Mais Recentes

doações

A doação é um ato pelo qual se transfere, gratuitamente, a posse total ou parcial de um bem a outrem, e reveste duas modalidades: inter vivos, quando o doador aliena irrevogavelmente o património, ou in mortis causa, quando a doação apenas se processa após a morte do doador, assumindo, assim, o carácter de um legado. Apesar do carácter gratuito da cedência, a doação não é, de modo geral, totalmente desinteressada, na medida em que pressupõe um objetivo que é importante para o doador, ainda que isso não lhe retire o estatuto de instrumento estruturante tanto na história do reino de Portugal como na do arquipélago da Madeira. A prática de se doarem parcelas de território a senhores nobres ou eclesiásticos surge cedo na Península Ibérica, muito como resultado do empreendimento da reconquista cristã, e destinava-se quer a recompensar serviços prestados ao Rei, quer a promover o repovoamento das áreas retomadas, quer a representar um simples ato da generosidade do Monarca. O próprio nascimento de Portugal radica numa doação feita por Afonso VI de Leão e Castela a seu genro, o conde D. Henrique, e, após a elevação do condado à categoria de reino, a prática continuou a ser seguida pelos Reis de Portugal, que abundantemente distribuíram terras a entidades civis e religiosas, de entre as quais avultam as concessões a ordens religiosas e a instituições conventuais. Esta estratégia visava, sobretudo, contribuir para a defesa, promover a fixação de povoadores, e assegurar a produtividade das terras entregues a mosteiros. Quando, cerca de 1419, se (re)descobre a Madeira, e se começa a pensar o seu povoamento, desenrolado a partir 1425, principia também a definir-se um modelo para a administração do território, o qual assentará, do mesmo modo, em sucessivos processos de doação. Com efeito, enquanto entre 1420 e 1425, a responsabilidade sobre o arquipélago permanecia inteiramente nas mãos do Rei, D. João I, a partir de 1425, ela é transferida para as do infante D. Henrique, sem que, no entanto, a posse das ilhas deixe de ser propriedade régia, pois enquanto foi vivo D. João sempre se considerou como “Rei e Senhor” delas. A morte do Soberano, ocorrida em 1433 vai alterar esta situação, na medida em que o novo monarca, D. Duarte, por carta de doação datada de 26 de setembro do mesmo ano, concederá ao infante D. Henrique o estatuto de “Senhor das Ilhas”, tornando-o, assim, e de facto, donatário do arquipélago. Na mesma data, D. Duarte atribuiu também à Ordem de Cristo “para todo o sempre o espiritual das Ilhas da Madeira, do Porto Santo e da Ilha Deserta” (FERREIRA, 1960, 35-36). Entre 1440 e 1450, o infante donatário, doará, por sua vez a Tristão Teixeira (8 de maio de 1440), a capitania de Machico, a Bartolomeu Perestrelo (1 novembro de 1446), a do Porto Santo e a João Gonçalves Zarco (1 de novembro de 1450), a do Funchal. Fica assim claramente estabelecido o papel que o mecanismo de doação ocupa na génese da administração do território insular. No próprio desenrolar do povoamento, as doações continuaram a desempenhar um papel importante no que concerne à cedência de propriedades em regime de sesmarias, como forma de garantir o arroteamento dos terrenos, seguindo-se aqui um procedimento muito equivalente ao que se passara no reino. Os beneficiados com a concessão de terrenos não foram, porém, apenas os senhores que receberam os terrenos para arrotear, mas também a própria Igreja, cuja implantação no arquipélago igualmente gozou do acesso a propriedades oferecidas para que nelas se pudessem edificar os necessários edifícios de culto. Com efeito, a construção dos templos requeria espaços, que foram disponibilizados quer a partir de contributos de particulares, que nas suas fazendas povoadas rapidamente erigiam capelas destinadas à celebração dos ofícios divinos, quer originados nas instituições que tutelavam o espiritual das ilhas: a Ordem de Cristo, primeiro, e, depois, a Coroa. As ordens monásticas foram igualmente beneficiadas por este sistema de doações, o que se verifica a partir da fixação definitiva dos Franciscanos no arquipélago. Tendo cabido à Ordem Seráfica a responsabilidade do pastoreio das almas dos primeiros povoadores, logo por volta de 1479 assiste-se à entrega de um terreno vinculado à capela de Clara Esteves, falecida, o qual, por ordem de D. Beatriz, à data administradora da Ordem de Cristo, foi entregue aos frades de Assis para edificação da sua casa conventual. O mesmo aconteceu com a construção do convento de N.ª Sr.ª da Piedade, em Santa Cruz, erigido em terrenos de Urbano Lomelino e com o convento de S. Bernardino, em Câmara de Lobos, para o qual contribuiu a doação do sítio operada por João Afonso, escudeiro do infante D. Henrique e senhor do lugar. A ereção dos conventos de Clarissas na Diocese do Funchal operou-se de acordo com os mesmos critérios. Assim, para o primeiro deles, S.ta Clara, fundado em finais do séc. XV, foi determinante o papel de João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do Funchal, que o mandou edificar em terrenos anexos à igreja de N.ª Sr.ª da Conceição de Cima, já fundada por seu pai, João Gonçalves Zarco. Aos Câmaras ficou, ainda, adstrito o padroado da instituição, a qual requeria, para ingresso, um dote avultado que reforçava o carácter elitista das suas freiras, decidido, de resto, por D. Manuel, quando a destinara a servir as “filhas e parentes dos principais da terra” (FONTOURA, 2000, 55). Com os conventos de N.ª Sr.ª da Encarnação e de N.ª Sr.ª das Mercês, o procedimento foi idêntico. Assim, o primeiro começou a erguer-se, a partir de 1645, graças ao empenho e financiamento do Cón. Henrique Calaça, e o segundo foi fundado em 1663, por iniciativa de Gaspar de Berenguer e sua mulher Isabel de França, que o dotaram de terreno e verbas destinadas ao seu funcionamento. No processo de construção da Sé do Funchal assiste-se igualmente à doação, por parte de D. Manuel, então ainda na qualidade de administrador da Ordem de Cristo, a cujo padroado pertencia a administração religiosa do arquipélago, de um canavial, conhecido como “campo do duque”, sobre o qual se haveria de erguer o templo (FERREIRA, 1963, 41). Para tornar mais expedito o procedimento, o duque doou ainda os rendimentos de penas criminais que lhe pertenciam, bem como a imposição sobre vinhos atavernados, ou seja, aplicou ao fim da construção da igreja impostos que normalmente seriam por ele recebidos. O desenrolar do processo de cobertura da Ilha por estruturas religiosas leva à criação de um conjunto de paróquias fora do Funchal – Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol, Calheta, Machico, Santa Cruz, e.g., cujas igrejas se tiveram de ir edificando, correndo as despesas com a capela-mor por conta da Ordem de Cristo, numa fase inicial, e da Coroa, numa fase posterior, ficando o restante corpo do templo por conta dos fregueses, que assim, e desde o início, se associam também à dinâmica de dotação da Igreja dos contributos indispensáveis à sua implantação em território insular. Este modus operandi que divide responsabilidades na construção e manutenção dos espaços sagrados vai manter-se ao longo do tempo, sendo frequente ver chamadas de atenção dos bispos, em sede de provimentos de visitação, nas quais se apelava aos paroquianos para que não descurassem as suas obrigações naquela matéria. Assim acontece, e.g., na Tabua, quando, em 1589, se assinala que o forro da igreja está danificado pela chuva, pelo que se solicita aos fregueses que, “por todo o mês de setembro” o mandem consertar (ACDF, Tabua, cx. 2, fl. 10). Nessa mesma freguesia, e por estar a igreja velha arruinada, provia o visitador, em 1590, que os fregueses edificassem um novo templo, de acordo com especificações deixadas, e, se assim não o cumprissem, ver-se-iam condenados. O visitador acrescentava, porém, que sendo “a capela e a sacristia da obrigação de Sua Majestade a quem se pagam os dízimos […] mandamos lhe requeiram provisão para as mandar fazer segundo o corpo da igreja e poder correr toda a obra juntamente” (Ibid., fl. 13v.). À medida que a determinação tridentina, que obrigava à residência paroquial, vai sendo implementada, também se pode acompanhar aquilo que as visitações iam provendo sobre o assunto, o qual implicava, igualmente, a contribuição direta dos paroquianos. Continuando na Tabua e em 1590, o prelado que pessoalmente visitava a freguesia pedia aos fregueses que “hajam assento e chão acomodado para casa do vigário perto da igreja e que lha ajudem a fazer e ponham da sua parte para isso toda a diligência e favor por ser importante a residência dele em a freguesia e igreja” (Ibid., fl. 15). O mesmo acontecia na Fajã da Ovelha, onde, também em 1590, o povo era solicitado a arranjar “chão” e ajudar o pároco na construção da casa (ACDF, Fajã da Ovelha, Provimentos de Visitações, 1591-1730, fl. 9), enquanto no Seixal, em 1591, os pedidos iam no sentido do fornecimento de “madeira, pedra e colmo”, bem como colaboração com mão de obra para a residência do clérigo (ACDF, Seixal, Livro de Provimentos, 1591-1756, fl. 3v.). Outra forma muito utilizada para induzir a doação de bens à Igreja era a do recurso aos peditórios que se faziam a propósito dos mais variados motivos: para se instituir uma confraria, por ocasião da festa do orago – neste caso normalmente organizados pela confraria da mesma invocação –, para ajudar as ordens mendicantes, e ainda para financiar os conventos cuja regra os impedia de possuírem bens próprios, como acontecia, e.g., com o de N.ª Sr.ª das Mercês. A exemplificar a primeira das situações (a que diz respeito à fundação de uma confraria), veja-se o que ficou exarado em 1590 na Ponta Delgada, em que o bispo, D. Luís Figueiredo de Lemos, interessado na fundação de uma Confraria das Almas ordena aos fregueses que “dentro em dois meses instituam a dita confraria das almas e para que mais comodamente o possam fazer lhes dou licença pera que tirem esmolas pelas eiras e lagares da freguesia.” (ARM, Ponta Delgada, Livro de Provimentos, 1589-1694, fl. 8). O exagero que, porém, por vezes se verificava nestas iniciativas levava os prelados a intervir procurando disciplinar aquela prática, para o que deixavam avisos tendentes à moderação, como se vê no que está vertido nos provimentos de S. Martinho exarados em 1587 e que dizem estar o antístite informado “que algumas pessoas vêm a esta freguesia pedir esmolas pera confrarias & os santos de outros lugares & freguesias havendo aqui os mesmo santos & confrarias o que é causa de se dividirem as esmolas & estarem tão pobres as próprias no que querendo nos prover mandamos que nenhum petitório geral ou particular de santo de fora se consinta na freguesia em que houver outro semelhante posto que para isso haja licença nossa porque não é nossa intenção concedê-la” (ARM, Registos Paroquiais, S. Martinho, liv. 9122, fl. 4-4v.). A instituição de confrarias veio a revelar-se um profícuo mecanismo de captação de bens para a Igreja, pois não só os irmãos contribuíam com verba anualmente paga para a sua manutenção, como a administração dos bens legados por particulares fazia confluir para os seus cofres um não despiciendo fluxo financeiro, que deveria ser gerido tendo em vista o fim que presidira à constituição do movimento confraternal: a celebração de ofícios divinos, a ajuda ao próximo e a salvação das almas. A responsabilidade da gestão destes fundos variava de acordo com o compromisso das diversas confrarias, e era objeto de inspeção nas visitas paroquiais, deixando os bispos, ou os visitadores, nos seus provimentos, muitas vezes críticas e recomendações sobre os procedimentos a seguir na apresentação dos resultados da contabilidade confraternal. Outro recurso que muito contribuiu para a sustentação económica da Igreja surge sob a forma de doações in mortis causa, ou seja, aquelas que eram feitas em testamentos e se destinavam a assegurar a prestação continuada de cuidados à alma do falecido que, para tal, doava terras ou rendimentos a serem aplicados em missas para resgate da sua alma. Sendo esta uma prática transversal a todos os grupos sociais, os montantes legados variam, contudo, e como seria de esperar, em função da capacidade económica dos doadores, constatando-se situações em que se fundam capelas de missas, com obrigação de celebração diária enquanto “o mundo for mundo”, a par de outras que apenas solicitam os ofícios divinos que os herdeiros acharem possíveis. O facto de os rendimentos afetos às capelas se tornarem insuficientes mercê do decurso do tempo, da desvalorização, ou de outros fatores, vai estar na origem de múltiplos conflitos que irão opondo bispos a testamenteiros e a juízes dos resíduos e capelas, sendo fonte de inesgotáveis processo em tribunais e de preocupações no tocante ao incumprimento das últimas vontades dos instituidores. A emergência deste fenómeno, que impossibilitava a cabal satisfação dos legados, é muito antiga na Madeira, estando já contemplada nas Constituições Sinodais de 1615, onde se referia ter o bispo sido informado de que “muitas capelas se não cumprem por as propriedades e bens sobre que foram instituídas renderem hoje tão pouco que não basta para se dizerem as missas […] que os instituidores mandam dizer”, “pelo que se autorizava aos administradores em incumprimento que pudessem satisfazer apenas dois terços do inicialmente previsto” (COSTA, 1987, 19). As dificuldades na satisfação de encargos pios, o devir histórico e, até, as alterações da conjuntura política motivadas pelo liberalismo, com a consequente diminuição do peso institucional da Igreja, foram, aos poucos, diminuindo a prática dos legados testamentários, sem que, no entanto, se possa falar de uma completa extinção do procedimento. No começo do terceiro milénio, as doações na Igreja Católica estão sujeitas às normas do Código de Direito Canónico (liv. V) e das normas particulares das dioceses.   Cristina Trindade (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social História Política e Institucional

vilares, luís rodrigues

Segundo algumas fontes, D. Luís Rodrigues Vilares seria “dito natural do Brasil” (PEREIRA, 1968, II, 452), de onde teria saído para estudar em Coimbra, no Colégio de S. Pedro, onde chegou a reger a cadeira de História Eclesiástica. Acabou por regressar a São Paulo, para o desempenho da função de arcediago. Enquanto aí prestava serviço, foi eleito bispo do Funchal a 2 de junho de 1796, recebendo confirmação de Pio VI a 29 de julho de 1797. Foi sagrado a 31 de dezembro do mesmo ano, na igreja de S. Pedro de Alcântara, em Lisboa, e daí rumou à Madeira. Chegado ao Funchal, o bispo viu-se imediatamente envolvido na problemática da governação da Ilha, pois o falecimento, pouco tempo antes, do Gov. D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho impusera uma solução que passava pela existência de uma junta governativa, à qual o prelado passou, desde logo, a pertencer. Em princípio sem grandes qualificações militares, D. Luís Vilares não deixou de se interessar por aquele aspeto da governação, tomando decisões que tocavam às obras de caráter defensivo, sendo, por exemplo, a favor de haver menos edifícios, mas bem guarnecidos, em vez de muitos mal equipados. Graças à instabilidade dos restantes elementos da junta governativa, que mudavam frequentemente, o protagonismo do prelado foi aumentando, sendo mesmo possível encontrá-lo a despachar assuntos – não em S. Lourenço, mas no paço episcopal – sobre promoções militares, a encomendar pólvora e a dar ordens para que se inventariassem equipamentos. No tempo em que se ocupava do governo militar do arquipélago, o bispo indispôs-se com o sargento-mor do Porto Santo por este se ter ausentado sem licença e mandou-o regressar ao Funchal, onde foi feito prisioneiro. Em 1800 chega, finalmente, ao Funchal, um novo governador, D. José Manuel da Câmara que foi recebido pelo bispo em “um muito decente escaler”, sendo que as primeiras impressões que o governador colheu do prelado foram positivas, pois achou-o muito agradável no discurso e nas maneiras; opinião que, no entanto, iria durar pouco tempo, pois dentro em breve as relações entre os dois degradar-se-iam a um ponto sem retorno (CARITA, 2003, VI, 80). Uma das primeiras razões dos atritos formalizou-se com as queixas apresentadas pelo sargento do Porto Santo relativas à sua prisão, às quais o governante deu provimento, encetando, com isso, a muito conflituosa relação que depois manteria com o bispo. Agravou a situação o facto de o governador se pronunciar sobre o exercício do poder da junta governativa, qualificando de “estado paralítico” aquele em que tinha encontrado a administração pública, e atribuindo as causas não só aos últimos anos de D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, mas sobretudo à junta governativa que designava por “miserável” (RODRIGUES, 1999, 184), cujo principal responsável fora, como se viu, o prelado. Em fevereiro de 1801, o bispo escrevia para Lisboa a pedir licença para ir ao reino por razões de saúde que, apesar de existirem, não seriam, com certeza o único motivo que o levava a pretender ausentar-se. Com efeito, o governador fora acompanhado de umas Instruções pelas quais se haveria de reger e das quais constavam alguns pontos que não poderiam deixar de desagradar a D. Luís Rodrigues Vilares, nomeadamente o que dizia respeito à indicação de que “debaixo do pretexto da religião” se poderiam atropelar direitos reais e que era ao governador que estava cometida a responsabilidade da inspeção das escolas públicas (CARITA, 2003, 89). Para além disto, o governante era ainda portador de outra carta cujo conteúdo também não poderia satisfazer o prelado: a missiva em que a Coroa concordava com a passagem da tutela do Colégio dos Jesuítas para o governador, para que servisse de celeiro público. Em 1801, por razões que se prendiam com o clima de guerra internacional advindo das movimentações europeias e marítimas de Napoleão, os Ingleses sentiram que precisavam de um ponto de apoio no Atlântico que lhes garantisse algum controlo da circulação marítima, e decidiram que esse ponto seria a Madeira, pelo que uma esquadra inglesa se apresentou no porto do Funchal e fez saber ao governador que pretendia desembarcar e instalar-se na Ilha enquanto fosse preciso. Sem possibilidades de sequer discutir o assunto, o governador rendeu-se às evidências e os Britânicos rapidamente se puseram em terra, ficando as chefias aquarteladas em S. Lourenço, enquanto se procurava um alojamento definitivo para as tropas que, temporariamente, se tinham instalado ao ar livre, nos ilhéus. A precariedade desta solução obrigou a que rapidamente se procurasse um sítio capaz para se aboletarem as tropas, e a escolha acabou por recair no Colégio dos Jesuítas, solução a que o governador foi muito recetivo, até porque lhe poderia, no futuro, satisfazer a ambição de transformar aquele espaço num quartel. Àquela atitude de D. José da Câmara reagiu, de imediato, o prelado, insurgindo-se contra a cedência do edifício aos Britânicos, tendo em conta que nas suas instalações funcionava o seminário. Logo de seguida, aconteceu nova desinteligência, provocada pela decisão de a oficialidade inglesa não se instalar no Colégio, preferindo uns aposentos quase em frente, então alugados a um cónego de origem inglesa, Duarte Guilherme Allen, que tentou, por todos os meios, evitar a sua saída de casa. Esta atitude do cónego foi logo conotada com a influência que sobre ele teria o prelado, o que mais não fez senão agravar a deterioração das relações entre o governador e o bispo. A tensão subia entre as duas personalidades, que não perdiam uma ocasião para publicamente se manifestarem uma contra a outra, como aconteceu no caso de uma missa de ação de graças que o prelado fez celebrar na Sé, em honra de um tratado de paz recentemente assinado com França, a que o governador se recusou a assistir; e no caso da acusação que D. Manuel da Câmara fez do bispo de não esperar por ele para o início da procissão do Corpo de Deus, fazendo-a, propositadamente, sair mais cedo que o previsto. Neste clima conflituoso, cada desenvolvimento contribuía para aumentar o desgaste e assim, quando, por diversas causas, o governador se travou de razões com o cônsul inglês Pringle, este passou a reunir-se com muita frequência com o bispo, o qual, tendo faltado aos festejos do aniversário do Rei de Portugal, compareceu, por sua vez, ao baile realizado em casa do cônsul em homenagem aos anos de Jorge III, . Nessa mesma residência, segundo se dizia, ocorriam umas reuniões prolongadas entre o prelado, o cônsul e um conjunto de personalidades conotadas com a maçonaria, acabando D. Luís Rodrigues Vilares por vir a ser tido por pedreiro-livre. Outro dado a juntar à acusação de maçonaria provinha do facto de o bispo ter pregado na igreja de Santiago, acompanhado pelo padre de Santa Maria Maior, Francisco de Spínola, “reconhecido pedreiro-livre” (CARITA, 2003, 92). Perante estas suspeitas ocorreu ao governador levantar um processo e equacionar a hipótese de mandar prender o bispo e enviá-lo para Lisboa, ao mesmo tempo que insistia na sua própria transferência para o reino. Estando perto do término do seu mandato, Lisboa optou por não atender a nenhuma das solicitações: nem autorizou a prisão de D. Luís Rodrigues Vilares, nem permitiu a antecipação do regresso do governador. José Manuel da Câmara, cada vez mais indignado, enviava para o reino sucessivas queixas do prelado, em que dava conta das suas “contínuas faltas de consideração e respeito”, defendendo que “para grandes males, grandes remédios” (RODRIGUES, 1999, 191). A tradução prática daquele aforismo entendeu o governador que deveria ser o afastamento do bispo, cujo exílio no Santo da Serra determinou sem consultar a corte, o que o obrigou a, posteriormente, rever a decisão. Durante o seu desterro no Santo da Serra, o bispo entretinha-se a passear, indo frequentemente a um sítio onde acabou por mandar construir um fontenário que foi chamado Fonte do Bispo; mas não descurava a ofensa que lhe fora feita, que queria remir a partir do reino, tendo solicitado, como se referiu anteriormente, licença para lá se deslocar e uma sindicância para as suas ações. Entre as razões elencadas pelo prelado para ir à corte encontravam-se ainda, para além da já mencionada necessidade de cuidados de saúde, a “falta de ilustração do clero”, que ele atribuía à retirada do seminário do Colégio dos Jesuítas e às dificuldades que se lhe deparavam em relação ao provimento dos benefícios (CARITA, 2013, 129). A 22 de agosto de 1803, acabou por ver satisfeita a sua pretensão, quando recebeu um aviso régio para se apresentar na corte. Em dezembro, chegou ao Funchal a fragata Carlota Joaquina, que trazia a bordo o novo governador, Ascenso de Sequeira Freire, um desembargador para sindicar dos problemas havidos entre as duas personagens e ordem para o bispo e o governador seguirem para Lisboa, mas em embarcações diferentes. Assim aconteceu e, terminadas as averiguações, a sentença contra o prelado e o governador foi proferida no Desembargo do Paço em meados de 1805, tendo sido ambos objeto de censura: ao governador, criticava-se o seu mau comportamento com o antístite; sobre este pesavam as injúrias com que teria mimoseado D. José Manuel da Câmara, usando de “palavras impróprias” e pouco consentâneas com a sua qualidade de pastor, de quem se esperava “mansidão e paciência evangélica” (CARITA, 2013, 144). Apesar deste resultado, foram ambos perdoados, sendo o bispo mandado regressar à Madeira, para onde voltou em 1805, com a saúde muito comprometida. Mesmo enquanto membro da junta governativa, não se esqueceu D. Luís Rodrigues Vilares das suas responsabilidades apostólicas, tendo enviado cartas circulares às paróquias e chamado a atenção para aspetos que era necessário corrigir. Assim, em 28 de agosto de 1797, ficou registado no Livro de Provimentos de S. Martinho um desses documentos, no qual o prelado voltava a apelar para o preconizado uso do vestuário eclesiástico, censurando os clérigos que tinham a ousadia de usar um “chapéu redondo” em vez do modelo correto, o de “três ventos da sua volta” (ARM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, Vizita, fl. 81). A 7 de fevereiro de 1800, surgiu uma nova carta pastoral, desta vez reprovando a má prática de quererem os eclesiásticos fazer da sua profissão um negócio, pelo que proibia que se desse mais que o devido aos clérigos solicitados para ajudar nas cerimónias da Semana Santa. A 6 de junho de 1803, pouco antes de se ver desterrado para o Santo da Serra, ainda fazia o bispo um edital apelando à participação na procissão do Corpo de Deus, enquanto a 10 de outubro do mesmo ano, enquanto esperava poder embarcar para o reino, não deixava de fazer um apelo à população no sentido de dar esmolas para ajudar as vítimas da “calamidade ocorrida a nove de outubro”, ou seja, a grande aluvião que fez centenas de mortos na Ilha (SILVA, 1945, 93-95). Enquanto ausente no reino, não se esqueceu D. Luís Rodrigues Vilares da sua Diocese e mandou, através do deão, António Correia de Bettencourt e Vasconcelos, editais para que o povo e o clero comparecessem em procissões. A 8 de setembro de 1808, o mesmo deão volta a assinar outro edital, desta vez para que se celebrasse Te Deum “pela plausível notícia de se achar livre o reino de Portugal da influência francesa” (ACEF, cx. 32, doc. 104). O facto de ser o deão e não o bispo a assinar o edital pode constituir um indício de que a saúde do prelado estava cada vez mais deteriorada e, realmente, a 1 de outubro de 1810, D. Luís Rodrigues Vilares acabou por falecer no Funchal, de “um tubérculo que lhe rebentou e de que provinha a opressão no peito que há tanto tempo experimentava” (CARITA, 2003, 174), vindo a ser sepultado na capela-mor da sé.   Ana Cristina Machado Trindade (atualizado a 20.07.2016)

Personalidades

leite, jerónimo dias

Jerónimo Dias Leite (c. 1540 – c. 1598) Clérigo madeirense, com comprovadas origens na comunidade cristã-nova do Funchal, foi vigário de Santo António de Arguim, cónego de meia prebenda, primeiro, e de prebenda inteira depois, na sé do Funchal. Autor da primeira obra sobre a História da Madeira, intitulada Descobrimento da Ilha da Madeira e discurso da vida e feitos dos Capitães da dita Ilha, a qual serviu de base a Gaspar Frutuoso para a redação do segundo volume de As Saudades da Terra, constitui, ainda hoje, uma referência no panorama da historiografia madeirense, não obstante as críticas que têm sido feitas aos seus registos. Palavras-chave: História, Madeira, cónego, cristão-novo.   Jerónimo Dias Leite foi um clérigo madeirense, filho de Gaspar Dias, alfaiate, e de Isabel Fernandes (GUERRA, 2003, 153). Foi, igualmente, irmão de Gaspar Leite, causídico que estudou Leis e Cânones em Coimbra, entre 1578 e 1584, (RAHM, vol. II, fasc. 2-3, 60) e que foi fintado em 1606 (GUERRA, 2003, 266), estabelecendo-se, assim, a pertença inequívoca dos irmãos ao grupo dos cristãos novos que vivia na Madeira nos fins do século XVI. O registo de batismo de Jerónimo Dias Leite tem data de 14 de março de 1540, mas o facto de ter recebido ordens de Epístola em fins de 1558 ou princípios de 1559 (COSTA, 1994, 159) e da obtenção desse grau supor uma idade mínima de 22 anos, deixa no ar a possibilidade de o batismo se ter dado alguns anos depois de ter nascido, nomeadamente por volta de 1537 (MACHADO, 1947, LXXIX; GUERRA, 2003, 155). Outra possibilidade que se poderia, igualmente, equacionar é a de o recebimento das ordens não ter ocorrido na idade canonicamente prevista, o que também acontecia. Da sua carreira eclesiástica consta o ter sido provido na vigararia de Santo António de Arguim em 1567, à qual se sucedeu nova colocação, desta vez na igreja da Conceição e capelania de S. Jorge da Mina, em 1571, registando-se entre uma nomeação e outra um período em que foi residente em Oeiras (MACHADO, 1947,LXXXII). Desconhece-se o que o terá levado a Oeiras, mas Machado põe a hipótese de Jerónimo Dias Leite ter ficado no reino, mais perto dos centros de decisão, a tentar movimentar influências que o impedissem de voltar ao golfo da Guiné. Se foi este o caso, as suas diligências deram resultado, pois em 1572, viu-se promovido a cónego de meia prebenda na sé do Funchal, lugar que ocupou por pouco tempo, pois, a 30 de outubro de 1572, por morte de um cónego, acabou por lhe herdar o benefício, sendo provido como cónego prebendado (MACHADO, 1947, LXXXV). Em 1573, aparece, pela primeira vez, como escrivão do cabido, funções de que foi intermitentemente incumbido, a que se acresceram outras, de “procurador geral dos negócios e causas do dito cabido e sé e fábrica dela” (MACHADO, 1947, LXXXVI). Em data não apurada, poderá ter passado a capelão régio, segundo se constata de uma procuração, com data de 27 de junho de 1590, na qual é testemunha e que assim o designa (GUERRA, 2003, 156). A mesma atribuição lhe faz Gaspar Frutuoso, quando afirma ter recebido do “Reverendo Conigo Hieronymo Leite, Capellão de Sua Magestade”, informações preciosas para a redação de As Saudades da Terra, cujo Livro II se reporta ao arquipélago da Madeira (FRUTUOSO, 2008, 165). Sobre este assunto, declara João Franco Machado não saber em que baseava Diogo Barbosa Machado para atribuir ao cónego a categoria de capelão real, mas hoje a confirmação documental acabou por se impor, a partir da fonte citada por Jorge Guerra. Em 1575, Jerónimo D. Leite figura como testamenteiro de seu pai, então residente na Rua Direita, no Funchal, e em 1581, um outro testamento, desta vez de António Rodrigues de Mondragão, afirma que se deve dar à sua terça “as casas da Rua Direita em que ora vive o conigo Ierónimo Dias…”, o que parece indicar que o filho manteve a casa de moradia dos progenitores (GUERRA, 2003, 156). A última referência que a seu respeito se encontra em documentos tem data de julho de 1593, e dá-o como presente num dos autos realizados no Cabido, sendo que do auto seguinte, de 25 de agosto do mesmo ano, já o seu nome não consta. Uma vez que não foi possível localizar o assento do seu óbito, ignora-se se o cónego saiu da Madeira, ou faleceu na ilha, mas é relativamente seguro afirmar que já não viveria em 1598, por não se encontrar mencionado no testamento de sua mãe, que refere o nome de outros filhos mas não deste (GUERRA, 2003, 157). Em paralelo com a carreira eclesiástica, Jerónimo Dias Leite também deixou obra no campo da História da Madeira, sendo considerado o primeiro autor que se dedicou a elaborar um registo dos acontecimentos assinalados relativos à sua terra natal. Aparentemente tê-lo-ia feito a pedido de Gaspar Frutuoso, que através de algumas pessoas, de que é exemplo Marcos Lopes, mercador que residira nos Açores, lhe solicitara que diligenciasse, junto a João Gonçalves da Câmara, sexto capitão da Madeira, o envio de um documento conservado nos arquivos da casa dos Câmaras, cuja autoria se atribuía a Gonçalo Aires Ferreira, companheiro de Zarco (GUERRA, 2003, 154). De posse dessa informação, que cabia em três folhas de papel, Jerónimo Dias Leite “ajudando-se (…) dos tombos das câmaras de toda a Ilha, que todos lhe foram entregues” conseguiu, consertando e recopilando tudo, compor a história do descobrimento e dos feitos dos capitães (FRUTUOSO, 2008, 303). Essa obra, que passou para a posteridade com o título de Descobrimento da Ilha da Madeira e discurso da vida e feitos dos Capitães da dita Ilha, foi escrita em antes de 1590, pois serviu de base ao manuscrito de Frutuoso, que abundantes vezes refere o papel desempenhado na sua obra pelas informações recolhidas nas onze folhas que lhe enviara Jerónimo Dias Leite (NASCIMENTO, 1927, 27). Como se vê, pelas declarações de Frutuoso, o primitivo manuscrito, com origem em Gonçalo Aires, ou em outros autores, conforme sinaliza João Cabral do Nascimento, que até admite a sua inexistência, teria passado das três páginas iniciais, traçadas pela mão pouco douta do companheiro de Zarco, para as onze com que o cónego as “recopilou e lustrou com seu grave e polido estilo” (FRUTUOSO, 2008, 304). Sobre este assunto, o da autoria do manuscrito inicial que serviu de base para a escrita de Dias leite, o padre Pita Ferreira aduz outro entendimento, quando considera que a fonte onde o cónego foi beber pertenceria, não a Gonçalo Ferreira, mas sim a Francisco Alcoforado, conclusão a que chegou através da comparação do texto de Leite com o da Relação de Alcoforado (FERREIRA, 1956, 22). Cabral do Nascimento assinala, ainda, que, tendo como base as ditas onze folhas, Jerónimo Dias Leite deverá ter escrito “para uso próprio, uma história mais desenvolvida”, o que explica o tamanho que hoje tem o texto (NASCIMENTO, 1937, 85), podendo para além disso ter redigido, também, um poema sobre o assunto, intitulado Insulana ou Descobrimento e louvores da Madeira (GUERRA, 2003, 155). A suportar a ideia da autoria do poema pronuncia-se Diogo Barbosa Machado que, na sua Biblioteca Lusitana (1747, vol. II, 452) revela que o cónego, “doméstico dos Condes da Calheta, donatários desta ilha [Madeira] pelos anos de 1590” teria tido “inclinação para a poesia e estudo da história”, a ele se devendo a referida Insulana, “poema em oitava rima, que consta de sete cantos” (NASCIMENTO, 1937, 85). João Cabral do Nascimento, não valoriza, no entanto, a obra que Frutuoso construiu, com base nos escritos de Dias Leite, considerando o volume que toca a Madeira como “uma cousa sem plano, disparatada de cronologia, com retrocessos e repetições constantes” (NASCIMENTO, 1927, 8), mas antes considera que ao cónego se deve “a maior culpa em tudo o que Frutuoso conta de menos verdadeiro sobre a Madeira” (NASCIMENTO, 33). Independentemente do rigor da factologia apresentada por Jerónimo Dias Leite, a sua obra, cuja versão impressa apenas surgiu em 1947 é, ainda hoje, uma referência no panorama da historiografia madeirense para quem quer sondar o primeiro século e meio da vida no arquipélago, conforme se demonstra pelas abundantes referências que lhe são feitas em trabalhos académicos, ainda hoje.     Cristina Trindade (atualizado a 05.02.2018)

História Política e Institucional Religiões Personalidades