acusava de terem um odor infeto e um sabor horrível.
O pão era e é um elemento fundamental da dieta alimentar. Provinha de confeção caseira ou de padeiras de profissão. Em muitas das casas, o forno assumia um lugar de prestígio social. Podemos, ainda hoje, encontrar vestígios de fornos nos bairros de Santa Maria e do corpo santo, onde sobressaem das paredes. Havia os fornos públicos servidos por forneiros que cobravam uma percentagem por cada alqueire de pão cozido. Mas, no primeiro quartel do séc. XX, a cidade estava servida de um conjunto variado de padarias que dispunham de pão fresco pela manhã e tarde, permitindo o seu consumo em qualquer momento e a todas as refeições. Com a farinha dos cereais, para além do pão, fazia-se o cuscuz, o bolo do caco, as malassadas (massa de farinha com ovos cozida no azeite), o frangolho (papas de farinha de trigo estraçoado) e o gófio. Por fim, a escarpiada, uma massa de farinha de milho cozida em pedra de barro, que se consumia no séc. XVIII, no Convento da Encarnação e que hoje persiste na ilha do porto santo.
A venda de todos estes produtos necessários à subsistência das populações fazia-se em mercados e feiras, que se realizavam diariamente ou uma vez por semana, em espaços determinados pela vereação. Aí se vendia fruta, peixe e outros produtos. Na vila e cidade do Funchal, desde o séc. XV, o mercado era um espaço de permanente intervenção do município, no sentido de facilitar a livre concorrência e de salvaguardar a qualidade dos produtos à venda. No séc. XIX, havia três mercados na cidade do Funchal. O primeiro, “de D. Pedro”, também conhecido como “da feira velha”, situava-se entre o Lg. dos Lavradores e o Lg. do Poço, mais propriamente nas traseiras da atual alfândega. Era o mercado de venda de legumes, hortaliças, frutos e outros géneros alimentícios. Foi a principal praça da cidade até que, a 1 de dezembro de 1940, abriu ao público o atual Mercado dos Lavradores. A venda dos produtos fazia-se e faz-se em barracas arrematadas à CMF pelos chamados “barraqueiros”. O mercado apresentava, por norma, os produtos da terra, enquanto a venda dava preferência aos de fora.
A oferta completava-se com os vendedores ambulantes ou ao domicílio, que apresentavam líquidos como azeite, vinagre e leite, além de hortaliças, aves, lenha e carvão. A figura do leiteiro, que ainda hoje sobrevive, define também uma forma de venda, no caso, de leite fresco ao domicílio. Ademais, os interessados podiam encontrar na cidade vacarias onde se servia o leite fresco ou ordenhado no momento, como acontecia com o leite de cabra. Além disso, o leite fresco de vaca era vendido na vacaria Burnay, no Lg. da Sé e na vacaria Sousa, na R. de João Tavira. A ilha apresentava, em 1928, 170.000 vacas de ordenha que produziam 20.000.000 de l.
O Funchal consumia anualmente 1.500.000 l de leite, o que equivale a cerca de 4000 mil l diários. O restante leite era usado no fabrico de manteiga e queijo. Em 1928, a produção de manteiga orçava as 1000 t, sendo exportada mais de três quartos. A situação é demonstrativa do rápido incremento que teve a atividade leiteira e a indústria da manteiga na região.
Quase toda a população rural vivia do que a terra produzia. O abastecimento de outros bens alimentares que complementavam a oferta da terra acontecia nas vendas ou mercearias. Aí vendia-se, em simultâneo, bebidas, nomeadamente o vinho de produção local, géneros alimentícios e artefactos locais ou de importação. A abertura de um novo estabelecimento de veda obrigava ao requerimento da licença camarária e depois do pagamento de uma taxa. Acrescem ainda outros requisitos para a abertura deste tipo de estabelecimentos, regulamentados ao longo dos tempos; p. ex., em 1931, eles deveriam localizar-se a mais de 500 m de distância das escolas. Para os mesmos, também se havia estabelecido padrões de higiene e sanidade no funcionamento. Assim, um regulamento de 1946 obrigava todos os estabelecimentos comerciais a terem água canalizada e pia num prazo de 90 dias, caso se situassem a mais de 100 m da canalização pública. Deveriam ainda possuir um vaso de barro com capacidade para 50 l. Os géneros alimentícios eram guardados em prateleiras envidraçadas ou em caixas fechadas. Depois, a partir do dia 1 de junho, surgiu a proibição de vender, no mesmo compartimento da venda, géneros alimentícios, tintas, óleos, guanos, sulfato de cobre e substâncias tóxicas ou nocivas à saúde.
À vereação camarária estava também acometida a tarefa de fixar os preços de venda ao público dos diversos géneros de produção local. Assim, anualmente, entre outubro e janeiro, eram estabelecidos os preços para todos os produtos colhidos no concelho: vinho, cereais, cebolas, feijão, favas, batata, carne, laranjas, limões, inhame, vimes, cana doce, etc.. As atas das vereações e as posturas municipais revelam-nos muitos dos problemas resultantes do abastecimento de bens alimentares e artefactos no mercado madeirense e das práticas especulativas que se procurava combater.
As feiras e mercados conviveram com as vendas e os vendedores ambulantes. Mas a déc. de 60 do séc. XX demarca um momento importante na evolução das estruturas de apoio ao comércio dos produtos alimentares. As vendas perderam atualidade, dando lugar a novas formas de negócio, com os supermercados e depois com os hipermercados. Eles são a transição para as atuais grandes superfícies, algo que se iniciou na Madeira em 1963, com o supermercado Bach, dando mais tarde lugar às cadeias nacionais de hipermercados.
Uma das situações que marcam a história da alimentação na ilha é a carência de produtos, que por diversas vezes gerou situações de fome. A dependência alimentar da ilha em relação ao mercado externo parece ter sido uma situação irresolúvel. Os limitados recursos alimentares do arquipélago, em contraste com o surto demográfico verificado, são os responsáveis pelas diversas situações de carência. A ilha necessitava de importar mais de 90% do milho e das farinhas consumidas. Assim, na déc. de 50, a ilha teve necessidade de importar mais de 40.000 t de cereais. De acordo com a capitação anual, no Funchal, consumia-se 110 kg de trigo por ano e 80,5 de milho; no meio rural, cerca de 43 de trigo e 41,6 de milho. Isto resultava de o facto de o homem do campo poder dispor de outros suplementos alimentares fruto da sua atividade agrícola.
Pelo que atrás dissemos, facilmente se conclui que a atual culinária madeirense é herdeira da tradição cultural dos colonos europeus e das contribuições dos forasteiros, além de consequência das Rotas marítimas que deram mobilidade às plantas e produtos que acabaram por chegar à ilha e, a partir dela, ser difundidos para a Europa. Os cereais perduram sob a forma de pão ou em diferentes cozinhados. O milho conhece-se hoje mais como frito do que em papas. A batata comum e doce persiste na mesa, embora já não com tanta importância. E a sobremesa é hoje mais requintada, rica e variada em aromas e sabores. Mas é tudo obra da natureza e do homem.
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Alberto Vieira
(atualizado a 30.08.2016)