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A Madeira é alfobre de poetas: afirmou-o, em 1953, Horácio Bento de Gouveia, no artigo “A Madeira e a Poesia”, publicado na Voz da Madeira de 28 de maio de 1953. Na verdade, um olhar sobre o texto poético escrito na Madeira ou sobre os autores que nasceram no arquipélago permite-nos apreciar a quantidade de poetas cujos textos foram publicados em livro, em antologias, coletâneas, jornais e revistas. Por outro lado, parece claro que, nas obras que o tempo guardou, se encontram as características que marcaram a literatura portuguesa ao longo dos séculos, nomeadamente traços dos movimentos literários, os seus modelos, os seus temas, as suas formas de sentir e de dizer o mundo e a vida. Num artigo publicado em Das Artes e da História da Madeira (17 jul. 1949), um autor que assina com a letra F. faz uma resenha dos poetas que, do seu ponto de vista, mereceriam constar de uma antologia de autores madeirenses, desvendando os seus nomes ao percorrer as coletâneas até então publicadas: Cancioneiro Geral (Garcia de Resende), Romanceiro do Archipelago da Madeira (Álvaro Rodrigues de Azevedo), Flores da Madeira (Alfredo César de Oliveira e José Leite Monteiro), Álbum Madeirense (Francisco Vieira), Álbum Literário, Almanach de Lembranças Madeirenses e a coleção de poesias de Manuel Gonçalves, o Feiticeiro do Norte. Numa espécie de organização inicial, os poetas da Ilha são distribuídos por “géneros poéticos”, o que contribui, de algum modo, para marcar um caminho das letras madeirenses: epopeia, na qual, com as devidas ressalvas, inclui Francisco Paula de Medina e Vasconcelos; tragédia ou “os poemas trágicos”, cultivados por Manuel Caetano Pimenta de Aguiar, José Anselmo Correia Henriques e Alberto Figueira Jardim; poemas religiosos, com relevo para António Veloso Lira, cónego da Sé, e Troilo Vasconcelos da Cunha; autos e comédias, que, tendo como principal cultor Baltazar Dias, têm outros representantes: José António Monteiro Teixeira, Carlos Acciaioly Ferraz de Noronha, Francisco Clementino de Sousa e Francisco António Ferreira; elegia, representada sobretudo por Francisco Paula de Medina e Vasconcelos. O autor destaca, depois, as “Poetisas” – que não insere em nenhum género poético – que considera merecerem estar representadas, tendo todas elas como modelo D. Joana de Castelo Branco e Maria Helena Jervis de Atouguia e Almeida (Berta de Ataíde). Segue-se um último capítulo, intitulado “Lirismo”, destinado às peças que não cabem nos compartimentos anteriores. De entre os poetas, o autor cita Francisco Álvares de Nóbrega, Francisco Vasconcelos Coutinho, Luís António Gonçalves de Freitas, Joaquim Pestana, Luís de Ornelas Pinto Coelho e João Gouveia. A par destes poetas, outros são apresentados como dignos da designação “poetas madeirenses”: António Policarpo dos Santos Sousa, Viscondessa das Nogueiras, Alfredo César de Oliveira, Alfredo Paula Sardinha, Cândido Álvaro da Câmara, António Feliciano Rodrigues, Vitorino José dos Santos. No período da poesia palaciana portuguesa, as capitanias do arquipélago – Machico, Porto Santo e Funchal – são cortes em miniatura, onde se imita o que se passa em Lisboa. Os primeiros poetas residentes no arquipélago estão, de algum modo, associados aos primeiros capitães e donatários, encontrando-se representados no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, ao lado de outros autores continentais. Desses “poetas da ilha”, destacam-se, nos primeiros séculos de povoamento da Madeira (sécs. XV e XVI): Tristão Teixeira (m. 1506), filho de Tristão Vaz, conhecido, em Machico, como Tristão das Damas e, na corte de D. Manuel, por Tristão da Ilha, João Gonçalves da Câmara (1414-1501), filho de João Gonçalves Zarco, João Gomes (m. 1495), escudeiro de D. Henrique, Pedro Correia, um dos principais poetas da Madeira, genro de Bartolomeu Perestrelo, Duarte de Brito (m. 1514), casado com uma das netas de Zarco, que terá sido um dos primeiros poetas a introduzir o lirismo bernardiniano (de Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro) na literatura portuguesa, Manuel de Noronha (m. 1535), neto de João Gonçalves Zarco, Rui Dias de Sousa, casado com uma neta de Zarco, João Gomes de Abreu, casado com uma neta de Tristão Vaz, ou, ainda, Rui Gomes da Grã. O Funchal havia sido elevado à categoria de cidade em 1508, e tudo acontecia na azáfama de construções, de novidades que vinham do lado de lá do mar, do movimento do porto, por entre trocas comerciais e gente que se encontrava, a pretexto do comércio e das trocas que, ali, na babugem do mar, se operavam. Neste ambiente novo, a poesia dramática foi muito bem aceite. Talvez por esse motivo Baltazar Dias tenha sido tão admirado, quer pelo povo, quer pela nobreza, admiração para a qual também concorreu o facto de as suas obras serem herdeiras do humor de Gil Vicente, autor que agradava ao gosto popular, não obstante algumas só terem sido publicadas no séc. XVII: Auto da Malícia das Mulheres; História da Imperatriz Porcina, Mulher do Imperador Lodonio de Roma; Trovas sobre a Morte de D. João de Castro. A partir do séc. XVII, a cultura literária madeirense ganha um novo fôlego. Entretanto, aos poucos e sempre na esteira das modas do reino, vão escasseando os escritores eclesiásticos, dando-se lugar a uma liberdade de espírito que a literatura francesa preconizava. A Ilha recebe, deste modo, a influência das ideias e instituições literárias que chegam de França, a partir da corte de Luís XIV, modelos esses seguidos por Portugal, entre o reinado de D. João V e meados do séc. XVIII. Por esta época, as letras da Madeira são fortemente influenciadas pelo academismo e pelo arcadismo. De entre os poetas desta altura, destaca-se Manuel Tomás (1585-1665), que, apesar de não ser natural da Madeira – nascera em Guimarães –, se destacou com um poema épico de influência camoniana – A Insulana (Antuérpia, 1635) – que o liga à história da Ilha, onde viveu grande parte da sua vida e onde se crê ter sido cónego capitular da Sé. É um poema em 10 cantos, com os artifícios da escola gongórica, num tempo em que o classicismo já tinha perdido a sua pujança. Manuel Tomás é, assim, pioneiro da épica madeirense, escrevendo este longo poema sobre a descoberta da ilha da Madeira. No reinado de D. João V, duas coletâneas pretendiam recolher o que de melhor se escrevia em Portugal: Fénix Renascida e Postilhão de Apolo. Nelas encontramos poemas de alguns poetas da Ilha, do séc. XVII: Francisco Vasconcelos Coutinho (1665-1723), autor de Feudo do Parnaso (1729); Troilo Vasconcelos da Cunha (1654-1729), poeta e teólogo filho de Bartolomeu da Cunha, capitão general da Madeira, e autor do longo poema O Espelho do Invisível, no qual opta por um estilo que já foge da escola gongórica então dominante; António de Carvalhal Esmeraldo e Câmara, que ficou célebre pela Cythara de Aonio, uma única compilação poética, de 626 páginas, encontrada no convento de S.ta Clara. O movimento do porto do Funchal ganha uma atividade intensa no séc. XVIII, com o comércio e com os visitantes que prometem o turismo que há de vir. É nesta época que a estética da Arcádia Lusitana, fundada em 1755 em oposição ao academismo literário, e do contramovimento Nova Arcádia influenciam, na Ilha, funcionários e pequenos burgueses que começam a despontar para a literatura. Nesta linha, surge o poeta Francisco Manuel de Oliveira (1741-1819), autor de dois volumes de poesia, Escolhas de Poesias Orientais e Colecção Poética. Outro poeta que se destaca neste século é Francisco Paula Medina de Vasconcellos (1768-1826), que, na senda de Manuel Tomás, nos deixou os poemas heroicos Zargueida, Descobrimento da Madeira (1806) e Georgeida (1819). Ainda nesta viragem do século, surge um outro poeta nascido na Ilha, em Machico, Francisco Álvares de Nóbrega (1772-1806). Revela-se um arcádico de transição, apesar de escrever sobre a sua consciência e o mau fado que o persegue, afastando-se, por esse motivo, das linhas básicas dessa escola literária. Foi apelidado “Camões pequeno” e ficou conhecido pelos seus sonetos, alguns deles satíricos, outros anticlericais, que lhe valeram a prisão. Em 1804, publicou Rimas. Muitos dos seus outros poemas foram queimados pela Inquisição, depois da sua morte. Mónica Teixeira insere-o no grupo dos poetas pré-românticos. Entre finais do séc. XVIII e o séc. XX, surgem poetas que João Fortunato de Oliveira reuniu na antologia Flores Agrestes. Desses, nomeiam-se apenas, a título exemplar: José António Monteiro Teixeira (1795-1876), com obras publicadas em Portugal e em França, na medida em que desempenhou as funções de cônsul deste país no Funchal; Jacinto Augusto de Sant’Ana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt (1824-1888), Visconde das Nogueiras, e João da Câmara Leme (1829-1902). Nas últimas décadas do séc. XVIII, o romantismo proliferava na Europa, caracterizando-se por uma visão do mundo contrária ao racionalismo e ao iluminismo e pela procura de um nacionalismo que viria a consolidar os Estados. No contexto romântico da ilha da Madeira, destacam-se alguns poetas, alguns dos quais pioneiros nas letras portuguesas, com colaborações frequentes em importantes revistas literárias regionais e nacionais, ao lado de grandes nomes da literatura portuguesa: Luiz da Costa Pereira (1819-1893), autor que fez parte da coletânea O Trovador, de Coimbra – e do grupo com o mesmo nome –, com os poemas “Recordação” e “O Orphão”; João de Nóbrega Soares (1831-1890), um assíduo colaborador da imprensa funchalense que revela uma arte poética muito pessoal e que, segundo Cabral do Nascimento, era o mais artista de todos os poetas desta altura; Luiz d’Ornellas Pinto Coelho (1843-1920) e Francisco Vieira (1849-1889), o compilador de Álbum Madeirense (1884), um romântico saudosista e nacionalista, ao gosto de Soares dos Passos, mas também de António Nobre. [caption id="attachment_14953" align="alignleft" width="192"] Fonte: Blog da Biblioteca Municipal do Funchal[/caption] As mentalidades começavam a mudar. É assim que, na aristocracia ou no seio da alta burguesia, surgem mulheres a participar de atividades e eventos ligados à arte e à literatura, a traduzir escritores estrangeiros e a organizar saraus artísticos no teatro ou em casas particulares. É o caso de Matilde de Sant’Ana e Vasconcelos (1824-1888), Viscondessa das Nogueiras, que tem poemas inseridos nas coletâneas Flores da Madeira, Album Madeirense e Prelúdios Poéticos; Matilde Olympia Sauvayre da Câmara (1871-1957), senhora ligada às artes – à música, ao teatro e à poesia; Berta de Ataíde, nome autoral de Maria Helena Jervis de Atouguia e Almeida (1847-1928), que editou Mosaicos, o seu livro principal; Joana da Piedade Velosa de Castel-Branco (?-1920), que colaborou em diversos jornais e revistas e editou, em Lisboa, As Minhas Flores, em 1905, e Fluctuações, em 1910; Eugénia Rego Pereira (1875-1947) e o seu livro Folhas Perdidas, em 1929; Maria Emília Acciaiuoli Rego e Georgina de Almeida, que têm poemas em Flores Agrestes, uma antologia de João Fortunato de Oliveira, poeta que organizou as primeiras coletâneas de autores madeirenses. Em 1883, Mariana Xavier da Silva publica Na Madeira. Offerendas, que merece da parte de Guiomar Torrezão, escritora e diretora do Almanach das Senhoras (1870), na “Introducção” que assina, um louvor também pelo facto de [ainda] ser rara a publicação da escrita feminina. No Funchal, entretanto, organizavam-se algumas associações de caráter cultural onde se liam os jornais nacionais e estrangeiros: o Clube Funchalense, o Clube dos Estrangeiros e o Clube da Associação Comercial do Funchal. Aí se lia, se conversava, se sabia do mundo. Não nos podemos esquecer de que a Ilha recebia influências das culturas de quem a ela chegava, sobretudo ingleses e franceses à procura da beleza da terra, da doçura do clima. Por outro lado, as famílias mais abastadas enviavam os seus filhos para a França, para a Inglaterra e para a Guiana Inglesa, a fim de estudarem nos melhores colégios. Em 1870, Joaquim Pestana (1840-1909) estreia-se na imprensa regional, no jornal Imprensa Livre, como poeta. O Diário de Notícias, onde publica quase diariamente – poemas e prosa poética – entre outubro de 1876 e outubro do ano seguinte, é o grande divulgador dos poetas românticos madeirenses. Escrevendo e publicando no contexto da ilha da Madeira, Joaquim Pestana é um dos poetas do seu tempo que mais se relaciona com o meio insular. Em Espinhos e Flores, o autor manifesta a sua natureza espiritual e a temática religiosa da sua produção literária. Foi o autor romântico que mais publicou no seu tempo, quer na ilha, quer no espaço nacional. Publicou em quase todos os jornais e nos principais almanaques nacionais: Almanaque Literário, Alagoano das Senhoras, Almanaque D. Luiz, Almanaque Insulano dos Açores e Almanaque da Madeira. Mónica Teixeira considera-o um “romântico insular”, na medida em que é coerente com a natureza e com a história da Ilha. O final do séc. XIX prima pelo aparecimento de algumas coletâneas literárias que reúnem os poetas da Ilha, nomeadamente aqueles cuja publicação se fazia nos jornais e nas revistas da altura, que se tornaram um meio eficaz de divulgação dos poetas da Madeira, dentro e fora da Ilha. O Diário de Notícias permite-nos, por exemplo, perceber as preferências literárias do público madeirense, que demonstra um gosto especial pelo texto poético. Em 1871, surge a primeira série da coletânea romântica Flores da Madeira (a segunda série há de aparecer em 1872), pela mão do Dr. José Leite Monteiro e do Cón. Alfredo César d’Oliveira. Nos poetas representados, é possível percorrer os valores locais do romantismo vivido na Madeira. Vários estudiosos se manifestaram acerca das duas séries desta compilação: Cabral do Nascimento e Teófilo de Braga, tecendo o primeiro uma crítica pouco abonatória aos poemas aí representados. Quase todos os poetas aí presentes seguem o rasto de Soares dos Passos, nas suas características ultrarromânticas, no seu tom fatalista, no ritmo muitas vezes laudatório, se bem que, nos poetas da Ilha, o estado de alma romântico seja atenuado pela beleza e pela doçura da natureza insular. Em 1874, uma outra coletânea poética surge, na Madeira, pela mão do poeta Francisco Vieira, Álbum Madeirense. Deve salientar-se que ter um poema integrado numa destas compilações era garantia do prestígio dos poetas. Nesta obra, estão publicadas 69 poesias, assinadas por 34 poetas, entre os quais 5 mulheres, alguns repetentes das coletâneas anteriores, recolhendo, desta forma, e uma vez mais, a produção literária local. No género almanaque, aparece, ainda, em 1883, o Álbum Poético e Charadístico que, além de poesias, inclui pensamentos, charadas e enigmas e recebe autores da Ilha e do continente. Da lista dos poetas aí representados, consta o nome de Joaquim Pestana. No entanto, na Ilha mais rural, surge uma outra voz, menos erudita e mais popular, um poeta que encontra eco junto das populações: Manuel Gonçalves (mais conhecido pelo Feiticeiro do Norte), nascido na freguesia do Arco de São Jorge, em 1858, onde veio a falecer em 1927. Foi agricultor, pedreiro e poeta. Era um homem do povo, analfabeto, com muita facilidade em fazer rimas. A sua poesia, dita sobretudo nos arraiais, ganhou adeptos por toda a Ilha: advoga as suas causas, não tem medo de contar a sua vida (igual à vida de outros camponeses que tinham, na terra, a base do seu sustento), é porta-voz dos anseios e das preocupações das gentes e reclama a atenção de quem governa. Emigrou para o Brasil em 1910, chegando a editar, naquele país, dois poemas. A maior parte da sua bibliografia está impressa em folhetos avulsos. O Funchal do primeiro quartel do séc. XX apresenta-se como uma cidade cosmopolita, onde, à semelhança do que acontecia no continente, se formavam tertúlias literárias. Mais uma vez, há que realçar o papel da imprensa. O Diário da Madeira projeta, então, outros autores do arquipélago, associados sob o nome de “os cinco vagabundos” – João Cabral do Nascimento, Luís Figueira de Castro, Álvaro Manso de Sousa, Rodolfo Ferreira e Visconde do Porto da Cruz, grupo esse que se alargará a Ernesto Gonçalves e a António da Cunha de Eça. Desfeita esta agremiação de intelectuais, forma-se outra com o Antonino Pestana, Manuel Pestana Reis, Eduardo Pereira, Fernando de Menezes Vaz e Juvenal de Araújo, entre outros. O séc. XX é de uma produção literária significativa na ilha da Madeira. Aí, com base no que se passa no continente, sobretudo nos centros culturais do país – Lisboa, Coimbra, no início do século, e Porto, na segunda metade de novecentos –, os autores experimentam as escolas em voga e adaptam-nas à sua insularidade: o romantismo, o modernismo e o grupo da Presença são exemplos deste caminho. A maioria dos poetas da época, apesar de, em alguns casos, publicarem livros individuais, faziam-se representar em coletâneas, em almanaques, como, por exemplo, o Almanaque Ilustrado do Diário da Madeira ou o Almanaque de Lembranças Madeirense, ou ainda na Revista Literária. Ressalte-se, aqui, alguns poetas que marcaram presença na vida literária do séc. XX: José Cruz Baptista Santos (1887-1959), jornalista que deixou, por entre a sua obra poética, Horas de Inspiração (1906), Rosas e Jasmins (1913) e Baladas, um inédito; Elmano Vieira (1892-1962), que deixou Livro Azul (1959) e muitos poemas dispersos em múltiplas publicações e antologias; António Feliciano Rodrigues (Castilho), que publicou, entre outros, Versos da Mocidade (1903), Versos Para os Meus Filhos (1910), Colar de Vidrilhos (1911) e Sonetos (1916). Na passagem para o modernismo, movimento para o qual a Madeira contribuiu com algumas páginas da sua literatura, um outro autor, João Gouveia (1880-1947), há de revelar-se muito importante para a história das letras madeirenses, na medida em que inaugura aquilo que, no entendimento crítico contemporâneo, pode ser considerado literatura regional, dado o seu sentir ilhéu e as marcas insulares da sua poesia. Fazem parte da sua obra, os livros de poemas Breviário (1900), Atlante (1903) e Almas do Outro Mundo (1908). De acordo com Mónica Teixeira, o poeta bebe a sua inspiração nos autores nacionais – António Nobre, Cesário Verde e Camilo Pessanha, assim como no poeta inglês Lord Byron, com quem partilha o seu amor à(s) ilha(s). A mundividência insular tem, no modernista Albino de Menezes (1889-1949), um seu representante. Por ele, apercebemo-nos das desigualdades (também culturais) entre a Ilha e o resto do país. A sua personalidade – e a sua escrita, obviamente – releva um sentimento de autor isolado, insulado, guardado pelo mar, que lhe cerra as portas do mundo, mas isolado por outras ilhas que se erguem dentro da própria Ilha. De entre todos os colaboradores de Orpheu, indicador das tendências literárias do seu tempo, foi Albino Menezes que figurou ao lado dos grandes nomes da literatura portuguesa desta época – Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros –, integrando-se nas expectativas sensacionistas dos dois primeiros. A sua vertente de poeta surge mais tarde: primeiro com quadras de natureza popularizante, publicadas no Diário de Notícias (27 jan. 1921) sob o título “Mulheres”, e, depois, com sonetos que reúnem características românticas, modernistas e decadentistas. O poema “Olá Vadio!”, publicado na Presença (n.º 5, 4 jun. 1927), é um dos mais conhecidos do autor, um texto claramente modernista que, apesar de descrever o movimento num cais de Lisboa, faz lembrar, pelos pormenores, a sua origem insular. Outros autores madeirenses da mesma geração inserem-se ainda nesta corrente, como Cabral do Nascimento (1897-1978), que revela um sentido renovador, inspirado numa sensibilidade lírica nacional, chamando a atenção para os perigos de uma ameaçadora rutura com os valores da cultura portuguesa. Teve um papel muito importante na cultura literária da Ilha e do país, como tradutor e organizador de coletâneas, nomeadamente de Líricas Portuguesas e O Livro de Cesário Verde. Como poeta, publicou, em Lisboa, no ano de 1916, o seu primeiro livro de poesia, As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruinas, obra essa elogiada por Fernando Pessoa pelo seu caráter sensacionista. No entanto, havia de se distanciar das linhas do movimento de Orpheu, chamando-lhe Mónica Teixeira um “clássico moderno”, um autor com um caminho muito próprio que define a poesia dos seus livros: Além-Mar (1917), onde se denota um certo patriotismo insular, Descaminho (1926), Arrabalde (1928), Litoral (1932), Confidência (1945) e Digressão (1953). Filósofo Y, Príncipe d’Arcádia ou Cavaleiro do Cisne são os nomes autorais de outro poeta que se destaca na Ilha, sobretudo a partir dos anos 20 da centúria: Octávio José dos Santos ou Octávio de Marialva. Nascido no Funchal em 1898, onde viria a falecer a 3 de junho de 1992, da sua obra versátil, na medida em que toca vários temas – filosofia, teosofia, astronomia e esoterismo –, destaca-se a poesia, género no qual revela a sua permanente procura de harmonia com o universo. Publicou, entre outros livros de poesia, A Morte do Cisne (1923), A Sinfonia do Eu (1937) e Olimpo – 25 Poemas da Grécia (1991). Da geração da Presença, destaca-se, na Ilha, o escritor João Brito Câmara (1909-1967), delegado da Associação Portuguesa de Escritores (APE) na Madeira, entre 1956 e 1958. Foi diretor da página literária do semanário Eco do Funchal, o “Eco Literário”, que se revelou importante na divulgação de autores contemporâneos: Edmundo Bettencourt, Herberto Helder, Florival de Passos, Rogério Correia, Horácio Bento de Gouveia, Octávio de Marialva, Luís Marino e Baptista Santos. Foi, porém, como poeta que este advogado mais se distinguiu. Cabral do Nascimento assinou o prefácio do seu primeiro livro de poesia: Manhã (1927). Publicou, ainda, Relance (1942), Auto da Lenda (1943), um poemeto nacionalista com características épicas, Ilha (1940) e Poesias Completas (1967), cujo prefácio é da autoria de Fernando Namora. Edmundo de Bettencourt (1899-1973) foi, também, um dos fundadores da Presença, juntamente com José Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. Colaborou em diversos jornais e revistas e consagrou-se um dos grandes poetas da época, na Madeira e no continente. Em 1930, publica O Momento e a Legenda, a sua primeira e solitária obra em mais de 30 anos. Só em 1963, Bettencourt volta a evidenciar-se com a publicação de toda a sua obra. Os Poemas de Edmundo Bettencourt integram, além de O Momento e Legenda, Rede Invisível, de 1930-31, Poemas Surdos, de 1934-40, e Ligação, escrito entre 1936 e 1962, e são prefaciados por Herberto Helder. Um outro poeta com algum significado nesta época é Carlos Agapito Camacho (1903-1994), que assina os seus textos sob o pseudónimo Santiago de Melo. Como poeta e ensaísta, colabora na imprensa, nomeadamente no Diário da Madeira e no semanário Trabalho e União, onde assina, sobretudo, artigos de crítica literária e crítica social, assumindo um discurso provocatório e fantástico e demarcando-se pela sua originalidade, pela ironia e pelo ritmo das frases, levando o Visconde do Porto da Cruz a chamá-lo “o ritmador da ironia”. Em 1928, surge integrado no segundo grupo da Presença, com quem politicamente mais se identifica, e publica os poemas “Insolação”, “Senti Saudades de Mim” e “Claro-Escuro” na Presença (n.º 28, vol. 2, ago.-set. 1930). “Insolação” virá a ser publicado, a 13 de dezembro desse ano, em Trabalho e União e Luís Marino publica-o na coletânea Musa Insular, caraterizando-o como um poeta modernista com estilo próprio. Octávio de Marialva dedica-lhe o soneto “Don Juan” que o Diário da Madeira publica no dia 10 de agosto de 1930. Em Musa Insular, Luís Marino reúne uma plêiade de 372 poetas madeirenses, entre o séc. XV e a data da publicação (1959) deste “espicilégio popular madeirense”, como lhe chama o próprio autor no prólogo da obra: desde João Gonçalves da Câmara (1414-1501) a Carlos Maximiliano Alves de Menezes Cabral (1942-), o último poeta referenciado nesta obra. Luís Marino é o nome literário de Luís Gomes da Silva (1909-1996). De entre a sua vasta produção literária, destacamos: Revoada de Sonhos (1932), Cardos e Papoilas (1944), O Pobre e o Rico (1950), O Canto do Cisne. Poemas (s.d.) e Bolas de Sabão (s.d.). [caption id="attachment_14724" align="alignleft" width="218"] António Aragão[/caption] Os anos 50 são essencialmente ligados à poesia e a uma certa afirmação do meio insular. Por esse motivo, à semelhança do que já havia acontecido no séc. XIX com Flores da Madeira, alguns dos poetas madeirenses são reunidos em coletâneas. Surge, de facto, em 1952, Arquipélago, uma publicação do jornal Eco do Funchal, na qual se destacam poetas como António Aragão, Carlos Cristóvão, Florival de Passos, Jorge Freitas, Rebelo Quintal, Rogério Correia e Silvério Pereira. É este o primeiro palco de Herberto Helder. Nascido no Funchal, em 1930, cedo se afastou da Ilha e abriu o seu mundo a outros mundos. Desde cedo, também, manifestou interesse por determinadas culturas que, ao longo do tempo, sofreram grandes mutações. É lá que o poeta vai beber a sua linguagem (quase) ritualística, a ideia de uma metamorfose contínua e a noção de poeta como alquimista, como um deus ou um mago possuído pela força animista da linguagem. O autor, considerado, hoje, um dos maiores vultos da literatura portuguesa, participa também num opúsculo, Poemas Bestiais, em 1954, com Carlos Camacho e Jorge Freitas, uma publicação que passa praticamente em silêncio pelo Funchal. Esta é uma obra provocatória, um pouco na linha de Arquipélago e de Aerópago, que aparece como uma resposta bem-disposta à primeira coletânea. Estas coletâneas permitiram desencadear uma certa consciência literária madeirense, pela mão de escritores como António Aragão (1921-2008), Cabral do Nascimento ou Edmundo Bettencourt (1899-1973). Os suplementos literários dos jornais continuam a desempenhar um papel fundamental na vida cultural e literária da Madeira na segunda metade do séc. XX. Pedra é um desses casos. Surge em duas séries: a 25 de março de 1965, no jornal Eco do Funchal, e a 22 de janeiro de 1967, no Comércio do Funchal. Um olhar descomprometido permite-nos perceber nomes até então desconhecidos no panorama literário madeirense: Vicente Jorge Silva, Luís Manuel Angélica, José de Sainz-Trueva, entre outros. Alguns dos autores do séc. XX deixaram a sua poesia dispersa na imprensa ou referenciada em coletâneas: César Pestana (1904-1986), por exemplo, ou João França (1908-1996), mais conhecido pela sua prosa. A partir dos anos 70, alguns poetas madeirenses são integrados em antologias organizadas no continente. É o caso de Poesia 70 (Porto, 1970), Poesia 71 (Porto, 1971) e Poemografias (Lisboa, 1985). Na Ilha, José António Gonçalves (1954-2006) é o responsável pela divulgação literária de muitos dos poetas insulares. Pelas suas mãos, também se organizaram antologias de poesia: Ilha (1975), Ilha 2 (1979), Ilha 3 (1991), Ilha 4 (1994) e Ilha 5 (2006), esta última organizada pelo seu filho depois da sua morte, Cadernos Ilha, que contou com 12 volumes publicados a partir de 1988, e Livros de Cordel, que teve 10 números. Para além disso, o poeta integrou, em 1973, o Caderno de Poesia & Crítica Movimento, lado a lado com António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Pedro Tamen, José Bento, A. J. Vieira de Freitas, José Agostinho Baptista e Gualdino Avelino Rodrigues. Nos anos 70, foi o responsável pela página literária do Jornal da Madeira, “Poesia 2000”, e, nos anos 90, pelo suplemento cultural do jornal Notícias da Madeira. A ele se deve também uma vasta criação poética, de que salientamos: Os Pássaros Breves (1995), Pedra Revolta (2000), Esquivas São as Aves (2001), Memórias da Casa de Pedra (2002) e As Sombras no Arvoredo (2004). Verifica-se, nestes anos, a tendência para juntar os poetas da Madeira com os dos Açores numa antologia insular, um ensaio das afinidades entre poetas de ilhas, na medida em que alguns poetas refletiram sobre eventuais pontos de contacto das escritas ilhoas, ainda que as respostas dos dois arquipélagos pareçam ter sido diferentes ao longo dos tempos: por um lado, os Açores reagem mais facilmente às correntes que se erguem na Europa e na América; por outro, a Madeira aproxima-se mais do que vai acontecendo em território português. Surge, assim, Pontos Luminosos. Açores e Madeira, uma antologia de poesia do séc. XX que abriga também alguns poetas do início do séc. XXI: João Carlos Abreu (n. Funchal, 1935); Irene Lucília Andrade (n. Funchal, 1938); António Aragão (n. São Vicente Madeira, 1924); José Agostinho Baptista (n. Funchal, 1948); Isabel Aguiar Barcelos (n. Funchal, 1958); Edmundo Bettencourt (n. Funchal, 1889); João David Pinto Correia (n. Funchal, 1939); Ana Margarida Falcão (n. Funchal, 1949); A. J. Vieira de Freitas (n. Madeira, 1940); São Moniz Gouveia (n. Santo António da Serra, Madeira, 1967); Octávio de Marialva (n. Funchal, 1898); José Tolentino Mendonça (n. Machico, Madeira, 1965); José Viale Moutinho (n. Funchal, 1945); João Cabral do Nascimento (n. Funchal 1987); José de Sainz Trueva (n. Funchal, 1947); Ângela Varela (n. Camacha, Madeira, 1938), e alguns poetas açorianos. A Ilha continua a inspirar poetas. Os que mais se têm destacado no panorama literário são, sobretudo, aqueles que conseguiram ultrapassar as fronteiras basálticas da Ilha, alguns dos quais com grande projeção nacional e mesmo internacional. Organizados cronologicamente pela data do seu nascimento, ressaltamos alguns autores: Herberto Hélder (1930-2015), a sua vasta obra, que se iniciou como uma procura surrealista, experimenta o poder da palavra e propõe uma reflexão sobre a escrita. De entre a sua poesia, sublinham-se as obras seguintes: Poemacto (1961), Retrato em Movimento (1967), O Bebedor Nocturno (1968), Cobra (1977), O Corpo o Luxo a Obra (1978), Photomaton & Vox (1979), A Cabeça entre as Mãos (1982), As Magias (1987), Última Ciência (1988), Do Mundo (1994) e Poesia Toda (1973 e 1996). Irene Lucília Andrade (n. 1938) publicou O Pé Dentro d’Água (1980), Ilha que é Gente (1986), A Mão que Amansa os Frutos (1991), Estrada de um Dia Só (1995), Protesto e Canto de Atena (2002), Água de Mel e Manacá (2002). Ao longo do tempo, integrou coletâneas dedicadas à poesia insular: Ilha 2, Ilha 3 e Ilha 4, Duplo Olhar (1997), Poetti Contemporanei dell'Isola di Madera, (Itália, 2001), Saudades da Ilha – Evocações Poéticas da Ilha da Madeira (2003) e Pontos Luminosos – Açores e Madeira: Antologia de Poesia do Século XX (2006). Ângela Varela (n. 1938) é uma poetisa representada em jornais e revistas da Ilha e do continente, bem como nas antologias Ilha 3, com “Espaços de Passagem”, de 1991, e Ilha 4, com “Corpo – Ilha”, de 1994. João David Pinto-Correia (n. 1939), docente universitário na área da literatura, escreveu, entre outras obras, Este Branco Silêncio (1991) e Onze Mais um Poemas e Lugares (2001). A. J. Vieira de Freitas (1940-1982) publicou A Palavra que Somos (1971), Habitar o Tempo (1975) e Erosão (1982). A ele se deve, também, a coordenação da antologia Da Ilha que Somos (1977), que pretendeu transmitir a voz poética da insula. No prefácio que assina, o poeta explica que o insular intui a poesia a partir da limitação geográfica da Ilha. A obra reúne, assim, um conjunto de “jovens poetas”, alguns dos quais não madeirenses, que pretendem traduzir o complexo mundo do ilhéu. De entre os autores aí representados, destacam-se Fátima Dionísio, A. Brito Figueiroa, Carlos Alberto Fernandes e Laurindo Gois, estes três últimos ligados ao grupo Ilha. José de Sainz-Trueva (n. 1947) manteve, desde muito jovem, uma produção poética regular na imprensa regional e de Lisboa, bem como em revistas literárias e várias antologias publicadas no Funchal, no Porto e em Lisboa. Em 2013, publicou O Lento Arder das Coisas. José Viale Moutinho (n. 1945) é um dos poetas da Ilha que viveu grande parte da sua vida fora dela. Jornalista, cronista, investigador, contista e poeta, tem, entre muitas outras, as seguintes obras poéticas publicadas: Urgência (1966); Atento Como um Lobo (1975); Os Laços (1979); Quarteto de Viagens e Paixões (1980); Correm Turvas as Águas Deste Rio (1982); Piano Bar (1986); Máscaras Venezianas. Poemas (1987); Tretze Quadres de Mário Botas (1987); As Portas Entreabertas: Poesia 1975 – 1985 (1990); Un Caballo en la Niebla (1992), que foi considerado pela revista Leer (Madrid) um dos 100 melhores livros da déc. de 90; Caderno de Entardecer (1996); O Amoroso (1997 e 2004); Nomes de Árvores Queimadas (1997); Areias Onde Gregos se Perdem (1998); Poemas Tristes (2001); A Ilha do Ogre (2003); Outono: Entre as Máscaras (2003); Sombra de Cavaleiro Andante: Antologia Poética 1975-2003 (2004); Por um Bosque tão Sombrio e Outros Poemas (2007); São Coisas Tais Efeitos Só do Acaso? (2009). João Dionísio (n. 1947) foi um dos três madeirenses (com José de Sainz-Trueva e António Aragão) a participar numa nova vertente do experimentalismo apresentado nas antologias portuenses Poesia 70 e Poesia 71. Tem a sua obra poética dispersa por antologias várias. Recorrendo, com frequência, ao poema em prosa, publicou, por exemplo, A Cidade de Álea (1981), Os Açúcares ou o Ruído do Silêncio (1996), Uma Inquestionável Distância (1999) e Os Construtores da Memória (2000). José Agostinho Baptista (n. 1948) foi jornalista e tradutor, tendo sido responsável pela tradução em português de alguns autores de língua inglesa, como Walt Whitman e Tennessee Williams. Assumiu-se como um dos grandes poetas dos sécs. XX e XXI. Da sua vasta obra publicada, destacam-se os livros: Deste Lado Onde (1976); O Último Romântico (1981); Morrer no Sul (1893); Auto-Retrato (1986); Paixão e Cinzas (1992); Canções da Terra Distante (1994); Agora e na Hora da Nossa Morte (1998); Biografia (2000); Anjos Caídos (2003), que lhe mereceu o Prémio PEN de Poesia; Esta Voz é Quase o Vento (2004), que lhe valeu o Grande Prémio de Poesia APE/CTT; Quatro Luas (2006); Além-Mar (2007); Assim na Terra como no Céu (2014). José Tolentino Mendonça (n. 1965) é dos mais reconhecidos poetas da sua geração, tendo sido distinguido por diversos prémios literários, como o Cidade de Lisboa de Poesia, em 1998, e o PEN Clube Português, em 2004. À semelhança de José Agostinho Baptista, foi distinguido com o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique, tendo sido considerado um dos 100 portugueses mais influentes em 2012 pela Revista do jornal Expresso. Da sua vasta obra literária, destacamos: Os Dias Contados (1990); Longe Não Sabia (1997); A Que Distância Deixaste o Coração (1998); Baldios (1999); De Igual Para Igual (2001); A Estrada Branca (2005); A Noite Abre Meus Olhos (2006); O Viajante Sem Sono (2009); A Papoila e o Monge (2013). A atividade poética da ilha da Madeira mostra-se, assim, intensa. Talvez a sua condição insular e os singulares fatores geográficos e culturais façam dela uma terra de poetas. Registe-se, pois, outros nomes que fazem parte da história literária da Ilha: Carlos Alberto Fernandes, Eurico de Sousa, Gualdino Avelino Rodrigues, Guilhermina Luz, Isabel Aguiar Barcelos, Jorge Freitas, Luís Viveiros, Laura Moniz (nome com que passou a assinar São Moniz Gouveia após alteração do nome civil), João Carlos Abreu, entre muitos outros poetas que terão, certamente, lugar na história da literatura que se faz na Ilha. Há outros poetas, porém, que, não tendo nascido na Ilha, dela fizeram a sua casa. De entre os muitos que se deixaram inspirar pela Madeira, sublinham-se alguns pela importância que o tempo lhes tem dado: João de Brito Câmara (1909-1967) nasceu em Lisboa, mas foi viver para o Funchal com quatro anos. Advogado, foi sócio do Instituto Cultural da Madeira e pertenceu à Associação Portuguesa de Escritores (de que foi delegado na Ilha, entre 1956 e 1958). Colaborou na imprensa regional. Escreveu Manhã (1927), Relance (1942), Auto da Lenda (1943), Ilha (1950) e Poesias Completas (1967). Maria Aurora Carvalho Homem (1937-2010), natural da Beira-Alta, escolheu a Madeira para viver a partir de 1974. Como poeta, publicou Raízes do Silêncio (1982), Ilha a Duas Vozes, com João Carlos Abreu (1988), Cintilações, poesia sobre aquarelas de Mellos (1995), Uma Voz de Muda Espera (1995) e 12 Textos de Desejo (2003). Carlos Nogueira Fino (n. 1950), apesar de ter nascido em Évora, residiu na Madeira desde 1959, optando pela Ilha como sujeito nos seus poemas. Dos seus livros de poesia, destacamos XXIII Poemas de Ilhamar (1987), Simbiose (1988), Este Cais Vertical (1989), Contemplação do Olhar (1992), (Pre)Meditação (1992), Segundo Livro de Ishtar (1994), Arco e Promontório (1997), Inquietação da Água (1998), O Deus Familiar (2001), Funchal (2004) e 39 poemas (2006). A poesia é voz antiga na Madeira. As suas raízes (con)fundem-se com as origens humanas da Ilha. No princípio, destacaram-se os poetas palacianos, depois os que beberam a sua arte no colégio religioso, seguidos dos que foram nascendo dos salões onde as tertúlias literárias aconteciam e nas páginas dos jornais. A Madeira foi acompanhando, ao longo da história da literatura, as correntes estéticas e ideológicas do resto do país. No entanto, muitos dos poetas de origem madeirense deixaram que a Ilha entrasse nos seus versos. Basta percorrer os títulos de algumas obras já citadas para perceber que o imaginário da Ilha está, de algum modo, presente nos poetas que citamos. Veja-se, por exemplo, as coletâneas Flores da Madeira, Álbum Madeirense e Ilha, ou nomes de obras como A Divina Ilha, de Albino Menezes, ou XXIII Poemas de Ilhamar, de Carlos Fino. A partir dos finais do séc. XX, os poetas madeirenses procuraram o estatuto de cidadãos do mundo, mais preocupados com os temas e os problemas que se colocam à humanidade do que propriamente com temas locais e regionais. A Ilh a, porém, parece continuar a desencadear vocações poéticas, na medida em que todos os anos aparecem novos poetas e novos livros de poesia, dando conta da importância deste espaço para a literatura.   Graça Maria Nóbrega Alves (atualizado a 11.12.2018)

Literatura

prostituição

Define-se como troca de favores sexuais por dinheiro. Sendo o Funchal uma cidade portuária, cedo se tornou visível a prática desta atividade na ilha da Madeira. “Junto ao mar” se alimentava o negócio, sobretudo à conta das embarcações de passagem que aportavam à baía, havendo registos de “molheres”, “mancebas” e “meretrizes” desde o séc. XV. Por outro lado, documentos oficiais permitem-nos verificar a importância desta atividade para o entorno do porto. Apenas alguns exemplos: a propósito das estimativas das receitas para a construção da cerca do Funchal, em 1493, foi determinado que “toda a molher de partido que for achada na ylha paguara trecentos reaes e pode valer por anno seys mil rs” (SILVA, 1995, 705). Por esse tempo, estariam contabilizadas cerca de 20 meretrizes no Funchal e, em 1495, numa representação à Câmara, pedia-se que a mancebia “fosse tirada junto do mar, porque os de fora saltavam com as mancebas, faziam arruído e se acolhiam aos batéis e a justiça não os prendia” (ABM, Vereações, n.º 1301, fl. 78). As vereações da Câmara Municipal do Funchal referem ainda o facto de “ali terem acontecido mortes de homens”, o que indicia alguma violência naquele meio. Das outras referências a “mancebia”, destaca-se o facto de os homens bons terem dedicado algum tempo, nestas reuniões, a procurar o melhor lugar para a instalação de uma mancebia, mercê feita por El-Rei a Martim Mendes. É então decidido, na vereação de 12 setembro de 1496, que “Martim Mendez de Vasconcelos ffaça mancebia em Valverde, na rua Direita”, e “que a dicta rrua sse tape da banda da rua e lhe faça as portas contra a rribeira e que ffaça as casas na dicta mancebia” (COSTA, 1995, 540). Por outro lado, há referência a algumas casas que agasalhavam os escravos e que também funcionavam como antros de prostituição, ou lugares de jogo, ou de “desonestidades”. Aliás, roubos, furtos, jogos ilícitos e prostituição faziam parte do quotidiano dos escravos forros. No foral da capitania do Funchal, datado de 6 de agosto de 1515, o Rei D. Manuel estabeleceu, com clareza, que todo aquele que fosse apanhado na “mancebia com armas, assim de dia como de noite, perdesse as armas e pegasse de pena 500 reis, e que todo o homem casado que se provasse ter mancebia ‘theuda e mantheuda’ pagasse a quarentena de metade da fazenda que tivesse” (SILVA e MENESES, 1984, III, 158). Giulio Landi, na sua Descritione de l’Isola di Madera (1530), associou-lhe três pragas – ratos, pulgas e meretrizes. A Ilha parece, então, por este tempo, estar conotada com falta de higiene e desregramento de costumes: Giulio Landi conta de uma velha cortesã ali existente e de relações escandalosas entre uma mulher branca e um escravo negro. Nas posturas da Câmara, aprovadas em meados do séc. XVI (por volta de 1550), fica estabelecido que “nenhuma mulher solteira que ganhar dinheiro por seu corpo publicamente não viva entre as casadas sob pena de quinhentos reis viverão nos lugares limitados convém a saber Beco detrás da cadeia a Rua que vai ao longo da Ribeira da ponte da cadeia até à travessa de Pero Gonçalves cavaleiro e no cabo do calhau na Rua do Monteiro e Rua adiante e nos becos de Joham Seraiva e de dom Joam”, o que indicia alguma preocupação em preservar as famílias do contacto com esta prática, delimitando os locais das “mancebias”, muitas vezes designando o lugar de residência ou de serviço das prostitutas (ABM, Posturas, liv. 1685, fls. 10-14). As mulheres que se dedicassem à prostituição incorriam num pecado de tal modo grave que o sacramento da confissão não o absolvia. A devassidão conduzia à excomunhão, conforme o texto das Constituições Synodaes do bispado do Funchal: “ainda que as mulheres públicas por seus maus costumes, e impenitentes corações se não hajam de absolver, são todavia obrigadas pelo dito tempo da Quaresma a confessar inteiramente todos seus pecados, dos quais os confessores as ouvirão, declarando-lhes que não vão absoltas, e admoestando-as que se apartem do estado de condenação em que estão, e se convertam ao Senhor e não cumprindo assim, incorrerão nas ditas penas postas aos não confessados” (BARRETO, 1585). A questão da luxúria voltará a colocar-se, ao longo dos séculos, de forma mais ou menos evidente. Rui Carita cita uma ordem do prelado diocesano, datada de 1725, segundo a qual todo aquele que se “entregava ao vício”, muitas vezes pela miséria – e incluem-se aqui outros grupos para além das “meretrizes” da cidade, i.e., os escravos e escravas (“pretos e pretas cativos”), assim como as amas dos expostos –, estava obrigado a pagar 1050$000 réis “de condenação, cada uma [cada mulher] pelo seu trato”. A queixa da Câmara contra esta ordem de D. Fr. Manuel Coutinho, também citada pelo já referido autor, acrescenta que, para poderem pagar tal condenação, “era-lhes forçoso fazerem mais ofensas a Deus, como muitas declararam no palácio episcopal ao escrivão da câmara” (CARITA, 1999, 250). Um alvará de setembro de 1726 mostra a preocupação do bispo relativamente à entrada de “mulheres suspeitas” na Ilha, ordenando ao meirinho geral, escrivão de armas ou qualquer outro oficial que notificasse da resolução todos os capitães e proprietários de embarcações, sob pena de excomunhão e 50 cruzados. As Constituições Synodaes do Bispado do Funchal preconizavam três admoestações para as mulheres que publicamente viviam mal. Se não se emendassem, a pena podia ir até ao desterro. Sabe-se que, ao longo do séc. XVIII, com a cidade do Funchal cada vez mais aberta ao mundo, a prostituição aumentou. Houve, então, algum cuidado na delimitação das ruas públicas, sempre muito concorridas, numa cidade muito frequentada por marinheiros. Não sendo a prostituição exclusiva da cidade, era, porém, na baixa que mais prostitutas se encontravam, sobretudo nas ruas “da área do calhau”. Nas vereações de novembro de 1725, era “determinado a todas as mulheres mundanas e públicas, que se achassem a morar no centro da cidade, pelo muito escândalo que dão a esta República”, que se deslocassem para “o Valverde”, um quarteirão acima da R. do Bom Jesus. Sabe-se, ainda, de “furtos e desonestidades” num “bequinho” entre o beco do Forno e a ribeira, denunciado pelo P.e Manuel Rodrigues Faleiro, cura da Sé, em 1707. Sabe-se, ainda, que no beco da Malta “assistem as mulheres públicas” e se praticam “atos torpes” (CARITA, 1999, 250). Rui Carita refere, ainda, situações de ações que, nomeadamente ao longo do séc. XVIII, nos indicam uma das formas de angariação de clientes. Afirma o autor que uma das formas de se intrometerem com os passantes era cuspirem-lhes em cima, sobretudo quando aqueles não lhes prestavam a atenção desejada. Apresenta, como exemplo, o caso de Domingos Caetano Pereira de Melo (1776), que, à custa do processo que resultou do facto de ter ferido algumas mulheres com a sua espada, teve de “se passar” para Lisboa e daí para Espanha. Para que pudesse regressar à Ilha, duas das queixosas, cujos nomes são omitidos, de forma a que “pelo nome não percam”, comprometeram-se a perdoar-lhe as ofensas corporais, mediante determinada quantia (Id., Ibid., 250). De registar a expressão “que pelo nome não percam”, usada para que os nomes não figurassem nos documentos oficiais, o que nos leva a colocar duas hipóteses: a vergonha e/ou a mancha de quem os escrevesse ou o facto de as ditas queixosas não serem identificadas como “meretrizes”, sendo elementos da sociedade. Está ainda documentada a atitude paternalista do Gov. João António de Sá Pereira (1767-1777): em abril de 1770, pede ao vigário Bentos Gomes de Jardim “a diligência de reduzir ao matrimónio” Isabel de Melim, natural do Porto Santo, mas a levar uma vida dissoluta no Funchal, adiantando, para o efeito, 40$000 réis. Igual procedimento tem relativamente a Josefa Joaquina Rosa de Almeida, que “levava uma escandalosa vida e depravado procedimento”, presa na cadeia do Funchal e transferida para Santana, “para sossego daqueles que lhe frequentam a comunicação”, dadas as “muitas visitas” que recebia. Ainda relativamente ao séc. XVIII, um documento de um processo decorrido no Tribunal Eclesiástico fornece uma das muito poucas informações sobre os preços praticados: assim, quando se acusa um frade foragido das Canárias de procurar prostitutas, menciona-se o montante de um tostão atirado à prostituta em pagamento dos serviços, enquanto, um pouco mais adiante, se refere o valor de cinco tostões prometidos a uma escrava, caso ela aceitasse manter relações com o dito frade. Estes dados permitem verificar que as quantias atribuídas ao pagamento do ato variavam substancialmente de acordo com o estatuto da destinatária (TRINDADE, 2012, 106). Mais para o fim do século, a atitude da Igreja madeirense parece alterar-se: D. José da Costa Torres, num documento avulso de 1796, propõe a angariação de fundos para construção de um recolhimento de prostitutas, um lugar “em que possam viver cristãmente fazendo penitência de seus pecados, e ocupando-se em trabalho honesto. […] uma boa obra, muito meritória e agradável a Deus” (Id., 1999, 203). Este bispo do Funchal (1784-1796) apela à Rainha, no sentido de mandar retirar da Madeira o Corr. António Rodrigues Veloso de Oliveira, sob vários pretextos, entre os quais a sua falta de esforços para reprimir a prática da prostituição na cidade do Funchal. Nas devassas de 1794, 1795 e 1813 são acusados 18 crimes de prostituição, todos cometidos por mulheres, sendo um outro pecado contra o 6.º mandamento, “não cometerás adultério”, a mancebia, praticado por 143 mulheres e 152 homens. Em 1813, duas devassas são claras quanto ao “grandíssimo número de públicas e escandalosas prostitutas” (Id., Ibid., 139). Uma outra questão surge ligada à prostituição: a colonização do Brasil. No princípio do séc. XVII, eram organizados embarques de pequenos grupos de jovens órfãs para casarem no Brasil e, deste modo, povoarem o espaço. Não sabemos, contudo, se havia jovens madeirenses nestas condições. Sabemos, apenas, que a Coroa terá apoiado um recolhimento para apoiar estas donzelas à chegada, evitando que a incerteza do futuro que as esperava as fizesse cair na indigência e na prostituição. O assunto “Brasil” volta a ser tratado no séc. XIX, num momento difícil, “uma crise medonha”, numa reunião da Junta Geral do Distrito, no dia 4 de maio de 1854, pela voz de António Gil Gomes. Nesta “malfadada terra sem governo que lhe dê vida”, onde se verificam “cenas dolorosas e de amarguras por que têm passado os Madeirenses, que desconsolados gemem no seu drama de agonia desde a fatal época de 1852”, apresenta algumas propostas no sentido da “salvação comum […] a salvação desta bela porção do território português, à qual estamos presos pelos vínculos mais sagrados”. A primeira proposta é de carácter moral e reporta-se ao tráfico da escravatura branca, “esse tráfico de sangue”. O deputado acusa a “vergonha das vergonhas” da emigração ilegal e refere-se especificamente a mulheres e ao Brasil, assim: “que trafica escandalosamente com as mulheres, convertidas em objetos comerciáveis, fazendo das cidades uns lupanares de abominável devassidão, como nós temos presenciado no nosso Funchal que deve ser limpo desta praga, e como temos notícia de estar acontecendo no Brasil onde a beleza da mulher imigrante é posta em hasta pública, para fins de brutal sensualidade!” (ABM, Governo Civil, liv. 269, fls. 98-101v.). Na verdade, e mesmo durante o séc. XX, sobretudo no princípio, a emigração clandestina foi um dos motores da prostituição de madeirenses no Brasil. Uma monografia sobre gentes de Gaula que embarcaram para a terra prometida indica-nos casos de moças que, para pagarem a passagem, se fizeram criadas de servir, e que sobreviveram graças à prostituição exercida nas baiucas e pensões da cidade de Santos (FREITAS, 2000, 248). Outros documentos, assim como notícias de jornal, dão conta de casos de prostituição em terras de acolhimento de emigração. É o caso de uma nota publicada no Diário de Notícias de 30 de julho de 1889, referente à colónia portuguesa das ilhas Sandwich, em que se transcreve o Luso Hawaiano, jornal que se publicava em Honolulu, que apresentava a “decadência moral” da comunidade, a perda de todas as noções de moralidade e o lançamento na prostituição das filhas pelos pais. Na Ilha, ao longo do tempo, continuou a ser à volta do porto que a prostituição se operava com maior relevância, sobretudo nas alturas de crise económica. Dizia-se que, na Madeira, havia gente a morrer de fome. Em 1847, muitos mendigos da cidade foram recolhidos, à força, num armazém da Fazenda Nacional, sito à R. dos Medinas, para onde também tinham sido afastadas as prostitutas por ordem da Câmara, de 1838. Sabe-se, porém, dos poucos resultados deste afastamento, na medida em que há registos de que elas continuaram a escandalizar as boas famílias, nomeadamente no teatro, que estavam proibidas de frequentar. Vários autores, efetivamente, relacionam o aumento do número de meretrizes com os momentos mais dramáticos da história do arquipélago: as primeiras décadas do séc. XVIII, quase todo o séc. XIX e os primeiros decénios do séc. XX. Por outro lado, e para além da necessidade de sobrevivência – um dos grandes móbiles da prostituição –, às crises económicas costumam juntar-se outras, nomeadamente de ordem moral e social, bem patentes na quantidade de expostos nas misericórdias e conventos e no engrossar das fileiras de mendigos e prostitutas. De acordo com António Loja, citado por Rui Nepomuceno, “as instituições ruem”, referindo-se ao momento da crise vitivinícola, o mesmo acontecendo em outros momentos. Essa é também a interpretação de Rui Nepomuceno, que associa falências, despedimentos, assaltos, furtos, violência ao aumento do número de prostitutas na Ilha (NEPOMUCENO, 1994, 209). Nas Pastorais do bispo Manuel Agostinho Barreto, prelado do Funchal entre 1877 e 1911, é clara a preocupação com este problema. Aí se critica o “vício que emurchece a flor da vida, arrancando a pudicícia da alma e o verniz das faces” e se afirma serem poucos aqueles que “estigmatizam a escandalosa e pública prostituição, os fundos golpes dados na moral dos esposos e dos filhos, a purulenta relaxação dos costumes” (BARRETO, 558). Depois da aluvião de 1856, as meretrizes começaram a estabelecer-se em ruas que, dantes, pertenciam a famílias ilustres da cidade, ou, mesmo, à Escola Lancastriana – as ruas do Ribeirinho de Baixo e dos Medinas. As crianças são, neste tempo, uma preocupação: “Acossados pela necessidade e dificuldade da existência, os proletários impelem os filhos para a rua muito antes que estes estejam preparados para o conflito da vida; e o resultado é a vagabundagem, a mendicidade e a prostituição em uma proporção assombrosa e deplorável” – pode ler-se no Diário de Notícias de 17 de agosto de 1889, sob o título “Protecção e educação ás creanças”, tema desenvolvido na rubrica “Assuntos gerais” (“Protecção e educação ás creanças”, DN, 17 ago. 1889, 1). O mesmo diário, datado de 5 de janeiro de 1896, num artigo sobre “Hygiene publica”, dirigido ao visconde de Cacongo, e a propósito da necessidade de melhorar as ruas da cidade, refere alguns dos “vícios sociais e físicos” da “população infeliz” do Funchal: “o crime da embriaguez, a prostituição, a escrófula e o raquitismo” (“Hygiene publica”, DN, 5 jan. 1896, 1). A questão sanitária é um dos aspetos que, desde o séc. XVI, preocupa as autoridades civis e religiosas. O contágio e a propagação de doenças como a sífilis tornam-se, desta forma, um problema de saúde pública. Parece, assim, que esta preocupação é a verdadeira razão pela qual surge, pela mão de Pina Manique, em Lisboa, a 27 de abril de 1781, a obrigatoriedade da inspeção das meretrizes. Na Madeira, porém, apesar das recomendações de Mouzinho de Albuquerque, em 1843, e do Cons. José Silvestre Ribeiro, em 1846, só em 1854 estas mulheres estão obrigadas a vigilância médica. A preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis foi, deste modo, uma constante, conforme se pode inferir das informações seguintes: a 5 de novembro de 1834, a Câmara terá recebido da parte do prefeito da província a decisão de pagar ao Hospital da Misericórdia o tratamento das mulheres públicas entre 21 de outubro e 4 de novembro daquele ano; em 1836, no dia 8 de março, o Governo mandou entregar 1:000$000 réis à Comissão da Misericórdia do Funchal, para ajudar o curativo das meretrizes afetadas por doenças venéreas, assim como os pobres que as tivessem apanhado, sugerindo mesmo que a referida Comissão se socorresse de subscrições para angariar os meios que fossem necessários para evitar a propagação das doenças (ABM, Governo Civil, liv. 1, 2.ª repartição). Em Lisboa, são produzidos regulamentos, em 1858 e 1865, que servirão de modelo a outras cidades do país. Esta regulamentação parece indiciar uma relativa compreensão pública pelas razões que teriam levado muitas mulheres à prostituição – sempre entendida como uma atividade feminina. O discurso legislativo, “tolerante”, reúne preceitos morais, preocupações sanitárias e um esforço de regular a atividade. É assim que, desde meados do séc. XIX, a prostituição, reconhecida como profissão, é permitida em casas “toleradas” – casas autorizadas pelo Estado, sujeitas a periódicas inspeções sanitárias. No entanto, há vozes que se levantam, não propriamente contra a regulamentação desta atividade, mas contra o imposto do consumo: nesse Estudo Offerecido à Comissão do Protesto Nacional na Reunião Popular Realisada em 9 de Outubro de 1906, fala-se na (falta de) lógica da moral oficial que consente, regula e tributa a prostituição, um “vício, e dos mais perigosos”, explicando o autor que o Estado considera esta prática um mal necessário, impossível de erradicar (LIGA DE DEFESA DOS INTERESSES PÚBLICOS, 1906, 18). Na Madeira, a 13 de fevereiro de 1908, o Diário de Notícias anuncia um crime de morte perpetrado contra M.ª Virgínia dos Passos, “mulher de fáceis costumes”, procurada na sua residência por mais de um homem. O teor da notícia lança algumas pistas sobre um dos motivos pelos quais algumas mulheres enveredavam pelo caminho da prostituição: “Dado o primeiro passo errado, a desgraçada não teve mão em si, deixando-se arrastar no caminho vicioso e desregrado que a levou à prostituição e à morte”. Consta que terá tido um filho, “fruto dos amores ilícitos da mísera, e que ela enjeitou para a freguesia da Ribeira Brava” (DN, 13 fev. 1908, 2). Vivia na mais completa miséria. Em 1900, o Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade de Lisboa segue o Regulamento de 1865 e inicia uma série de outros regulamentos para outras cidades do país. Conhece-se a referência a um para a cidade do Funchal, datado de 22 de março de 1886, que há de ser revogado por um novo, também específico, assinado pelo governador civil, o Cor. José Maria de Freitas, em 1931, e confirmado a 1 de julho de 1944. Este Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal está dividido em 7 capítulos e 76 artigos: “Toleradas”, “Registo”, “Cancelamento”, “Casas de tolerância”, “Inspeções sanitárias”, “Disposições penais” e “Disposições gerais”. O texto começa por definir o que são meretrizes: todas as mulheres que habitualmente e como modo de vida se entregam à prostituição. De entre estas, havia aquelas que se achavam inscritas no registo policial, denominadas toleradas, podendo viver em domicílio próprio ou em comum com outras, sob direção de uma “dona da casa”. Estas “casas” não poderiam ficar situadas nas proximidades das igrejas, das escolas, dos jardins públicos, das residências das “pessoas honestas”, nos largos, praças ou ruas de muito trânsito ou, ainda, em rés do chão ou lojas. Entre outras restrições, como ausentar-se de casa por determinados períodos ou mudar de casa sem informar o comissariado de polícia, estavam proibidas de sair à rua vestidas de forma indecente, abrir janelas para a rua, permanecer à porta ou à janela de casa, escandalizar o público com palavras, gestos, ou atos e provocar quem passasse, atentando ao pudor, demorar-se para além do tempo necessário nas tabernas, botequins ou em quaisquer outros estabelecimentos. O artigo 10.º deste regulamento reporta-se à interdição de ter, em casa, filhos ou menores com mais de dois anos, assim como de receber menores de 18 anos. Muitas vezes, quando isto acontecia, havia denúncia e eram instaurados processos às “diretoras das casas”. No arquivo do Tribunal da Comarca do Funchal, um processo de 17 de outubro de 1925 dá conta, ao presidente do Tribunal da Tutoria da Infância da Comarca do Funchal, de um caso destes, em que, nos termos do § 4 do art. 4.º e do art. 12.º do dec. n.º 10.767, de 15 de maio, se prova que a menor de 14 anos, Antonieta Corrêa, filha de Sara Correa, moradora à rua Alferes Veiga Pestana, n.º 49, frequenta a casa de passe de que é diretora Filomena de Freitas, de 65 anos, viúva, sita à rua Latino Coelho, n.º 4 desta cidade, levada por Maria das Neves, mais conhecida por “barbuda”. A participação foi feita por uma concorrente, Amélia Augusta, que acusou Filomena de Freitas de consentir a entrada, na mesma casa, de menores de 16 anos. Um outro processo dá-nos conta de uma denúncia similar. Da análise destes processos se infere o nível socioeconómico destas meretrizes, a avaliar pelo das diretoras. São analfabetas, pelo que são as testemunhas presentes no Tribunal que assinam as declarações e as duas têm, apensos aos processos, atestados dos regedores das suas paróquias de residência, afirmando a sua extrema pobreza, isentando-as de pagar os 200 escudos de multa a que foram condenadas, por se terem provado os factos. As toleradas estavam impedidas de exercer a prostituição em hospedarias, lugares públicos ou em casas clandestinas, não obstante termos encontrado, na Matrícula das Meretrizes, observações como: “Hotel Benfica”, “pensão Moderna” ou “foi viver para casa particular, sob proteção de um indivíduo”. Percebe-se, pois, que a grande preocupação deste controlo apertado era a transmissão de “moléstia sifilítica, ou venérea” (art. 14.º). As meretrizes eram, então, inscritas num livro do comissariado da polícia, voluntária ou coercivamente, depois de realizado um interrogatório acerca da sua identidade – nome, filiação, naturalidade, estado, profissão anterior, instrução, sinais característicos, causas da prática da prostituição, devendo estes dados ser assinados pela própria ou por duas testemunhas, no caso de esta não saber escrever. No entanto, vistos os livros, não encontramos qualquer referência à profissão anterior ou às causas que terão levado estas raparigas para a prostituição. Quanto à instrução, na linha das “Observações”, há, a lápis, a inscrição “analfabeta”. Nenhuma das meretrizes assina a sua matrícula, sendo todos os verbetes assinados pelo comissário da polícia. Fora desta inscrição, deveriam ficar as menores de 18 ou de 21 anos, quando reclamadas pelos pais, maridos ou tutores. Por este regulamento se sabe da existência de casas de regeneração, entendidas como lugares onde são internadas as menores de 21 anos de nacionalidade portuguesa. Um processo judicial datado de 1935 dá conta de um caso destes: uma menor de 17 anos confessou frequentar casas suspeitas “a fim de ter relações com homens para ganhar a sua vida”. Na sentença pode ler-se que, “de acordo com o art. 7.º foi aconselhada a procurar vida honesta e prometendo a mesma deixar de ser prostituta e ir viver para casa de sua mãe e que se voltasse ao exercício da prostituição seria julgada como desobediente e mandou que a mesma fosse posta em liberdade” (ABM, Juízo de Direito da Comarca do Funchal, Autos Crime de Corpo de Delicto, 1935, 1.ª vara, 1.ª secção). No livro das meretrizes, encontramos, entre 1914 e 1924, 21 mulheres com idades inferiores a 18 anos. Não conseguimos apurar a razão pela qual puderam ser matriculadas com idade inferior à que a lei preconizava. Quanto às estrangeiras, deveriam ser repatriadas e, caso regressassem e continuassem a atividade, deviam ser presas e julgadas como desobedientes. A verdade, porém, é que se encontram muitas estrangeiras nas listas de meretrizes que residem nas casas toleradas, sobretudo espanholas e francesas que nos parecem ser “cabeças de cartaz” das casas. São, muitas vezes, governantes e têm, na generalidade, idades superiores às portuguesas. Um olhar sobre as fotografias que alguns livros ainda possuem, apesar de muitos retratos terem desaparecido, sido descolados ou cortados – situação para a qual não encontramos explicação –, permite-nos também perceber que se trata de mulheres com um outro tratamento e com uma forma de vestir mais cuidada e, quiçá, mais arrojada: decotes maiores, plumas e adereços diferentes das portuguesas. Num universo de 792 inscritas, 73 são estrangeiras, sobretudo espanholas, 43, e francesas, 19. Esta inscrição era gratuita, assim como um livrete sanitário atestando o bom estado de saúde da tolerada. Um dado deste regulamento faz-nos acreditar que, em alguns casos, a situação destas mulheres podia ser alterada e os registos cancelados ou suspensos: em caso de casamento, de ausência do país, de reclamação por parte de algum parente, de menoridade, de prova do abandono da prostituição, de mudança de residência ou de passagem a “teúda e manteúda”, quando se tornavam exclusivas de um determinado homem, réplicas das verdadeiras esposas, muitas vezes com o conhecimento das mesmas, a quem era montada casa e de quem tinham filhos. Já há indicações desta situação nas devassas das visitações, nomeadamente a que foi feita à freguesia de Santa Maria Maior, em 1813 (ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, Devassa…, 1813). Qualquer destas situações era suscetível de ser alterada e, se a mulher recaísse na prostituição, seria reinscrita, coercivamente, sem mais formalidades. Um outro aspeto destas regras diz respeito às casas de tolerância, divididas, por lei, em três: casas sob a direção de uma dona da casa; casas em que as toleradas viviam em comum; casas de passe, onde as toleradas iam exercer a prostituição. Essas casas podiam ser sujeitas a inspeções frequentes, de forma a verificar as condições higiénicas, “a mobília e os utensílios indispensáveis ao bom regime e asseio” (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art. 22.º). Nessas casas, estava proibida a venda de bebidas alcoólicas. Entre 1888 e 1937, há registo, nos livros da Polícia, de 56 casas toleradas, com alvará, com o número de meretrizes que as dão como residência, fora outras casas, de menor dimensão, que têm o nome da dona da casa. Note-se que as casas mais importantes tinham nomes, sendo assim identificadas nos livros de registo: Casa da Varanda, Casa dos Envergonhados, Casa Nova, Casa Americana, Casa Encarnada, Palácio de Cristal, Casa do Cevada (ABM, Polícia de Segurança Pública, Registo de Alvarás de Casas Toleradas, liv. 47). As infrações eram punidas com multas pecuniárias que iam desde 10$00 a 100$00, podendo mesmo ir até à cassação das licenças e dos alvarás de funcionamento das casas. Para as casas de tolerância abertas sem as respetivas licenças, a multa ascendia aos 300$00. As casas eram dirigidas por uma governante que, em muitos casos, ia mudando de casa, o mesmo acontecendo com a maioria das mulheres que, geralmente, não permaneciam muitos meses no mesmo lugar. As “donas de casa”, ou “diretoras”, como aparece nos processos do tribunal, tinham a obrigação de zelar pela segurança das “suas toleradas”, não podendo explorá-las com empréstimos de dinheiro a juros ou com contratos que, de algum modo, as prejudicassem; não permitindo o acesso a “estranhas” ao serviço da casa ou de indivíduos alcoolizados; e visavam ainda o respeito pelos restantes habitantes da rua. Por isso, ficavam obrigadas a não consentir em jogos, danças, canto, toques de qualquer instrumento ou qualquer divertimento suscetível de produzir ruído, a não permitir o acesso a menores de 18 anos, de ambos os sexos, sob qualquer pretexto. Um dado interessante é relativo ao facto de ter de ser comunicada à polícia a tomada de criadas da parte das “donas” das casas: estas tinham de estar devidamente identificadas e não podiam ter menos de 45 anos de idade (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art. 61.º). O estabelecimento dos preços era, também, objeto de regulação, quer por parte do aluguer dos quartos das toleradas, quer dos serviços prestados, havendo, para o efeito, “em cada quarto uma tabela bem visível com os preços por visita ou dormida, sobre os quais não poderá ser exigida maior importância” (Ibid., art. 35.º). Todas as toleradas eram sujeitas a inspeções médicas. Uma ficha com fotografia ficava arquivada no dispensário, em dia, sendo nelas anotadas as informações relativas à saúde destas mulheres: baixas ao hospital, tratamentos, análises, etc. Eram obrigatórias e gratuitas, ficando apenas dispensadas as toleradas grávidas de sete ou mais meses, as convalescentes de doenças não contagiosas, as criadas e as donas das casas de tolerância que já tivessem completado 45 anos de idade. Podiam, ainda, ser solicitadas inspeções ao domicílio, custando, em 1944, 50$00 por cada mês de visitas, e 5$00 por cada visita do médico a casa, em caso de doença. Há informação de um dispensário ou posto médico, situado na R. Júlio da Silva Carvalho, que, no mesmo documento – um processo do Tribunal Judicial do Funchal (n.º 638/1935) –, aparece localizado na R. do Carmo. De referir que uma das testemunhas deste processo de agressão de uma tolerada, “pensionista do chamado Palácio de Cristal, à Rua dos Medinas”, a uma outra, tolerada também, era um criado do posto médico onde se deu a agressão, “por ocasião da Inspeção Sanitária feita semanalmente às meretrizes” (Tribunal Judicial do Funchal, proc. n.º 638/1935). Do registo policial, percebemos que a algumas meretrizes era concedida a possibilidade de serem revistadas no seu domicílio, pagando, para isso, 11$25, em selos constantes da respetiva folha. Quando grávidas, ficavam isentas de “revista” e os filhos eram entregues à ama geral dos expostos, que os dava a criar, conforme deliberação da Câmara; e.g., em sessão de 2 de julho de 1896, a filha da meretriz Maria Lasly, nascida a 23 de junho de 1896, “foi dada a uma ama para criação”, sendo este apenas um dos casos referidos (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, n.º 1385). Uma multa de valor semelhante, acrescida de pena de prisão, acontecia quando qualquer mulher “não prostituída” ia para uma casa de tolerância “com falsas promessas de ser empregada noutro mister”. Nestes casos, a mulher era enviada à terra da sua origem e quem a recebera ou, de alguma maneira, tivesse sido responsável por tal facto, pagaria as despesas, a multa e a pena de prisão estabelecida pelo Código Penal, sendo, para esse fim, remetida ao juiz competente. O mesmo acontecia a qualquer indivíduo que procurasse lançar “no caminho da prostituição, qualquer mulher por coisas independentes da sua vontade, ou ainda por outra circunstância” (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art.º 61.º). Estas multas eram enviadas ao Governo Civil do Distrito. Por outro lado, os indivíduos – homens ou mulheres – que auferiam lucros da prostituição eram julgados como vadios e entregues ao Governo. As casas de prostituição estariam concentradas na zona urbana – no Funchal, portanto. Por outro lado, os números oficiais das prostitutas registadas não representariam a totalidade do conjunto. Um estudo da época apresentou uma estimativa de 5276 prostitutas e 485 casas situadas sobretudo em Lisboa, no Porto, em Coimbra e em Évora. No caso da Madeira, e tendo apenas os dados constantes da Matrícula das Meretrizes da Polícia de Segurança Pública, sabemos que, entre 1914 e 1931, foram matriculadas cerca de 760 mulheres, provenientes de várias freguesias da ilha da Madeira, mas sobretudo de Portugal continental, faltando, assim, livros respeitantes aos outros anos, não nos permitindo uma contabilização mais apurada. No dito regulamento, há algumas ruas indicadas como “lugares exclusivamente habitados por toleradas”: R. dos Medinas – quase todas as casas –, Trav. da Malta, R. do Monteiro, Trav. João d’Oliveira, R. do Ribeirinho de Baixo, R. do Anadia, R. da Figueira Preta, tendo, de acordo com estudo de Abel Marques Caldeira, algumas dessas artérias desaparecido, por efeito da urbanização (CALDEIRA, 1964, 35). As casas toleradas detinham um alvará, havendo delas registo em alguns livros da Polícia. Dos dados disponíveis, registamos, entre 1918 e 1936, 226 licenças para casas toleradas. Em pleno Estado Novo, houve, então, a necessidade de ordenar, sistematizar e funcionalizar uma atividade com que era necessário conviver, pelo que regressou, ao menos em termos oficiais, o discurso moralista e higienista de Oitocentos. Por outro lado, os pagamentos de licenças, multas e inspeções sanitárias eram mais uma contribuição para o erário público. Isto depois de, nos anos 20, alguns sectores político-sociais se erguerem contra aquilo que consideravam ser a dissolução dos costumes, associando o jogo, a prostituição e o crime. Em 1949, uma lei sobre a propagação das doenças infetocontagiosas (lei n.º 2036, de 9 de agosto) veio impor restrições à prostituição, fechando as casas que podiam ser um perigo para saúde pública e proibindo a abertura de novas casas de prostituição, o que apenas veio contribuir para o aumento da prostituição clandestina. Até 1963, a prostituição era, deste modo, regulamentada, e incluía consultas e exames médicos às prostitutas. Foi a lei n.º 44.579, de 19 de setembro de 1962, que tornou ilegal a prostituição a partir de 1 de janeiro, tendo sido encerrados os bordéis e outros lugares similares. No entanto, a lei teve pouco efeito prático e, no novo Código Penal de 1983, foi parcialmente alterada. O art. 6.º do dec.-lei n.º 400/82, de 29 de agosto, que revogou o art. 1.º do dec.-lei n.º 44.580, fez desaparecer a criminalização das prostitutas. De acordo com a revisão de 2005 da legislação europeia, Portugal foi considerado abolicionista, no sentido em que não apresenta proibição ou regulamentação nesta área, quer para a atividade particular quer para a pública, apesar de existirem restrições alfandegárias controladas pela Polícia: há zonas onde a atividade não pode ser exercida e restrições relativamente aos locais onde a prostituição pode ocorrer, não podendo nenhuma casa ser arrendada para negócio de prostituição, incorrendo os seus proprietários no crime de lenocínio (art. 169.º do Código Penal). A prostituição individual feminina (a masculina só foi reconhecida muito mais tarde) era permitida, apesar de se proibir a sua exploração. Era possível acusar as prostitutas de ofensas à moral e à decência públicas, o que raramente acontecia, e o cumprimento da lei estava na mão das autoridades locais. Geralmente em Portugal, tal como noutros países onde a atividade sexual das mulheres antes do casamento não era bem vista, sobretudo antes dos anos 70, era prática comum os rapazes, muitas vezes acompanhados pelo pai, iniciarem a sua vida sexual com uma prostituta, “evitando que os jovens rapazes caíssem em fantasias e experiências homossexuais entendidas como perversas, viciosas e doentias”, como explicou Isabel Freire (FREIRE, 2013, 57). Nos anos 60, um caso veio abalar a sociedade madeirense. O “caso Sandra”, ainda no resguardo da lei, ficou conhecido como o “ballet rose” do Funchal, envolvendo, segundo testemunhos de indivíduos ligados ao Tribunal Judicial do Funchal, gente da alta sociedade funchalense. Depois de 1974, com a liberalização dos costumes, encontramos referências a prostituição em algumas ruas do Funchal, nomeadamente em prédios abandonados e devolutos: é o caso de uma denúncia na última página do Diário de Notícias do dia 5 de outubro, sob o título “Rua do Sabão: prostituição ao ar livre!”. O que esta notícia nos traz de novo é o facto de (d)escrever o modo de angariar os clientes: “Frente à desembocadura da Rua dos Murças, no esqueleto dum prédio incendiado e seus anexos (sem tapume) recebem os seus clientes, angariados normalmente por menores (rapazitos a quem oferecem uma comissão sobre a receita angariada)”. Por outro lado, descreve a falta de condições e higiene verificada “nos covis imundos de lixo desse prédio derrubado, onde fazem ‘o leito do amor’ com palha e cartões de caixas que antes embalaram mercadorias que não o seu corpo”. Em 1995, 1998 e 2001, a lei foi alterada, de forma a abranger a prostituição infantil e o tráfico humano. O mês de março de 1998 traz a lume uma série de informações sobre pedofilia na Madeira: estudos, denúncias, ligações a redes pedófilas estrangeiras; questões sociais; envolvimentos de personalidades da Ilha. Por entre as páginas de jornais, alguns relatos permitem localizar em Câmara de Lobos a origem de grande parte das crianças que se prostituem no Funchal, muitas com idade inferior a 12 anos e com conhecimento dos pais. As causas apresentadas ligam-se, sobretudo, a fatores de ordem socioeconómica: famílias numerosas, má gestão do orçamento familiar, consumismo excessivo, falta de valores. Dos locais assinalados para a prática ou o aliciamento dos jovens, destacam-se: o Funchal, algumas artérias e jardins da cidade, Câmara de Lobos, o bairro da Nogueira, na Camacha, e o Caniçal. Encontraram-se referências a boîtes ou casas de alterne, que o tempo foi fechando: o Fugitivo, o Campolide, o Royal, o Mambo, o Executive Club. Explica Lília Bernardes, num artigo sobre as noites da Madeira, que a realidade da prostituição tem novos contornos: “Faz-se em apartamentos com contactos por telemóvel. Mas a rede está montada” (BERNARDES, DN, 19 ago. 2009). Faz-se com madeirenses e com gente do mundo inteiro. A atividade é, ainda, exercida em diversos lugares da cidade: em determinadas ruas e praças, em casas de massagens e bares, em discotecas, residenciais e pensões que, de forma mais ou menos discreta, servem de bordéis. Em 2013, a resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira n.º 24/2013/M (publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, 1.ª sér., n.º 176, de 17 de dezembro de 2013) vem deliberar sobre a prostituição e a abolição da escravatura do séc. XXI, no seguimento do 63.º aniversário da Convenção das Nações Unidas para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração de Outrem (1949). Num dos considerandos, afirma-se com clareza que “em Portugal, e, em especial, na Região Autónoma da Madeira, a prostituição é um fenómeno de dimensão nacional e transnacional que vitimiza, por forma dramática, muitas mulheres e crianças, havendo múltiplas redes de tráfico atuando no território nacional”. Sendo manifestamente reconhecido que as principais causas da prostituição são a pobreza e a discriminação social das mulheres e das crianças, mais vulneráveis, deliberou-se a tomada de medidas de apoio às prostitutas e às vítimas de tráfico para efeitos de exploração sexual, nomeadamente linhas de atendimento, criação de redes de apoio e abrigo, adoção de estratégias de integração social das vítimas de prostituição.   Graça Alves (atualizado a 15.02.2018)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

gabinetes de leitura

Cidade aberta à presença de estrangeiros, nomeadamente Ingleses, o Funchal do séc. XIX nem sempre respondia às solicitações culturais de quem visitava a cidade. O madeirense era pouco letrado e os estrangeiros queixavam-se do facto de não haver livrarias na cidade. Referiam-se, porém, à existência de gabinetes de leitura, lugares onde podiam conviver, ler jornais e revistas ingleses, em clubes onde pagavam quotas. Estes gabinetes eram, então, de acesso privado. Alguns dos estrangeiros que falam da ilha da Madeira referem-se-lhes. Em 1840, Fitch Taylor regista a sua existência no relato que faz da sua viagem à volta do mundo. O mesmo acontece no texto A Winter in Madeira, de 1850. Estes gabinetes revelam-se uma necessidade dos Ingleses e são referenciados nos guias de viagem. O Clube Inglês disponibilizava aos seus membros, para além dos jornais e das revistas, livros de tipologia diversa – desde ensaios e trabalhos científicos até “literatura ligeira da época” (DIX, 1850, 90). Nos começos do séc. XIX, a biblioteca deste clube detinha cerca de 2000 títulos – afirma-o um guia para viajantes e para “inválidos”. Este Clube Inglês, fundado em 1832, também conhecido como “english rooms”, situava-se na R. da Alfândega, entre as duas entradas do Blandy Brothers (Banqueiros Lda.), segundo consta do guia para o visitante assinado por Gordon Brown, o que evidencia a clara importância que esta estrutura teria para suprir as necessidades dos visitantes. Mediante uma quota semestral de 15 dólares, os estrangeiros poderiam conviver, jogar cartas ou bilhar, assim como consultar os mais recentes jornais, periódicos e livros ingleses. O gabinete de leitura do Clube Português não tinha livros, mas apenas jornais e revistas, em português. Não obstante verificar-se um maior interesse e uma maior divulgação dos gabinetes de leitura que servem os turistas que descobrem a Ilha, a verdade é que há referências a associações mais abrangentes, onde a preocupação com a leitura começa a fazer-se sentir. Numa nota a “Instrução pública”, relativa ao período monárquico-liberal, Álvaro Rodrigues de Azevedo remete para dois clubes recreativos, criados por associações particulares, com gabinetes de leitura: o União, criado a 10 de março de 1836, na Pr. da Constituição; e o Funchalense, estabelecido “ao Carmo, mas desde muitos anos também, no palácio da rua do Peru”. Este autor, nas notas que apõe a Saudades da Terra, faz menção de outro gabinete, inserido na Associação Comercial, que se situava à entrada da cidade, assim como “o princípio de uma biblioteca no Grémio Recreativo dos Artistas” (FRUTUOSO, 1873, 804-805). Na realidade, os estatutos de 1836 da Associação Comercial do Funchal já permitiam o acesso a periódicos, mapas, folhetos, livros e notícias, abrindo caminho para a instalação de um gabinete de leitura que, tal como o seu congénere do Clube Inglês, funcionava como um centro de encontro e convívio entre os sócios e os visitantes. No inventário de 1884 desta Associação consta a existência do mobiliário do gabinete de leitura, não havendo referência a qualquer armário, móvel ou estante para arrumação de livros e jornais, que estariam guardados fora do alcance dos utilizadores, na sala de sessões. Em 1897, é aprovado o projeto de regulamento da biblioteca e do gabinete de leitura desta Associação, clarificando as funções de cada um: o gabinete de leitura teria apenas o catálogo das obras existentes na biblioteca, e jornais, que um amanuense distribuía e recolhia diariamente e que eram facultados, mediante bilhetes de requisição, quer a sócios da Associação, quer a assinantes do gabinete. Nesse espaço, não era permitido fazer barulho, fumar, “levar para fora […], extraviar, mutilar ou danificar os jornais ali expostos” (MELLO e CARITA, 2002, 164), cabendo ao diretor da biblioteca zelar pelo bom funcionamento do gabinete. O gabinete, cujo horário era das 06.00 h às 21.00 h, permanecia aberto até mais tarde nos dias da chegada dos navios de Lisboa e dos paquetes ingleses que traziam notícias do mundo. Não temos conhecimento se as outras Associações que, entretanto, se formaram na cidade do Funchal teriam serviço semelhante. Na realidade, os gabinetes de leitura abriam as portas para a criação das bibliotecas públicas. No Funchal, à semelhança do que acontecia em outras cidades – sobretudo nas capitais dos distritos –, a Câmara fundou uma biblioteca pública, no dia 12 de janeiro de 1838, com um acervo constituído pelos 193 volumes da Encyclopedia Methodica, comprada aos herdeiros do conde de Canavial, e, em 1844, o município do Funchal solicita alguns livros do depósito das bibliotecas dos conventos extintos, tendo recebido, em 1863, 3060 volumes, em latim, português, francês, italiano e inglês. Um relatório americano dá conta dessa Biblioteca Municipal, em 1893. No começo do séc. XXI, as bibliotecas públicas oferecem serviços similares, agora gratuitos, apesar da necessidade de aquisição de um cartão de leitor/utilizador, que permite o acesso aos espaços das bibliotecas e dos centros de documentação, bem como à leitura, empréstimo e reserva de obras, à utilização de computadores e acesso à Internet, à visualização de conteúdos audiovisuais, entre outros serviços.     Graça Alves (atualizado a 01.02.2017)

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