pronunciamento militar na madeira
Os problemas económicos de Portugal foram uma constante ao longo da sua história. A Madeira foi, desde o seu povoamento até 1470, excedentária na produção de trigo; a partir de então foi sempre carenciada, assistindo a uma sucessão de intermitências no abastecimento e fomes cíclicas. Tal ficou a dever-se, em parte, à opção pela produção açucareira. Nos finais do séc. XIX, surgiram tendências monopolistas, que persistiram e se tornaram a matriz da economia madeirense durante as primeiras sete décadas do século XX. O descontentamento manifestou-se com a “questão sacarina”, agravou-se nas décs. de 1920 e seguinte, abrangendo outros sectores fundamentais como o moageiro e os laticínios, mas foi na bancarrota das casas bancárias funchalenses que se deram as situações mais graves. A denominada Revolta da Farinha, que teve lugar na Madeira entre 4 e 9 de fevereiro de 1931, foi uma revolta espontânea de cariz popular contra o decreto n.º 19.273, de 29 jan. 1931, o chamado “decreto da fome”, que restringia a importação do trigo a três moageiros, fazendo aumentar o preço do trigo importado. Na sequência deste protesto, os militares exilados no Funchal convenceram o gen. Sousa Dias (o mais graduado) a liderar o movimento que fora iniciado a 4 de abril desse ano com a tomada do Palácio de São Lourenço. Cerca de 2000 efetivos dos aquartelamentos do Funchal aderiram ao movimento, resistindo até à rendição, a 2 de maio seguinte, principalmente por inferioridade numérica e de qualidade de armamento. Trata-se, portanto, de duas ações com origem e motivações distintas, ligadas entre si pelo facto de os chefes do movimento militar terem aproveitado a revolta popular para mobilizar uma parte significativa dos praças madeirenses no ativo, contando simultaneamente com o apoio da população. O que se passou em 1931 está quase sempre envolto em confusa e fantasiosa interpretação, gerada fundamentalmente pela memória popular. O trabalho dos historiadores consistiu em complementar a oralidade recorrendo à imprensa e à documentação coeva. Maria Elisa Brasão e Maria Manuela Abreu observam, nos prefácios às duas edições do seu A Revolta da Madeira – 1931, que se tratou de “um dos acontecimentos notáveis da nossa História, até há bem pouco tempo credor de atenções reduzidas por parte dos nossos historiadores, mas largamente utilizado, sem a fundamentação devida, como bandeira de algumas correntes de opinião” (BRAZÃO e ABREU, 1994, 6); e também que é sua intenção repor a verdade histórica “deste movimento de oposição à Ditadura instalada em Portugal, que teve como cenário principal a ilha da Madeira” (BRAZÃO e ABREU, 2008, 15). Por sua vez, em A Revolta da Madeira, alimentando a tradição oral, João Soares explana sucintamente o desenvolvimento de duas manifestações populares que tiveram lugar na Madeira do séc. XIX, que distingue do que aconteceu na década de 1930. “A Revolta da Farinha, em 1931, e a Revolta do Leite, em 1936, são manifestações contra o regime de Salazar e só ocorrem na Madeira. […] A Revolta da Farinha […] não é propriamente a causa da revolta da Madeira de 1931 [ou seja, o Pronunciamento Militar da Madeira], mas surge como representando uma fase introdutória deste movimento” (MARQUES DA SILVA, 2014, 45). Nesta perspetiva, “esta foi, aliás, entre todas as revoltas contra a ditadura a que teve mais impacto nacional e internacional. […] A sua proximidade com a da farinha, de 6 de fevereiro do mesmo ano, é geradora de confusões. Na verdade estamos perante dois acontecimentos distintos. Em fevereiro, ocorreu a revolta popular e espontânea dos madeirenses contra o decreto regulamentador do sistema de moagens que […] pretendia estabelecer o monopólio no sector” (VIEIRA, 2001, 357). Por outro lado, logo no dia 4 de abril, Manuel Gregório Pestana Júnior falou largamente aos madeirenses, no Palácio de São Lourenço, sobre os objetivos do pronunciamento militar, gerando o primeiro título de jornal sobre este acontecimento: “No Funchal – Pronunciamento Militar” (DN, Funchal, 5 abr. 1931, 1). Noutro discurso, largamente transcrito, o preletor, Com. Sebastião da Costa, esclareceu os objetivos do pronunciamento militar e argumentou com a vivência democrática e republicana dos seus líderes, observando que o Gen. Sousa Dias e as pessoas que os acompanhavam “são mais, o mais sinceramente, contrárias ao regresso a uma vida política da República semelhante àquela que é costume representar pela palavra políticos, e que incarna nos homens que dirigiam os destinos da nação à data de 28 de Maio” (DNM, 8 abr. 1931, 3). Esta ideia – de que o movimento se baseava na legalidade democrática e desmascarava a impostura do golpe de 28 de Maio de 1926 – é propagandeada nos comunicados distribuídos à população e nos que saíram na imprensa funchalense. A perspetiva pode mesmo alargar-se, pois este movimento local, ou até insular, envolveria, segundo alguns historiadores, “os políticos radicais de Portugal, de Espanha, da França e da Itália, tendo relações com os socialistas e anarquistas desses países e com os bolchevistas de Moscovo, planearam transformações especiais na Ibéria” (BRAZÃO e ABREU, 2008, 71). No entanto, à parte as iniciativas militares que eclodiram em duas ilhas açorianas e na Guiné – nesta de pouca expressão ou efeito –, a planificação falhou no conjunto nacional. Houve mesmo um pormenor, importante para as expetativas dos elementos da Junta Revolucionária da Madeira, que falhou: a receção de um lote de armas mais modernas que as utilizadas por eles, que não embarcou no vapor Pero de Alenquer, da Companhia dos Carregadores Açoreanos, como estava previsto. Voltando à denominada Revolução da Farinha, recorde-se que se trata de um movimento espontâneo e de cariz popular. Nesse contexto, a sequência dos factos e da legislação aprovada permite aventar que as medidas tomadas não foram obra do acaso. Com efeito, o dec. n.º 18.325, publicado a 14 de maio de 1930, estabeleceu “o direito a cobrar pelo trigo e pela farinha importados pelo distrito da Horta, referente ao atual ano cerealífero” e teve repercussões na Madeira. Nesta perspetiva, uma proeminente figura política opinou que “ambos os regimes são absurdos, porque protegem o trabalho da farinação no estrangeiro. Mas o segundo ainda é mais que o primeiro […] continuar o absurdo da importação das farinhas, é evidente que pelo menos o regime fiscal da Horta e do Funchal devem ser idênticos, lucrando o tesouro alguns milhares de contos” (SOUSA, 1989, 213). Na sequência do referido absurdo de importação das farinhas, foi publicado o dec. n.º 19.273, de 22 jan. 1931, com o argumento de que no Funchal as fábricas de capitais nacionais estavam bem apetrechadas e para “que o Estado e o consumidor não continuem a ser prejudicados nos seus justos interesses”; o decreto foi publicado “para valer como lei, o seguinte: Art. 1.º É livre a importação de trigo no distrito do Funchal. § único. O direito que deve ser pago pelo trigo a importar no corrente ano cerealífero é fixado em $25 por quilograma. Art. 2.º Não é permitida a importação de farinhas exóticas no distrito do Funchal enquanto a indústria nacional as possa fornecer de seu fabrico ao preço e nas condições do presente decreto. A farinha nacional importada no distrito do Funchal pagará o direito de $21 por quilograma”. Este decreto fez aumentar em dois centavos ao preço praticado na cidade da Horta, o que exaltou ainda mais os ânimos, provocando um movimento de solidariedade que envolveu organizações, associações e responsáveis políticos, que reagiram uniformemente no sentido de pedir a revogação do mesmo, porque lesava a economia local e os madeirenses. Com este propósito, a imprensa local publicou uma pequena notícia de discordância da situação criada pelo decreto, porque “há ainda a considerar que estas medidas são publicadas precisamente num momento em que se acentua a baixa do preço do trigo e das farinhas, o que evidentemente daria lugar, em breve, a uma sensível descida no preço do pão, diminuindo, portanto, as terríveis dificuldades com que luta toda a população da Madeira” (O Jornal, 29 jan. 1931, 1). O Gov. José Maria de Freitas prometera a sua intervenção junto do Governo de Lisboa, mas a publicação do referido decreto fez com que a população considerasse que nada fizera. Em consequência deste desinteresse e da indignação popular, foi convocada uma greve para o dia 4 de fevereiro de 1931. Temendo a reação popular, a gerência da Companhia Insular de Moinhos, Limitada anunciou por comunicado que “não pode ser responsabilizada – com ele [o dec. n.º 19.273] não concordando – no que se refere á proibição de importação de farinhas exóticas, montagem de novas moagens, proibição de montagem de novas padarias” (DNM, 4 fev. 1931, 2). A despeito deste anúncio, as instalações desta companhia foram danificadas a 6 de fevereiro de 1931 e, nesse dia, os estivadores do porto do Funchal deram início à greve anunciada. Simultaneamente, houve manifestações de desagrado na cidade até o dia 9 de fevereiro desse ano, que provocaram cinco mortos e vários feridos. O controlo desta situação escapou às autoridades, dado que a polícia não foi capaz de manter a ordem sem a ajuda do exército, tendo alguns militares confraternizado com a população revoltada. Para tentar repor a ordem, saiu de Lisboa a Companhia de Caçadores n.º 5, comandada pelo Cor. Silva Leal, que, como delegado especial do Governo, levava com poderes discricionários. Em reação a esta decisão, um grupo de oficiais colocados em serviço nos aquartelamentos do Funchal e alguns deportados decidiram levar a cabo um Pronunciamento Militar. Da Junta Revolucionária faziam parte o cap. Carlos Vilhena (madeirense), o Ten. Ferreira Camões, o Alf. Hasse Ferreira, o Cor. Fernando Freiria, o Gen. Sousa Dias, o Maj. Bragança Parreira, o Cor. Mendes dos Reis, o Cap. Filipe de Sousa, o Cap. Augusto Casimiro e o Com. Sebastião Costa. No dia 4 de abril de 1931, resolveram entregar o comando militar ao Gen. Sousa Dias que, por sua vez, nomeou chefe de Estado-Maior o cor. Fernando Freiria, entregando ao Cor. Mendes dos Reis o comando das forças militares da Madeira. O Ten. Camões era o delegado dos oficiais da guarnição que fizeram o movimento junto do comando militar. No dia seguinte, o Maj. Carlos Bragança Parreira, em nome do comandante militar das forças, intimou todos os militares residentes na Madeira a apresentarem-se naquele comando até às 15.00 h do dia 6 de abril. No dia 6 de Abril, o gabinete civil do Comando Militar da Madeira requisitou as oficinas e as instalações de O Jornal, “sem direito a qualquer indemnização, a fim de ser nelas redigido e composto um jornal republicano”. No dia seguinte, o cônsul dos EUA no Funchal ofereceu “os seus serviços como medianeiro para o caso de prováveis lutas” (SOARES, 1979, 61). Depois de impor quatro condições, acreditando na mediação neutral do cônsul, o general Sousa Dias aceitou a proposta, “com o fim de poupar a vida e as propriedades dos estrangeiros e nacionais residentes na Madeira” (Id., Ibid., 62). No dia 8 de abril de 1931, o Cor. Fernando Freiria informou a população, através de comunicado que havia fundeado na baía do Funchal, pelas 10.40 h, o cruzador inglês London. O objetivo deste comunicado foi serenar a população madeirense sobre “as nobres intenções que determinaram o Governo inglês, segundo o costume internacional, a enviar um vaso de guerra às águas da Madeira” (Id., Ibid.). A intenção de Inglaterra era proteger os súbditos britânicos e seus bens de qualquer emergência, ou de situações que fugissem ao controlo militar instalado da Madeira. No dia seguinte, o comando militar reagiu energicamente à notícia da Press News sobre o bloqueio da Madeira decretado pelo Governo do país com uma elucidativa nota oficiosa: “Madeira-Açores. Guarnições militares e população protestam contra qualquer caluniosa insinuação sua atitude resultar qualquer outra coisa diferente seu terminante desejo cesse imediatamente situação excepcional Ditadura sejam restabelecidas liberdades públicas suspensas evitando ao país cada vez mais graves consequências ordem política social afirmam sua inalterável dedicação Pátria, República Portuguesa declaram obedecer apenas governo que restabeleça liberdades públicas garanta lei. Porto Funchal não está bloqueado sendo visitado vapores Royal Mail. Guarnições militares e população aguardam completa serenidade efectivação bloqueio conforme ameaças governo ilegal da ditadura. Governo Madeira garante livre entrada movimento Porto Funchal, desejando assegurar relações comerciais de exportação importação todo o mundo” (Id., Ibid., 63). A 11 de abril de 1931, os sargentos – cujo desempenho fora crucial para o sucesso da ação realizada no dia 4 desse mês – iniciavam uma mensagem telegráfica da forma seguinte: “Aos sargentos portugueses no continente da República, Açores e colónias. A Hermínio Branco, director de ‘Marte’ em Coimbra: Sargentos! São os vossos camaradas do 13 de Infantaria, do Funchal, que vos falam” (Id., Ibid., 97). Em meados de abril do mesmo ano, circulavam em algumas capitais europeias notícias sobre a recusa de vários regimentos da província em obedecer às ordens das chefias. Noticiou-se também uma concentração de tropas no Barreiro e nas Caldas da Rainha e, em Lisboa, havia patrulhamentos noturnos em camiões armados. A Londres, chegou um telegrama expedido em Medina del Campo com notícias de revolta de vários regimentos de província e de diversas detenções em Lisboa, nomeadamente de Armando Cortesão. O ten.-cor. Francisco Aragão percorria as principais cidades provincianas de aeroplano, lançando manifestos de incitamento à revolta. De Madrid espalhou-se a notícia de que os rebeldes da Madeira dispunham “de 1200 homens armados dispostos a se bater até ao fim” (Id., Ibid., 63). A 15 de abril de 1931, o embaixador português em Paris enviou um telegrama ao ministro dos Negócios Estrangeiros, onde lhe comunicava a preocupação do Governo francês a propósito da abdicação do rei de Espanha que, segundo as notícias, tinha embarcado diretamente para Inglaterra; o telegrama transmitia a preocupação do Governo francês pela situação política em Espanha. Numa fotografia tirada em Paris e publicada por Le Populaire, Afonso Costa despedia-se dos ministros da Instrução e das Finanças do Governo provisório espanhol que, exilados em França, regressavam a Madrid. Estas alterações políticas em Espanha entusiasmaram os republicanos portugueses, que se sentiram irmanados num projeto comum: a República. Também de Paris chegou a notícia de que o Governo de Lisboa declarara o estado de sítio nos Açores e enviara tropas para acabar com insurreições militares no Funchal, em Ponta Delgada, em Angra e na Graciosa. Em Londres, o Daily Mail publicou uma nota da Union Castle Line que confirmava a saída do porto do Funchal do vapor Edinburgh Castle no dia 9 de abril, e que o número de passageiros registava um movimento normal para a época, o que contrariava as campanhas de propaganda contra a Madeira feitas a partir de Lisboa e de outros países europeus. Entretanto, o Governo continuou a fazer insinuações, a que o cor. Fernando Freiria respondeu alertando a opinião pública para a contra-informação emanada a partir de Lisboa que circulava em várias capitais europeias: “[…] que o movimento legalista da Madeira e dos Açores visa proclamar o independência dos arquipélagos. Até as agências informadoras estrangeiras declaram esta insinuação infundada e ridícula”. E continua: “o governo dizendo que reina a maior desordem na cidade e porto do Funchal, procura efetivar o bloqueio marítimo da Madeira e Açores, desvirtuando o movimento, atribuindo-lhe origens políticas e uma finalidade diversa das que precisamente o determinam – a qual é o restabelecimento imediato das liberdades públicas por um governo que as garanta, consultando o país e restaurando a lei. O chefe de Estado-Maior, Fernando Freiria” (Id., Ibid., 64). No dia 13 de abril de 1931, houve necessidade de alertar a população para o inevitável racionamento dos combustíveis e a redução do consumo de energia elétrica, ficando como prioritários os serviços de telégrafo e telefones e o funcionamento das panificadoras. Aos particulares seria fornecida energia elétrica entre as 19.00 e as 24.00 h. Nesse mesmo dia, pelas 09.00 h, o vapor Guiné, em serviço de vigilância afastada, informou o chefe de Estado-Maior local de que não se avistavam navios de guerra, para além da pequena canhoneira Ibo, que há cinco dias cruzava o mar entre a Madeira e o Porto Santo, passando também em frente ao Funchal. No dia seguinte, o comando geral militar da Madeira avisou os comerciantes que pretendessem subir os preços dos géneros alimentícios de que tomaria as “mais enérgicas providências contra quem quer que pense em aproveitar este momento para a realização de lucros imorais” (Id., Ibid., 65). No mesmo dia, o cônsul inglês no Funchal, J. P. Brown, colocou à disposição do gen. Sousa Dias a sua ajuda pessoal e a do comandante do navio London como mediadores com o Governo de Lisboa; este comunicou, através do embaixador britânico na capital portuguesa, que a única condição que aceitava era a rendição incondicional do comando militar da Madeira. Entre os dias 14 e 20 de abril de 1931 foram publicados no Notícias da Madeira, órgão oficioso da Junta Revolucionária da Madeira, alguns artigos de elevado amor pátrio, onde se louvavam a coragem e o espírito dos soldados, conscientes da sua missão patriótica; num deles, perguntava-se: “que há a recear, portanto? se temos um inimigo apenas, a ditadura, sem coragem para nos bater, enjaulada em Lisboa, medrosa e inerte, temendo justificadamente que, num rompante breve, os soldados da República acabem com a farsa trágica que de há cinco anos se desenvolve lutuosamente nesta bendita terra de Portugal?” (Id., Ibid., 102). Para além das questões políticas, estavam em causa situações que afetavam o quotidiano, como o “repugnante regímen cerealífero, de monopólio, contra o qual as massas populares verteram o seu sangue. Pensou neles, a par da defesa militar da Madeira, o Governo republicano – pelas pastas entregues à incontestada competência dos nossos ilustres patrícios Dr. Pestana Júnior e Eng. Frazão Sardinha” (Id., Ibid., 103). Depois de acabar com os monopólios, os já referidos membros da Junta Revolucionária da Madeira, que também se intitulavam “este governo republicano instalado no Funchal” comprometeu-se a tomar outras “medidas de extraordinário alcance”: “A Madeira, sob o governo da Constituição, encontrou eco nos seus queixumes, que é como quem diz – foi ouvido o pulsar do seu coração. Nunca mais – nunca! – este nobre povo será olhado, pelos poderes de lá ou de cá, como um triste rebanho sob o varapau de qualquer despótico pastor! Há que contar connosco, porque somos portugueses – como todos os portugueses de Portugal! ” (Id., Ibid.). Nos jornais ingleses que entretanto chegaram ao Funchal, foram publicadas notícias animadoras para o movimento militar da Madeira. Segundo um articulista, a imprensa londrina e o povo inglês acolheram com agrado as notícias, pois “Não suportam, não admitem, dentro do seu claro civismo, sistemas políticos de opressão e de terror. Para eles, é tão necessária a liberdade como as tranquilas comodidades do seu home” (Id., Ibid., 104). Como se pode verificar, era claro o objetivo dos responsáveis pelo movimento militar na Madeira: pretendiam restabelecer o Governo constitucional em Lisboa e queriam acabar com a “censura à imprensa e as deportações”. Para o sucesso do movimento era importante o apoio britânico, pois “Na Madeira, há uma grande colónia inglesa. Essa colónia, ligada à mais fecunda atividade desta ilha, pode comprovar que o Pronunciamento Militar não perturbou o aspecto da cidade. Em 4 de abril, e depois, não se praticou qualquer acto que causasse pânico ou sobressalto na população citadina. Hoje, como desde há séculos respeitamos nesta lealdade, a Aliança Inglesa. Hoje, como ontem e como sempre, o pensamento inglês não se nega a todas as ideias de liberdade” (Id., Ibid., 105). O regime procurou criar instabilidade no seio do exército português, recorrendo à distinção entre elementos puros e elementos impuros do exército, sendo os puros os fiéis ao Governo e os impuros os revoltosos: “A parte pura é em seu peregrino conceito aquela que sanciona os crimes da polícia de informação, a que aplaude a política financeira de Sinel de Cordes, a que canta, louva e elogia a sabedoria de Oliveira Salazar, a que se alegra com o espírito de delação semeado nas fileiras militares e a que expõe Portugal à chacota do estrangeiro” (Id., Ibid.). A 16 de abril de 1931, as forças expedicionárias enviadas de Lisboa contra a Madeira e os Açores chegavam à baía do Faial. No dia seguinte, um telegrama de Londres confirmava que as universidades e as escolas públicas do continente tinham sido encerradas. Constava também que havia movimentação de tropas contra o regime, pelo que tinham sido proibidas as reuniões e as manifestações em Lisboa. Entretanto, na Madeira, a canhoneira Ibo, sem combustível, fez uma tentativa para se abastecer no porto do Funchal, mas o comando militar impediu esse movimento e providenciou para que o mesmo acontecesse no Porto Santo. Nesse mesmo dia à tarde, a canhoneira Limpopo substituiu a Ibo no patrulhamento dos mares da Madeira. No dia 18 de abril, esta mesma canhoneira encontrava-se fundeada no Porto Santo, devido a uma avaria que a impossibilitava de navegar. Dos Açores chegavam à Madeira notícias contraditórias e outras não confirmadas. Foi intercetada uma mensagem do Governo de Lisboa por via rádio, com a indicação de que as autoridades tinham mandado lançar sobre as ilhas mensagens de ação psicológica. Na parte da tarde, o cruzador Vasco da Gama chegou à Horta e o comandante das forças expedicionárias preparou o desembarque. No dia seguinte, conseguiram desembarcar algumas forças na Praia da Vitória, mas a defesa da ilha concentrava-se perto de Angra e ao redor da cidade. No dia 21 de abril, o vapor Pero de Alenquer fundeou na baía do Funchal levando dos Açores alguns oficiais e civis que para lá tinham sido deportados pelo anterior delegado especial. Também levava notícias da ilha de S. Miguel, onde havia fortes núcleos de militares preparados, um deles no Forte de S. Brás, para resistir aos ataques das tropas enviadas de Lisboa, ditas expedicionárias. Uma força militar que impressionou a população funchalense após o desembarque foi o destacamento misto de Caçadores n.º 5 e Metralhadoras n.º 1, comandado pelo cap. Ferreira Camões, e cujo aprumo e disciplina militar foram apreciados. Tinham ido de Lisboa para combater ao lado das forças republicanas e legalistas da Madeira e ficaram aquartelados na R. Arcebispo D. Aires. Na Madeira, foram emitidos muitos comunicados e artigos com argumentos para a mobilização e motivações para a defesa. Como garantia, assegurava-se que as forças republicanas estavam preparadas para lutar até conseguir o seu principal objetivo: restituir a legalidade e a legitimidade, derrubando o Governo do regime. Um dos argumentos centrou-se na impiedosa cobrança de impostos, que não se destinavam a obras de fomento, mas à manutenção dum exército privativo e duma polícia numerosa, como afirmavam os revoltosos da Junta. Outra questão preocupante na altura, e também criticada, foi a chamada “negociata dos tabacos”, tida como capaz de resolver o deficit português O desfecho deste Pronunciamento Militar foi a derrota. O sucesso do desembarque das tropas leais ao Governo de Lisboa no Caniçal e o rápido avanço das tropas expedicionárias de Machico até ao Funchal resultaram da impreparação dos soldados madeirenses e do seu armamento inadequado. Foram enviados para a Madeira muitos meios navais e até aéreos (pequenos hidroplanos com metralhadoras), juntamente com um grande número de efetivos devidamente treinados, que acabaram por derrotar as tropas revoltosas a 2 de maio de 1931. José Luís Ferreira de Sousa (atualizado a 03.02.2017)
silva, henrique figueira
Apesar de haver opiniões divergentes sobre o que originou a saída do pai e dos sogros de Henrique Figueira da Silva da Madeira para Demerara, podemos comprovar, pela distância dos acontecimentos, que esta não está relacionada com a questão religiosa que preocupou os madeirenses em meados do séc. XIX. Concretamente, a saída compulsiva do reverendo presbiteriano Robert Kalley aconteceu a 9 de agosto de 1846, quando este deparou com a indignação dos madeirenses e se viu perseguido por uma horda de populares. Algum tempo depois, após aturados episódios nas imprensas local e continental, e por influência diplomática, o Governo de Lisboa viu-se obrigado a enviar para a Madeira dois políticos experientes, cuja função consistia em averiguar os acontecimentos e apurar uma conveniente indemnização. Como desfecho, o médico escocês recebeu, faseadamente, um montante de 7084$631 (sete contos, oitenta e quatro mil seiscentos e trinta e um réis), o equivalente a 1574 libras, 7 shillings e 3 pence. O Estado português iniciou o pagamento a 25 de junho de 1851 e o interessado foi totalmente ressarcido em 1853. Deste modo, só resta uma explicação para o êxodo. As famílias Figueira da Silva e Pereira partiram da Madeira rumo a Demerara à procura de melhores condições de vida, que o regime de propriedade e sistema de exploração da terra, devido à colonia, não lhes permitia. É presumível que Luiz Figueira da Silva, pai de Henrique, tivesse embarcado como passageiro clandestino, pois era prática frequente à época, sendo solteiro e já adulto, com idade compreendida entre os 26 e os 36 anos. Verifica-se, por exemplo, que a barca portuguesa Três Amigos, que saiu da baía do Funchal pelas 11.45 h do dia 22 de abril de 1865, levava a bordo “Luiz J.e [José] Figueira J.or [Júnior]”, solteiro, de 24 anos, referindo ser natural da Madeira; contudo, o facto de não constar o apelido Silva impossibilita-nos de afiançar ser este o emigrante que procurávamos. Concluiu-se pois que Luiz Figueira da Silva, filho de Francisco Figueira da Silva e de Maria de Jesus Silva, natural de Câmara de Lobos, saiu da Madeira entre 1850 e 1860. Em Demerara, Luiz Figueira da Silva casou-se com uma natural da terra, Maria Figueira, antes “Maria Olim Gonçalves Santos”, como consta do registo de batismo do filho Henrique, nascido a 8 de agosto de 1867 em Georgetown (ARM, Governo Civil, cx. 266, proc. n.º 48, passaporte). No entanto, no assento do seu óbito, Maria Figueira é identificada como “Dona Maria Isabel Figueira da Silva” (ARM, Judiciais, cx. 1978, proc. n.º 8, Inventário). Era filha legítima de João Gonçalves dos Santos e de Joaquina Rosa Gonçalves dos Santos, naturais da freguesia e concelho de Câmara de Lobos. O filho mais velho do casal, também Luiz, nasceu em Georgetown, a 12 de março de 1862, conforme o registo do Vicariatu Apostolice Guianae Britanicae, assinado pelo padre que o batizou (ARM, Governo Civil, cx. 26, proc. n.º 83, passaporte). Certo é que Luiz Figueira da Silva partiu de Demerara a 15 de abril de 1869 e chegou ao Funchal a 21 de maio seguinte, na barca inglesa E. W Cohoon, que teve a visita sanitária pelas 12 h daquele dia, depois de fundear na baía do Funchal. Da lista de passageiros constam Luiz Figueira, de 45 anos, Maria, a mulher, de 24, e os filhos Luiz, 6, Guilhermina, 4, Henrique, 2, e Matilde, de 2 meses. Assim, ficamos a saber que o filho mais novo do casal, João Damasceno, nasceu na freguesia de São Pedro, no Funchal. A 2 de janeiro de 1869, na mesma cidade, nasceu Maria Benvinda Pereira, cujos pais haviam saído da capital madeirense em meados de 1866. Na verdade, João Anselmo Pereira e Maria Joaquina Pereira partiram para Demerara no patacho inglês Annie Vail, que zarpou da baía do Funchal pelas 11.45 h do dia 12 de julho de 1866. Do registo n.º 34 do Livro de Saídas da Administração do Concelho do Funchal, constam os nomes de João Pereira, de 29 anos, e, na linha seguinte, de Maria Joaquina Pereira, sua mulher, de 25 anos. Não se conhece a atividade que aquele lá desenvolveu, mas só poderia ter sido no comércio, uma vez que sabia escrever, ou na agricultura. João Anselmo Pereira voltou a Demerara a 13 de março de 1874, em outubro de 1879, a 1 de julho de 1884 e a 1 de dezembro de 1889. Para todas estas viagens foram emitidos passaportes, o que não acontecera na viagem de 1866, tendo viajado em navios de vela portugueses e num vapor inglês, respetivamente o “mui veleiro e muito bem construído patacho Argonauta”, a barca portuguesa Ligeira (duas viagens) e o Nonpareil, agenciado no Funchal pela Blandy Brothers & C.º (ARM, Governo Civil, cx. 75, proc. n.º 115, passaporte). Estas quatro viagens indiciam, pela periodicidade e até nova informação, interesses ou investimentos em Demerara, cujo resultado foi a aquisição de alguns bens na Madeira e, por isso, a denominação de proprietário em documentos oficiais. Mais tarde, Henrique, o n.º 4 da catequese e já com 13 anos de idade, frequentava a capela de N.ª Sr.ª da Penha de França, o que se confirma pelo prémio de aplicação das leituras religiosas populares, em janeiro de 1881. Não é certo, mas o relacionamento das duas famílias pode ter tido origem naquela colónia inglesa ou por questões de vizinhança, uma vez que ambas viviam na R. Imperatriz Dona Amélia. O facto é que Henrique Figueira da Silva, aos 21 anos, casou-se com Maria Benvinda Pereira, de 20. A cerimónia realizou-se na “Igreja paroquial de São Pedro, Concelho e Diocese do Funchal”, a 28 de janeiro de 1889. Da certidão de casamento consta que ambos foram batizados na “Igreja Católica Apostólica de Demerara, província da Guiana Britânica” (Ibid., cx. 210, proc. n.º 36, passaporte). João Anselmo Pereira, sogro de Henrique, faleceu no dia 26 de dezembro de 1901 e deixou a duas sobrinhas de sua mulher os bens que recebera pelo falecimento de seu sogro. Assim, Isabel d’Assunção Nunes, por falecimento do testador, recebeu um oitavo de dois prédios, um à R. das Maravilhas e o outro à Calç. da Cabouqueira, onde morava com a irmã Carlota, que entretanto morrera a 5 de agosto do mesmo ano. Por esta razão, através do casamento, ao invés do inicialmente suposto, Henrique Figueira da Silva não teve acesso a património algum, pois não se encontrou inventário nem testamento, para além do já referido. A herança que recebeu pelo falecimento de sua mãe, Maria Isabel, teve de reparti-la com o pai, que ficou com a meança (metade), e o remanescente com os irmãos, Luiz, Guilhermina, Matilde e João Damasceno. De facto, aos 31 dias de outubro de 1905, faleceu, “pelas duas horas da manhã, na Idanha lugar desta freguesia de Nossa Senhora da Misericórdia da Vila de Belas, Concelho de Sintra, Dona Maria Isabel Figueira da Silva = casada com Luiz Figueira da Silva Sénior, governo de casa, de cinquenta e sete anos de idade, natural de Demerara”. O local do falecimento justificava-se por, conforme o auto de juramento do cabeça-de-casal, ser “onde se achava por motivo de doença” (ARM, Judiciais, cx. 1978, proc. n.º 8, Inventário). Na casa de saúde de Belas também estava internada a filha Matilde, que se casara com Francisco Dias Tavares. A filha mais velha, Guilhermina, casara-se com António Silvino d’Araújo e vivia na R. Imperatriz Dona Amélia, no Funchal, tal como Henrique, casado e negociante, e João Damasceno, solteiro e empregado de comércio. O irmão mais velho, Luiz Figueira da Silva Júnior, casado, residia no Funchal, à R. das Hortas, e tinha um “administrador de massa falida”, razão pela qual, no inventário por morte de seu pai, em 1915, constava “reabilitado”. A 10 de dezembro de 1904, o pai Luiz formalizou um valor de “sete contos trezentos e três mil seiscentos sessenta e cinco réis”, notarialmente e como credor, de montantes e juros até à data, que emprestara ao Júnior, entre abril de 1901 e 1904, sendo o filho ainda residente na R. das Hortas. Esse auxílio destinava-se à “loja de fazendas” sob a firma Lacerda & C.ª, na R. Direita, que entrara em insolvência (Ibid., cx. 491, proc. n.º 12, Inventário). Do inventário de 1905, na parte imobiliária, constavam três prédios urbanos na R. Imperatriz Dona Amélia, um nos Ilhéus, um à R. dos Ferreiros e outro na R. do Sabão, para além de um foro em terreno no sítio das Madalenas (Santo António) e uma campa no cemitério das Angústias. O pai Luiz, inventariante, ficou com a meança, e o co-herdeiro Henrique recebeu de outros irmãos, em “tornas”, o que dificulta o apuramento dos montantes. O certo é que consta uma verba de 2731$395 réis da “propriedade dos bens licitados com o inventariante seu pai e irmãos D. Guilhermina e João”. Verificando a numeração atribuída, estes três co-herdeiros só não tiveram direito aos prédios urbanos localizados nas ruas dos Ferreiros e do Sabão (Ibid., cx. 1978, proc. n.º 8, Inventário). Em 1898, Henrique Figueira da Silva fundou uma casa de câmbios, à R. dos Murças, que em breve passou a ser conhecida por Casa Bancária de Henrique Figueira e também denominada, pela população, Banco Henrique Figueira. De facto, oficialmente o banco não existia, pois o banqueiro, como era conhecido no primeiro quartel do séc. XX sempre dirigiu os seus diversos negócios como “empresário em nome individual” (Carta de Henrique Figueira da Silva de 12 fev. 1930, acervo da família Pontes Leça). No início do séc. XX foi também cônsul do México no Funchal. Em poucos anos, Henrique aumentou o património através de vários investimentos, principalmente pelo vencimento das hipotecas feitas para garantia dos empréstimos bancários. Outro negócio estava relacionado com a venda de penas de água (uma pena = 10 l/min). Temos o exemplo da ação judicial, em 1903, quando o casal Figueira da Silva pediu o embargo à construção de alicerces, numa extensão de 30 m, no sítio da Ribeira de São João, uma vez que estes iriam interromper o caudal de uma nascente no terreno contíguo dos suplicantes. O segundo processo, entre vários, data de 1910, o qual passou em 1914 no Tribunal da Relação de Lisboa e transitou para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido concluído a 28 de julho de 1916, nomeadamente “mantendo o acórdão em recurso e condenando a recorrente nas custas deste processo” (ARM, Judiciais, cx. 2815, proc. n.º 9). De facto, a 13 de maio de 1902, Henrique Figueira da Silva e sua mulher venderam 10 penas de água da nascente de um dos três prédios à R. Imperatriz Dona Amélia. Quando o caudal mingou, situação frequente e normal, a firma Cory’s Madeira Coaling Company Limited sentiu-se prejudicada, tendo de adquirir a terceiros, em 1906 (segundo os “recorridos” argumentam no processo), a quantidade de água suficiente para o abastecimento dos vapores que escalavam o porto do Funchal (Ibid.). Ao longo da atividade bancária, seria incomportável identificar tantas hipotecas, penhoras, arrestos, etc., nos inúmeros atos notariais que localizámos. Realce-se no entanto, e como exemplo, a compra do prédio n.º 12 ao Ministério do Exército, cujas confrontações (norte, edifício da Companhia da Luz Elétrica; leste, campo Almirante Reis; sul, praia; oeste, ribeira de João Gomes) indicam ser contíguo ao local onde se construiu uma moagem e engenho de cana sacarina, bem visível em fotos da época e imponente na marginal funchalense. Aliás, após a terraplanagem, a Câmara Municipal do Funchal (CMF), em carta dirigida à firma A. Giorgi & C.º, datada de 12 de abril de 1908, solicitava a satisfação do respetivo pagamento aos empreiteiros. Pelas dificuldades inerentes à Primeira Guerra Mundial, o edifício foi adquirido pelo maior banqueiro do Funchal, onde, a 8 de novembro de 1915, passaram a funcionar os “escritórios da casa Bancária do sr. Henrique Figueira da Silva, no rés-do-chão do elegante prédio que mandou construir na Avenida Oeste”. É o que se conclui quando, em novembro desse ano, os vereadores da CMF propõem “um voto de louvor a V. Ex.ª pelo bom gosto e verdadeira conceção artística que presidiu à construção do seu novo prédio na parte da Avenida Oeste, contribuindo assim V. Ex.ª valiosamente para aformosear aquele sítio tão central e concorrido da cidade”. Este louvor, espécie de prémio não pecuniário, ficou a dever-se à situação financeira da CMF, confirmada pelos vereadores em ata da sessão de 12 de novembro de 1915 (ARM, cota 181, liv. n.º 10, Câmara Municipal do Funchal, ata n.º 287). A 5 de agosto de 1935, este edifício foi adquirido em hasta pública pela W.m Hinton & Sons, no frenesim da Comissão Liquidatária do Banco Henrique Figueira, como veremos. É necessário realçar que “um requerimento da firma W.m Hinton & Sons, pedindo autorização para estabelecer ao longo da ribeira de Santa Luzia, no espaço compreendido entre as suas muralhas, um cabo aéreo destinado a pôr em comunicação a sua Fábrica do Torreão com a foz da mesma ribeira no Pelourinho” (DN, Funchal, 10 nov. 1908, 2). Quando, em 1915, Henrique Figueira da Silva comprou a Fábrica de São Filipe à A. Giorgi & C.ª, recorreu judicialmente para impedir a utilização do referido cabo, o que Hinton nunca lhe perdoou, mas sentiu-se compensado pela referida hasta pública. Exterior das fábricas de Henrique Figueira da Silva, Funchal (Fábrica de São Filipe) Em meados de janeiro de 1920, Henrique Figueira da Silva, na qualidade de moageiro e agente de navegação, interpôs um processo cível que originou a “ação executiva” para penhorar o navio americano City of Galveston, procedente de Buenos Aires, onde carregara “38.866 sacas de trigo” para o porto do Funchal. O vapor chegou a 4 de janeiro desse ano e duas semanas volvidas concluiu a descarga, mas verificou-se que faltavam “968 sacas”. A companhia e o comandante do navio eram os responsáveis, e Henrique Figueira da Silva, com essa ação, pretendia ser ressarcido do valor correspondente, 20.711$70 (vinte mil, setecentos e onze escudos e setenta centavos), o que aconteceu em abril de 1922. Exterior das fábricas de Henrique Figueira da Silva, Funchal (Fábrica de São Filipe). Fonte: Jornal da Europa Do seu casamento com Maria Benvinda, a avaliar pelos registos de nascimento, nasceram três filhas – Maria Albertina (08/05/1894, batizada a 13 de junho seguinte), Maria Judite (01/12/1900, batizada a 6 de janeiro seguinte) e Maria Cecília (23/08/1907, batizada a 15 de setembro seguinte) –, todas naturais da freguesia de São Pedro. No entanto, pelo registo de batismo, a filha mais velha, Belmira, nasceu a 15-03-1892, sendo batizada no dia 27 seguinte, apesar de, na notícia da morte do pai, constar o nome de Maria Ester. No entanto, será aquele o verdadeiro nome da filha mais velha, segundo o registo de batismo acima referido. Por outubro de 1921, através da Comarca do Funchal, Henrique Figueira da Silva emancipou seu filho João Anselmo, que nascera em São Pedro pelas 11 h de 21 de abril de 1903, sendo batizado a 21 de maio seguinte. À data do falecimento do pai, João Anselmo era diretor da Companhia Vinícola da Madeira. Em setembro de 1921 e outubro de 1924, Henrique Figueira da Silva, casado, banqueiro, com 54 e 57 anos, respetivamente, requereu passaportes para visitar vários países da Europa. Nos dois anos anteriores, já tinha viajado para as ilhas Canárias. Desses documentos constam traços fisionómicos com os seguintes sinais particulares: 1,72 m de altura, cabelos grisalhos, sobrancelhas castanhas, olhos azuis e nariz regular. Um acontecimento pouco conhecido foi a violenta explosão ocorrida na sua residência na madrugada de 28 de junho de 1926. Um estupendo estampido acordou em sobressalto toda a urbe. Nos jornais, os títulos eram semelhantes, expressando a gravidade da situação e o desconhecimento dos seus autores e objetivos: “Lançamento duma bomba na residência do conceituado banqueiro e industrial sr. Henrique Figueira da Silva. O alarme – Estragos importantes – Ação policial” (DN, 29 jun. 1926, 1). A população, indignada e receosa, conformou-se ao ler a notícia de que a Qt. da Penha, à R. Imperatriz Dona Amélia, “residência do sr. Henrique Figueira da Silva e sua família”, tinha “os seus quartos de dormir nos compartimentos interiores do prédio”, pelo que “se deve o não termos hoje que registar e lamentar uma verdadeira desgraça, um terrível acontecimento lutuoso” (Ibid.). Nos dias imediatos, o banqueiro foi alvo de manifestações de apoio e, doutros sectores, com reações de inveja e até de ódio, expressas em epítetos, divulgados nos jornais funchalenses, como “o maior ricaço da Madeira” e “o traça-mor” (A Batalha, 3 jul. 1926, 1). Depois de persistentes investigações, concluiu-se que estiveram diretamente envolvidos três elementos da Casa Sindical, instalada nos três andares do n.º 5 da R. Dr. Vieira (depois R. da Carreira). Tidos por anarquistas, houve mais nove implicados em atividades estranhas ao sindicalismo, que foram presos e seguiram para Lisboa. Entretanto, a casa bancária passou a denominar-se, popularmente, Banco Henrique Figueira. A sede era na Av. Arriaga, onde, depois da liquidação da casa bancária, se instalou a filial da Caixa Geral de Depósitos (CGD), que seria posteriormente uma das suas agências urbanas. Escritórios de Henrique Figueira da Silva, Funchal. Fonte: Jornal da Europa Foi como consequência dos acontecimentos da Quinta-Feira Negra na Bolsa de Wall Street, em Nova Iorque, que a banca e a economia madeirenses sofreram alguns desaires. Mas não só. Na verdade, as firmas locais estavam mal estruturadas e eram geridas de forma displicente. Exemplo disso foi o crédito, ou melhor, o pagamento de dívidas deixadas por Luiz Portugal, um amigo de João Damasceno (irmão e colaborador do banqueiro), totalmente cobertas por Henrique Figueira da Silva, julgando haver património suficiente, na verdade fictício (porque estava todo empenhado), quando aquele partiu para França, investindo fortemente em dois estabelecimentos na capital francesa. Houve situações semelhantes, embora de menor monta, mas que se presume ao lermos a correspondência privada de Henrique Figueira da Silva, a que tivemos acesso. Para agravar a situação, a inveja e os boatos aceleraram o descalabro. Nessa perspetiva, também a imprensa funchalense, em geral, publicava notícias bombásticas, e, especialmente no Re-Nhau-Nhau, apareceram as caricaturas dos moageiros e de alguns boateiros, destacando-se dois. Um deles, o principal, foi Harry Hinton, que mobilizou seis dos seus empregados para espalharem o boato pela cidade. Mas houve um corresponsável, Manuel Maria de França, que foi acompanhado por dois familiares e dois guardas cívicos para cumprir prisão domiciliária, em São Vicente, depois de ter tentado uma viagem ao Porto Santo. Mas o mal estava feito, e nem a prisão dos boateiros solucionou coisa alguma. Depois, houve os interesseiros, como Simão Correia Neves, diretor da casa bancária da firma Blandy Brothers & C.ª Ldª, e Garcia da Silva, que não se consegue relacionar com qualquer sociedade, mas que, segundo o referido periódico, era um banqueiro com interesses no Brasil, informações confirmadas na correspondência de Henrique Figueira da Silva. É curioso registar que, na imprensa funchalense, tenha aparecido quem se descartasse publicamente ameaçando com processo judicial os que insistissem nas insinuações. No entanto, politicamente, houve tratamento privilegiado, se pensarmos que, em 1929, o ministro das Finanças do Governo de Lisboa, António de Oliveira Salazar, aprovou o financiamento de 75.000.000$00 à Casa Bancária Henrique Totta, com sede na R. do Ouro, em Lisboa, e que isso evitou a corrida dos aforradores para levantamento das suas poupanças nesse banco. Não houve a mesma preocupação com os dois principais bancos da praça do Funchal, e foi óbvia a influente amizade entre Juvenal Henriques de Araújo e as duas figuras gradas do regime português em ascensão, Oliveira Salazar e o futuro cardeal Cerejeira. Na verdade, a informação que chegou ao então ministro das Finanças não foi abonatória e baseou-se em simples e peculiar modus vivendi da sociedade insular, a citada inveja e a divisão sectária. Por isso, a maioria dos madeirenses foi apanhada de surpresa quando, no dia 21 de novembro de 1930, o Diário da Madeira publicou um grande título de primeira página, “A Situação do Comércio da Madeira”, e uma “Nota Oficiosa” do governador civil referia que “Por dificuldades do momento, a Casa Bancária Henrique Figueira da Silva foi forçada a suspender as suas operações até que o Governo nomeie Delegado Especial para resolver a sua situação de crise, certamente transitória, como todas as razões o fazem crer. Estão sendo, entretanto, tomadas providências no sentido de bem salvaguardar todos os interesses” (Diário da Madeira, 21 nov. 1930, 1). Depois, vários telegramas foram transmitidos para Lisboa, entre outros, pelos presidentes da CMF e da Junta Geral do Distrito do Funchal, a Comissão Organizadora da Liga da Ação Regional e a Associação de Socorros Mútuos, que alertavam para a gravíssima situação da economia madeirense. No dia seguinte, vinha um grande título no Diário da Madeira – “O Banco de Portugal Vem em Auxílio da Nossa Praça” –, mas as medidas do ministro das Finanças, Oliveira Salazar, foram adversas, assim como o desenrolar dos acontecimentos. Na realidade, mesmo “estabelecendo imediatamente todas as facilidades”, disponibilizando “dois inspetores do Banco de Portugal” para irem até à Madeira e remetendo “grande quantidade de numerário” (Ibid.), de nada adiantou, uma vez que a falência fora oficializada por portaria do próprio ministro das Finanças. Na capital, da situação de crise latente passou-se rapidamente às notícias das falências de casas bancárias no Funchal, tendo uma delas sido confirmada pela portaria de 22 de novembro de 1930 do Ministério das Finanças, o que comprova a urgência com que o titular da pasta as fez publicar, entre elas: “Tendo a casa bancária Henrique Figueira da Silva, com sede na cidade do Funchal (Ilha da Madeira), deixado de satisfazer, desde a manhã do dia 20 do corrente, as obrigações contraídas no exercício das suas operações: manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro das Finanças, de conformidade com o artigo 61.º do decreto n.º 10:634, de 20 de março de 1925, nomear, sem encargo para o Estado, comissário do Governo junto da referida casa bancária o cidadão Eduardo Simões Dias Paquete” (Portaria do Ministério das Finanças de 22 nov. 1930, Diário do Governo, Lisboa). Nessa mesma data, o Diário da Madeira transcreveu um artigo publicado no jornal lisbonense Novidades com o argumento de que “se ajusta integralmente à atual situação da Madeira”, pois “A campanha de insinuações e boatos, que nos últimos dias tem alarmado os depositantes dos Bancos, representa, no fundo, uma exploração criminosa da credulidade pública contra a economia da nação. Os que supõem que os Bancos de verdade podem ter em caixa todo o dinheiro que lhes confiam os seus depositantes, fazem deles a ingénua ideia de simples cofres para guardar valores. Um banco forte, sério, honesto, traz em circulação a maior parte dos capitais próprios e daqueles que lhe são confiados” (Diário da Madeira, 22 nov. 1930, 1). Efetivamente, só assim se poderia gerar lucros, através do crédito concedido às empresas, para fomento da economia, sendo a única forma de criar riqueza no país. Na “Nota do Dia”, o articulista “João Mistério” tentou acalmar os ânimos, em vão, e da mesma forma o ministro das Finanças, no telegrama dirigido ao governador civil, dizendo que “bem procedeu V. Ex.ª aconselhando calma, pois o pânico agravará inutilmente a situação geral. Se o pânico for invencível, e não puderem ser realizadas as operações que facilitem a vida dos estabelecimentos, será preferível V. Ex.ª ordenar o encerramento dos Bancos por um ou dois dias com o fim de evitar maiores ruínas, Recomendei à Caixa Geral de Depósitos os casos da Associação de Socorros Mútuos e do Montepio Madeirense” (Ibid.). No entanto, e ao invés da atenção governamental para com Henrique Totta, de Lisboa, deu-se novamente a declaração de falência da Sardinha & C.ª, também, por ter “deixado de satisfazer, desde a tarde do dia 21 de novembro do ano findo, as obrigações contraídas no exercício das suas operações” (Diário da Madeira, 23 nov. 1930, 2). Portanto, isto aconteceu no dia seguinte à portaria que ditou a falência da Casa Bancária Henrique Figueira da Silva. No dia 23, na primeira de oito páginas do mesmo diário, a “Nota do Dia”, de “João Mistério”, justificava a situação por “causas diversíssimas, umas fomentadas por nós próprios e, outras, que são cá dentro o reflexo das crises de diferente natureza e que de fora indiretamente nos atingem” (Ibid.). No dia seguinte (segunda-feira), contrariando o referido despacho, a “Nota Oficiosa da Inspeção do Comércio Bancário” autorizava a abertura das duas casas bancárias funchalenses e outra do Comando da Polícia de Segurança Pública alertava que os que tentassem adquirir valores por quantias inferiores ao seu valor real seriam “rigorosamente castigados” (Ibid.). Na mesma data, numa reduzida notícia, acima do título anterior, o Diário da Madeira informava que “Encontra-se detido um capitalista desta cidade, indigitado como propalador de boatos tendenciosos contra a Casa Bancária Henrique Figueira da Silva” (Ibid.). A 3 de janeiro de 1931, foi publicada uma portaria com a nomeação do mesmo comissário do Governo, Eduardo Paquete, que estivera em funções junto da Casa Bancária Henrique Figueira da Silva, para a mesma função na falência da outra casa bancária. Na mesma data, foi publicada outra portaria com a substituição do referido comissário e surgiu o nome de Óscar Baltazar Gonçalves, que esteve no cargo até 2 de agosto de 1932, altura em que foi substituído por Carlos Gomes de Araújo. Sob a sua direção, realizou-se uma reunião de credores no dia 31 de outubro de 1931, com a presença de 50 dos 60 maiores depositantes do banco e de outros de menores montantes. Após a ordeira votação, que teve lugar na sede do Montepio Madeirense, à R. dos Murças, foi eleito António Augusto da Silva Pereira, representando créditos no montante de 1.171.486$99, valor que incluía também o seu próprio capital. A 25 de novembro de 1931, o Diário de Notícias do Funchal regozijava-se pela nomeação de Juvenal Henriques de Araújo, sócio gerente da Casa Bancária Rodrigues, Irmãos & C.ª, como representante do Banco de Portugal e da CGD na Comissão Liquidatária da Casa Bancária Henrique Figueira da Silva. A 27 do mesmo mês, pelas 15 h, tomaram posse os elementos da referida comissão: Juvenal de Araújo (presidente), Óscar Baltazar Gonçalves (comissário do Governo), António Augusto da Silva Pereira (representante dos credores) e Manuel Pedro Nolasco de Pontes Leça (genro do banqueiro e representante da casa em liquidação), todos advogados da praça funchalense. Na imprensa local, as notícias tinham acalmado, mas continuaram as iniciativas governamentais. A 2 de agosto de 1932, foi publicada a portaria que exonerava Juvenal de Araújo de presidente da Comissão Liquidatária do banco Henrique Figueira. Este cargo, porventura, não lhe era interessante por ser de exigência e dedicação extremas. Na verdade, Juvenal de Araújo fora nomeado a 21 de novembro de 1931 e pouco depois de oito meses sucedeu-lhe no cargo José Braz Alves. Este, por sua vez, tendo sido nomeado por portaria do Ministério das Finanças a 15 de janeiro de 1933, foi substituído por Fernando Martins Costa, a 2 de agosto desse ano. No entanto, após o seu pedido de demissão, foi nomeado Artur Gonçalves da Silveira, que, por motivo de doença, não aceitou. Assim, pela portaria de 29 de setembro de 1933, foi nomeado, segundo o próprio texto, para o “mesmo cargo, em comissão de serviço, o Juiz Carlos Henrique da Silva e Sousa, sem prejuízo das regalias inerentes à sua situação de magistrado, nos termos legais” (Portaria do Ministério das Finanças de 29 set. 1933, Diário do Governo, Lisboa). Será curioso registar uma avaliação de janeiro de 1933, sobre os 44 prédios rústicos e urbanos da relação de propriedades pertencentes a Henrique Figueira da Silva, num valor global de 19.557.000$00. Contudo, não foram estes os valores considerados nas arrematações, sujeitas à impiedosa Lei da Oferta e da Procura. Por ingenuidade, supostamente, o articulista de A Tribuna questionou a venda em hasta pública da Fábrica de São Filipe, pois “Não pode, evidentemente, um tão valioso organismo industrial ser vendido em obediência a um critério acanhado de mero interesse particular”. E concluiu que uma “sociedade madeirense compensará dos prejuízos sofridos, com o rodar dos tempos, os depositantes que confiaram à casa bancária de Henrique Figueira da Silva as suas economias”. Segundo a sua opinião, a Fábrica de São Filipe deveria “ser a última coisa a liquidar” (A Tribuna, 18 mar. 1933, 2). Porém, não foi assim que aconteceu, como mais adiante relataremos. Assim, por meados de dezembro de 1933, realizaram-se arrematações (intituladas na imprensa por “almoeda”), três por semana, para aquisição de ações, a 100$00, das seguradoras Aliança Madeirense e Garantia Funchalense, a 50$00 (seu valor real), ou caixas para vinho, por metade do preço, e ainda uma terceira praça de quadros de pintura. Mas a maior riqueza estava nos imóveis que durante mais de três anos estiveram a ser licitados em hasta pública. Fez-se também a distribuição de 10 % para os clientes que tinham depósitos até 5000$00. Um dos locais de pagamento foi a Fábrica de São Filipe, que fora de Henrique Figueira da Silva, feito entre as 10 h e as 15 h, em dias estipulados para os moradores nas diversas freguesias do Funchal e, noutras datas, para os residentes noutros concelhos do arquipélago. No dia 16 de dezembro de 1933, pelas 13 h, na antiga residência de Henrique Figueira da Silva, à R. Imperatriz D. Amélia, n.º 92, no Funchal, o juiz-presidente da Comissão Liquidatária, Silva e Sousa, realizou a primeira praça dos móveis, loiças, cristais, faqueiros, carpetes e vários objetos do banqueiro. Pelo exposto, só se pode concluir que os depositantes do Banco Henrique Figueira da Silva foram ressarcidos, pelo menos, parcialmente. Foi este juiz que permaneceu mais tempo no cargo, e na portaria de 16 de maio de 1935, que ditou a sua substituição, constava que o “exerceu com muito zelo e distinção” (Portaria do Ministério das Finanças de 16 mai. 1935, Diário do Governo, Lisboa). O seu substituto foi Carlos Gomes de Araújo, que se manteve no cargo até 7 de setembro do mesmo ano, sendo nomeado nessa data o diretor das Finanças do distrito do Funchal, José de Viveiros Ferreira Júnior, elemento que compareceu como primeiro outorgante no cartório do notário do Funchal. Na escritura de venda de 18 de outubro de 1935, lavrada pelo mesmo notário do Funchal e que envolveu “o banqueiro da praça do Funchal, Henrique Figueira da Silva”, consta que a “liquidação dos seus haveres patrimoniais foi ordenada pelo Decreto número vinte mil trezentos e dezasseis de dezasseis de setembro de mil novecentos trinta e um e para isso a Portaria de vinte e um de novembro do mesmo ano (publicada no Diário do Governo, segunda série, de vinte e três do mesmo mês)” (ARM, 6222, liv. 290 A, Notário do Funchal, Frederico Augusto de Freitas). Mas os últimos presidentes da Comissão Liquidatária foram determinantes, visto que concluíram dois grandes “negócios”. Na verdade, as fábricas de São Filipe, adquirida pela W.m Hinton & Sons, e Lealdade, comprada pela Companhia Insular de Moinhos, Ldª (CIM), se fossem vendidas em situação normal, e por um valor justo, teriam certamente rendido o quádruplo do seu rateio em hasta pública. Se dúvidas houvesse, bastaria verificar os nomes dos que usufruíram de tão valioso pecúlio, sendo um deles o principal boateiro, já referido. Na escritura de venda, conjunta, consta o valor de “três mil contos, sessenta e seis escudos sessenta e sete centavos” (ARM, cota 6198, liv. 266, Not. Frederico Augusto de Freitas), que foi quanto pagou a Wm. Hinton & Sons firma pela Fábrica de São Filipe, mais quatro camiões, um rebocador e outros apetrechos (um guincho, duas caldeiras a vapor, etc.). Para além destes três prédios, entre as fozes das ribeiras de João Gomes e de Santa Luzia, foi vendido outro à Levada de Santa Luzia (Consolação) e ainda um armazém no porto da Calheta. Para percebermos a importância destes prédios, o primeiro tinha seis pavimentos e confrontava, a norte, com o Lg. do Pelourinho, a sul, com o calhau do mar e, a leste, com a ribeira de João Gomes. Era uma fábrica de moagem de cana sacarina e, num dos pisos, também havia moagem de trigo e de milho. O segundo prédio servia de arsenal, confrontando, a norte e a leste, com The Madeira Electring Lighting (1909) C.º (sucessivamente CAAHM, EEM e Eletricidade da Madeira) e, a sul, com o calhau do mar, onde fora construído o denominado cais de São Filipe. O terceiro prédio confrontava, a sul, com a Fábrica de São Filipe, a leste, com o Lg. do Pelourinho e, a oeste, com a ribeira de Santa Luzia (Ibid). Na mesma escritura, os terceiros outorgantes, dois diretores da CIM, Ldª, assinaram para adquirir a fábrica Lealdade “com todas as suas máquinas e utensílios de moagem de trigo e os direitos industriais respetivos” (Ibid.). Esta fábrica, que fora de A. Giorgi & C.ª, localizava-se na R. Arcebispo D. Aires. O segundo prédio da referida escritura tinha acessos, a norte, pela Trav. da Malta e, a oeste, pelo Lg. do Pelourinho. Juntamente com estes prédios, em cláusula especial, a CIM, Ldª. adquiriu também os equipamentos de moagem de trigo da fábrica de São Filipe. Tudo por “mil e quinhentos contos, trinta e três escudos e trinta e três centavos” (Ibid.). Como curiosidade, este conjunto de prédios foi destruído por um incêndio a 22 de outubro de 1974. Para além dos Bombeiros Voluntários Madeirenses, estavam lá instaladas quatro empresas. Uma delas, a Socarma, porventura a mais importante, era importadora e armazenista de víveres. Nesta época, a proprietária deste conjunto de imóveis ainda era a firma W.m Hinton & Sons. Passados cerca de 15 anos, em julho de 1989, estes escombros foram removidos para reabilitação de espaço urbano, onde ressurgiu o antigo Lg. do Pelourinho e foi criada a Pç. da Autonomia. A 29 de julho de 1989, o Diário de Notícias do Funchal referia que a aquisição do que restava dos prédios, a limpeza da área e a construção da Pç. da Autonomia haviam custado à CMF 220 mil contos. Outra operação demorada, de montante significativo, teve desfecho a 6 de maio de 1941. Na verdade, perante o notário bacharel Frederico Augusto de Freitas foi assinado o derradeiro ato respeitante àquela falência, a “Quitação e desobrigação: Entre a Com. Liquidatária da Casa Bancária H. F. da Silva e Blandy Brºs & Compª”. Nesse cartório, perante os legítimos representantes, consumou-se um longo processo que foi acompanhado pela firma Blandy Brothers & Companhia Limitada, sendo parte interessada como financiadora, tentando minimizar as perdas numa “indemnização dos prejuízos (lucros cessantes e danos emergentes) mandada pagar nos autos da ação com processo ordinário distribuída, em dezasseis de abril de mil novecentos e trinta e quatro e a requerimento da sociedade ‘J. M. Brito & Companhia (Porto da Cruz)’” (ARM, cota 6222, liv. 290 A, Notário do Funchal, Frederico Augusto de Freitas). Esta transcrição é parte da escritura acima referida, e a verba de duzentos mil escudos foi entregue à firma Blandy Brothers & Companhia Limitada. Assim, a empresa produtora dos derivados da cana sacarina, utilizando equipamento do engenho do Porto da Cruz, que tivera, inicialmente, outra denominação e depois se chamou Companhia dos Engenhos do Norte, foi ressarcida pelo saneamento das suas dívidas, pelo acerto das contas na secção bancária da BB&C.ª, Ldª. No entanto, a Companhia dos Engenhos do Norte, em contratos de 8 de maio de 1944 e de 7 de junho de 1945, cobriu o remanescente com um empréstimo de 550 mil escudos, à taxa de 4 % ao ano, que, em caso de mora, “assim sofrerão as modificações que da lei resultem eventualmente” (Ibid.). Com estes novos contratos, a administração do engenho quitou os anteriores encargos, libertando-se das hipotecas e penhoras realizadas na déc. de 1930. Outro edifício importante que fazia parte do património do banqueiro foi alienado, a 16 de fevereiro de 1933, à CGD, onde, durante várias décadas, funcionou a filial do Funchal desta instituição do Estado português (ARM, 6187, liv. 255 A, Notário do Funchal Frederico Augusto de Freitas). Em suma, foi em meados de 1941 que a Comissão Liquidatária da Casa Bancária de Henrique Figueira da Silva concluiu a tarefa para a qual fora criada a 22 de novembro de 1930. Segundo a opinião de descendentes, ainda vivos, das duas instituições bancárias madeirenses mais lesadas pelas medidas do ministro das Finanças, o único mandatário do Governo que não usufruiu da situação foi Óscar Baltazar Gonçalves. Do mesmo modo, defendem ainda que, naquela época, teria sido importante a integração do Banco Henrique Figueira no reestruturado Banco da Madeira, que só incluiu o antigo Banco da Madeira, a casa bancária Reid, Castro & Companhia e o Banco Sardinha. O argumento para a referida integração baseava-se na implantação na praça funchalense e nos depósitos que tinha em carteira. Ainda no fervilhar dos acontecimentos, a corroborar esta ideia e realçando o carácter de Henrique Figueira da Silva, o trimensário humorístico funchalense Re-Nhau-Nhau escrevia: “Um verdadeiro homem de bem e madeirense de lei, que pela sua honradez é merecedor da confiança de todos os madeirenses. Embora houvesse uns ‘cães’ que o tentassem morder, não o puderam conseguir, porque os cães ladram à lua e a caravana passa” (Re-Nhau-Nhau, 30 nov. 1930, 1). Quando Henrique Figueira da Silva foi preso, o seu estado de saúde não lhe permitiu enfrentar tamanha adversidade e teve de ser internado no Hospital de São José, em Lisboa. Depois de sair do hospital, foi para o afago do lar da filha mais nova, Maria Cecília, na companhia da mulher. Depois, alugou uma casa no Campo Pequeno e, mais tarde, foi viver para um primeiro andar da R. da Alegria. Morreu na capital portuguesa, a 5 de abril de 1946, dizimado por um cancro na boca, em consequência de antiquado sistema de dentadura que lhe feriu um maxilar e que ele, persistentemente, procurava consertar para não gastar dinheiro que poderia fazer falta aos familiares sob a sua dependência. O Jornal, em pequena notícia do dia 8 desse mês, referia que, em 1898, Henrique Figueira da Silva tinha “fundado a sua pequena casa bancária à rua dos Murças, deu-lhe depois maior amplitude e importância, estabelecendo-a à avenida Arriaga num edifício novo de aspeto elegante que muito contribuiu para embelezar o local” (O Jornal, 8 abr. 1946, 2). O Diário de Notícias do Funchal realçou as suas qualidades de homem honrado e sério, que lhe granjearam grande prestígio no meio comercial funchalense. Segundo este periódico, Henrique Figueira da Silva pertenceu “a uma geração de individualidades que há cerca de cinquenta anos imprimiram grande desenvolvimento aos diversos sectores do comércio do Funchal e constituída por um grupo de homens de negócios que se fizeram, sobretudo, por si próprios, pelas suas qualidades de trabalho e pela posse de invejáveis predicados de ação, de carácter e de tenacidade, mercê dos quais conquistaram posição social de justo e marcado relevo”. E complementava afirmando que, “em face de um pânico infundado, teve de assistir à liquidação da sua casa bancária, conservou a maior coragem perante os acontecimentos que tão fortemente o abalaram, certo e consciente sempre da correção e probidade do seu procedimento” (DN, 7 abr. 1946, 1). Em trabalhos que vieram a público, como os de José Luís Ferreira de Sousa (2012 e 2015) e de João Abel de Freitas (2014), constam os montantes depositados no Banco de Henrique Figueira pelos aforradores madeirenses, com informação devidamente documentada. A visão destes autores é complementar, visto que a sua formação académica, em História e em Economia, respetivamente, proporciona profícuas perspetivas e análises diversificadas. José Luís Ferreira de Sousa (atualizado a 03.02.2017)
castro, henrique augusto vieira de
Henrique Augusto Vieira de Castro nasceu na freguesia de São Martinho de Cedofeita, cidade do Porto, a 24 de junho de 1869 e era filho de Luís Lopes Vieira de Castro e de Carolina Cândida Vieira de Castro. Os avós paternos, Luiz Lopes Vieira de Castro e Emília Angélica Vieira de Castro, eram naturais de Fafe e os paternos, Albino Joaquim d’Oliveira e Sousa e Anna Amália de Sá Ferraz, do Porto. Faleceu numa casa de saúde à Rua Duarte Galvão, n.º 54, na freguesia de Benfica, em Lisboa, no dia 21 de agosto de 1926. A seu pedido, e como filho adotivo da terra onde viveu largos anos, o seu corpo foi trasladado para o Funchal. Henrique Augusto Vieira de Castro foi para a Madeira como agente do Banco de Portugal em finais de 1893, indo viver para a R. das Cruzes, no Funchal. Casou-se no dia 1 de Fevereiro de 1897, aos 27 anos, com Alegria Adida (10/02/1882), de 14 anos e 10 meses de idade. A cerimónia realizou-se no Funchal, na R. das Pretas, n.º 42, na residência dos sogros, Abraham Adida, natural de Oram (África francesa), e Helena Leonor Gouvêa de Portugal da Silveira Adida, natural de Lisboa. Os avós paternos da noiva eram naturais de Gibraltar e os maternos de Lisboa. Deste casamento nasceram dois rapazes e uma rapariga. Luiz Lopes Vieira de Castro, natural de São Pedro, nasceu no dia 10/05/1898. Foi advogado, casou-se com Lydia Buzaglo, a 12/05/1924, na 4.ª Conservatória de Lisboa, e faleceu em São Sebastião da Pedreira a 07/11/1954. Seu irmão, António Manuel Lopes Vieira de Castro, nasceu em São Pedro a 25/03/1899, foi banqueiro e casou-se aos 25 anos, a 29/12/1924, com Clara Abudarham Bettencourt da Câmara. Morreu de síncope cardíaca, com febre tifoide, aos 34 anos, na sua residência ao Muro da Coelha, São Roque (Funchal), no dia 30 de Outubro de 1933. No inventário, iniciado, depois da sua morte, pela inventariante, sua mulher, são nomeados dois filhos, José Luís, de oito anos, e Isabel, com seis anos, e consta que não deixou bens. A filha, Carolina Vieira de Castro da Rocha Machado, natural de São Pedro, nasceu a 06/07/1901. Casou-se aos 16 anos, a 06/06/1918, com Luiz da Rocha Machado, banqueiro, de quem enviuvou a 21/01/1973. Residiram na freguesia do Monte, no Funchal. Note-se que tanto Henrique Augusto como os seus três filhos se casaram com pessoas oriundas de famílias ricas e influentes. Por outro lado, tal como outros empresários funchalenses da época, Henrique Vieira de Castro diversificou os seus investimentos (banqueiro, agente de navegação, diretor e/ou acionista de várias firmas do sector secundário) e procurou envolver-se em assuntos de interesse local, com o objetivo de garantir cargos para os dois filhos mais velhos, que viriam a ser, um diretor da Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal (JAOP), e o outro diretor de O Jornal. Nos requerimentos entregues por Henrique Vieira de Castro no Governo Civil do Funchal a 29/07/1920, para obtenção de passaporte, conseguimos alguns dados da sua fisionomia. Tinha 1,69 m, rosto oval, olhos azuis, nariz regular e cabelo castanho. Só na primeira viagem teve a companhia da esposa (de cabelos pretos e olhos azuis) e pretendiam visitar Madrid e Paris. Residiam na rua de João Joaquim de Freitas, no Funchal. Nos anos seguintes, fez mais duas viagens, ambas a Espanha, França e Suíça. Em 1923 e 1924, voltou a requerer passaportes com o intuito de visitar a Espanha, França, Bélgica, Inglaterra e outros portos da Europa. A atividade política de Henrique Augusto Vieira de Castro intensificou-se com a proclamação da república. Como defensor da monarquia, logo engendrou um processo que lhe permitisse combater o novo regime. Em carta dirigida ao redator principal do Diário de Notícias do Funchal, Cyriaco de B. Nóbrega, tentou mobilizar a opinião pública, aliciando aquele redator. O objetivo era divulgar o seu projeto de um Estado federal autónomo, com a criação de um partido que fosse a sentinela vigilante na defesa dos interesses da Madeira; seria um partido autonomista que, dentro das instituições vigentes, defenderia os legítimos interesses do arquipélago. Para o desenvolvimento económico da Madeira, propôs um plano, sobejamente debatido na sociedade madeirense, para a construção de uma série de infraestruturas. Algumas delas constavam nos vários estudos do eng.º Adriano Augusto Trigo, justificadas em “Breves considerações sobre as obras de que carece o porto do Funchal”, e estavam associadas à ideia do aformoseamento da cidade, com a construção da marginal e de obras de saneamento. Desse rol de propostas, destacam-se ainda as novas levadas para irrigação, o plano das estradas distritais, bem como a construção de bairros para pobres e beneficência pública, um aspeto que ele próprio ajudou a dinamizar. A terminar a carta, e para se incluir no projeto, sugeria que “a autonomia da Madeira seria um ideal pelo qual deviam lutar todos os seus filhos legítimos e adotivos” (CASTRO, DNM, 16 out. 1910, 2). O redator cumpriu o seu papel, ao considerar “que os cidadãos que se acham atualmente dirigindo os destinos desta ilha […] se esforçarão por fazer dotar a Madeira com os melhoramentos que ela mais reclama […]”. E foi mais além, ao sugerir “que devemos colaborar todos, da melhor vontade e até com sacrifício, para que a Madeira deixe duma vez de ser considerada a Irlanda Portuguesa” (NÓBREGA, DNM, 16 out. 1910, 2). A reação de “um republicano da velha guarda” não demorou muito, contrapondo que, naquele contexto, “só podem existir dois partidos em Portugal: o que defende a república e o que suspira pela monarquia”. Segundo este autor, “republicano e monárquico são duas qualidades antagónicas, absolutamente incompatíveis”. E os argumentos apresentados são irrefutáveis, pois “se aderem às novas instituições, com lealdade e civismo, não têm necessidade alguma de organizar mais grupelhos, segundo a choldra dos últimos anos da monarquia, sob denominações vagas e insignificativas” (UM REPUBLICANO…, DNM, 18 out. 1910, 2). Na réplica ao interlocutor republicano, Henrique Vieira de Castro radicalizou a sua posição e, de facto, acabou por contrariar o propósito inicial: “dentro das instituições vigentes”. No entanto, reformulou essa ideia, ao expressar que “o meu desejo é que a Madeira se manifeste pela sua independência como estado federado da República Portuguesa, argumentando que a ocasião é única, visto que o governo provisório trabalha na futura constituição”. Assim, verificamos que, de um dia para o outro, acabou “levantando um vivo à independência da Madeira!” (CASTRO, DNM, 19 out. 1910, 2). Na década seguinte, ressurgiu o Jornal da Madeira, editado por seu filho Luiz Vieira de Castro. Numa nova era (Ano 1), no n.º 1 de 22 de Novembro de 1923, o diretor utilizou o título para justificar que a “ideia de autonomia da Madeira está enquadrada, por sua natureza, num plano geral de descentralização que todos os portugueses conscientes tão ardentemente desejam ver realizado”. Assim, para implementar uma reforma administrativa, e se “as províncias de Portugal quiserem desde já defender utilmente os seus interesses, terão de trocar a velha fórmula da descentralização por um processo mais oportuno de combate: o regionalismo” (CASTRO, JM, 22 nov. 1923, 1). Henrique Vieira de Castro destacou-se ainda por realizações patrióticas e como benemérito de várias causas sociais. Pelo ano de 1897, quando era presidente da Associação Comercial, criou uma Escola Elementar do Comércio, onde tiveram aulas alguns empregados de firmas funchalenses. Apesar de funcionar durante poucos anos, muitos deles prosseguiram estudos na Escola Industrial do Funchal, então denominada Escola Industrial António Augusto de Aguiar. Um ano após a tragédia que provocou quatro dezenas de mortos na baía do Funchal (33 marinheiros franceses e 8 empregados da Casa Blandy), em consequência do torpedeamento do submarino alemão U-38 (a 3 de Dezembro de 1916), foi inaugurado um monumento em memória daquelas vítimas. O monumento, da autoria do escultor madeirense Francisco Franco de Sousa, foi erigido no cemitério das Angústias. Sendo o promotor da ideia, Henrique Vieira de Castro, banqueiro e sócio da casa bancária Reid, Castro & C.ª, iniciou a subscrição com um avultado donativo e incentivou novas ofertas até perfazer dois contos de reis, quanto era necessário para a conclusão do túmulo-monumento. No início do séc. XX, Henrique Vieira de Castro, como agente de navegação, recorreu por diversas vezes aos Autos de Protesto Marítimo nos casos de incêndio nos porões dos vapores surtos no porto do Funchal. Uma das ações judiciais teve origem no vapor Nora, da Det Forenede Dampskibs-Selskab, uma das companhias fidelizadas no porto do Funchal, depois também denominada Bergen Line e representada pela agência João de Freitas Martins. Comprovando a já referida complementaridade e o sucesso nos negócios, no início da déc. de 1920, a Reid, Castro & C.ª, sob a direção de Vieira de Castro, ainda representava, na Madeira, a companhia de navegação inglesa Yeoward Line, com navios que ligavam Liverpool, via Lisboa, aos portos do Funchal, Las Palmas, Tenerife e Orotava, nas ilhas Canárias. Durante a déc. de 1920, especialmente, foram inúmeras as ações judiciais que entraram no Tribunal da Comarca do Funchal, tendo como autora a Reid, Castro & C.ª. A maior parte delas, assinadas pelo gerente, Henrique Vieira de Castro, surgiu por incumprimento dos prazos de letras comerciais de montantes diversos. Com frequência, recorria-se à penhora dos bens dos réus. O desfecho normal, após várias audiências, era a condenação ao pagamento da dívida, com juros à taxa de 15 %, bem como das custas judiciais e extrajudiciais. No ano de 1923, a casa bancária Reid, Castro & C.ª anunciava na imprensa funchalense a compra e venda de papéis de crédito, cupões, moeda e notas, cheques sobre o estrangeiro, entre outras operações bancárias. No dia 25 de Novembro de 1923, realizou-se nos jardins do Reid’s Palace Hotel um almoço comemorativo dos 30 anos da chegada ao Funchal de Henrique Vieira de Castro. Para esse efeito, inscreveram-se 300 cidadãos, facto que atesta o reconhecimento a tão benemérita figura. A homenagem foi abrilhantada pela banda “artístico-madeirense” Guerrilhas. A par do seu espírito empreendedor, que o levou a investir em várias sociedades sediadas no Funchal e em Lisboa, envolveu-se quase sempre nas questões mais importantes, e por vezes polémicas, que fervilhavam na sociedade madeirense. Uma delas foi a demorada e complexa questão do porto artificial do Funchal. O primeiro concurso foi aberto pelo prazo de nove meses, mas não teve concorrentes. Ao segundo, cujo prazo terminou a 31 de outubro de 1923, só concorreu a firma inglesa Fumasil C.º Ltd, representada por Américo Correia da Silva, que apresentou plantas das obras do porto do Funchal, acompanhadas de uma proposta e respetiva memória descritiva. Os concorrentes podiam modificar o projeto inicial, pelo que a Fumasil C.º Ltd apresentou um megaprojeto dispendioso, com proposta de criação de uma zona franca e de abolição da transferência para o porto de Leixões do imposto que era cobrado na Madeira (previsto no art.º 3 da lei n.º 1437, de 30 de maio de 1923), que passaria a reverter para a construção do porto do Funchal. Com a aprovação da lei n.º 1657, de 3 de setembro de 1924, que criou receitas para o porto do Funchal provenientes do imposto sobre o tabaco (cerca de 2.500.000$00 anuais), a Comissão Executiva da JAOP tratou imediatamente de formalizar o contrato para a construção do referido porto. Esta comissão tinha, assim, a faculdade de contratar para a construção e conceder o exclusivo da exploração, durante nove décadas, do porto artificial do Funchal à Fumasil C.º, por ter sido a única proponente. Mas os opositores ao projeto e ao processo de concessão logo contribuíram para que as fações se digladiassem na imprensa funchalense. Tendo sido escolhido como representante do sector bancário, Henrique Augusto Vieira de Castro marcou presença nas reuniões preparatórias para a formação da JAOP, em meados de janeiro de 1912. Na sessão de 22 de dezembro de 1925, onde participaram dois senadores e dois deputados pelo círculo do Funchal, gerou-se alguma confusão, visto que as três dúvidas levantadas por um senador e um deputado levaram o presidente da mesa a abandonar a sala depois de afirmar que queriam discutir assuntos que não eram da competência daquela Junta. O problema mais grave foi a suspeita levantada pelo deputado Reis Costa que, aludindo ao artigo 8.º da Lei Orgânica da Junta, questionou a legalidade da participação de Henrique Vieira de Castro por ser pai do diretor da Companhia das Obras do Porto do Funchal. Esta companhia fora entretanto criada para contornar a legislação portuguesa que estipulava que a empresa construtora deveria ser portuguesa, conforme portaria de 8 set. 1924, aprovada à pressa pelo ministro do Comércio, Pires Monteiro, cinco dias após aprovação da referida lei. Entretanto, na tumultuosa sessão de 04/01/1926 da JAOP, foi a reunião considerada ilegal e o próprio Reis Costa proclamou até a ilegalidade da mesma Junta. Depois de várias tentativas e de algum impasse resolveu-se a questão legal. Na sessão de 31/05/1926, a Comissão Administrativa da JAOP passou a ser constituída por Juvenal Henriques de Araújo, presidente, Aníbal Augusto Trigo, vogal, e Manuel Cristiano de Sousa, secretário. Nesta sessão, entre outro expediente, foram pedidos novos elementos técnicos sobre a baía do Funchal e remeteram exemplares dos desenhos gerais e de detalhe das obras a executar no Porto do Funchal, para o ministro da tutela. A 01/01/1927, numa pequena notícia, O Jornal anunciava a demissão de António Vieira de Castro do cargo de diretor da COPF. No dia 15/09/1927, o diretor de O Jornal, Luiz Vieira de Castro, escreveu um longo artigo em defesa da reformulação do contrato com a COPF. O que estava eminente era a anulação desse contrato e o articulista, com argumentos válidos, procurava combater os que defendiam esta hipótese, desmascarando os opositores. A 17/09/1927, era entusiástica a reação do Diretor de O Jornal. O Governo de Lisboa tinha acertado com a COPF a nova redação do contrato que em breve seria assinado. Depois das felicitações e do agradecimento ao Governo da Ditadura Nacional, enalteceu o espírito patriótico e as figuras do Presidente da República, Gen. Carmona, e do ministro do Comércio e Comunicações, General Ivens Ferraz. No dia 20/11/1928, digladiavam-se os defensores de cabeças de lista para a direção da Associação Comercial do Funchal. O articulista não era favorável à candidatura do cunhado do diretor de O Jornal, Luís da Rocha Machado, então presidente da COPF e genro do banqueiro Vieira de Castro. Henrique Augusto Vieira de Castro morreu a 21 de agosto de 1926, de hemiparesia direita e metástases cerebrais. Faleceu sem disposição testamentária e deixou algum património e assuntos pendentes para os filhos resolverem, nomeadamente em relação às diversas empresas onde tinha intervenção direta, como sócio ou como acionista. Na relação de bens, sem data, constavam as participações na Companhia de Seguros Aliança Madeirense, num valor global de 2.220$00, e quotas em várias sociedades como a Reid, Castro & C.ª (com metade do capital social, que correspondia a 350.000$00), na A. C. Burnay, Ld.ª (manteigas), com uma quota de 630.000$00, na Empreza Vacuum de Laticínios, com uma quota de 350.000$00, e na Madeira Industrial Company, com uma quota no valor de 20.000$00. Detinha 27 % do capital da sociedade Águas do Porto Santo, 50 % da Empreza Balneária, Ld.ª, e dois décimos na Empresa Agrícola do Loural (Santa Cruz). No Funchal, detinha ainda uma quota de 20.000$00 na Empreza Gráfica Regional, Ld.ª (O Jornal, depois Jornal da Madeira) e dois gasolinos denominados lancha, May e Scotia. Com sedes em Lisboa, tinha participações na sociedade Vieira & Lopes, Ld.ª, com 50 % do capital igual a 5.000$00, e uma quota de 100.000$00 da firma Júlio Gomes Ferreira & C.ª Ld.ª. Tinha ainda um prédio urbano na R. do Dr. Vieira (depois R. da Carreira), um prédio rústico no sítio do Cameirão, na freguesia do Monte, o domínio direto de dois foros impostos na Qt. Vigia e duas metades de domínio útil de prazos foreiros ao beco das Angústias. Era também proprietário de duas penas de água do Lombo de João Boieiro, em São Roque, no Funchal. O total do passivo, cerca de 80 % da dívida, era à Reid, Castro & C.ª e o restante a uma firma da praça funchalense e a um particular, respetivamente, 1.132.536$52, 207.396$69 e 50.000$00. Mas o total do ativo era de 1.760.980$68, o que permitiu apurar um saldo positivo de 370.147$83. Henrique Augusto Vieira de Castro não viveu as dificuldades que se vislumbravam para as empresas onde investira. Os seus herdeiros, entre eles, o filho António Manuel, banqueiro, enfrentaram as vicissitudes da conjuntura que se iniciou na Quinta-Feira Negra de 24 de outubro de 1929, desastrosa para a Bolsa de Valores de Nova Iorque. Mas o que contribuiu para o descalabro, principalmente da banca madeirense, foi o excesso de casas bancárias, mal estruturadas e geridas de forma imprudente. Na década anterior, a firma A. C. Burnay, Ld.ª, constituída a 16 de abril de 1902, fora dissolvida em reunião de 8 de maio de 1920. No entanto, por estarem a decorrer os inventários de dois sócios que, entretanto, faleceram, deixando filhos menores, o processo só terminou a 24 de abril de 1930. Quando os herdeiros atingiram a maioridade, receberam os valores, à guarda da Caixa Geral de Depósitos, que haviam sido entregues por Henrique Augusto Vieira de Castro por altura da referida dissolução. Henrique Vieira de Castro teve ainda ação no campo mecenato, nomeadamente nas artes plásticas, com a criação de uma galeria para exposições no Casino da Madeira e como protetor da Banda Distrital do Funchal, os populares Guerrilhas, dissidentes da Filarmónica dos Artistas Funchalenses, depois Banda Municipal do Funchal. Dirigiu ainda a comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal e representou o Concelho de Machico na Junta Geral do Funchal, no tempo da monarquia. Depois da sua morte, a Câmara Municipal do Funchal chegou a atribuir o seu nome à rodovia que liga o Funchal, desde a ponte do Ribeiro Seco, a Câmara de Lobos, depois denominada Estrada Monumental. Foi também um dos impulsionadores da Escola de Artes e Ofícios e, pouco antes da sua morte, procurou vender o edifício, passando o dinheiro e os alunos para o Asilo da Mendicidade; os internados neste albergue passaram para o Asilo dos Velhinhos. Segundo o Diário de Notícias, à data da sua morte, Henrique Vieira de Castro era presidente da Associação Comercial do Funchal e da delegação da Cruz Vermelha Portuguesa; no relatório de 1922 desta instituição, constava que tinha prestado grandes serviços à população, não só durante a vida normal, como em circunstâncias aflitivas, entre as quais os bombardeamentos ocorridos aquando da Segunda Guerra Mundial. Será curioso ainda registar que foi publicada no Jornal da Madeira uma fotografia da estátua de O Semeador com a seguinte legenda: “‘Maquette’ dum monumento do escultor Francisco Franco, que um grupo de amigos e admiradores do sr. Vieira de Castro pretende erigir na cidade do Funchal” (VASCONCELOS, David, JM, 11 set. 1926, 2). Esta estátua ocupou vários pontos da cidade do Funchal, estando colocada, nos começos do séc. XXI, nos jardins da Câmara Municipal. Com a notícia da sua morte, o Jornal da Madeira trazia em título: “Sobre o ataúde do maior benemérito insular […] lágrimas de gratidão e preitos de saudade”; seguia-se um artigo onde se afirmava que Henrique Vieira de Castro era “a personificação da gentileza afável e atraente, era um gentleman na sociedade, era um benemérito que sabia sê-lo” (Id., Ibid.). Um amigo, que assinou com as iniciais I.M.S, referiu que a sua família disfrutara no país de situações de fortuna e de predomínio, mas que os reveses do destino a tinham abalado profundamente. Assim, com apenas 15 anos, Henrique Vieira de Castro trabalhara como operário na construção do porto de Leixões. Um espírito criativo e inteligente levou-o a planificar a transformação do Parque Eduardo VII, que não se concretizou, e ainda idealizou o projeto de irrigação e iluminação do Alto Alentejo. Pouco antes da sua morte, adquirira a Companhia de Viação e Electricidade para a exploração das quedas de água do Rio Zêzere, destinada a trazer a energia elétrica a Lisboa. No Funchal, para além das empresas já mencionadas, tinha participações n “as águas do Porto Santo, cuja sede constitui o mais belo edifício daquela ilha; a Empresa das Águas da Rocha Vermelha, na origem da Ribeira da Janela e cujos mananciais, dentro em pouco, fertilizarão a região sul; a Empreza do Balneário; a Olaria Funchalense; a Edificadora do Bom Jesus, onde se iniciou a indústria de blocos de cimento e tantas outras empresas comerciais que o seu nome animou e desenvolveu”. Tinha ainda a casa A. Vieira & C.ª e a Madeira House “que na indústria dos bordados regionais ocupa um lugar primacial”, conforme publicidade no mesmo jornal (SILVA, JM, 11 set. 1926, 1). Aos familiares que assistiram ao seu último suspiro recomendou os “pobres do Funchal e como último pedido recordou que desejava morrer como um pobre, encerrado num caixão de pinho e que, no funeral, o rodeiem apenas os velhinhos da Casa dos Pobres Desamparados” (Id., Ibid.). À redação do Jornal da Madeira chegou uma carta do secretário do Rei D. Manuel II, através da qual o antigo monarca expressava o seu desgosto pois a sua morte representava para o “País e, sobretudo, para a Madeira uma perda irreparável […] pelos relevantes serviços […] ao comércio e à assistência do Funchal”. A missiva régia terminava com “a expressão do seu pesar pela morte de um verdadeiro Português” (SAMPAYO, JM, 11 set. 1926, 1). Obras de Henrique Augusto Vieira de Castro: “A Madeira – Estado Federal Autónomo” (1910); “A Madeira – Estado Federal Autónomo – Carta Aberta – Ao Republicano da Velha Guarda” (1910); José Luís Ferreira de Sousa (atualizado a 22.12.2016)