guanches
Guanches é a designação que mais se vulgarizou para os indígenas das Canárias, mas, na documentação camarária, são conhecidos como escravos «canarios». Na Madeira, estes aborígenes estão testemunhados, pelo menos, como escravos provenientes das ilhas Tenerife, La Palma, La Gomera e Gran Canária. Palavras-chave: Canárias; Escravos; Guanches. Nas Canárias, os guanches são entendidos como os habitantes oriundos da ilha de Tenerife, mas tal designação foi a que mais se vulgarizou para os indígenas das Canárias, sendo também testemunhada por Gaspar Frutuoso quando se refere à população daquelas ilhas de uma forma global. Mas, na documentação camarária do Funchal, são conhecidos como escravos canarios. Também preferimos esta designação à de canários, por forma a não se confundir com o pássaro do mesmo nome. Na Madeira, a presença destes aborígenes das ilhas Canárias está testemunhada, pelo menos, como escravos provenientes das ilhas Tenerife, La Palma, La Gomera e Gran Canária. A informação que sobre estes é possível reunir na documentação é escassa e muito esparsa. A presença dos guanches na Madeira, na condição de escravos, é um dos principais resultados da intromissão dos madeirenses na pretensão portuguesa de conquistar as Canárias. Decorridos apenas 26 anos desde o início do povoamento da Madeira, os madeirenses embrenharam-se na complexa disputa pela posse das Canárias, ao serviço do infante D. Henrique. Desta forma, já na primeira metade do séc. XV, surgiram algumas incursões com partida da Madeira, existindo notícia de três (1425, 1427, 1434), das quais resultou o aprisionamento de escravos. Com a expedição à costa africana de 1445, o madeirense Álvaro de Ornelas fez um desvio à ilha de La Palma, onde tomou alguns indígenas que conduziu à Madeira. Nas inúmeras viagens organizadas por Portugueses, entre 1424 e 1446, surgem escravos como mercadoria que, depois, era vendida na Madeira ou em Lagos. Nos anos de 1445 e 1446, estão também documentadas diversas expedições às Canárias, que contribuíram para o aumento da presa de escravos no arquipélago na Madeira. Em 1445, os dois capitães da ilha – Tristão Vaz e Gonçalves Zarco – enviaram caravelas de reconhecimento à costa africana, mas o fracasso da viagem levou-os, no retorno a procurar presa em La Gomera. Álvaro Fernandes fez dois assaltos em La Gomera e, em 1446, foi enviado por João Gonçalves Zarco, segundo Zurara, com a intenção de realizar alguma presa. É a partir daqui que devemos situar a importância que assumiram os escravos das Canárias na sociedade madeirense. A partir de meados do séc. XV, são assíduas as referências a tais servos na ilha da Madeira, identificados como pastores e mestres de engenho. Estranhamente, nos testamentos do séc. XV, não encontramos nenhuma indicação que abone a sua presença. Para além dos dois que possuía o capitão Simão Gonçalves da Câmara, sabe-se que João Esmeraldo, na Lombada da Ponta do Sol, era também detentor de escravos daquela origem, sem ser referido o número. Cadamosto, na primeira passagem pelo Funchal em 1455, fala-nos de um guanche cristão que se dedicava a fazer apostas sobre o arremesso de pedras. O principal estigma da sociedade madeirense para com este grupo estava relacionado com os fugitivos, que são apresentados como violentos e ladrões. E mesmo entre os demais, as relações não deveriam ser muito boas, uma vez que o senhorio da Madeira determinou, em 1483, uma devassa, seguida de ordem de expulsão, em 1490. De acordo com este último documento, todos os escravos canarios, oriundos de Tenerife, La Palma, La Gomera e Gran Canaria, excetuando-se os mestres de açúcar, as mulheres e as crianças, deveriam ser expulsos do arquipélago. Mas, neste caso, o infante apenas considerou os escravos forros. A 4 de dezembro de 1491, houve uma reunião extraordinária da Câmara para deliberar sobre o assunto. A ela assistiram o capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, os oficiais concelhios e os homens bons. Ao todo eram 25, e destes, 11 votaram a favor da saída de todos, 9 votaram apenas pela saída dos escravos forros, e 4, pela sua continuidade na Ilha. Dos primeiros, registe-se a opinião de João de Freitas e Martim Lopes, que justificam a sua opção afirmando que todos os guanches, livres ou escravos eram ladrões. Para Mendo Afonso, não era assim que se castigava tais atropelos, pois existia a forca como solução. Em 1503, o problema ainda persistia, ordenando o Rei que todos eles fossem expulsos num prazo de 10 meses. Posteriormente, a Coroa retrocedeu, abrindo uma exceção para aqueles que eram mestres de açúcar e para dois escravos do capitão – Bastiam Rodrigues e Catarina –, por nunca terem sido pastores. As evidências da documentação, complementadas pelos usos e costumes, técnicas de construção e produção e, ainda, pela toponímia, são a expressão de uma relação histórica que abraçou ambos os arquipélagos. De facto, na Madeira, da presença dos canarios, muitas vezes identificados como mouros e índios, ficaram rastos evidentes na documentação, toponímia e tradição oral. No caso da toponímia, que identifica acidentes geográficos e grutas, é de salientar a sua localização no interior da Ilha, o que os relaciona com os fugitivos ou pastores, maioritariamente guanches. Assim, temos alguns vestígios de guanchismo em nomes como pico do Canario, Garachico, Massapez, ilhéu do Guincho; o primeiro parece associar-se à população em causa, e os outros são palavras com origem no dialeto dos guanches. Deste modo, associa-se-lhes a tradição relacionada com a construção de furnas para habitação no concelho da Ribeira Brava e também certos locais de culto religioso, como sucede com a capela cristã do séc. XVII na freguesia de S. Roque do Faial, que teria sido construída no local de um templo associado a estes, ditos mouros. Não é certo se o pico Canário (Santana) e o lugar do Canário (Ponta de Sol) se referem ao escravo ou ao pássaro, comum nestes arquipélagos. Note-se que, em abono do último caso, temos a referência de que João Esmeraldo era possuidor de escravos desta origem na sua Lombada que, não obstante estar perto da vila, pertencia à jurisdição do município do Funchal. Estão referenciadas grutas nos seguintes locais: cais do Campanário, Calhau da Pesqueira (Ponta do Pargo), Furna do Negro (Ribeira Seca), Ribeira da Tabua, Lapa do Castelhano (Paul da Serra), Eira da Moira (Serra de Água), Furna da Moira (Lugar da Serra). Todas as grutas do litoral e do interior denotam uma atualização recente, tornando-se difícil saber a autoria e o início do seu funcionamento. Nos casos das do Campanário e Ponta do Pargo, ligam-se à atividade do mar, enquanto as do interior, se estiverem próximas de terrenos agrícolas, são consideradas armazéns de guarda dos utensílios agrícolas e palheiros para o gado; por seu lado, as da zona de floresta denotam utilização por carvoeiros, pastores e viajantes. Estas estruturas são associadas a túmulos, identificados como originários de mouros, seguindo uma tradição peninsular em que tudo o que não é cristão é merecedor deste epíteto. A par disso, existem no interior da Ilha, nomeadamente na zona do Paul da Serra, diversas estruturas escavadas na rocha que poderão estar associadas à presença destes ou doutros grupos. A influência dos guanches, na condição ou não de escravos, não se fica pelos lugares recônditos da Ilha, pois também chegou ao meio social madeirense. Há ainda outras situações que testemunham esta mútua influência cultural, nomeadamente a generalização do consumo do gofio, que assumiu um papel fundamental na dieta das populações do Porto Santo, com a designação de “gofé”, mas que também surge na Madeira, e.g. na Camacha. Outra aportação desde as Canárias para a Madeira deverá estar nas técnicas ligadas aos meios de transporte do vinho. Assim, o uso de odres – os borrachos na nomenclatura madeirense – para transportar o vinho deverá estar relacionado com esta influência berbere, não obstante o seu uso peninsular, sendo referenciado em Lisboa para o transporte de mel e azeite. Em relação a esta influência canária, na generalização deste meio de transporte do vinho tenha-se em consideração a tradição dos guanches no tratamento dos couros, nomeadamente do gado caprino, que usavam como vestuário ou bota para transporte de líquidos (leite, vinho). O povoamento cinegético das ilhas Desertas com cabras das Canárias, por determinação da Câmara do Funchal de 28 de julho de 1481, poderá ser mais um elemento a corroborar esta situação, tendo em conta o uso preferencial, nos dois espaços, da pele de cabra com a mesma finalidade. Finalmente, tenha-se em conta que, quer os guanches (em Mesquer, na ilha de Fuerteventura) quer os berberes em Marrocos (em Marrakech), tinham instalações para o curtume de peles, cujas estruturas se apresentam semelhantes às que conhecemos na Serra de Água e Tabua, na ilha da Madeira. A situação destas estruturas da Ribeira da Serra da Água e Ribeira da Tabua, em pleno leito da ribeira, indicia, em hipótese, a sua relação com uma indústria de curtumes que deverá ter existido e a que não deverá ser alheia a presença de escravos canarios e mouriscos. Alberto Vieira (atualizado a 13.12.2017)
invejidade
O termo é considerado no “vocabulário madeirense”, sinónimo de “inveja”, mas não será bem assim. A melhor definição que encontramos é dada por Alberto Arthur Sarmento quando fala sobre os problemas em torno da construção e do funcionamento da estufa de John Light Banger, no Funchal, em 1768: “É termo bem característico madeirense – a invejidade, significando a inveja mal reprimida, encapotada, que mói e ginga, repisa e muito gira, a lançar mão de todos os meios para se alastrar, procurando anular a sombra que a escurece e molesta, húmida e fria, infiltrante, deprimindo o que é alheio, a roçar-se a esquina, para realização dos seus fins. É a inveja dinâmica, sem sentido, nem direção, impando uma coragem embexigada pela vacina do medo” (SARMENTO, 1944, 29). A inveja é um dos sete pecados capitais e pode ser entendida como o desejo de alguém em relação a determinados atributos, posses ou status do outro. Este sentimento materializa-se através de uma certa atitude do olhar, a que se chama “mau-olhado”, “olho gordo” ou “roxo”. Através do pensamento ou de tal atitude do olhar, atingimos os outros, provocando danos. Daí a necessidade de “limpar” ou desfazer esta energia. Para afastar os efeitos da invejidade, usam-se plantas, raízes, sementes e ervas, sob a forma de defumações e banhos que têm o efeito de purificar, proteger ou curar. Nos jardins de muitas casas madeirenses, há uma planta de alecrim, em conjunto com uma pimenteira e arruda, com o mesmo objetivo. O alecrim é mesmo conhecido como a “erva das bruxas”, sendo usado “para defesa dos domicílios e amuleto pessoal contra a inveja e mau olhado” (PEREIRA, I, 1989, 189). Para sarar esta inveja, é usual os madeirenses socorrem-se de curandeiros, que fazem umas rezas apoiados nas referidas plantas. E Sarmento refere-nos uma das muitas preces que existem na tradição popular: “Eu te curo de olhado mal invejado e empresado, em o nome que o padre te pôs na pia, com o nome de Deus e da Virge-Maria e das três pessoas da Santíssima Trindade. Se está mal invejada, no seu comer, ou no seu beber, no seu vestir, no seu calçar, no seu ter, na sua boniteza, na sua formosura [...] na sua gordura, no seu andar; quem invejou com mau mado não torne a invejar. Arrebenta-te, cão, vai-te p’ra o inferno. Alecrim verde, que nasce no campo, tirai este mal e este quebranto. Home bom, mulher irada, palhas aguadas, por onde este mal entrou por lá saia. Credo, três vezes credo, arrebenta cão nas profundas do inferno” (SARMENTO, 1912, 114-115). A diversidade destas rezas, o numeroso grupo de curandeiros que existe em quase todas as localidades da Madeira, bem como a insistente presença das plantas em questão nos jardins locais, nomeadamente na entrada das casas, indiciam que, no começo do séc. XXI, esta tradição se mantinha ativa na Madeira e que a inveja tinha aí um terreno fértil para medrar. Neste período, ao grupo de plantas que, por tradição, os madeirenses sempre usaram, juntaram-se outras, como a chamada língua de sogra ou espada de S. Jorge (Sansevieria trifasciata), o asplênio (Asplenium nidus) e as zamioculcas (Zamioculcas zamiifolia). Daqui ressalta a importância que, cada vez mais, a etnobotânica tem no quotidiano dos madeirenses: sabemos que, de forma clara, as plantas e flores deixaram de ter apenas uma função ornamental para se adequarem a outros papéis, em termos energéticos e espirituais, servindo para a “limpeza” e proteção espiritual de pessoas e casas. A invejidade é um traço comportamental que se torna mais notado em espaços pequenos, definidos pelos madeirenses como poios, mesmo na sociedade global do séc. XXI: ninguém larga o seu poio, ou seja, os seus hábitos, usos e costumes, as suas atitudes e os seus sentimentos. Não há estudos de caráter sociológico sobre os comportamentos dos madeirenses nos sécs. XX e XXI que permitam entender este particular. Também no campo da história, faltam estudos ou relatos que permitam entender a diversidade de atitudes e comportamentos que definem o madeirense. A invejidade é a cobiça refinada e destrutiva que limita o progresso e o convívio social. Não é visível em poucas palavras, manifestações e olhares. Funciona como uma mão invisível que todos negam, mas que está presente de forma diária nas atitudes, nos desejos e nas palavras da população e que se torna expressiva, por exemplo, na literatura popular madeirense, nas quadras que o povo canta. Com efeito, encontramos aí um discurso moral no sentido da sua erradicação: “Inveja é pranta ruim / Que lavra por toda terra. / Se traz raízes no mar / Já bota as folhas na serra” (PORTO DA CRUZ, 1954, 14). Na imprensa, como na literatura, é frequente o tema da invejosidade ou da inveja, atitude que aparece como um dos males que assola a Ilha. Assim, em 1874, alguém que assinou sob o pseudónimo de J. Fausto afirmava: “Das mesquinhas intrigas de inveja, de que está desgraçadamente infecionado o solo madeirense” (Estrella Litteraria, 1874, 4). Depois, em 1912, o já citado Alberto Arthur Sarmento, num conto sobre “A camada de olhado”, refere que a invejidade “em matéria de malefícios era d’arromba” (SARMENTO, 1912, 150). Ainda o mesmo autor, na questão sobre a estufa para beneficiação do trigo construída junto ao Pilar de Banger, dedica um capítulo ao que chama “a invejidade” para ilustrar os problemas decorrentes da construção dessa obra (Id., 1944, 30). Para além disso, temos alguns ditados populares que são expressivos, quanto à generalização da inveja. Em 1952, pode ler-se no periódico Re-nhau-nhau o seguinte adágio popular: “Se a inveja fosse tinha toda a gente andava tinhosa” (Re-nhau-nhau, 10 abr. 1952, 2). Depois, em 1996, afirmou-se no mesmo que “ambições, invejas, caprichos, interesses, egoísmos andam com os homens por onde eles vão para todos os rumos, não há direção que não sigam essas fraquezas da raça humana” (Id., 14 jan. 1996, 4). Vale a pena recordar que, em 1882, no Diário da Tarde, ao comentar-se os problemas e as reclamações em torno da ação do visconde de Canavial, foi afirmado: “ Ai! Se a inveja fosse tinha...” (Diário da Tarde, 21 dez. 1882, 2). É certo que estamos perante uma atitude universal, mas que ganha significado e evidência em espaços pequenos e a pequenez do “poio” pode ser um meio facilitador da sua propagação. Talvez por essa razão, Ferreira de Castro acentuou a questão, escrevendo “todos [...] os seus ódios, as suas invejas” (CASTRO, 1977, 159) e a escritora Agustina Bessa Luís, ao escrever sobre a Madeira, refere “a inveja e o ódio de muitos séculos” (LUÍS, 1996, 16). Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)
tabaco
O tabaco chegou a Portugal, no séc. XVI, a partir do Brasil. Começando por ser usado como um produto de uso medicinal, foi, durante muito tempo, uma mercadoria de troca do comércio madeirense com o Brasil. Na Madeira, o seu consumo generalizou-se rapidamente a partir do séc. XVII, com o consumo do tabaco em pó. O cheiro ou o fumo do tabaco faziam parte dos fatores de prestígio social, pelo que todos o consumiam. Palavras-chave: comércio; estancos, tabaco. O tabaco chegou a Portugal, no séc. XVI, a partir do Brasil, tendo sido inicialmente usado como um produto de uso medicinal. O tabaco foi, durante muito tempo, uma mercadoria de troca do comércio madeirense com o Brasil. Trocavam-se pipas de vinho e de aguardente por tabaco, cacau e cravo. Foi o que sucedeu em 1673, com o governador e capitão-general da Madeira João Saldanha de Albuquerque, que requereu os bons ofícios do governador do Maranhão, Pedro César de Menezes, remetendo-lhe tabaco em troca de vinho. A importância deste produto está definida na existência da Alfândega do Açúcar e Tabaco, em Lisboa, que se extinguiu em 1761. A Madeira, que tinha contactos permanentes com o Brasil, passou também a receber este produto, que rapidamente se generalizou em termos de consumo a partir do séc. XVII, com o consumo do tabaco em pó. O cheiro e o fumo do tabaco tornaram-se fatores de prestígio social a que todos aderiam, até mesmo os escravos, pois, em 1694, é referido na nota de óbito de um escravo velho do provedor da Fazenda que este fumava tabaco com cachimbo. Os cachimbos de diversas proveniências que têm sido recolhidos em escavações arqueológicas revelam tal uso alargado. Também não devemos esquecer que o tabaco era conhecido como a “erva-santa” e usado como analgésico. Esta situação resulta das assíduas relações comerciais com o Brasil, assim como do facto de a venda do vinho dever ser feita a troco de mercadorias oferecidas pelos mercadores estrangeiros. Entre estas, surgia o tabaco, que, tendo-se tornado uma moda, viu o seu consumo ultrapassar as barreiras da clausura e chegar até aos conventos de Santa Clara e da Encarnação. Neste último, as freiras recebiam, pelo Dia de Reis, uma ração de sete libras e meia de tabaco. A partir da época filipina, deu-se início ao estabelecimento de contratos de arrematação para a sua comercialização. Em 1639, assistiu-se ao estabelecimento do estanco do tabaco. Estancar é impedir a venda livre de um produto, definindo assim o estanco a situação de monopólio de venda. Com o tempo, o estanco passou, também, a designar o espaço ou local de venda ao público do tabaco. Na Madeira, a R. do Estanco Velho guarda a memória desse lugar, que se manteve até à publicação da lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitida a plantação de tabaco nas ilhas da Madeira e dos Açores e o seu livre fabrico e comércio. Os chamados estanqueiros do tabaco aparecem como pessoas prósperas, o que pode ser revelador de que esta atividade mobilizava muito dinheiro. A título de exemplo, referimos que, em 1679, Aires de Ornelas e Vasconcelos arrendou este contrato na Madeira e Porto Santo a Manuel Escórcio, por 130.000 réis. A este contrato surgem ligados, no séc. XVIII, os nomes de Pedro Jorge Monteiro, António José Monteiro e Feliciano Velho Oldemberg. Tudo isto porque o tabaco se vendia nos estancos a preços elevados e o seu consumo, bem como o do rapé (tabaco em pó), estava generalizado e manteve-se por muito tempo na Ilha, como testemunha, por exemplo, em 1864, o alemão Rudolf Schultzen, na obra Die Insel Madeira: Aufenthalt der Kranken und Heilung der Tuberkulose daselbst. A situação de dependência económica insular face à metrópole manteve-se por muito tempo, determinada por decretos e medidas limitativas das relações com outros mercados. As ilhas continuaram sujeitas aos monopólios do tabaco e do sabão, sendo o fornecimento local feito através de um estanqueiro que estabelece uma rede em todas as freguesias rurais. Esta imposição e regularidade das relações com a metrópole, associada aos monopólios de fornecimento de alguns produtos, como o tabaco, o sabão e o sal, geraram uma subordinação e dependência que deram forma a um trato comercial desvantajoso, por falta de contrapartidas. Por outro lado, favoreceram o contrabando, que será praticado, ao longo dos tempos, um pouco por toda a costa madeirense. O estanco do tabaco foi estabelecido em 1639, como se disse, e extinto a 23 de agosto de 1642, sendo, no entanto, o contrato renovado em 26 de junho de 1644. A 14 de maio de 1650, foi adjudicado o contrato por sete anos, ficando excluídos do mesmo a Índia, o Brasil e alguns lugares de África. Por alvará de 14 de julho de 1674, foi criada a Junta da Administração do Tabaco, mantendo-se a lei de 28 de fevereiro de 1668, que regulamentava o contrabando desse produto. A sua composição e atribuições foram estabelecidas pelos regimentos publicados em 6 de dezembro de 1698 e 18 de outubro de 1702. A estrutura de funcionamento era definida por um presidente, cinco deputados e um secretário. A estes juntam-se os cinco ministros (um para cada província) superintendentes do tabaco, coadjuvados por meirinhos e seus escrivães, para fiscalizar a atividade comercial em torno do produto e evitar o contrabando, conforme regimento de 23 de junho de 1678. Por alvará com força de lei de 20 de março de 1756, que acabou com os ofícios de executores da Alfândega do Tabaco, foi criado o cargo de juiz executor das dívidas da Junta da Administração do Tabaco. No âmbito das suas competências e atribuições, destaca-se o facto de, durante a sua administração, lhe pertencerem todas as matérias e negócios relacionados com o produto, bem como as causas cíveis e crimes sobre o mesmo. Era também o juiz que provia todos os lugares da Junta, da Alfândega e dos conservadores do tabaco das comarcas. Todo o tabaco para consumo do reino era adquirido pela Junta do Tabaco, que depois o fazia vender nos diversos estancos, por meio de contratadores. O monopólio ou estanco do tabaco, que estava na superintendência da Junta da Administração do Tabaco, ficou, a partir da sua extinção em 15 de janeiro de 1775, a depender da Junta da Real Fazenda. A sua administração na Madeira estava entregue ao provedor da Fazenda, a que se associavam um meirinho do estanco, um escrivão das diligências, um juiz conservador e um administrador recebedor do tabaco. Foram juízes do estanco o célebre poeta Manuel Tomás, autor da Insulana, e Ambrósio Vieira, provedor da Fazenda. O fim do estanco do tabaco foi novamente decretado a 17 de junho de 1830, sendo restabelecido por decreto de 21 de abril de 1832 e contratado ao barão de Quintela, pelo decreto de 10 de dezembro de 1832. Foi depois, de novo, abolido por lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitido o seu cultivo na Madeira e nos Açores. O contrato do tabaco era uma fonte significativa de rendimento, sendo usado como moeda de troca, como sucedeu, em 1834, ao ser estabelecido como garantia dos empréstimos feitos em Londres pelo Estado português. No séc. XIX, esta indústria teve grande incremento, surgindo duas importantes fábricas em Lisboa e no Porto. Em 1844, surgiu a Companhia Nacional de Tabacos, com sede em Xabregas, a que se juntaram outras três companhias nacionais. Durante esta centúria, esta foi a principal indústria nacional, de forma que, no inquérito industrial de 1881, são referidas 16 fábricas e 6 oficinas em todo o país. Em 1888, a medida de expropriação das fábricas de tabaco, dando-se a exploração à Companhia dos Tabacos de Portugal, gerou inúmeros conflitos no meio nacional. Segundo a lei de 27 de outubro de 1906, regulamentada pelo contrato de 8 de novembro, o Estado tinha uma participação nos lucros de 50 contos, para os anos de 1907 a 1910. Por decreto de 11 de julho de 1907, foi aprovado o contrato para o período de 1 de maio de 1907 a 30 de abril de 1926, em que a Companhia se comprometia, mediante o monopólio da produção do tabaco, a entregar ao Estado uma renda anual fixa de 620 contos e uma participação determinada nos lucros. Por decreto n.º 4510, de 27 de junho de 1918, autorizou-se o aumento do preço do tabaco, mediante um aumento mínimo na participação dos lucros. A 4 de agosto de 1924, foi feito um acordo em que foi fixada a renda para os anos seguintes e alteradas as regras de cálculo da participação nos lucros. A 24 de março de 1924, foi votado o decreto que regulamentaria o novo regime do tabaco, que só foi posto em prática a partir de março de 1926. A partir de 1 de maio de 1926, o Estado passou a administrar diretamente esta atividade, conforme ficou estabelecido no decreto n.º 11.766, de 24 de junho de 1926. A partir do decreto n.º 13.587, de 11 de maio de 1927, foi estabelecida a liberdade de produção e venda sob controlo do Estado. A partir de então, os lucros do Estado advinham do imposto sobre a produção e participação nos lucros das companhias. Assim, abriam-se as portas à liberdade do fabrico de tabaco que só estava permitido nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra. As licenças eram atribuídas, por 30 anos apenas, a empresas cujo capital fosse superior a 1000 contos-ouro. No concurso realizado para a administração das oficinas que pertenciam ao Estado, foi vencedora a Companhia Portuguesa de Tabacos de Lisboa. No caso das ilhas, foi autorizada a livre plantação do tabaco por lei de 13 de maio de 1864, reconfirmada pela lei de 15 de junho de 1864 e pelo decreto de 8 de outubro de 1885. Esta aposta na nova cultura, que não teve sucesso na Madeira, foi considerada uma forma de se procurar meios para segurar a economia agrícola do arquipélago face aos problemas com o comércio do vinho. Foi uma época de experimentação de múltiplas culturas com valor industrial, capazes de substituírem a vinha como factor animador da economia interna e de exportação do arquipélago. As primeiras plantações começaram a partir de 1877, altura em que se fundou a primeira fábrica de manipulação do produto. Com o estabelecimento, em 1908, da Companhia de Tabacos da Madeira e depois, a partir de 1913, da Empresa Madeirense de Tabacos Lda., a exploração ficou quase em regime de monopólio, sob o comando das famílias inglesas, com particular destaque para a Casa Leacock & Co. Ainda no período de 1959 a 1961, na Qt. do Bom Sucesso, propriedade da Junta Geral, se faziam ensaios com a plantação de tabaco. A lei de 13 de maio de 1864 havia estabelecido uma situação distinta para as ilhas no referente ao tabaco, dando-lhes a possibilidade de o cultivar, mas com um agravamento no imposto predial. A 15 de março de 1864, os deputados pela Madeira haviam apresentado uma proposta para a promoção da cultura do tabaco, estabelecendo um imposto de 250 a 500 réis por cada are de terra cultivada, de acordo com a sua qualidade. Entre 1865 e 1875, não houve qualquer tentativa de cultivo da planta na Madeira e era voz corrente a reclamação contra o referido decreto, sendo disso porta-voz o Gov. Civil Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro em ofício de 21 de junho de 1876 ao ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda. Por outro lado, tal como o havia indicado D. João da Câmara Leme, o tabaco, como outras culturas, não teria grande rentabilidade na Ilha: “Há plantas que, conquanto sejam cultivadas noutros países com muito proveito, e se deem bem neste clima não podem ser cultivadas aqui com vantagem; porque nos faltam condições importantes que, nesses países, favorecem tais culturas: assim não é para a Madeira a cultura em grande escala do algodão, nem a do tabaco, nem mesmo o chá” (LEME, 1876, 19). A Madeira passará, assim, a importar tabaco, especialmente dos Açores, chegando mesmo a importá-lo de Porto Rico, dos EUA, de Cuba e, na déc. de 60, de Angola. Outras vozes se levantaram contra esta situação considerada ruinosa para a Madeira, pelo que começaram a surgir plantações de tabaco um pouco por todo o lado. Desta forma, em 1877, foi criada a Fábrica de Tabacos Madeirense, seguindo-se outras em 1881 e em julho de 1919. Em 20 de janeiro de 1920, criou-se um imposto municipal de $50 por cada kg de tabaco despachado na Alfândega, que, no ano de 1922, rendeu à Câmara do Funchal 21.837$21. Pelo dec.-lei n.º 39.963, de 13 de dezembro de 1954, este foi aumentado para 8$00 por kg, dos quais 6$00 constituía receita das câmaras municipais, pertencendo o restante às juntas gerais. Assim, ontem como hoje, o tabaco mereceu diversas formas de tributação, assumindo-se como uma importante fonte de receita tributária na Madeira. Faltam, no entanto, dados que permitam entender o volume do seu consumo na Ilha. Os novos dados conhecidos referem-se já à déc. de 50 do séc. XX, em que a cobrança atingiu, mais especificamente em 1958, o valor mais elevado: 105.801$20. Será no séc. XX que este produto será alvo de diversas formas de tributação. Na lei n.º 1657, de 3 de setembro de 1924, ficou estabelecido o imposto de 80 réis ouro por cada quilo de tabaco manufaturado na Ilha ou importado dos Açores, coisa que não acontecia nos Açores, nem no continente. Pelas leis de 10 de julho de 1919 e 22 de janeiro de 1920, surgiu o imposto municipal de tabaco que onerava em $50 cada quilo de tabaco exportado na Alfândega. De acordo com o artigo 1.º do dec.-lei n.º 444/86, de 31 de dezembro, o tabaco manufaturado, destinado ao consumo no continente português e nas regiões autónomas, quer de produção nacional, quer importado, está sujeito ao imposto de consumo sobre o tabaco. O valor de 1 % desta receita está consignado ao Ministério da Saúde para a luta contra o cancro. Pelo artigo 7.º do citado diploma, foram fixadas as taxas do imposto de consumo relativo a cigarros, constituídas por dois elementos: um específico e outro ad valorem. O artigo 8.º fixou as taxas do imposto de consumo relativo aos restantes produtos de tabaco manufaturado. A administração do imposto de consumo compete à Inspeção-Geral de Finanças, no que diz respeito ao tabaco saído das áreas fiscalizadas referidas no artigo 19.º, situadas no continente, e à Direção-Geral das Alfândegas, nos restantes casos. Depois, destaca-se o imposto especial de consumo sobre o tabaco que se encontra regulamentado pelo Código do Imposto Especial de Consumo (CIEC), publicado pelo dec.-lei n.º 566/99, de 22 de dezembro. O imposto especial de consumo, ou IEC, é, na verdade, o conjunto de três impostos que incidem sobre certos produtos (tabaco, produtos petrolíferos e bebidas alcoólicas) fabricados ou colocados no território português. Em 2005, a taxa do imposto do tabaco era de 8,69 %, enquanto no continente era 6,6 %, ficando a percentagem ad-valorem em 35 %. As estampilhas fiscais eram usadas em diversas formas de pagamento, nomeadamente taxas e emolumentos, casos em que a receita não pertencia ao imposto do selo. Por lei n.º 150/99, de 11 de setembro, que estabeleceu o regulamento do imposto de selo, as estampilhas fiscais foram abolidas. Parte do imposto sobre o tabaco produzido no distrito do Funchal ou importado das ilhas dos Açores era uma receita repartida entre as câmaras municipais e a Junta Geral. A receita do imposto do tabaco fora atribuída por lei de 10 de julho de 1914 às obras da Junta Autónoma dos Portos da Madeira (JAPAM). Entre 1972 e 1981, entraram na contabilidade da JAPAM 46.400 contos de impostos aduaneiros (entre estes, o imposto sobre o tabaco), 532.980 contos de taxas portuárias e 350 contos de multas. A batalha pela reivindicação de mais receitas para a Junta Geral, que é o mesmo que dizer o retorno das receitas dos madeirenses, continuou. Assim, na sessão de 20 de setembro de 1920, reclamava-se que revertesse para a Junta Geral a totalidade dos impostos lançados pelo Governo central sobre produtos como o tabaco e estabelecimentos bancários, que na Madeira perfaziam cerca de 400 contos e que estavam destinados à assistência pública. O tabaco, por ser um produto sujeito a contrato exclusivo de venda, foi muito cobiçado e apetecido em termos do contrabando. Tal contrabando perdura no séc. XX, sendo uma das atividades ilícitas mais assinaladas e regulamentadas. Neste processo, até o clero intervinha, havendo referência a uma iniciativa nesse sentido por parte de Fr. António de S. Guilherme, em 1768. Recorde-se que, em 12 de novembro de 1768, o Gov. João António Sá Pereira refere que um guardião do convento, o P.e Manuel Joaquim de Oliveira, que contrabandeava tabaco, foi enviado para Lisboa, sob prisão. No séc. XIX, muito deste contrabando de tabaco era feito por Ingleses, nomeadamente a partir da possessão inglesa de Gibraltar. A 1 de fevereiro de 1876, regressava ao Funchal Leland Cossart, deixando o despacho das suas malas a cargo de um seu criado, como era costume. Pelo facto de se ter encontrado tabaco na bagagem, foi o empregado preso. Por força disto, movimentou-se o cônsul britânico em diligências, no continente e junto de autoridades britânicas, conseguindo-se a entrega das malas e, depois, a libertação do prisioneiro. O grande incentivo à cultura do tabaco aconteceu a partir da déc. de 70 do séc. XIX, altura em que surgiu a primeira fábrica, da responsabilidade do visconde de Monte Belo, a que se seguiu, em 1888, outra de João Sales Caldeira, que viria a tornar-se propriedade de Joe Berardo e Horácio Roque. Nos inícios do séc. XXI, a Madeira continua a ter um regime diferenciado no que respeita ao tabaco, existindo uma fábrica, a Empresa Madeirense de Tabaco S.A., que assegura o abastecimento local. Esta empresa, fundada em 1913 a partir da Companhia de Tabacos da Madeira, viu-se obrigada, em 1930, face à concorrência das empresas de tabaco açorianas, a comprar a fábrica Estrela, em São Miguel. Legislação: dec.-lei n.º 444/86, de 31 de dezembro: aprova o novo regime fiscal dos tabacos e revoga os decs.-lei n.º 149-A/78, de 19 de junho, 93/91, de 29 de abril, 196/83, de 18 de maio, 34/84 de 24 de janeiro, 115-A/85, de 18 de abril, e 172-D/86, de 30 de junho; dec.-lei n.º 49/90, de 10 de fevereiro; dec.-lei n.º 231/91, de 26 de junho; dec.-lei n.º 75/92, de 4 de maio; dec.-lei n.º 55/93, de 1 de março; dec.-lei n.º 325/93, de 25 de setembro; decs.-lei n.º 75/94, de 7 de março, n.º 221/94, de 23 de agosto, n.º 197/97, de 2 de agosto, pela lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro, e pela lei n.º 10-B/96, de 23 de março; dec.-lei n.º 103/96, de 31 de julho; dec.-lei n.º 197/97, de 2 de agosto; lei n.º 127-B/97, de 20 de dezembro; dec.-lei n.º 566/99, de 22 de dezembro; dec.-lei n.º 170/2002, de 25 de julho; diretiva n.º 2002/10/CE, do Conselho, de 12 de fevereiro; desp. normativo n.º 14/2005, de 24 de fevereiro; desp. normativo n.º 2/2004, de 10 de janeiro; dec.-lei n.º 155/2005, de 8 de setembro. Alberto Vieira (atualizado a 30.01.2017)
praias
Na Madeira, praia é muitas vezes sinónimo de calhau; a maioria é pedregosa, sendo muito raras as de areia: a Prainha, na freguesia do Caniçal, perto da Ponta de São Lourenço, de areia preta, e as do Porto Santo, de areia fina e amarela. Fernando Augusto da Silva atesta que “já disse alguém que na Madeira não havia praias, talvez pela circunstância de não serem de areia e terem uma limitada extensão. Com efeito as desta ilha, excetuando a da Prainha no Caniçal, são formadas de pequenas pedras ou calhaus rolados e de escuro basalto, tendo todas elas um aspeto sombrio e um piso difícil e incómodo” (SILVA, 1984, II,300). As principais praias da Madeira são as seguintes: Prainha, Caniçal, Machico, Seixo, Santa Cruz, Porto Novo, Reis Magos, Funchal, Formosa, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Lugar de Baixo, Madalena do Mar, Calheta e Paul do Mar, Porto do Moniz, São Vicente, Fajã da Areia, Ponta Delgada, São Jorge e Porto da Cruz. No Porto Santo, onde as praias são todas de areia amarela, temos as praias do Penedo, do Cabeço, da Calheta, da Fontinha e das Pedras Pretas. No Funchal, devemos referir a existência de uma extensa praia de calhau entre as três ribeiras aí existentes, que deixou de estar visível em toda a extensão da baía devido à construção da Av. do Mar, de iniciativa do então presidente da Câmara, Fernão de Ornelas. Em memória dessa praia, ficou na toponímia da cidade a R. da Praia. A ideia que os insulares fazem do mar e das suas praias e enseadas abertas mudou no séc. XX, pois estas foram durante muito tempo pensadas de acordo com a facilidade no embarque e desembarque para os locais e forasteiros, mas também como ameaça, por causa da possibilidade de intrusos externos, nomeadamente piratas e corsários. Neste último caso, revelam-se um obstáculo às condições de defesa e segurança das populações, havendo necessidade de as prover de fortificações e de meios de vigilância. Esta imagem das praias madeirenses é veiculada por Paulo Dias de Almeida. Assim, ao referir-se à praia Formosa, observa: “Ao Oeste da cidade a pouco mais de meia légua, há a magnífica Praia Formosa, muito favorável a um desembarque” (CARITA, 1982, 59). Desta, já em finais do séc. XVI, dissera Gaspar Frutuoso: “Dobrando esta ponta, foram dar em uma formosa praia que, pela formosura e assento dela, lhe pôs nome a Praia Formosa.” E assim se chama “por não haver outra semelhante em toda a ilha, que terá como um quarto de légua de areia” (FRUTUOSO, 1979, 48, 117). Quanto à Ribeira Brava, “o porto é muito mau e raras vezes se encontra bom mar para desembarcar. A praia é de um calhau muito grosso, com algumas pedras e só os barcos ali costumados encalham sem risco pois a sua construção é própria para essa qualidade de praias. É costume ali carregar os barcos encalhados e depois de carregados, deitá-los ao mar, esperando a vaga, e isto muitas vezes com o risco de se alagarem” (CARITA, 1982, 61). A Madalena, por sua vez, que foi “estabelecida ao lado da Ribeira da Madalena em um plano à borda do mar, tem uma excelente praia e uma magnífica fonte à borda da maré, onde as embarcações fazem aguada” (Id., Ibid., 64). Paulo Dias de Almeida refere que “toda a Ilha da Madeira é cortada de imensas ribeiras e ribeiros, a maior parte delas só muito caudalosas no Inverno, formada de altas montanhas precipitadas e enormes rochedos descobertos. Todas as praias são de calhau miúdo, algumas de calhau muito grosso e só quando se acabam as grandes levadias, aparecem pequenas praias de areia preta, que com as enchentes e vazantes das marés, se desfazem, tomando a primeira forma de calhau” (Id., Ibid., 51). Não devemos esquecer que a tradição dos banhos de mar e a valorização da época balnear recentes começou em meados do séc. XX. Durante muito tempo, os interditos feitos pela Igreja Católica à revelação do corpo e os interditos previstos nas posturas municipais sobre os banhos na praia e nas ribeiras do Funchal, Machico e Porto Santo não permitiram a sua vulgarização. Assim, de acordo com a postura da Câmara Municipal do Funchal de 26 de julho de 1839, “estava proibido aos funchalenses o banho de mar nus”, só se permitindo em calças ou camisa, “até abaixo do joelho”, sujeitando-se os seus infratores a uma pesada coima de mil réis. Mesmo em épocas anteriores, referem-se banhos no calhau da cidade em corpo nu, mas as medidas iam no sentido da sua proibição, pois já em 1609 há notícias de que “no calhau fronteiro desta cidade de dia se despiam muita gente e nadavam e depois disto saíam do mar nus e despidos o que davam muito escândalo a muita gente e mulheres que vissem da banda do mar em seus balcões. Acordaram os ditos oficiais se lançasse pregão por esta cidade que nenhuma pessoa de qualquer qualidade de dez anos para cima se dispa a nadar de dia, de São Lázaro até ao Corpo Santo” (RIBEIRO, s.d. , 20). Por diversas vezes, na primeira metade do séc. XIX, chegam à Câmara reclamações sobre os banhos que se faziam no Calhau. Além disso, em 1850, o administrador do concelho do Funchal avisava João Hollway, proprietário de uma hospedaria, para informar os seus clientes da postura camarária que proibia os banhos nus, entre as 06.00 h e o anoitecer, pois qualquer banho deveria ser feito com o corpo vestido “desde os ombros até aos joelhos” (Id., Ibid., 21). Já nas Posturas do Funchal de 1912, o título 6.º é dedicado aos banhos, apresentando a postura proibitiva dos banhos em corpo nu; permitidos eram apenas os banhos em que “a camisola ou vestimenta que se deve usar abrangerá o corpo desde o pescoço até acima dos joelhos”. Consta, porém, que os primeiros que se banharam nas águas límpidas da Ilha foram João Gonçalves Zarco e seus companheiros, quando, em 1420, foram obrigados a procurar refúgio nas águas refrescantes do mar, de maneira a escapar ao calor infernal do incêndio que deflagrou na floresta da Ilha. Segundo Cadamosto, estiveram no mar “mergulhados até à garganta dois dias e duas noites, sem comer nem beber, pois que de outra maneira teriam morrido” (ARAGÃO, 1981, 36). Mas este banho foi em conformidade com a lei, com todas as vestes que traziam no corpo. Em 1850 referia-se nos anais do município da ilha do Porto Santo que as suas praias eram favoráveis aos banhos de mar, mas que não atraíam forasteiros por falta de condições, estando os naturais limitados pelas posturas. Na verdade, a sua revelação como estância balnear é do séc. XX. Desta forma, a indicação de Giulio Landi, cerca de 1530, deverá ser entendida de acordo com a época. Assim, ao referir-se ao norte da Ilha, realça: “E esta parte não é menos deleitosa do que útil pois as praias e os lugares cobertos de bosques, muitas vezes, dão enormíssimo prazer. Aqui costumam os habitantes descansar em qualquer momento quando lhes apetece, ir à praia ou alimentar-se de laticínios. [...] No meio da Ilha, onde os madeirenses costumam ter as suas vivendas e propriedades, gozam-se, em qualquer época, ares muito temperados” (Id., Ibid., 84). Em meados do séc. XX, assistimos a uma valorização da área costeira da Ilha como estância balnear, com piscinas e praias artificiais de areia, como no caso da praia em Machico, inaugurada a 29 de setembro de 2010, e na Calheta, em que a praia feita com areia importada de Marrocos foi inaugurada em 2004 e as suas areias repostas em 2008. Por outro lado, a oferta em termos de serviço balnear na ilha da Madeira contempla uma diversidade de piscinas públicas e privadas. Os hotéis e pousadas, maioritariamente junto à costa, são servidos por piscinas com água salgada; nos demais também encontramos piscinas de água doce. Um dos mais antigos complexos balneários adscritos aos hotéis é o do Hotel Reid’s com espaço apropriado a banhos de mar desde 1908. A par disso, há que considerar a oferta camarária de serviços balneários na Barreirinha e no Lido. Os primeiros acessos à Barreirinha foram construídos em 1939, enquanto as piscinas do Lido são de 1932. Estes tradicionais espaços balneários são complementados, depois, por intervenções do Governo regional, no Gorgulho, na Ponta Gorda, na Ribeira Brava, na Ribeira do Faial, no Caniçal, na Baía dos Juncos e em São Vicente, em 2004. A Madeira oferece um complexo vasto de praias e complexos balneários que se estende a toda a costa da Ilha, de norte a sul. São Martinho é o espaço mais importante da estância balnear madeirense, associada aos forasteiros ou aos locais. No passado, existiram vários projetos de valorização da orla marítima, surgindo, em 1921, um plano de ideias para a praia Formosa que a pretendia transformar numa praia de banhos e diversões. Primeiro, surgiram as piscinas do Lido, um marco do verão madeirense. Em 1932, foi desenhado o projeto de uma piscina pública para banhos e exercícios de natação na zona do Gorgulho. A construção hoteleira das últimas décadas do séc. XX incidiu nesta área, transformando-a numa zona privilegiada da cidade. Em 1982, o complexo balnear do Lido foi melhorado, e, em 1993, aberto o passeio público marítimo, mas o Lido foi destruído em 2010 e o complexo fechado ao público, sendo reaberto em março de 2016. A área ganhou então maior dimensão, graças à política municipal de valorização da orla marítima com diversos espaços balneares e uma promenade, a que se juntaram clubes privados como o Clube Naval do Funchal e o Clube de Turismo. No Porto Santo manifesta-se, de forma imponente, o extenso areal dourado, que fez desta ilha um lugar aprazível para os banhos de mar, tornando-se por isso na estância balnear dos madeirenses. Note-se que nos Anais do Município, datados de 1862, é já referida a atração dos estrangeiros pelas praias e seus efeitos terapêuticos. Nas primeiras décadas do séc. XXI, a frente mar do arquipélago mereceu uma valorização pouco comum no quotidiano madeirense, com a construção de diversas infraestruturas de apoio ao acesso ao mar, que permitiram o prolongamento da época balnear durante o ano inteiro. Alberto Vieira (atualizado a 03.02.2017)
esoterismo
O esoterismo é o lado oculto e não revelado das doutrinas, das religiões e dos grupos espirituais, que apenas se transmite por via oral, de mestre para os discípulos. Também poderá estar associado ao misticismo, no sentido em que sinaliza a busca das leis e dos conhecimentos que regem o Universo. É a busca aprofundada do significado das coisas, naquilo que normalmente escapa à nossa perceção. Tendo em consideração a origem etimológica da palavra, pode-se dizer que o esoterismo é o contrário de exoterismo. Ou seja, esotérico é aquilo que está dentro, escondido e não pode ser revelado, em oposição ao que é exterior e é, ou pode ser, conhecido de todos. Sendo assim, reporta-se a conhecimentos teológicos, filosóficos, religiosos e teosóficos, que não podem ser publicados e revelados. Estes grupos ou ordens são definidos como iniciáticos, no sentido em que os novos membros são submetidos a um ritual de iniciação onde um dos aspetos é o juramento de guardar segredo, relativamente a diversos aspetos da ordem ou associação. Assim, no taoismo e tantra, os novos discípulos recebem um mantra secreto. A primeira utilização do conceito foi feita por Johann Gottfried Herder (1744-1803), em oposição ao racionalismo iluminista. Mas foi Eliphas Lévi (1810-1875) quem o vulgarizou, em conjunto com o ocultismo. Assim, o esoterismo pode ser entendido como ocultismo, misticismo e hermetismo. É ocultismo no sentido de que é oculto, pois há conhecimentos e realidades espirituais e sobrenaturais que não estão visíveis e que implicam o recurso a artes divinatórias, e.g., tarot, astrologia, runas, cartomância, iching, ou práticas espirituais, através da necromancia e da bruxaria. Já o misticismo, como o gnosticismo e a cabala, situa-se a um nível superior e pretende, a partir do estudo, de práticas e de rituais, estabelecer o contacto com o divino através da contemplação, enquanto o hermetismo defende uma realidade visível e invisível e o estabelecimento de contactos entre os dois mundos, estando ligado a Hermes e ao antigo Egito. Em primeiro lugar, é necessário considerar que a figura do chamado feiticeiro ou bruxo não tem qualquer significado esotérico. Aquele representa alguém que domina o conhecimento popular e que se afirma pelos dizeres e cantares, sendo uma referência para a comunidade. Destes, podemos salientar as figuras do Feiticeiro do Norte (Manuel Gonçalves, 1858-1927) e do Feiticeiro da Calheta (João Gomes de Sousa, 1895-1974). A ligação do esoterismo à Madeira começou a partir do momento em que se associou ao mito da Atlântida o próprio arquipélago, considerado como uma reminiscência daquela lendária ilha. Por outro lado, não se pode esquecer as ligações da Madeira à maçonaria, que remontam ao séc. XVIII. Todos os que foram contagiados por conhecimentos esotéricos sentem algo especial relativamente ao arquipélago da Madeira, fazendo da Ilha um local de peregrinação obrigatória na sua missão esotérica. A propensão de vários grupos esotéricos pela Madeira é reveladora dessa situação. Assim, para além do facto de a maçonaria em Portugal ter tido a sua primeira etapa na Madeira, assinalam-se múltiplas presenças pessoais e institucionais com ligações ao esoterismo, relacionadas com locais de emigração, e.g., Brasil, Venezuela e África do Sul. De entre as diversas personalidades adeptas e/ou estudiosas do esoterismo, pode-se assinalar, em primeiro lugar, a figura de Octávio José dos Santos, que assinava com o pseudónimo de Octávio de Marialva (1898-1992). Este apresentou, na sua trajetória, uma formação em escolas esotéricas e escreveu vários estudos (inéditos) sobre o esoterismo: Soluções, Sapiência, Cátedra, Polémicas, Mistérios, Cabala, Iniciação, Panaceia, Astrognose, Arcanos, Suma, Astramundo, Universo e Profecias. Referencie-se ainda o grupo Hermetismo e Nouesis, com ligações ao grupo Corpus Hermeticum, criado em 2000 na rede Facebook. Alberto Vieira (atualizado a 23.01.2017)
alfenim
Tradicional em alguns países, a confeção de alfenim está documentada em Portugal desde os sécs. XV e XVI e sabe-se da sua presença em festas e romarias populares. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido um espaço-chave da sua divulgação para outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul. Durante os sécs. XV e XVI, o fabrico de alfenim ocupou muitos madeirenses e foi uma importante fonte de receita das famílias. Nos inícios do séc. XXI, não há qualquer referência ao fabrico habitual de alfenim na Madeira. Palavras-chave: açúcar; Brasil; doçaria; festas do Divino Espírito Santo; tradições populares. “Alfenim” é um nome que provém do termo árabe “fanid”, com origem no persa “panid”, com o significado de branco. No latim, aparece como “alphanicum”, “alfenid”, “alpenid” ou “alfanix”; no italiano, como “penito”; no espanhol, como “alfeñique” (sendo, no México, “alfenique”); em francês, como “penides”, “épénide”, “penidon”, “penoin”; popularmente, é conhecido como “peningue”. O primeiro registo do termo na Madeira é de 1469, com a grafia “alfinij”. No séc. XVI, aparece referido em Gil Vicente e em Jorge Ferreira de Vasconcelos. Naidea Nunes refere que, na Madeira, “alfenim” aparece na documentação com as designações: “alfinij” (1469), “alffiny” (1488), “alfenjm” (1490, 1517), “alfenj” (1498), “alfeny” (1517), “alfynjm” (1523), “alfenij” (1579), e conclui que é “um termo muito antigo, do árabe fânid, que em catalão teria a forma affenic, adquirindo, em castelhano, a forma alfenique, que surge nas Canárias com a grafia alfinique (1540)” (NUNES, 2003, 159). O Nordeste do Brasil, uma das mais importantes regiões açucareiras do país, foi durante muito tempo terra de alfenim, tendo depois perdido a importância nesse domínio. Segundo Naidea Nunes, “no Brasil, o termo alfenim apenas existe no Nordeste, onde foi conservado, provavelmente por se tratar da primeira região açucareira brasileira. Nos restantes estados do Brasil, como podemos ver, apenas encontrámos as denominações rapadura mole, puxa e puxa-puxa ou rapadura puxa-puxa, para denominar o mesmo conceito” (NUNES, 2010, 56). Todavia, a arte do alfenim espalhou-se por todo o Brasil e, nos começos do séc. XXI, persiste nos estados da Paraíba, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, de Minas Gerais, do Ceará, de Pernambuco, de Goiás e do Rio Grande do Norte. Esta tradição encontra-se em Pirenópolis, associada às festas do Divino, e na cidade de Montanhas, no estado do Rio Grande do Norte, ligada às festas do dia de Reis, bem como noutras localidades, como a cidade de Goiás, onde as doceiras realizam pequenas esculturas em forma de flores, pássaros, peixes e chapéus. Gilberto Freyre, em Açúcar. Uma Sociologia do Doce…, documenta a presença do alfenim no Nordeste do Brasil como um vestígio da doçaria portuguesa de influência árabe. À data da primeira publicação do livro, em 1932, a tradição do fabrico de grande parte desta doçaria estava em vias de desaparecer. No entanto, nos começos do séc. XXI, por força das tradições em torno das festas do Divino, o costume de fabrico do alfenim persiste em muitas localidades brasileiras. Na Sicília, conserva-se a tradição dos doces de alfenim e de maçapão, principalmente no dia de Todos os Santos, em que as crianças recebem, como alegado presente dos antepassados, várias figuras de açúcar. A tradição do alfenim encontra-se também no México, com a elaboração de caveiras para o Dia dos Mortos, a 1 de novembro, em que se combinam elementos indígenas com costumes europeus. Os nauatles faziam figuras, normalmente caveiras, como oferenda aos seus mortos. Com a chegada dos Espanhóis, surgiram as figuras de caveiras em alfenim. A esta figuração, as freiras juntaram as cenas relacionadas com a época natalícia. Assim, o alfenim assume várias formas: caveiras, ataúdes, anjos, cruzes, miniaturas de animais ou de fruta, pratos com comida, canastras com flores, etc. Esta tradição persiste no México, tanto na Cidade do México como nos estados de Puebla e Oaxaca. Além disso, na cidade de Toluca, v.g., celebra-se, a 2 de novembro, a festa do alfenim. A produção de alfenim está também documentada na Argentina, na Bolívia, na Colômbia, no Peru e no Equador. Em Portugal, a confeção de alfenim está documentada desde os sécs. XV e XVI e sabemos da sua presença em festas e romarias populares. Ganhou importância no quotidiano da sociedade portuguesa a partir da divulgação do açúcar, desde meados do séc. XV. A Madeira, como espaço de produção de açúcar, especializou-se na arte da doçaria, domínio em que transpôs o seu perímetro, chegando aos Açores, às Canárias e ao Brasil. A partir do séc. XV, tanto em Portugal como em importantes cidades europeias, o consumo e a divulgação do açúcar passarão pela confeção de manjares nobres, sob a forma de doces – como o alfenim, a alféola (um doce semelhante ao caramelo), conservas e cascas de fruta cristalizada. Na Madeira, ficou célebre a doçaria conventual que fez as delícias de Ingleses, de Franceses e de flamengos. A par disso, o fabrico das figuras de alfenim fez de muitas mulheres madeirenses autênticas escultoras da doçaria. O alfenim fazia parte da mesa da Coroa e das casas nobres, e era, no séc. XVI, servido à nobreza em salvas de prata por ocasião das festas do Divino em todo o espaço português, tradição que teve continuidade na Madeira, nos Açores, e que chegou ao Brasil. Das mesas do reino, o alfenim passou às das ilhas e delas ao Brasil, acompanhando o processo de expansão da cultura da cana sacarina e do fabrico do açúcar. No Atlântico, o alfenim foi primeiramente produzido na Madeira, afirmando-se como o doce mais nobre, servido na casa das famílias importantes, e usado como dádiva nas festas do Divino. A oferta de doces está relacionada com uma atitude de gratidão ou mesmo de empatia. É uma tradição muçulmana que os Portugueses assimilaram. Vasco da Gama ofereceu alfenim madeirense ao samorim de Calecute. As freiras do Convento de S.ta Clara presenteavam os visitantes com alfenim e com outros doces. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido, como já ficou dito, um espaço-chave da sua divulgação para outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul. São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes doces. Já em 1455 Cadamosto menciona a feitura de “muitos doces brancos perfeitíssimos”, aludindo certamente ao alfenim (ARAGÃO, 1981, 37). A primeira referência documental a esta arte da doçaria data de 1469, quando se diz que esta atividade era indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava “molheres de boas pesoas e muytos pobres que lavraram os açuquares bayxos em tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de que am grandes proveytos que dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas partes onde vam”. Durante os sécs. XV e XVI, o fabrico de alfenim ocupou efetivamente muitos madeirenses e foi uma importante fonte de receita das famílias. Esta era fundamentalmente uma indústria feminina e de fabrico caseiro, mas sabe-se que havia homens que exerciam o ofício de doceiro ou confeiteiro, pois a sua atividade estava regulamentada nos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa. A atividade estava vedada a estrangeiros e mestres de açúcar – apenas os “vizinhos e naturaes da ilha” podiam fazer conservas, alfenim e confeitos. De acordo com um documento de 9 de março de 1490, “em toda essa ylha nom posa fazer nemguem conservas, alfenim, comfeytos nem outra nenhüa fruyta daçucaar soomente os vizinhos e naturais da dyta ylha” (MELO, 1973, 198-199, 241). Em 1494-1495, a Casa Real portuguesa recebeu 71 arrobas de confeitos; entre estes, havia 29 arráteis de alfenim. A crónica de Damião de Góis apresenta D. Manuel como um grande apreciador da doçaria madeirense: “Nas vesporas do Natal consoava publicamente em sala, com todo o Estado de porteiros de maçareis darmas trombetas, atabales, charamellas, e em quanto consoava davam de consoar a todolos senhores, fidalgos e cavalleiros, e escudeiros que estavam na salla, na qual se ajuntavam naquelle dia todos os que andavam na Corte por saberem o gosto que el-Rei levava em fazer este banquete, que todo era de frutas verdes e dasucar, e de conservas, que lhe traziam da ilha da madeira, depois desta consoada” (GÓIS, 1911, 92). Desde o séc. XVI, no Japão, aparecem referências ao fabrico de alfenim (aruheitou) e outras doçarias, como confeitos (komfeiton). A primeira referência ao alfenim é de 1569; no decurso das centúrias seguintes, há notícias do seu consumo, tendo sido sempre, ao longo dos séculos, um dos doces nanbam, de oferta em momentos especiais. Tenha-se em conta que ficou célebre o alfenim madeirense que Vasco da Gama levou para oferecer ao samorim de Calecute. Pela rota da Índia deverá ter chegado ao Japão a arte da confeitaria madeirense, onde persiste nos começos do séc. XXI. Os estudos de Miyo Arao reforçam a ideia da influência portuguesa na confeitaria de Tóquio e estabelecem uma ponte com a Madeira, tendo em conta que muitos dos doces produzidos na Madeira aparecem na culinária do Japão. Além disso, não se pode esquecer que, nos sécs. XVI e XVII, a Madeira era um dos principais centros produtores de alfenim e daí deverá ter partido a técnica de fabrico que, depois, se vulgarizaria noutros espaços, como o Japão. A fama alcançada pela arte da doçaria madeirense está testemunhada na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa. O facto mais memorável é referido pelos cronistas. Jerónimo Dias Leite diz que “leuou muitos mimos e brincos da ilha, de conseruas, e ho sacro palacio todo feito de asucar e hos Cardeaes hião todos feitos de alfenij […] ho que foi tudo metido em caixas embrulhadas com algodão, que forão mui seguros e sem quebrar” (LEITE, 1947, 37). Escreve Gaspar Frutuoso: “E tão generoso foi, que, tendo seu filho Manuel de Noronha, Bispo que foi de Lamego, em Roma, que servia de secretário do Papa Leão, despachou da ilha um criado seu, por nome João de Leiria, homem muito honrado, prudente, e gentil-homem, o qual mandou a Roma visitar o Papa com um grande serviço, que, além de um cavalo pérsio, que lhe mandou de muito preço, que levava de cabresto um mourisco muito gentil, homem e alto de corpo, vestido em uma marlota de girões de seda; levou mais muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio, todo feito de açúcar, e os cardeais iam todos feitos de alfenim, dourados a partes, que lhe davam muita graça, e feitos de estatura de um homem, o que foi tudo metido em caixas emborulhados [sic] com algodão, com que foram mui seguros e sem quebrar até, dentro, a Roma, coisa que, por ser a primeira desta sorte que se viu em Roma, estimou-a muito o Papa, e cada uma peça por si foi vista pelos cardeais e senhores de Roma, sendo presente o Papa, que louvava muito o artifício, por ser feito de açúcar, e muito mais louvava o Capitão que lhe tal mandava, largando muitas palavras perante todos em louvor deste ilustre Capitão” (FRUTUOSO, 1979, 248-250). Mas sobre esta embaixada, segundo Luciana Stegagno Picchio, não consta qualquer documento na Cúria Romana, ao contrário do que aconteceu com outras. Terá sido mera invenção dos cronistas, para exaltar a figura do capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara? Atente-se na situação, a ter acontecido. Seriam 72 os cardeais feitos em alfenim e em tamanho natural, o que poderia significar mais de 5000 kg de açúcar. Por outro lado, deve ter-se em conta o próprio processo de fabrico das figuras e a dificuldade em transportá-las intactas até Roma. Será que podemos afirmar que a dita embaixada madeirense nunca existiu e que os testemunhos de Jerónimo Dias Leite e de Gaspar Frutuoso são pura invenção? Em 1550, D. Isabel Mendonça, mulher do referido capitão-donatário, tinha a seu cargo o abastecimento da Casa Real, tendo enviado para Lisboa, em 1551, 105 arrobas de conserva, 24 arrobas de fruta seca e 8 arrobas de alfenim. Em 1567, Pompeo Arditi dá conta da “conserva de açúcar” que se fazia no Funchal, “de ótima qualidade e muita abundância” (ARAGÃO, 1981, 130). Em finais do séc. XVI, Gaspar Frutuoso dava conta de “ricos e esquisitos manjares de toda sorte, como os sabem muito bem fazer as delicadas mulheres da ilha da Madeira, que (além de serem comumente bem assombradas, muito formosas, discretas e virtuosas) são estremadas na perfeição deles e em todolas invenções de ricas coisas, que fazem, não tão somente em pano com polidos lavores, mas também em açúcar com delicadas frutas” (FRUTUOSO, 1979, 264). Esta tradição perpetuou-se na Ilha para além dos tempos áureos da produção açucareira local (segundo Hans Sloane, em 1687, o madeirense produzia o “açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil” (ARAGÃO, 1981, 158)). Outro testemunho a atestar a abundância deste doce na Madeira é o facto de, a 29 de julho de 1593, o chamado fogo do céu, que queimou parte da cidade do Funchal, dando origem às ruas da Queimada de Cima e Queimada de Baixo, ter queimado alfenim, que havia sido feito com 5000 pães de açúcar. Nos inícios do séc. XXI, não há qualquer referência ao fabrico habitual de alfenim na Madeira (embora ainda haja quem se lembre das pombas do Divino, por ocasião das festas do Espírito Santo). No entanto, em algumas ilhas dos Açores e em alguns estados do Brasil a tradição do alfenim continua viva, alimentada pela persistência das festas em honra do Divino Espírito Santo. Alberto Vieira (atualizado a 28.09.2016)