ribeiro, antónio manuel pereira (bispo do funchal)
A 16 de fevereiro de 1879, nasceu em Friande, Póvoa do Lanhoso, António Manuel Pereira Ribeiro, filho de Duarte Pereira Dias Ribeiro, farmacêutico, e de Deolinda Rosa da Silva Pereira Ribeiro. Dez anos depois, em outubro de 1889, entrou para o colégio jesuíta de São Fiel, no Louriçal e nele concluiu os seus estudos preparatórios. Foi, de seguida, para Coimbra, prosseguir a formação, que completou em 1900, com a licenciatura em Teologia. Ainda aluno de faculdade, recebeu ordens menores pela mão do arcebispo de Braga, mas como, quando se licenciou, era demasiado novo para receber a ordenação presbiteral, ocupou-se na lecionação e em obras sociais. Regressado ao Minho, instalou-se em Viana, tornando-se redator do periódico A Cruz, pertencente ao Círculo Católico de Operários de Viana do Castelo. Paralelamente, em 1901, D. António foi professor do liceu da cidade e, a 13 de outubro do mesmo ano, recebeu ordens maiores. Em 1904, o bispo de Bragança, D. José Alves de Mariz, convidou-o para codirigir, na posição de vice-reitor, o seminário da sua diocese, funções a que se acrescentavam as de professor de ciências eclesiásticas naquela escola e, ainda, as de examinador pós-sinodal. Aí se encontrava quando foi nomeado para a sé do Funchal, na qualidade de cónego, por decreto de 24 de abril de 1905 e carta régia de 27 de maio. Tomou posse do cargo a 3 de julho e instalado na sua nova diocese, retomou o antigo estatuto de jornalista, com o qual fundou o diário católico O Jornal, que foi publicado entre 1906 e 1910, tendo igualmente sido o responsável, a partir de 1908, pela Quinzena Religiosa, órgão oficial do bispado. Esta deslocação de António Ribeiro, de Bragança para o Funchal, sobretudo com o estatuto de cónego, para ocupar um lugar muito apetecido pelo clero funchalense, não deixa de ser estranha. Com efeito, uma das longas e quase permanentes lutas sustentadas pelos eclesiásticos madeirenses, ainda que de vez em quando protagonizadas por outros órgãos do poder local, como a Câmara Municipal do Funchal ou a Provedoria da Fazenda, era precisamente a da salvaguarda dos provimentos dos benefícios em naturais da terra, pelo que esta situação se faz invulgar. A explicação para ela poderá estar na forma como o clérigo desempenhou o lugar de vice-reitor do seminário de Bragança “em cujo cargo correu iminente perigo de vida numa sublevação do curso teológico”, que assim reagia contra o que considerava ser um excesso de disciplina, no dizer de Eduardo Pereira (PEREIRA, 1968, II, 455). A sublevação despertou a atenção da imprensa nacional, que não deixou de a referenciar, tendo, até, tido honras de debate parlamentar. Seria, portanto, este o motivo da inopinada partida de D. António, removido, por razões de segurança, para uma diocese bem afastada de Trás-os-Montes. A 29 de junho de 1911, três dias depois da morte de D. Manuel Agostinho Barreto, bispo em cujo episcopado o cónego chegara à Madeira, viu-se António Ribeiro promovido à categoria de vigário capitular da diocese, por decisão do cabido, reunido para decidir do destino do bispado. Enquanto vigário capitular, D. António começou por se preocupar com as práticas de doutrinação dirigidas, sobretudo, às crianças. Com o objetivo de fomentar o ensino da catequese, determinou criar, em todas as paróquias do arquipélago, a confraria da doutrina cristã e, a provar o empenho que fazia na divulgação destas práticas, dava ele próprio o exemplo, encarregando-se de catequizar um grupo de crianças todos os dias da semana na capela da Penha França. Ainda na mesma linha de cuidados, D. António fundou a obra de S. Francisco de Sales que se materializou na abertura de várias escolas. Quando estes estabelecimentos se debatiam com falta de financiamento e o problema lhe era apresentado, D. António Ribeiro respondia invariavelmente que o importante era não deixar encerrar as escolas, custasse o que custasse. Atendendo a que, em 1911, se decretou a lei da separação entre igreja e o Estado, e que essa legislação trouxe sérios problemas de sustentação ao clero, o vigário capitular instituiu um fundo destinado a garantir aos eclesiásticos os meios necessários à subsistência, alcançando, assim, “o que mais nenhum prelado do continente logrou ali efetuar” (SILVA, 2012, 15). A esta iniciativa, e dentro do mesmo espírito, António Ribeiro viria, mais tarde, já como bispo, a juntar uma outra – a da Obra de S. José, uma espécie de organização de socorros mútuos destinada a acudir a sacerdotes velhos e doentes. Ainda enquanto vigário capitular, o cónego implantou na região as conferências de S. Vicente de Paulo com o objetivo de socorrer os mais pobres, e criou a Obra da Entronização do Sagrado Coração de Jesus, que se destinava a promover uma das particulares devoções de António Ribeiro, o qual apelava à população para que, em casa e em lugar de destaque, tivesse uma imagem do Sagrado Coração de Jesus. Além destas iniciativas, António Ribeiro introduziu na Madeira o lausperene, com pregação diária durante a quaresma, e fundou a Juventude Católica do Funchal. Em 1910, e tendo por motivo a saída dos padres da Missão, até então incumbidos da docência no seminário do Funchal, o vigário capitular ficou encarregado da direção do estabelecimento, ofício que exerceu até ao encerramento da instituição decretado pela república, em 20 de junho de 1911. O seminário continuaria, contudo, na lista das suas preocupações, voltando o edifício a ser nominalmente devolvido à diocese em 1927, com o advento da ditadura. A posse efetiva, contudo, só chegaria em 1933, fruto da mudança dos serviços da Junta Geral, que se tinha servido daquelas instalações para sede, para o centro da cidade, ocupando o antigo prédio da Misericórdia do Funchal, agora transferida para o Hospital dos Marmeleiros. A 2 de outubro de 1914 e perante alguma surpresa para “o meio social da época”, o vigário capitular foi indigitado bispo do Funchal, escolha que não desagradou à grande maioria dos fiéis (PEREIRA, 1968, II, 455). Esta decisão, que corresponde, também, à primeira nomeação episcopal que se fez depois da implantação da república, materializou-se na sagração do prelado, ocorrida a 7 de fevereiro de 1915 na igreja de S. Domingos, em Viana do Castelo. A cerimónia foi realizada junto ao túmulo de frei Bartolomeu dos Mártires e nela se utilizou o cálice com que o venerando arcebispo de Braga celebrava. Depois da sagração, D. António Ribeiro tomou posse da diocese por procuração, a 18 de fevereiro de 1915 e fez entrada solene no bispado a 7 de março seguinte. Ao tempo em que iniciou as suas funções episcopais, na saudação pastoral que endereçou à população da Madeira, o bispo, depois de apelar à doutrinação, à prática dos sacramentos e à disciplina eclesiástica, exortou, ainda, à atenção que se devia conceder às obras católicas já fundadas, de que eram exemplos a União Apostólica, a obra de S. Francisco de Sales, as conferências de S. Vicente de Paulo, a Associação das Senhoras Católicas, a Associação Católica e a Juventude Católica. Ao longo do exercício das suas funções pastorais, D. António Ribeiro centrou as suas preocupações na doutrinação, no alcoolismo, fenómeno que assolava a sociedade, no caráter excessivamente profano das festas religiosas, na falta de contas dadas na sequência dos peditórios, na falta de vocação para a carreira eclesiástica, o que verdadeiramente o afligia e motivava apelos aos pais de família para que se mostrassem sensíveis ao possível despertar da vocação sacerdotal dos filhos, abstendo-se, porém, de os forçar. Outra das caraterísticas que marcaram este episcopado foi a das devoções a que o prelado mais se encontrava ligado, e que acabaram por deixar marcas na diocese. Uma delas, já referida, era ao Sagrado Coração de Jesus, ao qual foi o bispado solenemente consagrado, a 27 de junho de 1924 e em cuja honra se fez a estátua do Cristo-Rei no Garajau, inaugurada a 30 de outubro de 1927, a qual, ainda que financiada pelo conselheiro Aires de Ornelas Vasconcelos, filho do último morgado do Caniço, não deixa de refletir um particular sentimento do prelado. No âmbito desta devoção, cabe salientar que, a 17 de janeiro de 1947, desembarcaram no Funchal os primeiros sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, ou Dehonianos, a quem o bispo, em primeira instância, determinou que se alojassem no colégio dos salesianos enquanto aprendiam a língua. A 17 de outubro desse mesmo ano, com um desígnio já mais amadurecido, os Dehonianos saíram dali para fundar o Colégio Missionário do Sagrado Coração, que, na altura, contava com 10 alunos. Outra das devoções de D. António foi ao Imaculado Coração de Maria, e dela também a Madeira ostenta, hoje, permanências. Assim, em peregrinação realizada ao Terreiro da Luta, em 1933, a diocese foi-lhe consagrada, tendo, na mesma altura, o prelado exprimido a intenção de construir um templo daquela invocação. As obras dessa igreja tiveram início 15 anos depois, vindo a primeira pedra do novo templo de Fátima, por diligências do bispo de Leiria. O edifício estaria mais ou menos concluído em 1954, ano em que, a 26 de novembro, se constituía, igualmente, a paróquia do Imaculado Coração de Maria. Outra das ações duradouras de D. António Ribeiro foi a da divisão da diocese em cinco arciprestados: Funchal, Santa Cruz, Calheta, Câmara de Lobos e São Jorge, com o fim de melhor se poder olhar pelos bens da igreja. Podemos também referir a reforma da música sacra em todo o arquipélago, como resposta à publicação, pelo papa Pio X, do motu proprio Tra le Sollecitudine, que modificava as práticas musicais dentro das igrejas, depurando-as de profanidades e restaurando o canto gregoriano. O episcopado de D. António Manuel Ribeiro decorreu num contexto político pouco estável, na medida em que, quando ascendeu à mitra do Funchal, estava em vigor a Primeira República, a qual caiu com o golpe de estado de 28 de maio de 1926, para dar lugar, primeiro, a uma ditadura militar e, depois, a partir de 1933, ao Estado Novo. Ainda em tempo da República fundou-se um partido político, o Centro Católico, que, em 1919, pretendia apresentar-se a eleições para “cristianizar as leis” (PITA, 2015, 423). Na Madeira, nas eleições de 1921, o Centro falhou a eleição de um deputado, o que logo mereceu críticas na imprensa, oriundas até de indivíduos ligados à igreja como é o caso do Dr. Antonino Pestana, que no Diário de Notícias não se eximia de tornar públicas as observações que lhe pareciam pertinentes. Afirmava o periodista que havia “mais preocupação em cultivar os coros femininos na Semana Santa e psicopatias piedosas em toda a roda do ano, do que em restaurar o reino de Deus em toda a sociedade; com catequeses para todas as idades, com sindicatos agrários e industriais, com centros de leitura e escolas, com ‘juventudes’ a valer, cooperativas, etc., etc.”, afirmações que continham uma alusão implícita à forma como se estava a proceder à governação da diocese (DN, 16 jul. 1921, 1). Uns dias depois, e na sequência de apreciações menos abonatórias ao artigo anterior, o Dr. Antonino voltava a insistir que o caminho a percorrer pela igreja tinha de ser outro e deixava um repto “Porque não se lança o clero rural no caminho do cooperativismo? Porque não se ministram aos candidatos à vida eclesiástica ensinamentos práticos de economia política e economia social?”, isto porque, e de acordo com o seu entendimento, nas “jornadas indecisas da política”, o povo preferia o “pão da boca à agua benta, o crédito à indulgência” (PITA, 2015, 423). Este não era, porém, o modo de ver as coisas do prelado, que preferia insistir em caminhos que lhe eram mais familiares e que passavam por chamar para a Ilha instituições e congregações religiosas da sua preferência, entre as quais se contam a Escola de Artes e Ofícios, fundada pelo padre Laurindo Pestana, em 1921, e que, em 1925 foi entregue aos salesianos e à Liga da Ação Social Cristã (1922). A estas organizações juntaram-se os Irmãos de S. João de Deus (1922), as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração, e a Apresentação de Maria (1922). Em paralelo, a Juventude Católica mostrava-se um organismo dinâmico, promovendo a realização de conferências que traziam à Madeira figuras de primeiro plano da cena política e religiosa nacional: o padre Cerejeira, futuro cardeal patriarca (1924), Salazar (1925), Mário de Figueiredo (1925) e António Lino Neto, presidente do Centro Católico (1926). As relações mantidas entre o prelado e o governo de Salazar foram sempre boas, e atestam-se, p. ex., na autorização episcopal para que no órgão de comunicação afeto à diocese, O Jornal, se publicassem artigos em que enaltecia a figura de Salazar, escrevendo o redator, o padre João Vieira Caetano, que o líder português possuía as virtudes de Hitler e Mussolini, sem, no entanto, lhes partilhar os defeitos. Outro dos sinais da grande sintonia entre o bispo e o regime foi dado na entusiástica receção que o Funchal preparou a D. Manuel Cerejeira, quando, em 1944, o cardeal passou pela cidade a caminho de Lourenço Marques, hoje Maputo. No dia 17 de julho, data em que o navio que transportava o prelado aportou ao Funchal, O Jornal publicava, com destaque, uma notícia que dava conta da felicidade do povo madeirense por, seis anos depois da visita do general Carmona, ser bafejado pela presença do cardeal, considerando que “Aos dois chefes, do temporal e do espiritual, anima um propósito comum: – a grandeza da pátria; porque Portugal foi criado, consolidado e alargado pelo heroísmo dos homens e pela força da sua Fé!” (PITA, 2015, 423). O Diário de Notícias, outro periódico do Funchal, partilhava idêntica postura, saudando também, de forma não menos exuberante, a visita de sua eminência à Madeira. A aceitação manifestada pelo prelado em relação à governação nacional acabaria por ser recompensada pela atribuição, pelo governo português, da Grã-Cruz da Ordem de Cristo, em abril de 1940, distinção complementada posteriormente com o título de prelado assistente do sólio pontifício, que ocorreu em 1946. Por se sentir idoso e doente, já na segunda metade do episcopado, solicitou D. António Ribeiro os serviços de um bispo auxiliar, tendo a escolha recaído na pessoa de D. Manuel de Jesus Pereira. Este chegou à Madeira, como bispo titular de Preneto e auxiliar do Funchal, a 10 de outubro de 1948, dando assim início a uma permanência de cinco anos na diocese. Já mais refeito da saúde, D. António Ribeiro acabaria por o dispensar em 1953, permitindo a D. Manuel de Jesus a assunção de um lugar na diocese de Coimbra, de onde passou à de Bragança, como bispo, em 1965. No Funchal, continuou D. António Pereira Ribeiro a desempenhar as suas funções episcopais até que a morte o levou, a 12 de março de 1957, ficando sepultado na igreja do Imaculado Coração de Maria. Bibliog. impressa: ALMEIDA, José Fortunato de, História da Igreja em Portugal, vol. III, Barcelos, Livraria Civilização, 1970; Diário de Notícias, Funchal, 16 jul. 1921; PITA, Gabriel, “A Diocese do Funchal e o Estado Novo. Abordagem ao relacionamento entre Poder Religioso e o Poder Político”, in 500 Anos da Diocese do Funchal, História, Cultura e Espiritualidades, vol. I, Funchal, Esfera do Caos, 2015, pp. 419-436; PEREIRA, Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, vol. II, 3.ª ed., Funchal, CMF, 1968; SILVA, Fernando Augusto e MENESES, Carlos Azevedo, Elucidário Madeirense, Funchal, DRAC, SRTC, 1984; SILVA, Paulo Sérgio Cunha da, D. António Manuel Pereira Ribeiro, Bispo do Funchal, 1915-1957, Dissertação de Mestrado em Teologia apresentada à Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, texto policopiado, 2012; SILVA, Porfírio Pereira, “D. António Manuel Pereira Ribeiro e a sua Sagração em Viana do Castelo”, A Falar de Viana, vol. XII, jun. 2006; digital: “Aires de Ornelas (1866-1930)”, Autores/Escritores da Madeira: http://escritoresdamadeira.no.sapo.pt/Aires_de_Ornelas/ (acedido a 17 ago. 2015); MOTA, Nuno, Entre o Culto Religioso e o Serviço do Povo: o Seminário da Encarnação no Primeiro Terço do Séc. XX: http://www.arquivo-madeira.org/item2_detail.php?lang=0&id_channel=23&id_page=200&id=37 (acedido a 14 ago. 2015); “Colégio Missionário”, Dehonianos: http://www.dehonianos.org/portal/pastoral_ver.asp?artigoid=55 (acedido a 17 ago. 2015). Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 27.02.2016)
procissões
As procissões são uma expressão de fé através duma religiosidade que tem a marca duma determinada cultura, neste caso, a cultura insular da Madeira. Por isso, desde os primeiros tempos da colonização e da evangelização da Ilha, elas acompanharam as principais festas religiosas em igrejas paroquiais e capelas, por ocasião das festas do Senhor, de Maria e dos santos, em períodos litúrgicos importantes, como são, sobretudo, a Quaresma e a Páscoa; ou então como forma de invocar a proteção divina quando estava em causa a segurança da população ou as necessidades de alimento nos tempos de maior falta de água. Uma das procissões mais antigas na Madeira é a do Corpo de Deus, que ocorre durante a festa litúrgica do Santíssimo corpo e sangue de Jesus. Em 1483, há registo de que essa procissão se realizava pelas ruas do Funchal e que, para além das autoridades camarárias que nela participavam em lugar de destaque, iam também os representantes e os elementos das principais corporações de ofícios da cidade. Os que por qualquer razão não pudessem participar eram passíveis de multa. Era costume integrar nesta procissão determinadas encenações militares, danças ou ainda jogos pouco decorosos. A origem destas encenações tem a ver com a referência bíblica ao rei David que, depois da vitória contra os Filisteus, acompanhava triunfalmente a arca da Aliança com cantos e danças. Estas práticas, julgadas já no tempo como repreensíveis, foram progressivamente banidas, sobretudo pela ação do clero e à custa de alguns desacatos. Nos inícios do séc. XVII, o bispo do Funchal chegou mesmo a escrever ao rei para tomar providências de modo a evitar tais problemas. Numa carta régia de 1724, foi determinado que se retirassem da procissão tudo quanto eram jogos, danças e figuras, mesmo de santos, exceto a imagem de S. Jorge e alguns andores que as irmandades religiosas quisessem levar. Só a partir de 1857 é que a imagem de S. Jorge deixou de figurar na procissão do Corpo de Deus. Outro problema que levava a constantes disputas estava relacionado com as precedências das diferentes autoridades. Em 1763, por exemplo, a Câmara do Funchal queixou-se ao Desembargo do Paço por conflitos com o Governador quanto aos lugares que lhe estavam destinados na procissão do Corpo de Deus. No início do séc. XXI, esta procissão continua a congregar a Igreja diocesana no dia de Corpo de Deus, embora se realize em todas as paróquias. A festa do Santíssimo Sacramento é patrocinada pela respetiva confraria. No Funchal, participam os irmãos da confraria do Santíssimo Sacramento das diferentes Paróquias e alguns trazem as insígnias do Espírito Santo utilizadas durante as visitas pascais. Como é tradição nas paróquias, a procissão requer um tapete de flores, em gratidão pela passagem do Santíssimo Sacramento. A Quaresma foi sempre o tempo próprio para a realização das procissões da penitência: a procissão da cinza e dos Passos. Ignora-se o início da procissão da cinza, mas esta realizou-se durante séculos na quarta-feira de cinzas, partindo do Convento de S. Francisco e passando pelas Igrejas de S.ta Clara e do convento das Mercês. A procissão, de origem e inspiração franciscanas, tinha a participação da ordem terceira de S. Francisco, com o andor que trazia a imagem de S. Francisco abraçado à cruz de Cristo. Depois ia a irmandade da penitência, uma urna de vidro contendo cinzas, o andor do Senhor dos Passos e vários andores de santos ligados à Ordem de S. Francisco. Por fim, era levada uma relíquia da Santa Cruz. Em 2015, ainda se realizava uma procissão da cinza no Convento de S. Francisco, em Câmara de Lobos. A procissão dos passos fazia-se no Funchal durante a Quaresma. A imagem do Senhor dos Passos era inicialmente levada em procissão do Convento de Santa Clara para a igreja do Colégio, e a imagem da Senhora das Dores era levada do Convento das Mercês para a Sé. Num dos Domingos da Quaresma, a procissão dos Passos seguia até à Sé, onde estava a Senhora das Dores e onde era proferido o sermão do Encontro. Há ainda outras procissões de penitência, como a do enterro do Senhor, na Sexta-feira Santa; bem como, fora do tempo quaresmal, procissões para implorar chuvas ou a proteção diante dalguma calamidade. Duas procissões são igualmente significativas da tradição madeirense. A primeira, é a chamada procissão do voto feito a S. Tiago, realizada no primeiro dia de Maio. Esta procissão é a homenagem ao padroeiro da Diocese e da cidade, S. Tiago, e o cumprimento do voto feito no séc. XVI de proteção contra a peste. Nos primeiros tempos, saía da Sé e dirigia-se para a Igreja de S. Tiago. Depois, passou a sair da capela do Corpo Santo em direção à igreja de S. ta Maria Maior. Nela tomavam parte as autoridades da Câmara, que depunham as suas varas junto ao andor de S. Tiago, em sinal de gratidão, bem como representantes das várias corporações profissionais do Funchal. Uma outra procissão evoca o voto feito a Nossa Senhora do Monte por ocasião da aluvião de 9 de outubro de 1803. Em novembro deste ano, o clero e as autoridades do Funchal decidiram passar a celebrar Missa e realizar uma procissão todos os anos a 9 de outubro, agradecendo o patrocínio de Nossa Senhora do Monte à cidade do Funchal; procissão que, nos primeiros tempos, saía da Sé e se dirigia à Igreja de Sta. Maria Maior. De referir que, na mesma data, se realiza em Machico a procissão noturna do Senhor dos Milagres, acompanhada pelos pescadores com centenas de archotes acesos e vivida no mais estrito silêncio. As procissões possuem um significado humano e de fé; significam que a Igreja tem a visibilidade dum corpo organizado e que se exprime através de sinais de unidade que permitem viver a fé. A procissão é, segundo o Directório sobre Piedade Popular e Liturgia (2002), “um sinal da natureza profunda da Igreja: esta é o povo de Deus que caminha com Cristo, e atrás dele, com a consciência de não ter morada definitiva neste mundo, ou ainda um povo que marcha nas estradas da cidade terrestre para a Jerusalém celeste. A procissão é também o sinal do testemunho de fé que a comunidade cristã deve dar ao seu Senhor no interior das estruturas da sociedade civil. Ela é, finalmente, o sinal do envio missionário da Igreja, que, desde os seus princípios e segundo o mandamento do Senhor, lançou-se em todas as estradas e caminhos do mundo inteiro para anunciar o Evangelho da Salvação” (n.º 247). Em todos os tempos, sentiu-se a necessidade de evangelizar as procissões, de maneira a que tivessem um verdadeiro espírito de fé e de participação na vida da Igreja. Bibliog.:CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS, Directório sobre a Piedade Popular e Liturgia. Princípios e Orientações, 9 abr 2002; PEREIRA Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, 4.ª ed., vol. II, Funchal, Câmara municipal do Funchal, 1989; SILVA Fernando Augusto, MENEZES, Carlos Azevedo, Elucidário Madeirense, III vol., Funchal, DRAC, 1984. Vítor Reis Gomes (atualizado a 29.02.2016)
precipitação oculta
[caption id="attachment_8059" align="alignleft" width="300"] Gotículas de Precipitação Oculta numa teia de aranha.[/caption] A precipitação oculta pode ser entendida como a capacidade que a vegetação tem de, por um processo de impacto ou colisão, fazer precipitar as minúsculas gotículas de água existentes no nevoeiro e que na sua ausência permaneceriam em suspensão na atmosfera. Por nevoeiro entende-se toda a nuvem que interceta a superfície topográfica. Dadas as suas reduzidas dimensões, apenas uma ínfima quantidade de gotículas de nevoeiro precipita diretamente no terreno, pelo que a presença de um obstáculo, natural ou artificial, promove a interceção destas pequenas gotículas que, ao coalescerem, se tornam maiores e mais pesadas, precipitando no solo. A vegetação, devido ao movimento contínuo dos seus ramos e folhas, constitui o obstáculo mais apropriado à captação da água em suspensão no nevoeiro. O tipo, a dimensão, a densidade e a homogeneidade da floresta, bem como a exposição aos ventos, são também fatores que influenciam fortemente a quantidade de água captada. As árvores mais expostas aos elementos atmosféricos – as que se encontram na periferia de uma mancha florestal ou numa área mais alta – captam maiores quantidades de água do nevoeiro do que as suas congéneres que se encontram no interior de bosques abrigados. Conhecida também, na literatura, como precipitação horizontal, potencial hídrico dos nevoeiros, ordenha das nuvens, escorrimento de nevoeiros ou precipitação por interceção direta da água das nuvens, esta precipitação só ocorre na presença simultânea de nevoeiro, vegetação e vento que permita a movimentação do ar. [caption id="attachment_7492" align="alignleft" width="199"] Fig. 2 – Esq.: Gotículas de precipitação oculta em urze molar – Erica arborea Fotografia Miguel Sequeira.[/caption] De forma empírica, este fenómeno há muito que é reconhecido na ilha da Madeira, assim o descreve Cecílio Gomes da Silva: “[…] durante as nossas intensas atividades pedestres por aquelas serras dentro, eu e os meus irmãos comentávamos por brincadeira que viviam lá em cima uns pequenos seres que nos acompanhavam sempre: uns que nos proporcionavam bom tempo sem a terrível «barra» que açoitava os Altos-Chãos, uivava pelas Portelas e varria Bocas e Eiras; outros que do outro lado da serra faziam soprar violentamente o Nordeste que tudo fechava numa bruma espessa e húmida penetrando por todos os interstícios e uivando nas arestas dos cabeços e penedos. Não chovia, mas em poucos segundos ficávamos totalmente encharcados; […] aquela floresta que, insisto, faz chover dentro de si mesma, quando o Nordeste atira contra as vertentes sempre verdes da montanha as colossais massas de ar saturadas de humidade, fazendo-as condensar pela subida rápida ao longo das vertentes. As espessas névoas resultantes embatendo na espessa e diversificada floresta são captadas quase na totalidade. De gota em gota vão caindo no tapete fofo da floresta diminuindo ou praticamente anulando a velocidade de escoamento da água, o que permite uma mais intensa infiltração no terreno” (SILVA, 1997, 104) Posteriormente, vários estudiosos demonstraram que, na ilha da Madeira, a água do nevoeiro captada pela vegetação – a precipitação oculta – constitui uma componente importante do sistema hidrológico, chegando a atingir, em condições ideais, mais de 60 % do total de água que cai anualmente no solo da floresta. [caption id="attachment_8066" align="alignright" width="300"] Lombada das Vacas, Fotografia: Amigos da Natureza.[/caption] O relevo e a orientação da Ilha são favoráveis à ocorrência deste fenómeno: os valores de nebulosidade sobre a Madeira são mais altos do que sobre o mar na região em que ela está situada, devido à formação de nuvens e nevoeiros orográficos. O ar húmido transportado pelo vento, ao encontrar a Ilha, barreira montanhosa de orientação perpendicular aos ventos predominantes, de Norte e Nordeste (alísios), é forçado a subir, arrefecendo adiabaticamente devido à diminuição da pressão atmosférica, e condensando em pequenas gotículas que formam nuvens e nevoeiros. Localmente, este fenómeno é denominado mar de nuvens. Na Madeira os nevoeiros são quase exclusivamente orográficos, formando-se a barlavento da elevação, com tendência para se dissiparem a sotavento, sendo a variação anual da frequência pouco nítida. A cobertura nebulosa atinge, na Bica da Cana, 235 dias/ano e no Pico do Areeiro, 229 dias/ano, fixando-se, normalmente, entre os 600-800m e os 1400-1600m de altitude. O seu conteúdo em água varia entre os 0,25 g/m3 no centro da nuvem, os 0,01 g/m3 na base e os 0,1 g/m3 no topo. O mesmo processo que ocasiona os nevoeiros orográficos origina, ainda, a chamada rain-shadow, ou seja, uma sombra de chuva, em que a encosta a sotavento (no caso da Madeira, o sul) fica sujeita a menor queda de precipitação devido ao facto de a maior parte desta ficar retida na encosta norte e de o ar, antes frio e cheio de humidade, descer e aquecer ao passar para o sul, diminuindo a sua humidade relativa, tornando-se mais seco e causando as diferenças de clima entre as diferentes vertentes. [caption id="attachment_7489" align="alignleft" width="300"] Fig. 1 – Mar de nuvens, visto da vertente sul do Paul da Serra. Fotografia: Susana Prada[/caption] Os nevoeiros também podem ocorrer na costa sul, através deste mesmo processo, quando o vento sopra dos quadrantes sul e sudoeste. No entanto, a sua frequência é muito menor e está associada, normalmente, à passagem de superfícies frontais do Atlântico Norte, ou a sistemas depressionários na proximidade da Ilha. De referir, ainda, um mecanismo distinto de formação de nevoeiro orográfico que ocorre frequentemente a sul, em especial durante os meses mais quentes do ano. Neste caso, o nevoeiro não se forma pela ascensão e o arrefecimento de massas de ar transportadas pelos ventos sinópticos associados à circulação global da atmosfera, mas devido à circulação atmosférica local. Este fenómeno, que pode ser observado com regularidade no anfiteatro do Funchal, em especial durante o verão, resulta da ascensão de ar quente pelas vertentes devido ao aquecimento destas pelo sol. À medida que o dia avança, o sol promove o aquecimento da vertente e consequentemente do ar próximo da superfície, fazendo aumentar também a evapotranspiração e a quantidade de água no ar. O ar quente, por ser menos denso que o ar frio, ascende pelos flancos da montanha, arrefecendo adiabaticamente até atingir o ponto de orvalho, a partir do qual o vapor de água condensa e origina nuvens e nevoeiros. Este fenómeno, distinto do mecanismo de formação do mar de nuvens com origem nos alísios, é denominado localmente por capacete; o facto de o vento ser fraco no interior deste leva a que os valores de precipitação oculta sejam inferiores aos que ocorrem a norte, no interior do mar de nuvens. Outra distinção entre estes dois fenómenos prende-se com a duração. O mar de nuvens, por resultar do movimento de larga escala da atmosfera, pode durar vários dias. Já o capacete, por resultar do ciclo diário de insolação, forma-se ao fim da manhã, com tendência para se dissipar ao fim da tarde, devido ao arrefecimento da vertente e à consequente inversão do sentido dos ventos, que passam a soprar encosta abaixo, em direção ao mar. Os fatores que determinam e influenciam a precipitação oculta são: existência de condições favoráveis à formação de nevoeiro, frequência e duração deste, bem como o seu conteúdo em água líquida, dimensão das gotículas de água, velocidade do vento, presença de vegetação e suas características – tipo de folha, altura, porte, densidade e exposição em relação aos ventos predominantes. Os tipos de floresta natural presentes no intervalo de altitude da faixa dos nevoeiros são a Laurissilva Temperada do Til (vegetação clímax); o Urzal de Substituição, uma das suas etapas de sucessão ecológica, entre os 800-1400m; e o Urzal de Altitude, vegetação climácica, entre os 1400-1650m. A precipitação oculta pode atingir 10 % do total de água que ao longo do ano cai debaixo de uma Laurissilva do Til, sendo esta proporção maior durante o verão (até 33 % do total de água que cai sob a floresta). Apesar de o maior volume, em quantidade absoluta, ocorrer durante os meses de inverno, a proporção em relação à quantidade de água caída no solo florestal é mais relevante no verão, quando a precipitação é escassa e a precipitação oculta assume uma maior preponderância no total de água que entra na floresta. [caption id="attachment_8077" align="alignright" width="199"] Nevoeiro a cair das encostas no sítio do Chão da Ribeira, Seixal.[/caption] O Urzal de Substituição chega a captar 13 % do total da água que cai no solo e o Urzal de Altitude, cujas árvores possuem folhas aciculares compactas, mais eficientes na interseção das gotículas de nevoeiro, capta, em média, 30 % do total da água que precipita no solo. Em casos específicos de urzes de grande dimensão e isoladas, situadas na Bica da Cana, a água do nevoeiro representa 68 % do total de água que precipita sob estas, totalizando o dobro da quantidade de chuva que cai naquela zona. A presença de nuvens e nevoeiros orográficos leva, ainda, à diminuição da insolação e da temperatura, que, aliada a humidades relativas do ar elevadas, reduzem a perda de água por evapotranspiração da floresta, fazendo aumentar, assim, o volume de água disponível para infiltrar e alimentar as reservas subterrâneas. Este parece ser um fenómeno generalizado em toda a área inserida no mar de nuvens, pois as águas subterrâneas da Madeira, em especial as provenientes de nascentes de altitude, possuem uma assinatura isotópica (conteúdo de isótopos estáveis de oxigénio, 18O, e hidrogénio, 2H) que demonstra resultarem da infiltração, quer de água da chuva, quer de água do nevoeiro. [caption id="attachment_7495" align="alignleft" width="306"] Bosques de laurissilva imersos em nevoeiro na vertente norte da MadeiraFotografia: Celso Figueira[/caption] Além do importante contributo para as reservas subterrâneas, a água do nevoeiro também parece estar envolvida no ciclo de nutrientes e na biogeoquímica do ecossistema. O nevoeiro é, normalmente, consideravelmente mais rico que a chuva no que diz respeito a vários nutrientes, especialmente o azoto, essencial ao crescimento das plantas. A própria existência da Laurissilva do Til à latitude da ilha da Madeira poderá estar intimamente relacionada com a ocorrência de nevoeiros orográficos e precipitação oculta, responsável pela entrada de água extra no ecossistema. Esta vegetação apresenta determinadas características, como estrutura complexa, uma grande riqueza de epífitos e abundância de espécies com pouca resistência à seca, em especial durante o período quente de verão, como fetos e briófitos. Bibliog.: CRUZ, José et al., “Contribution of cloud water to the groundwater recharge in Madeira Island: preliminary isotopic data”, in Conference Book of the 5th International Conference on Fog, Fog Collection and Dew, Münster, Universidade de Münster, jul. 2010, pp. 199-201; FIGUEIRA, Celso, “Estudo da precipitação oculta nas florestas naturais do norte do Paul da Serra, Ilha da Madeira”, Dissertação de Mestrado em Ecologia da Paisagem e Conservação da Natureza apresentada Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, Porto, texto policopiado, 2009; FIGUEIRA, Celso et al., “Cloud water interception in the temperate laurel forest of Madeira Island”, Hydrological Sciences Journal, vol. 58, n.º 1, 2013, pp. 152-161; FIGUEIRA, Celso et al., “Importância da Água do Nevoeiro para os Recursos Hídricos da Ilha da Madeira”, in Técnicas e Métodos para a Gestão Sustentável da Água na Macaronésia. 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Susana Prada (atualizado a 18.02.2016)