mcandrew, robert
Mercador e proprietário de barco nascido em Wandsworth, Londres, em 1802. Era filho do mercador e transportador de fruta William McAndrew. Com a morte do pai em 1819, assumiu, com o irmão, o negócio da família. A partir de 1830, MacAndrew manifesta o seu interesse pela história natural, entrando em 1834 para a Literary and Philosophical Society of Liverpool. Os negócios e viagens que realizou, em Portugal e Espanha, permitiram que reunisse coleções de conchas e que procedesse ao seu estudo. Estabeleceu contactos com Edward Forbes e com outros estudiosos da especialidade, como John Goodsir (1814-1867), James Smith (1782-1867) e John Gwyn Jeffreys (1809-1885). Pertenceu a diversas associações científicas, como a Linnean Society, da qual foi nomeado membro em 1847, e a prestigiada Royal Society, que integrou em 1853. Além disso foi, entre 1856 e 1857, presidente da Literary and Philosophical Society of Liverpool. Em 1872, recebeu, juntamente com Arturo Issel (1842-1922), o Prix Savigny da Académie des Sciences pelo estudo “Report on the Mollusca Testaceous Obtained during a Dredging-Excursion in the Gulf of Suez in the Months of February and March 1869”. Entre 1845 e 1870, publicou diversos estudos sobre os moluscos das costas atlânticas e mediterrânicas. De entre estes, assinala-se a publicação em 1853, na cidade de Liverpool, do estudo “On the Geographical Distribution of Testaceous Mollusca in the North-East Atlantic and Neighbouring Seas”, no qual refere 156 espécies de moluscos marinhos que encontrou nos mares da Madeira. Em 1873, MacAndrew doou a sua coleção de moluscos, que continha dezenas de milhares de espécies, e a sua biblioteca à Universidade de Cambridge. Faleceu no mesmo ano em Middlesex, Londres. Obras de Robert MacAndrew: “On the Geographical Distribution of Testaceous Mollusca in the North-East Atlantic and Neighbouring Seas” (1853); “Report on the Mollusca Testaceous Obtained during a Dredging-Excursion in the Gulf of Suez in the Months of February and March 1869” (1870). Alberto Vieira (atualizado a 01.02.2018)
tabaco
O tabaco chegou a Portugal, no séc. XVI, a partir do Brasil. Começando por ser usado como um produto de uso medicinal, foi, durante muito tempo, uma mercadoria de troca do comércio madeirense com o Brasil. Na Madeira, o seu consumo generalizou-se rapidamente a partir do séc. XVII, com o consumo do tabaco em pó. O cheiro ou o fumo do tabaco faziam parte dos fatores de prestígio social, pelo que todos o consumiam. Palavras-chave: comércio; estancos, tabaco. O tabaco chegou a Portugal, no séc. XVI, a partir do Brasil, tendo sido inicialmente usado como um produto de uso medicinal. O tabaco foi, durante muito tempo, uma mercadoria de troca do comércio madeirense com o Brasil. Trocavam-se pipas de vinho e de aguardente por tabaco, cacau e cravo. Foi o que sucedeu em 1673, com o governador e capitão-general da Madeira João Saldanha de Albuquerque, que requereu os bons ofícios do governador do Maranhão, Pedro César de Menezes, remetendo-lhe tabaco em troca de vinho. A importância deste produto está definida na existência da Alfândega do Açúcar e Tabaco, em Lisboa, que se extinguiu em 1761. A Madeira, que tinha contactos permanentes com o Brasil, passou também a receber este produto, que rapidamente se generalizou em termos de consumo a partir do séc. XVII, com o consumo do tabaco em pó. O cheiro e o fumo do tabaco tornaram-se fatores de prestígio social a que todos aderiam, até mesmo os escravos, pois, em 1694, é referido na nota de óbito de um escravo velho do provedor da Fazenda que este fumava tabaco com cachimbo. Os cachimbos de diversas proveniências que têm sido recolhidos em escavações arqueológicas revelam tal uso alargado. Também não devemos esquecer que o tabaco era conhecido como a “erva-santa” e usado como analgésico. Esta situação resulta das assíduas relações comerciais com o Brasil, assim como do facto de a venda do vinho dever ser feita a troco de mercadorias oferecidas pelos mercadores estrangeiros. Entre estas, surgia o tabaco, que, tendo-se tornado uma moda, viu o seu consumo ultrapassar as barreiras da clausura e chegar até aos conventos de Santa Clara e da Encarnação. Neste último, as freiras recebiam, pelo Dia de Reis, uma ração de sete libras e meia de tabaco. A partir da época filipina, deu-se início ao estabelecimento de contratos de arrematação para a sua comercialização. Em 1639, assistiu-se ao estabelecimento do estanco do tabaco. Estancar é impedir a venda livre de um produto, definindo assim o estanco a situação de monopólio de venda. Com o tempo, o estanco passou, também, a designar o espaço ou local de venda ao público do tabaco. Na Madeira, a R. do Estanco Velho guarda a memória desse lugar, que se manteve até à publicação da lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitida a plantação de tabaco nas ilhas da Madeira e dos Açores e o seu livre fabrico e comércio. Os chamados estanqueiros do tabaco aparecem como pessoas prósperas, o que pode ser revelador de que esta atividade mobilizava muito dinheiro. A título de exemplo, referimos que, em 1679, Aires de Ornelas e Vasconcelos arrendou este contrato na Madeira e Porto Santo a Manuel Escórcio, por 130.000 réis. A este contrato surgem ligados, no séc. XVIII, os nomes de Pedro Jorge Monteiro, António José Monteiro e Feliciano Velho Oldemberg. Tudo isto porque o tabaco se vendia nos estancos a preços elevados e o seu consumo, bem como o do rapé (tabaco em pó), estava generalizado e manteve-se por muito tempo na Ilha, como testemunha, por exemplo, em 1864, o alemão Rudolf Schultzen, na obra Die Insel Madeira: Aufenthalt der Kranken und Heilung der Tuberkulose daselbst. A situação de dependência económica insular face à metrópole manteve-se por muito tempo, determinada por decretos e medidas limitativas das relações com outros mercados. As ilhas continuaram sujeitas aos monopólios do tabaco e do sabão, sendo o fornecimento local feito através de um estanqueiro que estabelece uma rede em todas as freguesias rurais. Esta imposição e regularidade das relações com a metrópole, associada aos monopólios de fornecimento de alguns produtos, como o tabaco, o sabão e o sal, geraram uma subordinação e dependência que deram forma a um trato comercial desvantajoso, por falta de contrapartidas. Por outro lado, favoreceram o contrabando, que será praticado, ao longo dos tempos, um pouco por toda a costa madeirense. O estanco do tabaco foi estabelecido em 1639, como se disse, e extinto a 23 de agosto de 1642, sendo, no entanto, o contrato renovado em 26 de junho de 1644. A 14 de maio de 1650, foi adjudicado o contrato por sete anos, ficando excluídos do mesmo a Índia, o Brasil e alguns lugares de África. Por alvará de 14 de julho de 1674, foi criada a Junta da Administração do Tabaco, mantendo-se a lei de 28 de fevereiro de 1668, que regulamentava o contrabando desse produto. A sua composição e atribuições foram estabelecidas pelos regimentos publicados em 6 de dezembro de 1698 e 18 de outubro de 1702. A estrutura de funcionamento era definida por um presidente, cinco deputados e um secretário. A estes juntam-se os cinco ministros (um para cada província) superintendentes do tabaco, coadjuvados por meirinhos e seus escrivães, para fiscalizar a atividade comercial em torno do produto e evitar o contrabando, conforme regimento de 23 de junho de 1678. Por alvará com força de lei de 20 de março de 1756, que acabou com os ofícios de executores da Alfândega do Tabaco, foi criado o cargo de juiz executor das dívidas da Junta da Administração do Tabaco. No âmbito das suas competências e atribuições, destaca-se o facto de, durante a sua administração, lhe pertencerem todas as matérias e negócios relacionados com o produto, bem como as causas cíveis e crimes sobre o mesmo. Era também o juiz que provia todos os lugares da Junta, da Alfândega e dos conservadores do tabaco das comarcas. Todo o tabaco para consumo do reino era adquirido pela Junta do Tabaco, que depois o fazia vender nos diversos estancos, por meio de contratadores. O monopólio ou estanco do tabaco, que estava na superintendência da Junta da Administração do Tabaco, ficou, a partir da sua extinção em 15 de janeiro de 1775, a depender da Junta da Real Fazenda. A sua administração na Madeira estava entregue ao provedor da Fazenda, a que se associavam um meirinho do estanco, um escrivão das diligências, um juiz conservador e um administrador recebedor do tabaco. Foram juízes do estanco o célebre poeta Manuel Tomás, autor da Insulana, e Ambrósio Vieira, provedor da Fazenda. O fim do estanco do tabaco foi novamente decretado a 17 de junho de 1830, sendo restabelecido por decreto de 21 de abril de 1832 e contratado ao barão de Quintela, pelo decreto de 10 de dezembro de 1832. Foi depois, de novo, abolido por lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitido o seu cultivo na Madeira e nos Açores. O contrato do tabaco era uma fonte significativa de rendimento, sendo usado como moeda de troca, como sucedeu, em 1834, ao ser estabelecido como garantia dos empréstimos feitos em Londres pelo Estado português. No séc. XIX, esta indústria teve grande incremento, surgindo duas importantes fábricas em Lisboa e no Porto. Em 1844, surgiu a Companhia Nacional de Tabacos, com sede em Xabregas, a que se juntaram outras três companhias nacionais. Durante esta centúria, esta foi a principal indústria nacional, de forma que, no inquérito industrial de 1881, são referidas 16 fábricas e 6 oficinas em todo o país. Em 1888, a medida de expropriação das fábricas de tabaco, dando-se a exploração à Companhia dos Tabacos de Portugal, gerou inúmeros conflitos no meio nacional. Segundo a lei de 27 de outubro de 1906, regulamentada pelo contrato de 8 de novembro, o Estado tinha uma participação nos lucros de 50 contos, para os anos de 1907 a 1910. Por decreto de 11 de julho de 1907, foi aprovado o contrato para o período de 1 de maio de 1907 a 30 de abril de 1926, em que a Companhia se comprometia, mediante o monopólio da produção do tabaco, a entregar ao Estado uma renda anual fixa de 620 contos e uma participação determinada nos lucros. Por decreto n.º 4510, de 27 de junho de 1918, autorizou-se o aumento do preço do tabaco, mediante um aumento mínimo na participação dos lucros. A 4 de agosto de 1924, foi feito um acordo em que foi fixada a renda para os anos seguintes e alteradas as regras de cálculo da participação nos lucros. A 24 de março de 1924, foi votado o decreto que regulamentaria o novo regime do tabaco, que só foi posto em prática a partir de março de 1926. A partir de 1 de maio de 1926, o Estado passou a administrar diretamente esta atividade, conforme ficou estabelecido no decreto n.º 11.766, de 24 de junho de 1926. A partir do decreto n.º 13.587, de 11 de maio de 1927, foi estabelecida a liberdade de produção e venda sob controlo do Estado. A partir de então, os lucros do Estado advinham do imposto sobre a produção e participação nos lucros das companhias. Assim, abriam-se as portas à liberdade do fabrico de tabaco que só estava permitido nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra. As licenças eram atribuídas, por 30 anos apenas, a empresas cujo capital fosse superior a 1000 contos-ouro. No concurso realizado para a administração das oficinas que pertenciam ao Estado, foi vencedora a Companhia Portuguesa de Tabacos de Lisboa. No caso das ilhas, foi autorizada a livre plantação do tabaco por lei de 13 de maio de 1864, reconfirmada pela lei de 15 de junho de 1864 e pelo decreto de 8 de outubro de 1885. Esta aposta na nova cultura, que não teve sucesso na Madeira, foi considerada uma forma de se procurar meios para segurar a economia agrícola do arquipélago face aos problemas com o comércio do vinho. Foi uma época de experimentação de múltiplas culturas com valor industrial, capazes de substituírem a vinha como factor animador da economia interna e de exportação do arquipélago. As primeiras plantações começaram a partir de 1877, altura em que se fundou a primeira fábrica de manipulação do produto. Com o estabelecimento, em 1908, da Companhia de Tabacos da Madeira e depois, a partir de 1913, da Empresa Madeirense de Tabacos Lda., a exploração ficou quase em regime de monopólio, sob o comando das famílias inglesas, com particular destaque para a Casa Leacock & Co. Ainda no período de 1959 a 1961, na Qt. do Bom Sucesso, propriedade da Junta Geral, se faziam ensaios com a plantação de tabaco. A lei de 13 de maio de 1864 havia estabelecido uma situação distinta para as ilhas no referente ao tabaco, dando-lhes a possibilidade de o cultivar, mas com um agravamento no imposto predial. A 15 de março de 1864, os deputados pela Madeira haviam apresentado uma proposta para a promoção da cultura do tabaco, estabelecendo um imposto de 250 a 500 réis por cada are de terra cultivada, de acordo com a sua qualidade. Entre 1865 e 1875, não houve qualquer tentativa de cultivo da planta na Madeira e era voz corrente a reclamação contra o referido decreto, sendo disso porta-voz o Gov. Civil Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro em ofício de 21 de junho de 1876 ao ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda. Por outro lado, tal como o havia indicado D. João da Câmara Leme, o tabaco, como outras culturas, não teria grande rentabilidade na Ilha: “Há plantas que, conquanto sejam cultivadas noutros países com muito proveito, e se deem bem neste clima não podem ser cultivadas aqui com vantagem; porque nos faltam condições importantes que, nesses países, favorecem tais culturas: assim não é para a Madeira a cultura em grande escala do algodão, nem a do tabaco, nem mesmo o chá” (LEME, 1876, 19). A Madeira passará, assim, a importar tabaco, especialmente dos Açores, chegando mesmo a importá-lo de Porto Rico, dos EUA, de Cuba e, na déc. de 60, de Angola. Outras vozes se levantaram contra esta situação considerada ruinosa para a Madeira, pelo que começaram a surgir plantações de tabaco um pouco por todo o lado. Desta forma, em 1877, foi criada a Fábrica de Tabacos Madeirense, seguindo-se outras em 1881 e em julho de 1919. Em 20 de janeiro de 1920, criou-se um imposto municipal de $50 por cada kg de tabaco despachado na Alfândega, que, no ano de 1922, rendeu à Câmara do Funchal 21.837$21. Pelo dec.-lei n.º 39.963, de 13 de dezembro de 1954, este foi aumentado para 8$00 por kg, dos quais 6$00 constituía receita das câmaras municipais, pertencendo o restante às juntas gerais. Assim, ontem como hoje, o tabaco mereceu diversas formas de tributação, assumindo-se como uma importante fonte de receita tributária na Madeira. Faltam, no entanto, dados que permitam entender o volume do seu consumo na Ilha. Os novos dados conhecidos referem-se já à déc. de 50 do séc. XX, em que a cobrança atingiu, mais especificamente em 1958, o valor mais elevado: 105.801$20. Será no séc. XX que este produto será alvo de diversas formas de tributação. Na lei n.º 1657, de 3 de setembro de 1924, ficou estabelecido o imposto de 80 réis ouro por cada quilo de tabaco manufaturado na Ilha ou importado dos Açores, coisa que não acontecia nos Açores, nem no continente. Pelas leis de 10 de julho de 1919 e 22 de janeiro de 1920, surgiu o imposto municipal de tabaco que onerava em $50 cada quilo de tabaco exportado na Alfândega. De acordo com o artigo 1.º do dec.-lei n.º 444/86, de 31 de dezembro, o tabaco manufaturado, destinado ao consumo no continente português e nas regiões autónomas, quer de produção nacional, quer importado, está sujeito ao imposto de consumo sobre o tabaco. O valor de 1 % desta receita está consignado ao Ministério da Saúde para a luta contra o cancro. Pelo artigo 7.º do citado diploma, foram fixadas as taxas do imposto de consumo relativo a cigarros, constituídas por dois elementos: um específico e outro ad valorem. O artigo 8.º fixou as taxas do imposto de consumo relativo aos restantes produtos de tabaco manufaturado. A administração do imposto de consumo compete à Inspeção-Geral de Finanças, no que diz respeito ao tabaco saído das áreas fiscalizadas referidas no artigo 19.º, situadas no continente, e à Direção-Geral das Alfândegas, nos restantes casos. Depois, destaca-se o imposto especial de consumo sobre o tabaco que se encontra regulamentado pelo Código do Imposto Especial de Consumo (CIEC), publicado pelo dec.-lei n.º 566/99, de 22 de dezembro. O imposto especial de consumo, ou IEC, é, na verdade, o conjunto de três impostos que incidem sobre certos produtos (tabaco, produtos petrolíferos e bebidas alcoólicas) fabricados ou colocados no território português. Em 2005, a taxa do imposto do tabaco era de 8,69 %, enquanto no continente era 6,6 %, ficando a percentagem ad-valorem em 35 %. As estampilhas fiscais eram usadas em diversas formas de pagamento, nomeadamente taxas e emolumentos, casos em que a receita não pertencia ao imposto do selo. Por lei n.º 150/99, de 11 de setembro, que estabeleceu o regulamento do imposto de selo, as estampilhas fiscais foram abolidas. Parte do imposto sobre o tabaco produzido no distrito do Funchal ou importado das ilhas dos Açores era uma receita repartida entre as câmaras municipais e a Junta Geral. A receita do imposto do tabaco fora atribuída por lei de 10 de julho de 1914 às obras da Junta Autónoma dos Portos da Madeira (JAPAM). Entre 1972 e 1981, entraram na contabilidade da JAPAM 46.400 contos de impostos aduaneiros (entre estes, o imposto sobre o tabaco), 532.980 contos de taxas portuárias e 350 contos de multas. A batalha pela reivindicação de mais receitas para a Junta Geral, que é o mesmo que dizer o retorno das receitas dos madeirenses, continuou. Assim, na sessão de 20 de setembro de 1920, reclamava-se que revertesse para a Junta Geral a totalidade dos impostos lançados pelo Governo central sobre produtos como o tabaco e estabelecimentos bancários, que na Madeira perfaziam cerca de 400 contos e que estavam destinados à assistência pública. O tabaco, por ser um produto sujeito a contrato exclusivo de venda, foi muito cobiçado e apetecido em termos do contrabando. Tal contrabando perdura no séc. XX, sendo uma das atividades ilícitas mais assinaladas e regulamentadas. Neste processo, até o clero intervinha, havendo referência a uma iniciativa nesse sentido por parte de Fr. António de S. Guilherme, em 1768. Recorde-se que, em 12 de novembro de 1768, o Gov. João António Sá Pereira refere que um guardião do convento, o P.e Manuel Joaquim de Oliveira, que contrabandeava tabaco, foi enviado para Lisboa, sob prisão. No séc. XIX, muito deste contrabando de tabaco era feito por Ingleses, nomeadamente a partir da possessão inglesa de Gibraltar. A 1 de fevereiro de 1876, regressava ao Funchal Leland Cossart, deixando o despacho das suas malas a cargo de um seu criado, como era costume. Pelo facto de se ter encontrado tabaco na bagagem, foi o empregado preso. Por força disto, movimentou-se o cônsul britânico em diligências, no continente e junto de autoridades britânicas, conseguindo-se a entrega das malas e, depois, a libertação do prisioneiro. O grande incentivo à cultura do tabaco aconteceu a partir da déc. de 70 do séc. XIX, altura em que surgiu a primeira fábrica, da responsabilidade do visconde de Monte Belo, a que se seguiu, em 1888, outra de João Sales Caldeira, que viria a tornar-se propriedade de Joe Berardo e Horácio Roque. Nos inícios do séc. XXI, a Madeira continua a ter um regime diferenciado no que respeita ao tabaco, existindo uma fábrica, a Empresa Madeirense de Tabaco S.A., que assegura o abastecimento local. Esta empresa, fundada em 1913 a partir da Companhia de Tabacos da Madeira, viu-se obrigada, em 1930, face à concorrência das empresas de tabaco açorianas, a comprar a fábrica Estrela, em São Miguel. Legislação: dec.-lei n.º 444/86, de 31 de dezembro: aprova o novo regime fiscal dos tabacos e revoga os decs.-lei n.º 149-A/78, de 19 de junho, 93/91, de 29 de abril, 196/83, de 18 de maio, 34/84 de 24 de janeiro, 115-A/85, de 18 de abril, e 172-D/86, de 30 de junho; dec.-lei n.º 49/90, de 10 de fevereiro; dec.-lei n.º 231/91, de 26 de junho; dec.-lei n.º 75/92, de 4 de maio; dec.-lei n.º 55/93, de 1 de março; dec.-lei n.º 325/93, de 25 de setembro; decs.-lei n.º 75/94, de 7 de março, n.º 221/94, de 23 de agosto, n.º 197/97, de 2 de agosto, pela lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro, e pela lei n.º 10-B/96, de 23 de março; dec.-lei n.º 103/96, de 31 de julho; dec.-lei n.º 197/97, de 2 de agosto; lei n.º 127-B/97, de 20 de dezembro; dec.-lei n.º 566/99, de 22 de dezembro; dec.-lei n.º 170/2002, de 25 de julho; diretiva n.º 2002/10/CE, do Conselho, de 12 de fevereiro; desp. normativo n.º 14/2005, de 24 de fevereiro; desp. normativo n.º 2/2004, de 10 de janeiro; dec.-lei n.º 155/2005, de 8 de setembro. Alberto Vieira (atualizado a 30.01.2017)
ferraz, joão higino
Filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz, foi um destacado técnico e cientista do engenho Hinton entre 1888 a 1946, tendo sido o responsável por muitas das inovações introduzidas nos processos de produção de açúcar e de vinho. Palavras-chave: açúcar; vinho; engenhos; Hinton. Nascido no Funchal em 1863, é filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz (1792-1856), o primeiro a construir um engenho a vapor na ilha da Madeira, em 1856. Terá também sido o seu avô quem estabeleceu, entre 1848 e 1856, uma fábrica da família na Ponte Nova, onde João Higino começou a trabalhar e cuja direção assume em 1882. Era um jovem de 18 anos que se tornava responsável pela fábrica e que se manteve no cargo de direção até 1886, altura em que a família foi forçada a vender o edifício e os equipamentos em praça pública. Liquidada a fábrica, esteve dois anos sem emprego até que, em 1888, arrendou, em sociedade com o tio, João César de Carvalho, a fábrica de destilação da Ponte Deão, de Severiano Cristóvão de Sousa. No ano imediato, entrou para a fábrica do Torreão, da firma William Hinton & Sons, como técnico de fabrico de açúcar e álcool, assumindo a gerência industrial e técnica. Num manuscrito lavrado pela mão do próprio, João Higino Ferraz diz que, em 1900, assinou contrato com a fábrica do amigo Harry Hinton, a que ficou vinculado até à morte, em 1946. Todavia, e de acordo com o primeiro copiador de cartas, sabemos que estava ao serviço da firma desde 18 de outubro de 1898, como se pode confirmar pela carta enviada ao amigo e patrão Harry Hinton, solicitando a sua presença no engenho em construção para poder decidir sobre a forma de disposição das máquinas. No sentido de dar continuidade ao processo de modernização da fábrica do Torreão, esteve de visita aos complexos industriais franceses que laboravam a beterraba para o fabrico de açúcar. A visita foi proveitosa, refletindo-se nas modernizações do sistema do engenho de Hinton. Esta experiência terá sido importante para a saída que fez, em 1930, a Ponta Delgada (São Miguel), para dar alguns ensinamentos sobre o processo de fabrico de açúcar, nomeadamente a fermentação do melaço. Em julho de 1927, embarcou para o Lobito com Charles Henry Marsden (1872-1938), um engenheiro natural de Essex responsável pela modernização do engenho da casa Hinton, para montar uma estrutura mais moderna no engenho Cassequel, propriedade da casa Hinton. Aí permaneceu 103 dias, regressando ao Funchal a 13 de dezembro de 1928. O diário da saída, compilado numa agenda, documenta o processo de montagem da fábrica e as dificuldades de adaptação das peças ao conjunto da estrutura. Em 1945, lamentava-se: “sou pois técnico em fabricar açúcar e álcool, desde 1884 a 1945 = 61 anos. Não tenho direito a ter o título de técnico de fabricar açúcar e álcool oficialmente em Portugal? […] Desejava pois obter o título oficial de técnico de fabricar açúcar e álcool ou como técnico prático de fabricar açúcar e álcool” (FERRAZ, 2005b, 44). Mas acabou por morrer sem que fosse reconhecido o seu gigantesco trabalho como técnico, tendo sido a principal alma da permanente atualização tecnológica e química da fábrica do Hinton, que foi na época uma das mais avançadas tecnologicamente. A ideia está presente também no testemunho do próprio: “Nestes longos (60) anos assisti a variados sistemas de fabrico, desde quase do início de maneiras antigas no fabrico do açúcar de cana, destilação, etc., etc., acompanhando sempre os progressos nestas indústrias até hoje, principalmente desde 1900 a 1944, na fábrica do Torreão, onde pusemos em trabalho consecutivamente os sistemas os mais aperfeiçoados e mais modernos no fabrico de açúcar e álcool” (Id., 2005a, 39). Na correspondência com Harry Hinton, transparece uma perfeita sintonia entre os dois, que favoreceu o processo de permanente atualização tecnológica e química; partilhavam a mesma paixão pela indústria e desenvolvimento do engenho do Torreão. João Higino Ferraz não receia manifestar, diversas vezes, a amizade que o prende ao patrão. Em 1917, confessa: “Harry Hinton é um dos meus melhores amigos”. Passados 10 anos, confessa que a viagem a África sucedeu apenas “para ser agradável ao senhor Hinton a quem devo amizade e reconhecimento” (Id., Ibid., 40). João Higino Ferraz era o superintendente, mas acima de tudo um cientista que procurava aperfeiçoar os conhecimentos de química e tecnologia, através do confronto entre a literatura estrangeira e a sua capacidade inventiva. Manteve-se, assim, atualizado através da leitura de publicações, fundamentalmente francesas. Nos estudos, manifesta-se um cientista arguto que não detém a atenção apenas na cana sacarina, pois estuda e opina sobre o uso de outros produtos no fabrico de açúcar e álcool, como é o caso da batata e da aguardente. Se confrontarmos a literatura científica mais significativa dessa altura, de finais do séc. XIX até à Segunda Guerra Mundial, verificamos que os conhecimentos e as técnicas mobilizados no engenho de Hinton são permanentemente atualizados e que se pautam por padrões de qualidade, integrando informações sobre os métodos mais avançados, como os estudos dos engenheiros químicos e industriais que marcaram o processo tecnológico do momento. Aliás, mantém contacto com inúmeras associações científicas europeias, como era o caso da Association des Chimistes de Sucrerie et de Distillerie. Na correspondência, surgem assiduamente nomes de cientistas europeus, como Barbet e Naudet. É de João Higino Ferraz o invento de um aparelho de difusão cujos direitos cedeu, em 19 de novembro de 1898, à firma William Hinton & Sons. Naquilo que resta da sua biblioteca, encontra-se um conjunto valioso de tratados de química e tecnologia relacionados com o açúcar. Sob a sua orientação, foram feitas várias experiências e adaptações dos sistemas tecnológicos importados. Em 1929, em carta ao amigo Avelino Cabral, que estava no Lobito, refere: “Como tenho tido tempo estou em estudos e experiências com o fermento Possehl’s no laboratório, e tenho obtido coisas bastante curiosas nas culturas feitas”. Ainda em carta ao mesmo refere a utilidade das inovações e experiências: “para que a parte comercial de uma indústria dê o resultado, é necessário ver também a parte industrial ou técnica” (Id., Ibid.). Apenas em 1922 temos informação de quanto auferia João Higino Ferraz pelos serviços prestados à fábrica Hinton. Para o novo contrato a celebrar reclamava 63 libras mensais, sendo o câmbio realizado mensalmente, ficando “com pulso livre para fazer e dirigir as minhas pequenas indústrias fora de açúcar, álcool e aguardente, não prejudicando por estes meus trabalhos a direcção técnica da fábrica de açúcar e álcool do Torreão” (Id., Ibid.). João Higino Ferraz fica para a história como um dos principais obreiros da modernização do engenho do Hinton ocorrida na primeira metade do séc. XX. Enquanto esteve à frente dos destinos da fábrica, de 1898 a 1946, foi imparável na sua adequação aos novos processos e inventos que iam sendo divulgados, não se coibindo mesmo de fazer algumas experiências com o equipamento e os produtos químicos. Opina sobre agronomia, bem como sobre mecânica e química, mantendo-se sempre atualizado sobre as inovações e experiências na Europa, nomeadamente em França. Da sua lista de contactos e conhecimentos fazem parte personalidades destacadas do mundo da química e da mecânica. Assim, para além dos contactos assíduos com Naudet, refere-nos com frequência os estudos de Maxime Buisson, M. E. Barbet, M. Saillard, F. Dobler, M. D. Sidersky, Luiz de Castilho, M. H. Bochet, M. Effort e M. Gaulet. À frente do engenho, a sintonia e empenho de Ferraz e Hinton fizeram com que a Ilha apresentasse, entre finais da centúria de oitocentos e inícios da seguinte, uma posição destacada no sector, atraindo as atenções a nível mundial. O Hinton acolhe especialistas de todo o mundo, na condição de visitantes ou como contratados para a execução dos trabalhos especializados. O Eng.º Charles Henry Marsden foi um deles, tendo aí trabalhado entre 1902 e 1937, altura em que saiu doente para Londres, onde faleceu no ano seguinte. A sua presença está documentada pelo menos em 1918, 1929 e 1931. Destaca-se também o Eng.º químico agrícola Maxime Buisson, que, em 1902, trabalhava no laboratório. Para o fabrico de açúcar, contratavam-se os afamados cuiseurs em França, de forma a seguir-se à risca as orientações de Naudet. O empenho de João Higino Ferraz não ficou por aqui, pois apostou também no processo de vinificação, âmbito no qual protagonizou algumas inovações que marcaram as primeiras décadas do séc. XX. A documentação disponível refere o seu empenho no processo de fabrico de vinho, aguardentes e outras bebidas, como a cidra, a cerveja e o vinho espumoso. A partir de 1905, J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o fabrico do açúcar, manteve-se permanente atualizado sobre a tecnologia francesa de fabrico de todo o tipo de bebidas fermentadas e destiladas. São frequentes as referências a equipamentos franceses, bem como a um conjunto de títulos sobre o tema, de que era possuidor de alguns exemplares. Na déc. de 20, construiu uma vinharia onde foi possível montar o aparelho de evaporação Barbet e um moderno sistema de refrigeração. Ao nível da destilaria, devemos assinalar a sua presença em Almeirim, em 1916, para montar um aparelho francês. As experiências levaram-no a produzir cidra, cerveja e malte, e, com vinho branco, xarope de uva, vinho de mesa e espumoso – que chamava de “fantasia” para não se confundir com o francês –, vinagre, vinho cidre maltine, licores finos, anis escarchado e genebra, que vendia localmente e exportava para alguns mercados como a Alemanha. Por outro lado, tentou imitar os vinhos franceses, o sauterre e o champagne. Da sua lista de experiências, constam ainda as que fez para o fabrico de geleia de pêro, marmelada de bagaço de pero e fermento puro de uva para uso medicinal. Ferraz apostou, pois, no aperfeiçoamento do processo de vinificação, sendo a sua vinharia um exemplo disso. Neste contexto, fez diversas demonstrações sobre o uso dos processos Barbet e Sémichon, sendo defensor da necessidade da compra da uva ao agricultor, medida que contribuía para um maior aproveitamento das massas vínicas e para um maior cuidado no acompanhamento do processo de vinificação que defendia. Numa época em que o vinho jaquet, casta americana, dominava a produção, fez ensaios para o seu uso com o vinho Madeira e com o vinho de mesa para consumo local. Além disso, apresentou um vinho de mesa ligeiramente gasoso, pelo processo de M. Mercey, que, no seu entender, deveria competir com a cerveja. Sucede que, nas experiências de 1914, o vinho posto à venda não teve grande aceitação, porque as garrafas haviam perdido parte do gás carbono por causa da má qualidade da rolha. Mesmo assim, retoma essas experiências em 1927. J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o conde de Canavial, bateu-se por mudanças radicais no processo de fabrico do vinho, apelando ao abandono das técnicas tradicionais a favor das vantagens das descobertas entretanto ocorridas na centúria de oitocentos no processo de vinificação, com os sistemas Barbet e Sémichon. Todas as experiências e ensaios eram sempre fundamentados com estudos científicos de carácter químico, nomeadamente franceses, e com a apresentação de equipamentos, maioritariamente com origem na tecnologia açucareira, que o mesmo adaptava, pelas suas próprias mãos, ao fabrico do vinho. A tudo juntava estudos minuciosos de viabilidade económica do novo produto, no sentido de convencer a Casa Hinton ou outros parceiros, mas o gosto madeirense não se mostrou favorável à novidade. Os conhecimentos adquiridos com o fabrico de açúcar no engenho do Hinton foram fundamentais para estes ensaios, mas o sucesso da iniciativa não foi coroado de êxito, pelo que acabará por abandonar esta atividade em 1942. O arquivo do engenho do Hinton é, por força das circunstâncias atrás descritas, fundamental para o conhecimento da história contemporânea da agricultura madeirense. Todavia, a forma conturbada como sucedeu o processo de desmantelamento da estrutura para a construção de um jardim público conduziu a que toda esta memória desaparecesse. Felizmente, tivemos a possibilidade de encontrar alguns testemunhos avulsos no arquivo particular de João Higino Ferraz. A documentação disponível, copiadores de cartas, livros de notas e apontamentos, constitui um acervo raro na história da técnica e da indústria. Não se conhecem casos idênticos de livros de apontamentos em que o técnico documenta, quase minuto a minuto, o que sucede na fábrica, desde os percalços do quotidiano às questões técnicas e laboratoriais. Para além disso, se tivermos em conta que a mesma documentação abrange um período nevrálgico da história de indústria açucareira, marcada por permanentes inovações no domínio da metalomecânica e da química, compreendemos claramente a importância deste tipo de espólio, que mais se valoriza pelo facto de ser, até aos começos do séc. XXI, o único divulgado e conhecido. O conjunto de nove livros referentes às cartas abarca um período crucial da vida do engenho do Hinton (1898-1937), marcado por profundas alterações na estrutura industrial, por força das inovações que iam acontecendo. A partir deste acervo de cartas, é possível conhecer tudo isso, mas também deduzir algo mais sobre o funcionamento desta estrutura. Ao mesmo tempo, ficamos a saber que João Higino Ferraz era, em Portugal, uma autoridade na matéria, prestando informações a todos os que pretendessem montar uma infraestrutura semelhante. Assim, em 1928, acompanhou a montagem do engenho Cassequel, no Lobito, onde a família Hinton tinha interesses, e esteve, em junho de 1930, em Ponta Delgada, nos Açores, a ensinar a fermentar melaço de açúcar de beterraba, na Fábrica de Santa Clara. Harry Hinton surge, em quase toda a documentação, como um interveniente ativo no processo, conhecedor das inovações tecnológicas e preocupado com o funcionamento diário do engenho, nomeadamente com a sua rentabilidade. J. H. Ferraz informava-o, de forma quase diária, de tudo o que se passava. A proximidade do Funchal aos grandes centros de decisão e inovação tecnológica da produção de açúcar a partir de beterraba, na França e Alemanha, associados aos contactos de H. Hinton e ao seu espírito empreendedor fizeram com que a Madeira estivesse na primeira linha da utilização da nova tecnologia. Em 1911, documentam-se diversas experiências com equipamento. Além disso, funcionava como espaço de adaptação da tecnologia de fabrico de açúcar a partir da beterraba para a cana sacarina. Daí as diversas deslocações de J. H. Ferraz a França (1904 e 1909) e os permanentes contactos com alguns estudiosos e fábricas. Tenha-se em conta que o mesmo era sócio da Association des Chimistes em França, sendo por isso leitor assíduo do seu Bulletin. Por outro lado, alguns inventores, como Naudet e engenheiros de diversas unidades na América (Brasil e Tucuman), Austrália e África do Sul, estavam em contacto com a realidade madeirense, fazendo, por vezes, deslocações para estudar o caso do engenho madeirense. A erudição de J. H. Ferraz era vasta, dominando toda a informação que surgia sobre aspetos relacionados com o processo industrial e químico do fabrico do açúcar. Para além da leitura do Bulletin de l’Association des Chimistes, temos referências à leitura do Journal de Fabricants de Sucre, e podemos documentar na sua biblioteca a existência de diversas obras da especialidade, muitas delas referenciadas nos livros de notas ou cartas. Aliás, nas cartas que manda a Harry Hinton quando este se encontra no estrangeiro, pede-lhe frequentemente publicações recentes. O corpo documental provém do arquivo privado de João Higino Ferraz e pode ser seccionado em três partes fundamentais: uma primeira constituída por nove copiadores de cartas; uma segunda formada por vários volumes de livros de notas; e, por fim, documentação avulsa. Esta organização do arquivo pessoal de J. Higino Ferraz é, de certa forma, artificial, dado que não foi feita pelo autor; trata-se de uma elaboração arquivística, que decorre da análise do conteúdo e da tipologia dos vários documentos que o compõem. A primeira parte, composta por nove livros onde Higino Ferraz conservou, em cópia, muita da correspondência por si remetida, e não só, cobre o período de 1898 até 1937, com um hiato temporal provavelmente entre finais de 1913 e inícios de 1917, e outro possivelmente de janeiro a outubro de 1919. Julgamos que estas lacunas estariam contempladas em dois volumes autónomos; contudo, se existiram, esses livros não ficaram para a posteridade. A designação “copiador de cartas” foi adotada devido ao facto de os dois primeiros livros, que cobrem o período de 1898 a 1913, terem esse título na capa – não aposto por João Higino Ferraz, mas como denominação da finalidade dos volumes. Entendeu-se por bem atribuir a mesma designação a todos os livros, seguida da referência aos lapsos de tempo que abarcam. Cumpre ainda acrescentar que nem toda a correspondência remetida por João Higino Ferraz está presente nestes livros e que nem toda a documentação neles inserida é composta por epístolas. Ver-se-á que de algumas cartas enviadas, sobretudo as datilografadas, guardou o autor cópia sob a forma avulsa, estando as mesmas – aquelas a que tivemos acesso – transcritas na secção da documentação avulsa. Fizemos preceder cada carta transcrita de uma informação sumária concernente à data, ao destinatário e ao local, quando possível, para permitir uma mais rápida perceção por parte do leitor. Ao longo da transcrição, demo-nos conta de que alguma informação exarada nos copiadores não era, com efeito, composta por epistolografia, mas sim por relatórios, cálculos, estimativas de produção, lucros e despesas, etc. Antepusemos a cada um dos informes deste teor a menção à sua data e ao se destinatário, se conhecido fosse, e uma breve caracterização. Uma segunda secção deste espólio documental transcrito é constituída por anotações e apontamentos vários – inscritos em livros autónomos –, versando sobre produtos, processos, aparelhos e técnicas industriais de produção, bem como sobre a transformação de açúcar, álcool e aguardente; quase todos estes volumes têm título atribuído por João Higino Ferraz, que é respeitado e aceite por nós. Ainda que algo artificial, a denominação dada a este conjunto, “livros de notas”, advém dos próprios títulos atribuídos pelo autor. A última secção é constituída por documentação avulsa, abarcando: documentos epistolares, saídos do punho de Higino Ferraz (particularmente cópias de cartas) ou tendo-o como destinatário (sendo seus autores, por exemplo, Harry Hinton, Marinho de Nóbrega ou Antoine Germain); documentos referentes a aparelhos, processos e técnicas de fabrico e transformação de açúcar, álcool e aguardente (à imagem da informação exarada nos livros de notas); anotações manuscritas que João Higino Ferraz lançou nos forros da capa ou folhas de guarda de alguns livros ou manuais por si usados, que versavam sobre a cultura e produção de cana sacarina e seus derivados; e, ainda, apontamentos autobiográficos. Dividimos esta documentação em duas subsecções: a primeira, composta por todos os documentos que têm por autor Higino Ferraz; a segunda, por todas as fontes que foram produzidas por outros indivíduos. O arquivo privado deste técnico açucareiro, que morre em 1946, permite-nos, pois, ter acesso a informações que ilustram vários aspetos da sua vida pessoal e familiar, nomeadamente as suas condições de vida, relações de amizade e conceções políticas, sociais e económicas. Ao mesmo tempo, esta documentação reveste-se de especial interesse para a história da Madeira da primeira metade do séc. XX, sobretudo no que respeita à história da indústria açucareira nas suas vertentes económica, social e técnica, mas também nos seus meandros e implicações políticas. Alberto Vieira (aualizado a 06.01.2017)
almada, joão francisco de
Nascido em Santana, na ilha da Madeira, a 9 de julho de 1874, era filho de João Francisco de Almada e de Maria Emília Cardoso de Almada. Casou-se a 23 de outubro de 1907 com Ilda Beatriz Pinto Prado de quem teve três filhos: Maria Prado de Almada, Manuel Prado de Almada e António Manuel Prado de Almada. Estudou no Liceu do Funchal e, depois, entrou na Faculdade de Medicina de Coimbra, concluindo a licenciatura a 26 de julho de 1899. De regresso à Madeira, fixou morada em Santana ao ser nomeado subdelegado de saúde do concelho, por alvará de 17 de junho de 1905. Depois, a 21 de outubro de 1905, assumiu as funções de médico municipal da Câmara Municipal do Funchal, passando a residir na cidade, onde desenvolveu um importante trabalho como médico. Da sua ação como médico ao serviço da população madeirense, destaca-se o facto de ter sido o impulsionador da luta contra a tuberculose na Madeira. Assim, a ele se deve a criação do primeiro dispensário de luta antituberculosa, no Campo da Barca, posteriormente designado por Centro Dr. Agostinho Cardoso. Agostinho Cardoso (1908-1979), genro deste médico e também profissional da mesma área, seguiu a mesma linha de luta contra a tuberculose, daí ter o seu nome vinculado ao centro do Campo da Barca. Devemos, ainda, ter em conta a ação de João Francisco de Almada no sentido da instalação do sanatório da Qt. de Santana, no Monte, que foi inaugurado a 8 de dezembro de 1940 e que viria a receber o seu nome a 2 de julho de 1942, por deliberação da comissão executiva da ANT – Assistência Nacional aos Tuberculosos. A par disso, foi diretor clínico do Hospital Princesa D. Amélia e dos manicómios de Câmara Pestana e Casa de Saúde do Trapiche. Acresce, ainda, a sua ação no sentido da mudança do Hospital da Misericórdia do centro do Funchal (das instalações onde depois funcionaria o Governo regional) para o local dos Marmeleiros, no Monte. A sua obra em prol da Madeira e da saúde da sociedade madeirense foi reconhecida em vida, tendo sido agraciado, a 7 de dezembro de 1933, pela comissão administrativa da Câmara Municipal, com o título de cidadão benemérito da cidade do Funchal. Depois, em 1937, recebeu do Governo francês o grau de oficial da Academia, pelo trabalho como presidente da comissão de receção ao cruzeiro médico francês que teve na Madeira, em 1932 e em 1936. João Francisco de Almada faleceu no Funchal a 14 de junho de 1942. A lembrança da sua memória e da sua obra está registada publicamente na designação atribuída ao Hospital Dr. João de Almada e no busto em bronze, obra do escultor Anjos Teixeira, de 1974, que foi inaugurado a 22 de março de 1988 no pátio do referido Hospital (Qt. de Santana, Funchal). É ainda de referir a existência, na Quinta Grande (freguesia do concelho de Câmara de Lobos), desde 9 de julho de 1998, do caminho Dr. João Francisco de Almada, o que se relaciona com o facto de a Qt. do Pomar, na Quinta Grande, ter sido propriedade familiar por via da sua esposa. Alberto Vieira (atualizado a 13.11.2016)
alfenim
Tradicional em alguns países, a confeção de alfenim está documentada em Portugal desde os sécs. XV e XVI e sabe-se da sua presença em festas e romarias populares. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido um espaço-chave da sua divulgação para outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul. Durante os sécs. XV e XVI, o fabrico de alfenim ocupou muitos madeirenses e foi uma importante fonte de receita das famílias. Nos inícios do séc. XXI, não há qualquer referência ao fabrico habitual de alfenim na Madeira. Palavras-chave: açúcar; Brasil; doçaria; festas do Divino Espírito Santo; tradições populares. “Alfenim” é um nome que provém do termo árabe “fanid”, com origem no persa “panid”, com o significado de branco. No latim, aparece como “alphanicum”, “alfenid”, “alpenid” ou “alfanix”; no italiano, como “penito”; no espanhol, como “alfeñique” (sendo, no México, “alfenique”); em francês, como “penides”, “épénide”, “penidon”, “penoin”; popularmente, é conhecido como “peningue”. O primeiro registo do termo na Madeira é de 1469, com a grafia “alfinij”. No séc. XVI, aparece referido em Gil Vicente e em Jorge Ferreira de Vasconcelos. Naidea Nunes refere que, na Madeira, “alfenim” aparece na documentação com as designações: “alfinij” (1469), “alffiny” (1488), “alfenjm” (1490, 1517), “alfenj” (1498), “alfeny” (1517), “alfynjm” (1523), “alfenij” (1579), e conclui que é “um termo muito antigo, do árabe fânid, que em catalão teria a forma affenic, adquirindo, em castelhano, a forma alfenique, que surge nas Canárias com a grafia alfinique (1540)” (NUNES, 2003, 159). O Nordeste do Brasil, uma das mais importantes regiões açucareiras do país, foi durante muito tempo terra de alfenim, tendo depois perdido a importância nesse domínio. Segundo Naidea Nunes, “no Brasil, o termo alfenim apenas existe no Nordeste, onde foi conservado, provavelmente por se tratar da primeira região açucareira brasileira. Nos restantes estados do Brasil, como podemos ver, apenas encontrámos as denominações rapadura mole, puxa e puxa-puxa ou rapadura puxa-puxa, para denominar o mesmo conceito” (NUNES, 2010, 56). Todavia, a arte do alfenim espalhou-se por todo o Brasil e, nos começos do séc. XXI, persiste nos estados da Paraíba, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, de Minas Gerais, do Ceará, de Pernambuco, de Goiás e do Rio Grande do Norte. Esta tradição encontra-se em Pirenópolis, associada às festas do Divino, e na cidade de Montanhas, no estado do Rio Grande do Norte, ligada às festas do dia de Reis, bem como noutras localidades, como a cidade de Goiás, onde as doceiras realizam pequenas esculturas em forma de flores, pássaros, peixes e chapéus. Gilberto Freyre, em Açúcar. Uma Sociologia do Doce…, documenta a presença do alfenim no Nordeste do Brasil como um vestígio da doçaria portuguesa de influência árabe. À data da primeira publicação do livro, em 1932, a tradição do fabrico de grande parte desta doçaria estava em vias de desaparecer. No entanto, nos começos do séc. XXI, por força das tradições em torno das festas do Divino, o costume de fabrico do alfenim persiste em muitas localidades brasileiras. Na Sicília, conserva-se a tradição dos doces de alfenim e de maçapão, principalmente no dia de Todos os Santos, em que as crianças recebem, como alegado presente dos antepassados, várias figuras de açúcar. A tradição do alfenim encontra-se também no México, com a elaboração de caveiras para o Dia dos Mortos, a 1 de novembro, em que se combinam elementos indígenas com costumes europeus. Os nauatles faziam figuras, normalmente caveiras, como oferenda aos seus mortos. Com a chegada dos Espanhóis, surgiram as figuras de caveiras em alfenim. A esta figuração, as freiras juntaram as cenas relacionadas com a época natalícia. Assim, o alfenim assume várias formas: caveiras, ataúdes, anjos, cruzes, miniaturas de animais ou de fruta, pratos com comida, canastras com flores, etc. Esta tradição persiste no México, tanto na Cidade do México como nos estados de Puebla e Oaxaca. Além disso, na cidade de Toluca, v.g., celebra-se, a 2 de novembro, a festa do alfenim. A produção de alfenim está também documentada na Argentina, na Bolívia, na Colômbia, no Peru e no Equador. Em Portugal, a confeção de alfenim está documentada desde os sécs. XV e XVI e sabemos da sua presença em festas e romarias populares. Ganhou importância no quotidiano da sociedade portuguesa a partir da divulgação do açúcar, desde meados do séc. XV. A Madeira, como espaço de produção de açúcar, especializou-se na arte da doçaria, domínio em que transpôs o seu perímetro, chegando aos Açores, às Canárias e ao Brasil. A partir do séc. XV, tanto em Portugal como em importantes cidades europeias, o consumo e a divulgação do açúcar passarão pela confeção de manjares nobres, sob a forma de doces – como o alfenim, a alféola (um doce semelhante ao caramelo), conservas e cascas de fruta cristalizada. Na Madeira, ficou célebre a doçaria conventual que fez as delícias de Ingleses, de Franceses e de flamengos. A par disso, o fabrico das figuras de alfenim fez de muitas mulheres madeirenses autênticas escultoras da doçaria. O alfenim fazia parte da mesa da Coroa e das casas nobres, e era, no séc. XVI, servido à nobreza em salvas de prata por ocasião das festas do Divino em todo o espaço português, tradição que teve continuidade na Madeira, nos Açores, e que chegou ao Brasil. Das mesas do reino, o alfenim passou às das ilhas e delas ao Brasil, acompanhando o processo de expansão da cultura da cana sacarina e do fabrico do açúcar. No Atlântico, o alfenim foi primeiramente produzido na Madeira, afirmando-se como o doce mais nobre, servido na casa das famílias importantes, e usado como dádiva nas festas do Divino. A oferta de doces está relacionada com uma atitude de gratidão ou mesmo de empatia. É uma tradição muçulmana que os Portugueses assimilaram. Vasco da Gama ofereceu alfenim madeirense ao samorim de Calecute. As freiras do Convento de S.ta Clara presenteavam os visitantes com alfenim e com outros doces. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido, como já ficou dito, um espaço-chave da sua divulgação para outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul. São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes doces. Já em 1455 Cadamosto menciona a feitura de “muitos doces brancos perfeitíssimos”, aludindo certamente ao alfenim (ARAGÃO, 1981, 37). A primeira referência documental a esta arte da doçaria data de 1469, quando se diz que esta atividade era indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava “molheres de boas pesoas e muytos pobres que lavraram os açuquares bayxos em tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de que am grandes proveytos que dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas partes onde vam”. Durante os sécs. XV e XVI, o fabrico de alfenim ocupou efetivamente muitos madeirenses e foi uma importante fonte de receita das famílias. Esta era fundamentalmente uma indústria feminina e de fabrico caseiro, mas sabe-se que havia homens que exerciam o ofício de doceiro ou confeiteiro, pois a sua atividade estava regulamentada nos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa. A atividade estava vedada a estrangeiros e mestres de açúcar – apenas os “vizinhos e naturaes da ilha” podiam fazer conservas, alfenim e confeitos. De acordo com um documento de 9 de março de 1490, “em toda essa ylha nom posa fazer nemguem conservas, alfenim, comfeytos nem outra nenhüa fruyta daçucaar soomente os vizinhos e naturais da dyta ylha” (MELO, 1973, 198-199, 241). Em 1494-1495, a Casa Real portuguesa recebeu 71 arrobas de confeitos; entre estes, havia 29 arráteis de alfenim. A crónica de Damião de Góis apresenta D. Manuel como um grande apreciador da doçaria madeirense: “Nas vesporas do Natal consoava publicamente em sala, com todo o Estado de porteiros de maçareis darmas trombetas, atabales, charamellas, e em quanto consoava davam de consoar a todolos senhores, fidalgos e cavalleiros, e escudeiros que estavam na salla, na qual se ajuntavam naquelle dia todos os que andavam na Corte por saberem o gosto que el-Rei levava em fazer este banquete, que todo era de frutas verdes e dasucar, e de conservas, que lhe traziam da ilha da madeira, depois desta consoada” (GÓIS, 1911, 92). Desde o séc. XVI, no Japão, aparecem referências ao fabrico de alfenim (aruheitou) e outras doçarias, como confeitos (komfeiton). A primeira referência ao alfenim é de 1569; no decurso das centúrias seguintes, há notícias do seu consumo, tendo sido sempre, ao longo dos séculos, um dos doces nanbam, de oferta em momentos especiais. Tenha-se em conta que ficou célebre o alfenim madeirense que Vasco da Gama levou para oferecer ao samorim de Calecute. Pela rota da Índia deverá ter chegado ao Japão a arte da confeitaria madeirense, onde persiste nos começos do séc. XXI. Os estudos de Miyo Arao reforçam a ideia da influência portuguesa na confeitaria de Tóquio e estabelecem uma ponte com a Madeira, tendo em conta que muitos dos doces produzidos na Madeira aparecem na culinária do Japão. Além disso, não se pode esquecer que, nos sécs. XVI e XVII, a Madeira era um dos principais centros produtores de alfenim e daí deverá ter partido a técnica de fabrico que, depois, se vulgarizaria noutros espaços, como o Japão. A fama alcançada pela arte da doçaria madeirense está testemunhada na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa. O facto mais memorável é referido pelos cronistas. Jerónimo Dias Leite diz que “leuou muitos mimos e brincos da ilha, de conseruas, e ho sacro palacio todo feito de asucar e hos Cardeaes hião todos feitos de alfenij […] ho que foi tudo metido em caixas embrulhadas com algodão, que forão mui seguros e sem quebrar” (LEITE, 1947, 37). Escreve Gaspar Frutuoso: “E tão generoso foi, que, tendo seu filho Manuel de Noronha, Bispo que foi de Lamego, em Roma, que servia de secretário do Papa Leão, despachou da ilha um criado seu, por nome João de Leiria, homem muito honrado, prudente, e gentil-homem, o qual mandou a Roma visitar o Papa com um grande serviço, que, além de um cavalo pérsio, que lhe mandou de muito preço, que levava de cabresto um mourisco muito gentil, homem e alto de corpo, vestido em uma marlota de girões de seda; levou mais muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio, todo feito de açúcar, e os cardeais iam todos feitos de alfenim, dourados a partes, que lhe davam muita graça, e feitos de estatura de um homem, o que foi tudo metido em caixas emborulhados [sic] com algodão, com que foram mui seguros e sem quebrar até, dentro, a Roma, coisa que, por ser a primeira desta sorte que se viu em Roma, estimou-a muito o Papa, e cada uma peça por si foi vista pelos cardeais e senhores de Roma, sendo presente o Papa, que louvava muito o artifício, por ser feito de açúcar, e muito mais louvava o Capitão que lhe tal mandava, largando muitas palavras perante todos em louvor deste ilustre Capitão” (FRUTUOSO, 1979, 248-250). Mas sobre esta embaixada, segundo Luciana Stegagno Picchio, não consta qualquer documento na Cúria Romana, ao contrário do que aconteceu com outras. Terá sido mera invenção dos cronistas, para exaltar a figura do capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara? Atente-se na situação, a ter acontecido. Seriam 72 os cardeais feitos em alfenim e em tamanho natural, o que poderia significar mais de 5000 kg de açúcar. Por outro lado, deve ter-se em conta o próprio processo de fabrico das figuras e a dificuldade em transportá-las intactas até Roma. Será que podemos afirmar que a dita embaixada madeirense nunca existiu e que os testemunhos de Jerónimo Dias Leite e de Gaspar Frutuoso são pura invenção? Em 1550, D. Isabel Mendonça, mulher do referido capitão-donatário, tinha a seu cargo o abastecimento da Casa Real, tendo enviado para Lisboa, em 1551, 105 arrobas de conserva, 24 arrobas de fruta seca e 8 arrobas de alfenim. Em 1567, Pompeo Arditi dá conta da “conserva de açúcar” que se fazia no Funchal, “de ótima qualidade e muita abundância” (ARAGÃO, 1981, 130). Em finais do séc. XVI, Gaspar Frutuoso dava conta de “ricos e esquisitos manjares de toda sorte, como os sabem muito bem fazer as delicadas mulheres da ilha da Madeira, que (além de serem comumente bem assombradas, muito formosas, discretas e virtuosas) são estremadas na perfeição deles e em todolas invenções de ricas coisas, que fazem, não tão somente em pano com polidos lavores, mas também em açúcar com delicadas frutas” (FRUTUOSO, 1979, 264). Esta tradição perpetuou-se na Ilha para além dos tempos áureos da produção açucareira local (segundo Hans Sloane, em 1687, o madeirense produzia o “açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil” (ARAGÃO, 1981, 158)). Outro testemunho a atestar a abundância deste doce na Madeira é o facto de, a 29 de julho de 1593, o chamado fogo do céu, que queimou parte da cidade do Funchal, dando origem às ruas da Queimada de Cima e Queimada de Baixo, ter queimado alfenim, que havia sido feito com 5000 pães de açúcar. Nos inícios do séc. XXI, não há qualquer referência ao fabrico habitual de alfenim na Madeira (embora ainda haja quem se lembre das pombas do Divino, por ocasião das festas do Espírito Santo). No entanto, em algumas ilhas dos Açores e em alguns estados do Brasil a tradição do alfenim continua viva, alimentada pela persistência das festas em honra do Divino Espírito Santo. Alberto Vieira (atualizado a 28.09.2016)