defesa nacional e segurança (política de)
No passado, a defesa e a segurança dos povos era, na prática, quase exclusivamente assegurada pelo aparelho militar do Estado. Porém, com a evolução das sociedades e à medida que a vida coletiva se foi tornando mais complexa, os conceitos de segurança e de defesa foram-se densificando, reconhecendo-se que, a par da componente militar, a componente civil também tinha um papel importante na estruturação e no funcionamento dos mecanismos de segurança e de defesa. Deste modo, as matérias respeitantes à defesa são, no princípio do séc. XXI, um domínio específico do conhecimento e da ação política que concita a atenção, de forma permanente e dominante, não só dos militares, mas também dos decisores políticos e dos cultores da ciência política, tendo expressão nos mais importantes documentos políticos dos Estados organizados. Importa assinalar, ainda, que os poderes relativos à segurança e à defesa pertencem ao núcleo essencial da soberania do Estado, que a definição e a orientação da política de defesa são da competência exclusiva dos órgãos de soberania e que, por isso, tais poderes e tais competências não são regionalizáveis. A Região Autónoma da Madeira não pode, pois, ter uma política de defesa própria. Porém, o arquipélago da Madeira, o seu território e o seu povo estão inseridos na política de defesa nacional, por fazerem parte integrante do Estado português e graças à sua importância geoestratégica; além do mais, os órgãos de governo próprio são chamados a colaborar na execução da política nacional de defesa e de segurança, nomeadamente na sua componente civil. É neste enquadramento teórico e institucional que deve ser vista a posição da Madeira no contexto da política de defesa nacional. Pensar a Madeira em termos de defesa nacional supõe, pois, ter a noção da importância geoestratégica do arquipélago da Madeira e conhecer a política de segurança e de defesa do Estado português, elencando e caracterizando nesta os pontos que têm implicações sobre o território e a população da Madeira e nas relações com os órgãos de governo próprio. Importância geoestratégica do arquipélago da Madeira Na memória justificativa da proposta de lei do Governo, que viria a converter-se na primeira Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA) (lei n.º 29/82, de 11 de dezembro) após o 25 de Abril de 1974, dizia-se que “não pode esquecer-se que o reforço da unidade nacional em tempo de crise passa necessariamente também pelas regiões autónomas, que a definição de uma política de defesa nacional comporta aspetos de interesse específico para essas regiões, que nelas se situam importantes infraestruturas de defesa, que em relação a elas vigoram relevantes convenções internacionais de carácter militar e que nelas se verificarão incidências geoestratégicas em caso de guerra”. Na reunião da Comissão Parlamentar de Defesa Nacional, ocorrida no dia 25 de outubro de 1982 para debater, na especialidade, a proposta de lei do Governo, defendeu-se a importância geoestratégica dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, assinalando-se o seguinte: – a própria definição do papel da nação portuguesa no mundo passa, no princípio do séc. XXI, pelos arquipélagos dos Açores e da Madeira: como foi, aliás, reconhecido pelos mais altos responsáveis políticos nacionais e regionais; – o chamado “triângulo estratégico continente-Madeira-Açores” surge como fator de identificação do nosso país, no contexto da defesa coletiva do ocidente, sobretudo em face do ingresso da Espanha na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); – são as posições estratégicas propiciadas pelas regiões autónomas que conferem ao Estado português uma acrescida força negocial internacional. Fig. 1 – Sem as regiões autónomas, Portugal continental ficaria descaracterizado do ponto de vista geoestratégico, diluindo-se no vasto território da Península Ibérica. Como se verifica, já então era reconhecida a importância geoestratégica do arquipélago da Madeira. Tal importância foi aumentado, quer face ao posterior quadro de ameaças e à chamada “guerra assimétrica” – de guerrilha e terrorismo –, quer pela multiplicidade de funções que o Estado foi assumindo para garantir a soberania e a independência nacional, para controlar o espaço aéreo e marítimo, para defender e fiscalizar a extensa zona económica exclusiva, e para realizar as operações de busca e salvamento a que está, nacional e internacionalmente, obrigado – algo reconhecido pelos vários conceitos estratégicos de defesa nacional e pelos demais documentos estruturantes em matéria da política de segurança e de defesa. A política de segurança e defesa do Estado português Os documentos políticos fundamentais são o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), as Grandes Opções do Plano (GOP) e o Programa do Governo. O CEDN contém as orientações gerais em matéria de segurança e de defesa e, em consequência, inspira as GOP e os programas de governo, sendo acertado, do ponto de vista metodológico, focar a atenção sobre o próprio CEDN que, aliás, em regra, se revela mais duradouro e estável do que os outros dois documentos. Daí que o enquadramento lógico da Madeira na política de defesa nacional deva fazer-se predominantemente a partir de uma análise cuidada do CEDN. Se bem que é verdade que as orientações da política só se tornam eficazes quando vertidas em lei, não é menos certo que é pela análise do CEDN, situado ao lado daquelas, que se compreende o alcance da lei e que se consegue enlaçá-la com os objetivos e os superiores interesses nacionais. Desde a entrada em vigor da primeira LDNFA, em finais de 1982, até 2016, a política de defesa nacional foi concebida e enquadrada tendo por pano de fundo o CEDN de 1985 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 10/85, de 20 de fevereiro), o CEDN de 1994 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 9/94, de 4 de fevereiro), o CEDN de 2003 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 6/2003, de 20 de dezembro), e pelo CEDN de 2013 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013, de 5 de abril). O CEDN apresentava-se juridicamente configurado na lei n.º 29/82, de 11 de dezembro, que aprovou a LDNFA. Segundo o n.º 2 do seu artigo 8.º, entende-se por conceito estratégico de defesa nacional a definição dos aspetos fundamentais da estratégia global do Estado adotada para a consecução dos objetivos da política de defesa nacional. Sinteticamente, pode-se dizer que o CEDN corresponde ao conjunto das linhas orientadoras da política de segurança e de defesa. O CEDN não é um documento isolado que possa ser objeto de uma análise autónoma. Pelo contrário, ocupa o topo de uma panóplia de instrumentos que visam operacionalizar a política de defesa nacional, sobretudo na sua vertente militar. Ao lado do CEDN, a LDNFA prevê a elaboração de documentos, de natureza reservada, tais como o conceito estratégico militar, as missões, o sistema de forças e o dispositivo. Durante a vigência da LDNFA de 1982 e, posteriormente, na vigência da lei orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de julho (alterada e republicada pela lei orgânica n.º 5/2014, de 29 de agosto), o Governo aprovou os Conceitos Estratégicos de 1985, de 1994, de 2003 e de 2013. Estes conceitos estão datados e refletem a conjuntura nacional e internacional que, naquele tempo, inspiravam o clima de segurança e de defesa no país e no mundo. O primeiro daqueles conceitos foi elaborado em 1985, um tempo ainda dominado pelo ambiente da chamada Guerra Fria, caracterizado por um mundo bipolar, dividido entre as esferas de influência da União Soviética e dos Estados Unidos da América. Por sua vez, o Conceito de 94 traduziu as alterações decorrentes da queda do Muro de Berlim e a emergência de novos referenciais de poder, designadamente da União Europeia e do Japão. Na sua elaboração estão também presentes as transformações que, então, se processavam no âmbito da OTAN, as questões decorrentes das assimetrias de desenvolvimento norte-sul, os movimentos migratórios descontrolados, os radicalismos étnicos, religiosos e ideológicos, e o ressurgimento dos nacionalismos com as inerentes disputas territoriais. O Conceito de 94 ensaiou mesmo, pela primeira vez, um elenco das novas ameaças, com especial menção do terrorismo internacional, das ações de rutura dos aprovisionamentos de recursos, dos atentados ecológicos, do fenómeno do narcotráfico, da proliferação das armas nucleares e de outras armas de destruição massiva. O Conceito de 2003 representou um salto qualitativo, na forma e no conteúdo, relativamente aos conceitos anteriores, apesar de muito centrado nos aspetos estratégicos e militares da defesa, limitando-se a uma mera alusão final à sua componente civil. O Conceito Estratégico de Defesa Nacional de 2013 O CEDN que entrou em vigor em 2013 foi aprovado, conforme já referido, pela resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 5 de abril. Tratava-se de um conceito inovador, na sistematização e no conteúdo, marcado por uma forte ambição, mas não desconhecia as alterações que, naquela última década, ocorreram na situação estratégica e no ambiente internacional, nem a crise económico-financeira que atingiu a Europa, em particular a Zona Euro, e o facto de Portugal se encontrar sob assistência financeira internacional. No que toca à sua ambição, poderá dizer-se que este conceito se qualifica mais como um conceito estratégico nacional do que como um simples conceito estratégico de defesa nacional. Isso é claro logo na sua introdução, onde se afirma que “para a realização dos objetivos de segurança e defesa concorrem todas as instâncias do Estado e da sociedade” para concluir de seguida que “o conceito estratégico de defesa nacional define os aspetos fundamentais da estratégia global a adotar pelo Estado para a consecução dos objetivos da política de segurança e defesa nacional”. Além do mais, este Conceito, no seu último ponto, sob a esclarecedora epígrafe “Uma Estratégia Nacional do Estado”, afirma o seguinte: “O conceito estratégico de defesa nacional deve assumir-se como a estratégia nacional do Estado, destinado a dar cumprimento às suas tarefas fundamentais, para as quais concorrem as suas instâncias e organismos, bem como a própria sociedade. Este é um desafio para o qual todos estamos convocados”. Com estes pressupostos, compete ao CEDN definir “os aspetos fundamentais da estratégia global a adotar pelo Estado para a consecução dos objetivos da política de segurança e defesa nacional”. Do extenso texto deste Conceito é possível extrair uma outra constatação: é superado o complexo ideológico que, segundo alguns, exige uma separação estancada entre a defesa e a segurança, assumindo-se, expressis verbis, como um conceito de segurança e de defesa, na linha do que acontece na generalidade dos Estados-Membros da OTAN e da União Europeia e no seio da União e da própria Aliança Atlântica. A propósito dos fundamentos da estratégia de segurança e de defesa nacional, este Conceito considera particularmente relevante “uma melhor exploração dos recursos minerais e marítimos – a enorme zona marítima sob responsabilidade nacional é um dos recursos nacionais que mais importa valorizar”. Ao referir-se aos contextos de segurança regionais, retoma e amplia a enumeração feita no Conceito de 2003, destacando a Europa e a União Europeia, os EUA e as relações transatlânticas, o norte de África (em termos que podem considerar-se minimizadores da perigosa situação então existente na região do Sahel), o Médio Oriente, a África subsaariana, o Atlântico e a Ásia. Do elenco que o Conceito faz das ameaças e dos riscos no ambiente de segurança global, retira-se a ideia de que todos eles tinham ou poderiam ter uma repercussão no arquipélago da Madeira: o terrorismo transnacional; a pirataria; a criminalidade transnacional; a proliferação de armas de destruição massiva (NBQR – nucleares, biológicas, químicas e radiológicas); a multiplicação de Estados frágeis e de guerras civis, potenciando atrocidades em massa, terrorismo e vagas crescentes de refugiados; o ciberterrorismo e a cibercriminalidade, cujo alvo são as redes indispensáveis ao funcionamento da economia e da sociedade da informação globalizada; a disputa por recursos naturais escassos (e.g.: hidrocarbonetos, minerais e água); e os desastres naturais e as mudanças climáticas. Dos riscos de natureza ambiental, este Conceito destaca os atentados ao ecossistema, terrestre e marítimo, a utilização abusiva de recursos marinhos e os incêndios florestais. Ao analisar a posição de Portugal no Mundo, o Conceito salienta que “a geografia do espaço nacional, definida pelo ‘triângulo estratégico’ formado pelo território continental e pelos arquipélagos da Madeira e dos Açores, valoriza naturalmente a Europa e o Atlântico”, reconhecendo que a Europa é a principal área geográfica de interesse estratégico nacional – sendo Portugal a fronteira ocidental da Europa no Atlântico - e que a comunidade de segurança do Atlântico Norte é o espaço da unidade entre a Europa, os EUA e o Canadá, que são também áreas de implantação de importantes comunidades portuguesas. Depois da Europa, este Conceito elege o espaço euro-atlântico como a segunda área geográfica de interesse estratégico permanente, baseando-se para tal na defesa da unidade nacional e da integridade territorial de Portugal, na aliança bilateral com os EUA e na coesão da Aliança Atlântica. O Magrebe também é considerado neste contexto pelo efeito de proximidade territorial e pelas relações económicas e culturais. O Conceito defendia ainda que Portugal não poderia alhear-se das transformações que ocorriam no continente asiático e que deveria procurar aí as parcerias estratégicas que poderiam ser do nosso interesse. O Conceito de 2013 concluiu, pois, que “no princípio do séc. XXI, Portugal, membro da UE, da OTAN e da CPLP, está no centro geográfico da comunidade transatlântica e é um elo natural nas relações entre a Europa Ocidental e a América do Norte e com a América do Sul e a África Austral”, aludindo, a este respeito, às comunidades portuguesas e aos fluxos migratórios concentrados nos países europeus e ocidentais, bem como no Brasil, na África do Sul, em Angola e na Venezuela. No domínio da segurança cooperativa, este Conceito realçou a pertença do nosso país, como membro de pleno direito, às Nações Unidas, à OTAN e à União Europeia, que, com o Tratado de Lisboa, assumiu novas responsabilidades como ator de segurança, no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), destacando-se também o maior relevo dado à Agência Europeia de Defesa. O Conceito afirmou que estas três organizações, para além das suas preocupações humanitárias, “partilham uma determinação comum em melhorar a capacidade de prevenção e gestão de crises e assegurar uma maior capacidade de resposta rápida e de projeção de meios civis e militares”. A propósito da estratégia de alianças, este Conceito é claríssimo em reconhecer que a OTAN é a aliança crucial para a segurança e a defesa de Portugal, afirmando que “a defesa da integridade territorial e da coesão nacional são inseparáveis da participação na OTAN”. Também a internacionalização e a modernização das Forças Armadas portuguesas resultam da integração de Portugal na Aliança Atlântica. Em matéria de parcerias estratégicas, este Conceito sublinha a importância e defende o reforço do relacionamento com os EUA, com a UE (no quadro da PCSD e nos programas da Agência Europeia de Defesa), com a CPLP e com Timor-Leste. Entre os ativos nacionais, o Conceito inclui “o mar e a centralidade no espaço atlântico; o carácter arquipelágico do território; o clima e as comunidades de emigrantes” e, a propósito dos princípios da segurança e defesa nacional, diz taxativamente: “O Estado defende os interesses nacionais por todos os meios legítimos, dentro e fora do seu território, das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e do espaço aéreo sob sua responsabilidade; o Estado assegura a salvaguarda da vida e dos interesses dos portugueses num quadro autónomo ou multinacional; no exercício do direito de legítima defesa, Portugal reserva o recurso à guerra para os casos de agressão efetiva ou iminente”. O Conceito atribui a devida importância às informações estratégicas, reconhecendo que “o carácter imprevisível, multifacetado e transnacional das novas ameaças confirma a relevância das informações” e que, “neste contexto, os serviços de informações constituem-se como incontornáveis instrumentos de identificação e avaliação de ameaças e oportunidades em cenários voláteis e complexos”. Enfatiza, ainda, a sua relevância, afirmando que “as informações são um instrumento estratégico do Estado, essencial para o apoio à decisão política, sobretudo em matéria de segurança e defesa”. Sobre as obrigações que vinculam o Estado na prossecução dos seus objetivos permanentes – defender o território e a segurança dos cidadãos, neutralizar as ameaças e os riscos transnacionais – o Conceito estabelece que as políticas de segurança e de defesa nacional devem: assegurar uma capacidade dissuasora, reforçada pelo quadro de alianças; consolidar uma estrutura militar adequada; articular os meios civis e militares de forma eficiente; garantir a capacidade de vigilância e de controlo do território nacional e do espaço interterritorial, incluindo a fiscalização do espaço aéreo e marítimo; garantir a capacidade autónoma para executar as missões destinadas a salvaguardar as vidas e os interesses dos cidadãos portugueses (onde quer que eles se encontrem); assegurar as reservas estratégicas indispensáveis à segurança do país, nomeadamente nos planos de energia, de comunicações, de transportes, de abastecimentos, de alimentação e de saúde; garantir a capacidade para organizar a resistência em caso de agressão. A resposta às ameaças e aos riscos passou por maximizar as capacidades civis e militares existentes, mantendo em operação um efetivo sistema nacional de gestão e de crises, em que a cooperação entre as Forças Armadas, as forças e os serviços de segurança se desenvolviam de acordo com um Plano de Articulação Operacional. Em resposta à ameaça das redes terroristas, Portugal deveria desenvolver uma estratégia nacional e integrada que pudesse articular as medidas diplomáticas, judiciais, de controlo financeiro, de informação pública e de informações policiais e militares. Deveria, ainda, ser dada uma especial atenção à vigilância e ao controlo das acessibilidades marítima, aérea e terrestre ao território nacional com base num Programa Nacional de Proteção das Infraestruturas Críticas. Na luta contra o crime organizado transnacional, tornava-se necessário reforçar a cooperação internacional, bem como melhorar a capacidade de prevenção e de combate à criminalidade, dando particular atenção ao tráfico de droga nos espaços marítimo e aéreo sob a jurisdição nacional, às ações de imigração clandestina e ao tráfico de seres humanos. No combate à cibercriminalidade, era necessário garantir, antes de mais, a proteção das infraestruturas de informação críticas, criando-se para o efeito um Sistema de Proteção da Infraestrutura de Informação Nacional (SPIIN). Depois, era preciso montar a estrutura responsável pela cibersegurança, sensibilizar os operadores públicos e privados para a natureza crítica da segurança informática, e levantar a capacidade de ciberdefesa nacional. O Conceito de 2013 destaca também o impacto devastador das catástrofes, naturais ou provocadas, e das calamidades, preconizando para lhes fazer frente, o reforço do Sistema de Proteção Civil, o desenvolvimento de metodologias, os programas e os estudos técnicos e científicos sobre os diferentes perigos, ameaças e riscos, e também a criação de uma Unidade Militar de Ajuda de Emergência. O Conceito aborda, ainda, o risco de pandemias e de outros perigos para a segurança sanitária, considerando prioritário o reforço da capacidade de resposta nacional aos riscos sanitários no sentido de mais rápida e eficazmente se fazer face a doenças epidémicas ou a ataques com armas NBQR, e a existência de condições que garantam a segurança alimentar, nomeadamente a qualidade dos alimentos e da água, estimulando a definição de uma Estratégia Nacional Sanitária-Epidemiológica. Tudo isto sem esquecer a necessidade de “uma Estratégia Nacional do Ambiente, que permita prevenir e fazer face, de forma integrada, aos principais riscos ambientais em Portugal, como os sismos, os incêndios florestais, as cheias, a erosão no litoral e a erosão hídrica do solo, a desertificação e os acidentes industriais”. Ao referir-se à afirmação de Portugal como coprodutor de segurança internacional, o Conceito recordou que “as fronteiras de segurança nacional vão para além das fronteiras territoriais do Estado”. Assim, Portugal deveria participar em missões militares internacionais na defesa da paz e da segurança; em missões de ajuda de emergência; em missões de reforma do sector de segurança; estabelecer parcerias estratégicas de segurança com os países da CPLP, privilegiando o combate à criminalidade organizada e à cibercriminalidade, e a segurança das rotas navais; e igualmente apoiar o esforço que se desenvolvia na área da cooperação técnico-militar. Há no Conceito de 2013 um ponto que é particularmente importante para a RAM na sua relação com a política de defesa nacional. Estavam em causa as chamadas missões de interesse público constitucionalmente cometidas às Forças Armadas e que se traduziam no apoio ao desenvolvimento sustentado e à melhoria das condições de vida dos portugueses. Tais missões preenchiam um vasto leque de atividades, de entre as quais o Conceito destaca as seguintes: o apoio ao Serviço Nacional de Proteção Civil, para fazer face a situações de catástrofe ou de calamidade pública; o apoio à satisfação das necessidades básicas das populações; a fiscalização da Zona Económica Exclusiva; a busca e o salvamento; a proteção do ambiente; a defesa do património e a prevenção de incêndios; a pesquisa dos recursos naturais e a investigação nos domínios da geografia, da cartografia, da hidrografia, da oceanografia e do ambiente marinho. É na execução destas missões que deve ser valorizado, na sua máxima extensão, o princípio de duplo uso, no sentido em que grande parte dos equipamentos militares poderiam ser utilizados quer para fins militares, quer para fins civis – o que se traduz, afinal, numa aplicação do moderno conceito de Defesa Inteligente (Smart Defence). Tendo em conta os diferentes cenários de atuação das Forças Armadas portuguesas, o Conceito entende que estas devem dispor, “prioritariamente, de capacidade de projetar forças para participar em missões no quadro da segurança cooperativa ou num quadro autónomo - para proteção das comunidades portuguesas no estrangeiro (onde se incluem as comunidades madeirenses), em áreas de crise ou conflito –, de vigilância e controlo dos espaços de soberania e sob jurisdição nacional, e de resposta a emergências complexas, designadamente em situações de catástrofe ou calamidade”. E acrescenta: “É, por isso, indispensável que se privilegie uma estrutura de forças baseada em capacidades conjuntas e assentes num modelo de organização modular e flexível”. Na sua parte final, o CEDN de 2013, ao elencar os vetores e as linhas de ação estratégica e ao considerar a valorização dos recursos e das oportunidades nacionais, atribui uma particular ênfase ao investimento nos recursos marítimos. Começa por referir-se à posição geográfica específica de articulação intercontinental de Portugal, reconhecendo que nela se cruzam muitas das mais importantes rotas aéreas e marítimas mundiais. Aborda, depois, a delimitação da plataforma continental, que configura um território de referência do País, indissociável da sua dimensão marítima acrescida. Portugal dispunha, neste contexto, “de direitos soberanos na exploração e aproveitamento do elevado potencial dos seus recursos e assume responsabilidades e desafios num espaço que renova a sua centralidade geoestratégica”. Para desfrutar desta nova realidade, Portugal deveria apostar no conhecimento científico, incrementar a capacitação tecnológica, e defender a plataforma continental. Neste novo quadro, reforçou-se a posição do mar como um importante ativo estratégico, que, enquanto tal, não poderia deixar de estar inserido “numa perspetiva ampla de segurança e defesa nacional”. Segundo este Conceito, o primeiro objetivo de tal estratégia consiste em “manter uma capacidade adequada de vigilância e controlo do espaço marítimo sob responsabilidade nacional e do espaço marítimo interterritorial”. Seguem-se depois vários objetivos: de organização, de coordenação e de clarificação de competências e de racionalização dos meios das instituições envolvidas na vigilância e na assistência marítima; de prevenção e de reação a acidentes ambientais e a catástrofes naturais; de otimização da coordenação e da utilização dos meios de combate às atividades criminais efetuadas no mar; de adoção de políticas públicas de fomento da economia do mar; de aproveitamento e de utilização dos recursos marinhos da Zona Económica Exclusiva e da plataforma continental; de aposta na formação profissional e superior, na Investigação e Desenvolvimento na área das ciências do mar, e no desenvolvimento de uma consciência coletiva sobre a importância do mar como fator de poder nacional. Na sua parte final, o Conceito preocupou-se, ainda, com a renovação demográfica e com a gestão do envelhecimento; com a melhoria do sistema de justiça; com a valorização do conhecimento, da tecnologia e da inovação; e com o potencial dos recursos humanos e a valorização da língua e da cultura portuguesas, sendo aqui que o conceito se cruzou com as GOP e se assumiu como estratégia nacional do Estado. Na RAM, a operacionalização do CEDN, na componente militar, coube aos militares dos três ramos das Forças Armadas que servem a pátria; na componente civil, para além da preciosa ajuda dos militares, das forças de segurança e de outros serviços dependentes da Administração Central, a operacionalização do CEDN tornou-se também uma competência dos serviços regionais e das entidades privadas para tal vocacionadas. Manuel Filipe Correia de Jesus (atualizado a 03.01.2017)
comunidades madeirenses
A Constituição da República Portuguesa (CRP), na sua versão originária, definia as regiões autónomas como pessoas coletivas de direito público (art.º 229.º); não continha, assim, qualquer preceito que legitimasse o intérprete para eleger o território como seu elemento definidor. Entretanto, a consideração dos condicionalismos geográficos, como elementos que dão fundamento à autonomia, a evidência da individualidade territorial e a sua qualificação como pessoa coletiva de direito público – aproximando-a das outras pessoas coletivas de direito administrativo de base territorial, como a freguesia e o município – fizeram com que rapidamente se vulgarizasse, na doutrina, a ideia de que as regiões autónomas eram entes coletivos de base territorial, isto é, definidas e estruturadas, essencialmente, em função do respetivo território. Quando da revisão constitucional de 1982, tentou-se proceder a uma caracterização correta das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, i.e., conforme à realidade das mesmas. Essa tentativa consistiu fundamentalmente em duas propostas: uma tinha em vista substituir, no n.º 1 do art. 227.º, “condicionalismos” por “características”, e incluir nestas, também como fundamento da autonomia, “as características culturais”; outra tinha como fim eliminar no corpo do art. 229.º a referência a “pessoas coletivas de direito público”. A primeira foi aprovada, mas a segunda não passou. Poder-se-á pensar que se está perante um mero jogo de palavras. Mas não é assim. Com efeito, fundar a autonomia nas características dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, em vez de a fundar nos condicionalismos, tem o objetivo de a desconjunturalizar, transformando-a numa imanência da realidade insular. A referência às características culturais insere nos fundamentos da autonomia o elemento que decisivamente define um povo, que é a sua cultura, e que permanentemente o identifica. E que não se trata de uma mera questão de palavras, prova-o a resistência demonstrada pelos membros da respetiva comissão eventual para a revisão constitucional à introdução daquelas alterações. Numa correta caracterização das regiões autónomas, torna-se claro que, se a Constituição fundamenta a autonomia nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, é porque as regiões autónomas não são apenas o território, mas sobretudo as pessoas, que são o agente ativo ou passivo daquelas características. Esta consideração permite dar um salto qualitativo, que ultrapassa o território como elemento definidor e contempla o povo madeirense na sua plenitude. Desta forma, a autonomia deixa de ser uma questão que apenas diz respeito às pessoas residentes no território das regiões autónomas para passar a estar intimamente ligada a todos os madeirenses, onde quer que se encontrem. E, se a população emigrante é o dobro ou o triplo da população residente no arquipélago da Madeira, esta ideia nada tem de lírico, antes se insere profundamente na realidade do povo madeirense. Só a esta luz se consegue explicar a expectativa com que os madeirenses espalhados pelo mundo vivem a experiência autonómica e o empenho com que participam nela, bem como as tentativas que têm sido feitas para institucionalizar a participação dos madeirenses não residentes nas instituições autonómicas e de criar mecanismos de ligação e apoio às comunidades que, pelo mundo fora, esses madeirenses constituíram e mantêm. A este respeito, tornou-se conhecida a querela acerca da existência de círculos eleitorais de não residentes que, por via dos mesmos, passariam a ter assento nos Parlamentos regionais. A matéria recebeu consagração legislativa no Estatuto Político-Administrativo dos Açores, e foi declarada inconstitucional em relação ao Estatuto Político-Administrativo da Madeira, matéria que será retomada em passo ulterior do presente texto. Alguns receiam que o reforço da autonomia regional afete a unidade do Estado. E não é por acaso que a base territorial das regiões autónomas é veementemente afirmada pelos constitucionalistas de pendor centralista; como não é por acaso que os responsáveis políticos com uma visão centralista da estrutura do Estado português rejeitam energicamente a conceção institucional de região autónoma. Uns e outros ter-se-ão apercebido de que se está perante uma questão de importância fundamental para a adequada caracterização do sistema autonómico português. É importante reter que, no estado atual do direito português nos começos do séc. XXI, há base formal e legitimidade política para defender que a região autónoma é uma pessoa coletiva de base institucional, que diz respeito a todos os madeirenses e seus descendentes, quer residam na Madeira, no Porto Santo, no continente, nos Açores ou no estrangeiro. Erigir o território como elemento definidor da região autónoma é uma atitude reducionista da própria autonomia, cuja consequência mais imediata é subtrair à jurisdição das instituições políticas regionais os madeirenses não residentes para, de modo centralista, os colocar sob tutela do Governo central. Na realidade, está-se perante pessoas coletivas de base institucional, já que o que é relevante na caracterização da Região Autónoma da Madeira (RAM) não é o território, mas o seu povo, que está disperso pelos cinco continentes. Não há um censo específico que permita quantificar com rigor este universo de Portugueses, mas calcula-se que só no continente português vivam, no começo do séc. XXI, cerca de 300.000 madeirenses, e nas comunidades radicadas no estrangeiro à volta de 600.000. Nesta “madeirofonia” deverão integrar-se também os “madeirodescendentes”, em número elevado, embora impossível de determinar. É este valioso potencial humano que reclama dos órgãos de Governo próprio da RAM uma política para as comunidades madeirenses no exterior. Trata-se de um universo caracterizado pela dispersão, pela dimensão planetária e pela diferenciação. Com efeito, as comunidades madeirenses encontram-se dispersas por vários países, estão presentes nos cinco continentes e cada comunidade tem características próprias que a diferenciam das demais. As centenas de milhares de madeirenses não residentes e as suas comunidades constituem um elemento estrutural e estruturante da RAM. O espírito empreendedor, a abertura a outros povos e culturas e uma fácil integração nas sociedades de acolhimento, sem prejuízo da sua ligação à terra de origem, são características peculiares da maneira de ser dos madeirenses. É, em grande parte, através dos madeirenses residentes no continente português e no estrangeiro que a RAM se afirma no exterior e que se concretiza a vocação universalista e humanista do povo madeirense. O elo mais forte que liga todos os madeirenses entre si, e à sua terra de origem, é a língua portuguesa, a cultura e as tradições madeirenses. No plano jurídico, é preciso respeitar a igualdade de direitos e deveres entre madeirenses residentes e madeirenses não residentes, bem como defender os direitos e legítimos interesses dos madeirenses não residentes face aos ordenamentos jurídicos e às autoridades dos países de acolhimento, e pugnar pela igualdade de tratamento em relação a todos os não residentes, dando uma especial atenção aos jovens, aos idosos, aos hospitalizados e aos detidos. Ao nível da manutenção e reforço dos laços afetivos e culturais com a Região de origem, deve, em todas as circunstâncias, ser aprofundado o amor à pátria madeirense e cultivado o orgulho em se ser madeirense. Os madeirenses não residentes devem ser defendidos junto dos órgãos de soberania, combatendo todo o tipo de discriminação em relação aos outros Portugueses e assegurando a participação das comunidades madeirenses, através das suas estruturas representativas, na definição das políticas a levar a cabo pelos órgãos de Governo próprio, nomeadamente, na política para as comunidades madeirenses no exterior. Do ponto de vista prático, uma política só é eficaz quando dispõe dos instrumentos e meios adequados à sua concretização. A política direcionada às comunidades madeirenses no começo do terceiro milénio carece, antes de mais, de meios financeiros suficientes e de apoios logísticos idóneos. No domínio deste tipo de políticas, é recorrente a exiguidade das dotações orçamentais, pelo que se torna necessário procurar formas de financiamento para além dos apoios oficiais. Quanto aos apoios logísticos e aos instrumentos adequados para levar a cabo esta política, é preciso ter presente o princípio da universalidade: tais apoios e instrumentos devem permitir que as medidas e ações de política sejam acessíveis a todos, esbatendo ao máximo a tentação natural de privilegiar as comunidades que se encontram mais próximas da região de origem. De entre os meios a utilizar, são de privilegiar uma cobertura consular adequada, uma informação atualizada e o mais ampla possível, e um apoio estratégico ao associativismo, tão vulgarizado e atuante no seio das comunidades madeirenses. A cobertura consular é da competência do Governo da República, cabendo aos órgãos de Governo próprio da Região tirar partido dos consulados, que existem em cada país de acolhimento, beneficiando assim as comunidades madeirenses radicadas nas respetivas áreas consulares. Na déc. de 80 do séc. XX, na Venezuela, cujo território é nove vezes maior que o território de Portugal continental, para uma comunidade de cerca de meio milhão de Portugueses, só existia um consulado de carreira em Caracas, com jurisdição sobre a totalidade do território venezuelano e dos territórios autónomos de Curaçau e Aruba. A maior parte dos Portugueses residentes naquela vasta área consular era de origem madeirense e foi devido ao empenho de um secretário de estados das comunidades portuguesas natural da Madeira que se procedeu à abertura de um novo consulado em Valência e à ampliação e modernização das instalações do consulado em Caracas, melhorando-se substancialmente a cobertura consular naquele país, com benefício para todos os Portugueses lá residentes. A informação a fornecer aos madeirenses residentes fora da Madeira não pode ser só de carácter utilitário, mas também de cariz cultural, social, recreativo, desportivo, o mais ampla e atualizada possível. A informação adequada às comunidades madeirenses terá de ser tridirecional, isto é, da RAM para as comunidades, das comunidades para a RAM e para o país em geral, e das comunidades entre si. Só assim se alcança um conhecimento recíproco, que é o suporte indispensável de qualquer universo que se pretenda coeso e solidário. Trata-se de um desiderato facilmente alcançável graças aos múltiplos meios de comunicação proporcionados pela tecnologia. Não será exagerado considerar que este é o instrumento mais eficaz de política junto das comunidades madeirenses no exterior. O apoio ao associativismo, baseado em uma visão estratégica da presença dos madeirenses no mundo, também é relevante. Tal visão consiste em, para além do apoio prestado ao associativismo tradicional, de cunho saudosista e folclórico, promover o associativismo de jovens e de empresários. É neste ponto que reside, em grande parte, o que permitirá dar o salto qualitativo em matéria de política para as comunidades madeirenses. Ao privilegiar o associativismo jovem e empresarial, contribui-se para uma melhor integração dos madeirenses e dos seus descendentes nas sociedades de acolhimento, o que aumentará a importância política, cultural, económica e social das comunidades portuguesas no seio dos países que as acolhem, e garantirá a sua perenidade no futuro. De facto, só os descendentes da primeira geração de emigrantes poderão perpetuar a sobrevivência das comunidades madeirenses nos países de acolhimento. Para isso é necessário que se mantenham ligados à Região dos seus antepassados e vejam permanentemente vivificada a herança cultural e afetiva que os antepassados lhes legaram. O papel da internet, como já se disse, é fundamental, bem como a existência de programas de rádio e televisão nacionais e regionais especialmente dirigidos a jovens. O recurso às tecnologias de comunicação não dispensa, porém, o conhecimento presencial de lugares e pessoas, através da criação e manutenção de mecanismos que permitam intensificar o intercâmbio de conhecimentos e experiências, através da celebração de protocolos ou parcerias, e da obtenção de apoios públicos e privados que o propiciem. Deve realçar-se, neste contexto, a importância que assume o intercâmbio ao nível do ensino superior, dada a sua repercussão em termos de um maior protagonismo dos jovens descendentes de madeirenses nas sociedades de acolhimento, e a organização de iniciativas específicas que permeiem os jovens participantes por razões de mérito, dando-lhes a conhecer a terra dos seus antepassados. Outro instrumento fundamental a ter em conta é o ensino à distância, tirando partido das plataformas comunicacionais para criar salas de aula virtuais para esse efeito. Ponto fulcral desta política dirigida aos jovens é a preservação e divulgação da língua portuguesa. O português é uma língua estratégica, pelo número de pessoas que a falam em vários países de diferentes continentes. Além disso, é o meio de comunicação privilegiado no seio do chamado mundo lusófono, e constitui o mais poderoso meio de ligação à pátria portuguesa e à região de origem dos portugueses que vivem no estrangeiro, e dos seus descendentes. Daí que a aprendizagem do português deva estar entre as prioridades da política para as comunidades madeirenses. Além do associativismo juvenil, deve estimular-se o associativismo empresarial, não só pela importância de que se reveste o poder económico dos empresários madeirenses nas economias das sociedades de acolhimento e pelas vantagens que daí podem resultar para o desenvolvimento económico da RAM, mas também pelo apoio financeiro que podem dar às iniciativas culturais, sociais e filantrópicas das comunidades de madeirenses, e às candidaturas de madeirenses e seus descendentes a cargos de responsabilidade política nos diferentes níveis da organização do poder político dos Estados onde residem. É conhecido o sucesso empresarial de muitos madeirenses nos países de acolhimento e a repercussão que isso tem na internacionalização da economia portuguesa e no desenvolvimento da sua Região de origem. Foi com o objetivo de reconhecer e aproveitar esse potencial económico que, no início da déc. de 90 do séc. XX, foi criada a Confederação Mundial dos Empresários das Comunidades Portuguesas, e que, durante as décadas que se seguiram, os órgãos de Governo próprio da RAM criaram e mantiveram condições atrativas para que os empresários madeirenses dispersos pelo mundo investissem na sua terra natal. Em termos estratégicos, os empresários, graças ao seu poder económico, também podem desempenhar um papel decisivo na afirmação da presença cultural das comunidades madeirenses no estrangeiro, reforçando a importância global dessas comunidades nos países de acolhimento, quer sob a forma de mecenato, quer sob a forma de simples ajudas financeiras avulsas. O quadro jurídico-constitucional exclui dos poderes das regiões autónomas os chamados atributos da soberania ou poderes soberanos: política externa, defesa, segurança interna e justiça. Mas não em absoluto, já que, para além do direito de audição junto dos órgãos de soberania sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito, bem como em matérias do seu interesse específico (art. 227.º, n.º 1, alínea v), da CRP), e do direito de participar no processo de construção europeia (alínea x) do mesmo artigo), os órgãos de Governo próprio têm o poder de participar nas negociações de tratados e acordos internacionais que diretamente lhes digam respeito, bem como nos benefícios deles decorrentes (alínea t) do n.º 1 do art. 227.º da CRP). No âmbito da política para as comunidades madeirenses, estes poderes revestem-se de particular importância, quer no que toca à proteção consular, quer na negociação de tratados e convenções internacionais com interesse para a situação dos madeirenses residentes no estrangeiro, quer no que respeita, em geral, à política do Governo central para as comunidades portuguesas. Trata-se, assim, de um raro domínio em que a RAM participa na execução da política externa do Estado português. O regresso definitivo dos madeirenses que residem no estrangeiro é outro aspeto que não pode ser descurado numa política direcionada às comunidades madeirenses. Trata-se de um fenómeno incontornável, cuja dimensão varia consoante a situação interna dos países de acolhimento. O regresso definitivo de tais cidadãos confronta os poderes autonómicos com problemas específicos, nomeadamente no que toca à inserção escolar de crianças e jovens, à integração no mercado de trabalho, a apoios de natureza social e à aplicação de poupanças. Isto significa que os responsáveis aos níveis político, social e económico devem contribuir para a criação de condições adequadas de reinserção, sob pena de o regresso à terra natal se configurar como uma segunda emigração. A participação dos madeirenses não residentes na vida política, cultural, social e económica da RAM é desejável e deve ter maior expressão. Para o efeito, devem ser legalmente reconhecidas as estruturas representativas das comunidades madeirenses e regulado o modo de participação na conceção e execução dos programas de governação regional e autárquica. A forma como se constituem as estruturas representativas no seio das comunidades madeirenses é outro assunto que não pode ser descurado. A este respeito, a lei deve assegurar que a representação seja genuína, democrática e interclassista. Além das estruturas representativas dos madeirenses residentes fora da Região, devem ser criadas e mantidas instituições, de natureza pública ou privada, que constituam uma presença permanente e visível das comunidades madeirenses no seio da sociedade madeirense, sediadas na cidade capital da Região. A título de exemplo, refira-se a necessidade de existência de um fórum das comunidades madeirenses e de uma fundação das comunidades madeirenses, inexistentes no começo do séc. XXI. O fórum disporia dos seguintes espaços: um núcleo museológico, onde estaria presente a memória da saga das migrações madeirenses ao longo dos tempos e o espólio de individualidades madeirenses com responsabilidades políticas na área das comunidades portuguesas e/ou madeirenses; um núcleo cultural, onde estariam patentes obras relacionadas com a temática das comunidades, resultantes da produção intelectual e artística de madeirenses residentes no estrangeiro, ou até residentes na Região, e onde se levariam a cabo iniciativas de natureza cultural; e um núcleo de apoio aos Madeirenses residentes fora da Região, que compreenderia um universo de serviços de resposta às múltiplas necessidades dos não residentes, e dos regressados definitivamente, perante as entidades e serviços da administração pública autónoma, os municípios da Região e as entidades privadas. O outro exemplo consiste em criar uma entidade que seria a fiel depositária e a gestora dos donativos (feitos a título de mecenato ou outro), das doações e das deixas testamentárias de madeirenses que perecem fora da Região ou de residentes – ajudas e patrimónios que seriam administrados de acordo com o interesse dos madeirenses regressados em situação de emergência social, em obras de solidariedade social e em iniciativas de dignificação da presença dos madeirenses no mundo. A participação política nas eleições regionais, legislativas e autárquicas é recomendável. Os madeirenses não residentes, dada a sua dupla cidadania, portuguesa e europeia, têm o direito de participar nas eleições de âmbito europeu e de âmbito nacional, nos termos da respetiva legislação. A este respeito, merecem especial destaque a eleição do Presidente da República e a eleição dos deputados à Assembleia da República. Por tudo quanto fica exposto, é imperativo concluir que a existência de comunidades madeirenses radicadas fora do território da Região, com a importância que assumem, na Região e nos países que as acolhem, exige dos responsáveis políticos a definição de uma política específica, que abranja as múltiplas vertentes em que tal realidade se desdobra, adequada às especificidades de todas e de cada uma dessas comunidades e com visão estratégica e sentido de responsabilidade face aos interesses vitais da RAM. Manuel Filipe Correia de Jesus (atualizado a 30.12.2016)