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paço episcopal

Os primeiros bispos do Funchal, ligados à administração régia, não se deslocaram à Madeira, tendo sido D. frei Jorge de Lemos (c. 1510-1574) o primeiro a fazê-lo. Desembarcou na Ilha dois anos após a sua nomeação, em 1558, tendo-se instalado em casas particulares, pertencentes a Tristão Gomes de Castro (1539-1611), neto de Bárbaro Gomes Ferreira (c. 1475-1544), que fora vedor das obras da sé do Funchal e depois alferes-mor da Ilha (Sargento-mor), casas na então Rua Direita, atual Rua dos Ferreiros, onde se levantou depois o palácio Torre Bela (Palácios). Após uma breve estadia de apenas cinco anos, num episcopado que durou na totalidade treze, D. frei Jorge de Lemos retirou-se para Lisboa, em 1563, e nas mesmas casas veio a residir depois D. Jerónimo Barreto (1543- 1589). Este bispo começou por se instalar após a sua chegada, a 31 de outubro de 1574, na inicial residência da Companhia de Jesus, na albergaria da capela de São Sebastião, e só após o conselho dos jesuítas escolheu residência, nas casas um pouco acima, onde residira D. frei Jorge de Lemos, dado que o proprietário nunca ali residiu. D. Jerónimo Barreto ainda permaneceria 10 anos na sua diocese, mas em 1584 foi colocado na do Algarve, para onde saiu, a 3 de junho de 1585. A substituição foi rápida para a época e, a 4 de agosto de 1586, desembarcava no Funchal D. Luís de Figueiredo de Lemos (1544-1608). Após as complexas cerimónias da tomada de posse da diocese, primeiro na praia do Funchal e depois na sé, o novo bispo retirou-se “às suas pousadas, que tomadas estavam na Rua das Pretas” (FRUTUOSO, 1968, 316-317). A referência à residência na Rua das Pretas parece ser um lapso do cronista açoriano, pois que D. Jerónimo Barreto residiu na Rua Direita, hoje Rua dos Ferreiros, e todas as informações seguintes dão as mesmas casas como também residência de D. Luís Figueiredo de Lemos. Em carta de Lisboa, o prelado tinha solicitado “umas casas acomodadas” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, avulsos, mç. 9, doc. 9), onde se pudesse instalar aquando da sua chegada, pelo que se pode ter optado, de imediato, pelas casas da Rua das Pretas, mas depois voltou-se às da Rua Direita, anteriormente ocupadas por D. Jerónimo Barreto. O bispo D. Luís Figueiredo de Lemos deixou estas casas em meados de 1594, ocupando, em princípio, as casas negociadas pelo seu antecessor para instalação do seminário, na atual Rua do Bispo. Escreve depois o cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) que nas referidas casas da Rua Direita se iniciou um enorme incêndio, no dia 26 de julho de 1594, “em dia da gloriosa Santa Ana”, dizendo que havia pouco tempo desde que foram despejadas pelo prelado, incêndio que queimou 104 casas de morada, “das melhores e mais principais de toda a cidade” no centro do Funchal. Refere ainda o cronista a estranheza do ocorrido, tanto porque nessas casas tinham residido os anteriores prelados, “por cuja causa as devíamos supor santificadas”, como pela razão de terem sido hospício dos “gloriosos mártires”, do padre Inácio de Azevedo e seus companheiros (NORONHA, 1996, 367). Esta referência, contudo, não é verdadeira, uma vez que esses jesuítas pernoitaram muito pontualmente no Funchal, e mais abaixo, na albergaria de São Sebastião, dado que quase todos pernoitaram a bordo da nau em que pensavam chegar ao Brasil. Desse incêndio ficaram os topónimos das Ruas da Queimada de Baixo e de Cima. Foi o prelado D. Luís Figueiredo de Lemos que mandou construir os primeiros paços episcopais. O paço foi levantado segundo desenho executado pelo mestre das obras reais Jerónimo Jorge (c. 1570-1618) e à custa do erário régio, como ainda hoje se pode constatar pelas armas reais existentes no edifício. Desse paço primitivo ficou a loja maneirista e a capela de São Luís de Tolosa, datada, na fachada, de 1600, ano que corresponde possivelmente à data de intenção e não de construção, pois o pagamento feito ao mestre das obras reais Jerónimo Jorge, por umas traças e diligências que fez no sítio do “Seminário, tocantes às casa episcopais”, tem a data de janeiro de 1604 (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fls. 279-279v.). Do edifício maneirista dos inícios do séc. XVII resta a fachada simples virada para a Rua do Bispo, com o brasão real de Portugal com coroa aberta, que os Filipes usaram em todas as obras no país e a interessante loggia de sabor renascentista, virada a Norte, onde funciona hoje o Café do Museu. Compõe-se de uma galeria aberta e alpendrada, com balcão cego e pilastras muito elegantes, assente em arcos de volta perfeita, que se articula com a pequena capela de São Luís de Tolosa, onde o prelado se fez sepultar e cuja lápide se encontra hoje na entrada da sé do Funchal. A lápide, em mármore branco continental, com as suas armas e cartela maneirista, lembra, decididamente, a de D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego, que se fez sepultar como arcebispo, mas existem no continente e na Ilha outras lápides semelhantes. O portal da capela é de muito bom desenho, com entablamento decorado com pontas-de-diamante, a inscrição “Ludovicus Epus Funchalensis 1600” e as armas do prelado, ladeadas e encimadas pelo que parecem ser esferas armilares simplificadas, conjunto ainda rematado pela cruz da Ordem de Cristo. A fachada da capela é encimada por óculo simples e rematada a norte por campanário de gosto tardo-gótico. O prelado mandou representar nas suas armas as dos Figueiredo, mas não as dos Lemos, com rosetas de quarto crescente. Nas armas da capela aparece uma merleta, pequena ave semelhante à andorinha, mas sem patas aparentes, que foi atribuída aos Leme, família que se fixou na Madeira ainda no séc. XV, cujos elementos heráldicos o bispo carregou nas suas armas, bem como as cinco folhas de figueira, utilizadas pela família Figueiredo. Para norte, a capela articula-se com uma escadaria de acesso à antiga entrada do paço, com arco de volta perfeita e acesso ao alpendre da loggia, numa composição que terá sido reposta pelas obras de 1940/50. Estas casas ainda tiveram obras ao longo do séc. XVII, pelo menos na vigência do prelado D. frei António Teles da Silva (1675-1682), homem de gosto refinado, que deixou um importante espólio de que faziam parte móveis orientais, entre outras peças, e, muito provavelmente, também duas grandes talhas chinesas, adquiridas após a morte de D. Luís Rodrigues Villares (c. 1740-1810) para a capela do Santíssimo da sé. Da vigência de D. António Teles da Silva no Funchal sobrevive a Relação do Sínodo Diocesano de 9 de junho de 1680, com a descrição das decorações feitas no paço episcopal (BNP, Arquivo da Casa de Tarouca, doc. 150), das mais interessantes descrições do que foi a época barroca na Madeira. Nos inícios do séc. XVIII, na vigência de D. José de Sousa Castelo Branco, de quem se diz ter sido o “prelado mais amante da nobreza” que veio à Madeira, o paço conheceu nova ampliação (ARM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 273). Incorporou então as instalações do seminário, ao tempo denominado como “colégio de São Luís”, e os estudantes foram realojados no chamado “mosteiro novo”, onde hoje existe o laboratório regional de análises, na rua ainda desta evocação: Seminário. O “mosteiro novo”, que nunca o chegou a ser, era até então “recolhimento de mulheres honestas” e dos descendentes da família do fundador, o cónego António Spranger (SILVA e MENESES, II, 1998, 398-399). A oportunidade de ampliar francamente as instalações ocorreu com o tremor de terra de 1748. O paço episcopal teria sido bastante abalado e o bispo podia ocupar a residência da fortaleza de São Lourenço, pois desde maio do ano anterior desempenhava as funções de governador, dada a saída para o Brasil, diretamente da Madeira, de Francisco Pedro de Meneses Gorjão, nomeado para o governo do Maranhão. Assim, após o tremor de terra, o bispo e a família transferiram-se para São Lourenço. O pedido para aumentar o “palácio episcopal”, que “já antes era muito pequeno, pelo que se tinha ocupado o Colégio de S. Luís, [até então] seminário da Diocese” (ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 973, fls. 155v-156), seguiu logo no mesmo ano de 1748, havendo diligências em 1749, altura em que o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1779), efetuou o projeto e se orçamentaram as obras. A autorização do conselho da fazenda chegou com data de 24 de janeiro de 1750, foi registada a 18 do mês seguinte e logo no dia 24 próximo se procedeu à arrematação, feita pelo mestre carpinteiro Francisco Gomes, morador aos Arrifes, no Funchal, por mais de cinco contos de réis. O auto de arrematação foi lavrado com data de 19 de março, figurando como fiadores do mestre carpinteiro Bernardo Fernandes de Freitas, que também tinha feito um lanço sobre as obras, no valor de sete contos de réis, António Gonçalves e Francisco Fernandes Antunes e Silva. O bispo D. frei João do Nascimento, no entanto, percebeu de imediato que o lanço efetuado pelo mestre Francisco Gomes não cobria as obras que pretendia, pelo que conseguiu, por mandado do conselho da fazenda de agosto de 1751, que se revertessem os ordenados de governador, que se encontrava a acumular desde quase os inícios de 1747, para a reedificação do paço. Com base nesse dinheiro e no seu próprio, o bispo assumiu a direção final das obras. O prelado tinha acumulado até então uma série de ordenados para além do seu, como sejam os de provisor e de vigário-geral, cargos que, entretanto providos, tinham sido comutados para o prelado por mais 200.000 réis anuais, passando tudo os 10.000 cruzados de renda. Por novo mandado do conselho da fazenda, do final desse ano de 1751, as obras foram pagas no estado em que se encontravam ao mestre carpinteiro Francisco Gomes, assumindo o prelado a direção e os encargos do restante. O paço já devia estar, no entanto, minimamente habitável nos meados de 1751, pois em agosto desse ano, o prelado entregou o governo e o palácio de São Lourenço ao novo governador, D. Álvaro José Xavier Botelho e Távora (1708-1789), conde de São Miguel. Contudo, as obras do paço devem-se ter arrastado ainda por algum tempo, pois o magnífico painel de azulejos das fábricas de Lisboa, que decora a enorme varanda superior da torre de ver o mar, deve ser um pouco posterior a 1760. Todo o acompanhamento dos trabalhos, entretanto, foi efetuado pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins. A direção deste, aliada à austeridade franciscana de D. frei João do Nascimento, explica o total despojamento da arquitetura exterior do paço episcopal assim como, por outro lado, a sua escala verdadeiramente monumental para a cidade do Funchal dos meados séc. XVIII. O enorme bloco quadrangular do paço episcopal, rematado por ampla varanda superior, em torre e ao gosto funchalense, aberta para o mar, articulava-se (como ainda se articula) com o corpo construído por Jerónimo Jorge em 1604/1609, rematado pela pequena capela de São Luís de Tolosa. A nascente é muito possível que possuísse mais alguma construção, de serviços, e de que teria ficado o prédio contíguo, com fachada para a Rua do Bispo. Trata-se de um prédio de grande dignidade e anterior à construção do monobloco de 1748/1751, que possui no primeiro piso e no piso térreo vestígios vários de arcos e nichos, ainda mais antigos, assim como cantarias boleadas nos pisos superiores. Todo este conjunto possuía uma cerca ampla para Norte com jardim, ainda utilizada pelo então Liceu do Funchal, que ali funcionou a partir de janeiro de 1914, e que foi depois parcialmente atulhada para nivelamento e utilizada para a construção do largo do Município. Paço Episcopal A fachada para a rua do Bispo apresenta portal central de moldura de remate relevado em cantaria, datado no lintel do início da construção (1750), encimado por cornija relevada e ligeiramente ondulada, ladeado por grandes janelões gradeados de idêntica moldura. As entradas laterais de serviço, de molduras mais simples, são ladeadas por óculos quadrilobados e gradeados. O andar intermédio, correspondendo ao andar de serviços, apresenta oito janelas, que usam como cornija de balanço as sacadas das varandas do andar nobre, aí com grade de ferro com bolachas. As molduras das janelas das varandas do andar nobre são rematadas por frontão curvo e a fachada rematada superiormente por cornija de cantaria relevada com duas gárgulas em forma de meia cana. A fachada norte, dantes virada para os jardins do bispo e depois para o campo de jogos do Liceu do Funchal, apresenta a marcação dos três pisos da fachada com um bloco central de mais dois pisos correspondentes à torre monumental, não visível da Rua do Bispo, sendo o andar inferior, correspondente às antigas arrecadações do paço, dotado de gradeamento à face. O andar nobre é excecionalmente alto, com varandas de sacada a servirem de balanço às janelas do andar de serviços, criando as molduras de cantaria espelhos superiores vazados e possuindo estas janelas grades de ferro, ditas “de barriga”, que permitiam a quem se debruçasse continuar protegido por detrás das mesmas. A fachada poente deste enorme bloco apresenta uma janela decorada com as chaves de São Pedro esculpidas no lintel e uma porta inferior com lintel com cartela maneirista esculpida com a emblemática dos jesuítas. O trigrama cristológico IHS é a abreviatura do nome de Jesus em grego ou em latim medieval: Ihesus. Ora, embora propagado no séc. XIV pelo pregador São Bernardino de Sena e utilizado pelos franciscanos a partir do séc. XVI, foi retomado por Santo Inácio de Loyola com a significação de “Jesum habemus socium”, em português “Temos Jesus como companheiro”, e passou a ser o emblema da Companhia, pelo que o lintel desta porta do paço episcopal deve ter vindo do edifício do Colégio ou de uma das suas quintas. O paço episcopal é rematado superiormente por larga torre de ver o mar, de mais dois pisos, colocada na parte central do conjunto, ligeiramente recuada em relação à fachada, com uma elegante balaustrada de pedra com grade de ferro, que é das poucas que ainda se mantêm abertas no centro da cidade. O alpendre assenta em seis barras de ferro que partem dos balaústres de cantaria, tenda duas portas de moldura de cantaria com lintel de balanço, definindo três panos totalmente ocupados por um painel contínuo de azulejos com as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade, de uma das oficinas dos grandes mestres de Lisboa, datáveis de 1760 a 1765 e de uma grande qualidade de execução. O átrio de entrada do antigo paço episcopal encontra-se empedrado ao gosto madeirense dos sécs. XVIII/XIX, mas num desenho conjetural das grandes obras de reabilitação de 1950 a 1954 para instalação do Museu Diocesano de Arte Sacra. Mantém ainda as argolas de parede para prisão das cavalgaduras, que sobreviveram, assim, a inúmeras campanhas de obras. Apresenta ao centro uma escadaria de grande impacto visual, com corrimão de cantaria e de planta em voluta, terminado nas pilastras com enrolamento das guardas e remate por pelouro, o que lhe dá uma sensação especial de profundidade. A porta superior é rematada por arco abatido e ladeada por dois enormes óculos ovais com moldura de cantaria, de eixo ligeiramente inclinado para iluminação das escadas, ao gosto das encenações barrocas. Assim, os óculos parecem iluminar uma grande escadaria interior, mas esta, interiormente, só corresponde a um lanço de escadas. Armas do Paço Episcopal Nem sempre os prelados funchalenses ocuparam este edifício, optando alguns por se recolherem em outros locais mais recatados, embora ali se mantivessem os seus serviços e os órgãos da diocese. D. José da Costa Torres (1741-1813), 18.º bispo do Funchal, por exemplo, vivia habitualmente na residência da quinta da Penha de França, de onde, aliás, foi embarcado à força em julho de 1796, na escuna Andorinha, do futuro conde de Carvalhal (1778-1837), dado já ter sido eleito bispo de Elvas, e o bispo seguinte, D. Luís Rodrigues Vilares (c. 1740-1810), faleceu na quinta da Nazaré. Os prelados administradores apostólicos, como D. Francisco Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828), bispo de Meliapor, depois eleito bispo de Elvas, também ali não viviam, mas, ao contrário, o cardeal D. Lorenzo Caleppi (1741-1813), arcebispo de Nibisi e núncio apostólico em Portugal, passando pelo Funchal a caminho do Rio de Janeiro em julho de 1808, ficou a residir no paço episcopal.     Arcadas do Paço Episcopal O paço episcopal do Funchal seria confiscado pela fazenda da República em 1910, por ter sido construído com verbas da anterior fazenda régia e aí foi instalado o Liceu do Funchal, em janeiro de 1914. Com a nova consciencialização patrimonial do Estado Novo e a campanha desenvolvida por várias entidades locais em prol da criação de um Museu de Arte Sacra, assim como com a construção de um novo edifício para o Liceu, veio a ser ali instalado esse Museu, após a saída dos alunos em 1942 e as obras de reabilitação, cuja inauguração decorreu em 1 de junho de 1955, cerimónia que contou com a presença do general Francisco Higino Craveiro Lopes, presidente da República, então em visita ao arquipélago, do bispo do Funchal D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957) e das demais entidades regionais.   Arcadas do Paço Episcopal Em 1915, com a tomada de posse de D. António Manuel Pereira Ribeiro, depois de ter sido sagrado em Viana do Castelo, o cabido e um grupo de católicos alugaram uma residência na Rua dos Netos, na esquina da Rua dos Ferreiros, em frente ao antigo Ateneu do Funchal. No entanto, ainda nesse ano, por aquisição da diocese e com apoio de uma doação e uma herança, o prelado passou a residir na quinta senhorial do Largo do Ribeiro Real, que passou a paço episcopal, onde ainda se encontra. O atual paço episcopal foi objeto de obras de reabilitação na época em que assumiu o lugar de bispo auxiliar do Funchal D. Manuel de Jesus Pereira (1911-1978) e que os serviços gerais da diocese conheceram um novo dinamismo, entre 1948 e 1953. Data dessa época a reforma do portal de acesso aos jardins e do alinhamento do muro, ficando o portal encimado pelas armas do bispo D. António Manuel Pereira Ribeiro e a data de 1951. No início da década de 90, construiu-se o novo bloco da Câmara Eclesiástica, sob projeto do arquiteto João Francisco Caires.   Rui Carita (atualizado a 19.12.2017)

Religiões

vasconcelos, joão da câmara leme homem de, visconde e conde do canavial

A vida política, económica e social madeirense foi marcada no último quartel do séc. XIX pela personalidade conflituosa do futuro conde do Canavial, Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos. Filho do morgado António Francisco da Câmara Leme Homem de Vasconcelos e de Carolina Moniz de Ornelas Barreto Cabral, nasceu no Funchal a 22 de junho de 1829, foi simultaneamente clínico, professor, funcionário público, homem de ciência, jornalista e escritor, político e industrial, em todas essas ocupações revelando interessantes qualidades e capacidade e de trabalho, mas também uma personalidade algo conflituosa. Foi autor de uma vastíssima produção literária, quer científica, quer política, que é difícil trabalhar de forma científica, pois nem sempre se consegue separar o que era polémica científica e industrial do que eram atitudes políticas e pessoais. Concluídos os estudos secundários no Funchal, veio a formar-se em medicina pela Universidade de Montpellier, em França, bacharelando-se em 1852 e doutorando-se em 1857, colaborando ali em vários periódicos, fazendo traduções e tendo obtido o lugar de membro da Academia das Ciências e Letras daquela cidade. Começou assim logo por desenvolver um notável trabalho científico na sua área de especialidade a que, regressado à Madeira, juntou também a de investigador da área científico-industrial de tratamento do vinho da Madeira, de que era um dos mais importantes produtores. O Dr. João da Câmara Leme, regressado de França, fez em 1859 repetição dos seus atos académicos na Escola Médica de Lisboa, sendo no ano seguinte nomeado demonstrador de anatomia da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e, em 1867, professor proprietário. No ano seguinte, editava logo um Relatório e Projecto de Regulamento para a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal (1868), entrando de imediato em conflito com o Dr. António da Luz Pita (1802-1870), então deputado em Lisboa, polémicas que se prolongaram pelos anos seguintes. Escrevem os autores do Elucidário Madeirense, que o conheceram pessoalmente, que “teve de sustentar algumas lutas com os seus colegas no magistério, publicando a tal respeito dois grandes volumes, que, apesar da parcialidade com que possam porventura estar escritos, são trabalhos de incontestável valor” (SILVA e MENESES, 1998, I, 232). Paralelamente à sua atividade como médico e diretor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, promoveu ainda a fundação da Companhia Fabril de Açúcar Madeirense (CFAM), com sede junto à ribeira de São João, onde introduziu notáveis aperfeiçoamentos nos processos destinados ao fabrico da aguardente, essencialmente no sentido de um melhor aproveitamento da matéria-prima empregue. Registou de imediato patente da sua invenção, o que deu lugar a uma série de contestações e polémicas, voltando a, sobre esse assunto, publicar inúmeros folhetos. Na polémica viria a entrar outra das grandes figuras da Madeira do seu tempo, o depois comendador William Hinton (1817-1904), a qual polémica, embora não só, veio a inviabilizar alguns anos mais tarde a Companhia da ribeira de São João. A constituição e vida da CFAM, liderada pelo futuro visconde do Canavial, foi um bom exemplo do quadro geral em que se desenvolveu a atrasada revolução industrial na Madeira. Beneficiando do inegável espírito empreendedor do promotor, mas também da sua teimosia e, inclusivamente, de um experimentalismo algo deslumbrado, sempre à procura de uma nova tecnologia, e sem bases técnicas e científicas para tal, a vida da Companhia foi confrontada com a concorrência feroz dos comerciantes britânicos instalados na Madeira. A todo este quadro, juntaram-se as dificuldades de associação e de entendimento dos proprietários madeirenses, muito provavelmente ainda politicamente agudizadas pelos antigos morgados, entretanto radicados no espaço continental. Os estatutos da CFAM só foram aprovados em 1867, arrastando-se a constituição da Companhia por mais de 10 anos, o que implicou que a fábrica de São João só entrasse em funcionamento em 1871. O futuro visconde apetrechou-a com sofisticada aparelhagem, a que ainda associou outros aperfeiçoamentos da sua autoria, de que imediatamente registou a patente. No entanto, não só William e o filho Harry Hinton (1859-1948) vieram a contestar o registo dessa patente, como a sofisticada aparelhagem acabou por não se mostrar rentável. A 26 de agosto de 1878 foi solicitada a intervenção do Banco de Portugal por insolvência financeira da CFAM. A ideia voltou a aparecer em 1892, tomando como exemplo a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, chegando-se mesmo a propor em reunião camarária, de 11 de outubro desse ano, um subsídio anual de 100 mil réis e que a nova associação fosse presidida pelo conde do Canavial. Mas tal como já se inviabilizara o anterior projeto da fábrica de São João, também a associação se extinguia em 1902. Em 7 de setembro de 1876, organizava-se a partir do Pacto da Granja, no continente, uma nova fusão, então entre elementos das antigas formações histórica e reformista, de que nasceu o Partido Progressista, de Anselmo José Braamcamp, que foi o primeiro partido no sentido moderno do termo com programa, apresentando um regulamento interno, com assembleia geral e centros locais. O líder na Madeira viria a ser o Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos, depois visconde do Canavial, aderindo ao partido parte dos antigos membros do Partido Fusionista e do Regenerador. O Partido Fusionista teve como órgão o Correio do Funchal, substituído depois pelos periódicos A Fusão, A Voz do Povo e A Imprensa Livre. Em meados de 1879, com a queda do executivo, saía da Madeira o governador e conselheiro Afonso de Castro, logo assinando, a 21 de julho, a correspondência do governo civil, como membro do conselho do distrito, João da Câmara Leme, como visconde do Canavial, embora a 28 de agosto já não o faça, só voltando a assumir-se como visconde a partir de agosto do ano seguinte. Estranhamente, não se encontra qualquer documentação oficial da sua nomeação como visconde, mas apenas o dec. de 22 de abril de 1888, que o nomeia como conde, citando-se ainda a carta de 28 de março e o alvará de “mercê nova” de 15 de dezembro de 1888 (CLODE, 1983, 107), não havendo contudo confirmação alguma na chancelaria régia. A partir de então, desenvolveu o futuro visconde uma verdadeira campanha para vir a ocupar o lugar de governador civil do Funchal, assim como para passar a utilizar o título de visconde do Canavial. A luta política deve ter sido terrível, a avaliar logo pelos membros do conselho do distrito que assinam alternadamente a correspondência como governador substituto: o visconde do Canavial a 21 de julho e o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880) a 30 do mesmo mês. Luta que deve ter tido eco também nos corredores do poder em Lisboa, até pela utilização então intensiva do telégrafo submarino, através da Madeira Station no Funchal da Brazilian Submarine Telegraph Company Limited. A nomeação de João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos como governador substituto para o distrito do Funchal só viria a ser assinada a 30 de julho de 1879. O decreto terá chegado ao Funchal poucos dias depois e o futuro visconde, a 8 de agosto, logo emite proclamação impressa e inflamada ao sabor de alguns dos governadores anteriores, que eram, no entanto, efetivos, pois nenhum até então tinha feito especial alarido com o facto de ser “governador substituto” (ARM, Alfândega do Funchal, liv. 683). O novo governador substituto teria alguns curtos meses de estado de graça, pois em breve O Direito o acusava de se encontrar a receber três ordenados: o de governador substituto, o de professor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e o de delegado de Saúde. A 15 de fevereiro, o governador distribuía um comunicado com um desmentido atestado pelo delegado do Tesouro em como, passando a receber o ordenado de governador substituto, suspendera os outros. O futuro visconde do Canavial não seria confirmado naquela altura, pois, caindo o gabinete progressista em Lisboa, o novo gabinete regenerador demitiu de imediato os governadores civis progressistas e, a 26 de abril de 1881, já assina a correspondência do Funchal o vogal do Concelho do Distrito servindo de Governador Civil, João Maria Curado de Vasconcelos (1825-1896). A breve trecho, um autêntico terramoto político varreria o país, com epicentro na Madeira: a eleição do Dr. Manuel de Arriaga, candidato pelo Partido Republicano às cortes, a 26 de novembro de 1882, em eleições suplementares, dado o falecimento do deputado madeirense Dr. Luís de Freitas Branco (1819-1881). Ainda antes do anúncio oficial do apoio dos regeneradores ao líder do Partido Progressista, já O Direito alardeava não poder haver qualquer compromisso com os progressistas, temente, talvez, de ver candidatar-se pela Madeira o visconde do Canavial, até há pouco governador civil substituto do Funchal. Numa intensa campanha ao longo do ano entre os partidos monárquicos, acabou por ser eleito na Madeira o candidato republicano. Nos inícios do ano 1886, o presidente do ministério Fontes Pereira de Melo propunha um adiamento das eleições, para poder organizar uma série de diferendos, o que se estava a tornar um crescente motivo de tensão entre governo e oposição. O rei D. Luís não acedeu à proposta do chefe do governo, pelo que Fontes se viu na contingência de ter de pedir a demissão do gabinete. Foi então chamado ao governo o Partido Progressista, liderado por José Luciano de Castro, mas o início do novo governo progressista foi ocupado com as complicadas negociações que levaram ao casamento do príncipe herdeiro D. Carlos, atrasando uma série de nomeações. Teria sido o caso da nomeação do governador civil do Funchal, para o então líder dos progressistas, visconde do Canavial, lugar que só foi preenchido por dec. de 1 de julho de 1886. Após as eleições de março de 1887, o governador civil, visconde do Canavial, iniciou a convocação das eleições das juntas de paróquia, que somente ocorreram no Funchal e em Machico. O visconde do Canavial insistiu nas convocatórias por três vezes, sem resultado, essencialmente pelos custos que mais uma estrutura política acarretava, mas também por causa da conotação com a divisão eclesiástica tradicional e da ideia rural de que a paróquia era dirigida pelo “senhor pároco” ou “senhor vigário” e não por um elemento eleito entre os “senhores morgados”. A pressão do visconde do Canavial conduziu a um levantamento geral na ilha, que, começando nos meios rurais, quase envolveu o Funchal: a Parreca. Perante a contestação geral, mas só depois de muito pressionado, o visconde do Canavial veio a apresentar demissão a 26 de março de 1888, tendo sido entregue o governo ao visconde da Calçada, Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa (1812-1902). Apesar das dificuldades do seu governo e dos resultados da comissão de inquérito à Parreca, seria elevado a conde do Canavial no final desse ano de 1888, embora se desconheça a documentação oficial, como mencionámos acima. O conde do Canavial viria a falecer na sua residência, à rua da Carreira, a 13 de fevereiro de 1902. Quase 20 anos depois, surgiu a ideia de se levantar um monumento à sua memória, iniciativa de Abel Capitolino Batista; o trabalho foi entregue ao jovem escultor macaense Raul Xavier (1894-1964) e erguido sobre plinto de mármore branco, projeto do arquiteto Fernando Pires. A primeira pedra foi lançada a 1 de dezembro de 1921 e o monumento inaugurado a 2 de março de 1922, no passeio público, frente à sé do Funchal, tendo usado da palavra Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), em nome dos alunos do liceu (Diário de Notícias, 22 fev. 1922). A inauguração do monumento naquela altura e naquele local levantou enorme celeuma, dado o seu enquadramento monárquico, vindo a ser transferido para o Campo da Barca, a 6 de dezembro de 1932.     Rui Carita (atualizado a 31.12.2016)

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convento de são francisco do funchal

O mais importante e interventivo Convento na vida geral da Madeira sempre foi o de S. Francisco do Funchal, com profundas raízes locais e, ao mesmo tempo, com um especial sentido de liberdade imediatista, que criou inúmeros problemas às autoridades instituídas. Os Franciscanos acompanharam os primeiros povoadores em 1420, e foi-lhes depois entregue a assistência espiritual nos primeiros anos do povoamento. Dez anos depois, por volta de 1430, estava na Madeira Fr. Rogério, então também acompanhado de frades de origem castelhana, galega e biscainha que, segundo Fr. Manuel da Esperança, bem podiam encher de conventos toda a Ilha, se ela tivesse povoações nas quais se sustentassem. Acrescenta ainda o cronista que tal não teria acontecido de imediato, pois “vinham fugidos do mundo e não podiam (ou não queriam) ver gente”. Assim, “encovados pela serra, conversavam só com Deus, pretendendo imitar o rigor da penitência” (ESPERANÇA, 1666, 670-671). Foi com esse espírito que os Franciscanos se instalaram num eremitério com a invocação de S. João Baptista, cerca de 10 anos depois, por volta de 1440, como viria a escrever, mais tarde, Fr. Nuno Cão (c. 1460-1530/1531), vigário do Funchal, em sentença de 1499: “que haveria ora sessenta anos” que ali se tinham fixado (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, avulsos, mç. 11, n.º 1). O eremitério era na margem direita do ribeiro de S. João, no Funchal, e teria quase uma dezena de irmãos leigos, tendo tido como guardião Fr. Pedro das Covas ou Fr. Pedro Mourão, “homem velho e de muita autoridade” (SILVA, 1946, 163). Os Franciscanos da província de Portugal só em 1450 conseguiram autorização, pela bula Iniunctum Nobis, de 28 de abril desse ano, do Papa Nicolau V para manterem um eremitério na Madeira, que já teriam erguido sem qualquer beneplácito. Convento de São Francisco. Arquivo Rui Carita   Convento de São Francisco. (pormenor) Arquivo Rui Carita   A comunidade madeirense foi entregue ao vigário provincial dos observantes portugueses, mas, como haveria de referir o vigário do Funchal, os Franciscanos que à “ilha iam habitar e morar, iam de passada a ver o mundo, cada um por sua arte e não faziam assento” definitivo, correndo “para as outras ilhas de baixo (as Canárias, em princípio), como caminhantes” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 11, n.º 1). Essa situação e a interferência das outras comunidades provinciais ibéricas acabaram por levar os Franciscanos a sair da Madeira, em 1459, então nove elementos, dois padres e sete leigos, vindo a instalar-se, por ordem real, no futuro Convento de Xabregas, em Lisboa, sob o padroado da condessa da Atouguia. No continente, e depois do falecimento do infante D. Henrique, em 1460, os principais das Ordens de S. Francisco e de Cristo procuraram um entendimento e, por certo, uma delimitação de campos de ação. Encontrado esse acordo, regressaram os Franciscanos à Ilha, embora somente quatro do grupo que havia saído em 1459, voltando a ocupar o pequeno Hospício de S. João, por volta de 1464. Os Franciscanos voltaram sob a direção de Fr. Rodrigo de Arruda, homem de certa influência junto do geral da Ordem, em Roma, e que fora já provincial em Portugal, além de manter relações pessoais de amizade com o segundo capitão donatário do Funchal, João Gonçalves da Câmara (1414-1501). Referiu o Cón. Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) e transcreve Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) que, tendo os Franciscanos acompanhado o Cap. João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), este lhes deu agasalho no Funchal, numas casas em lugar ermo, de onde depois se transferiram para o edifício que construíram “em baixo na vila […], nuns chãos e terras defronte de Santa Catarina, além da ribeira” (FRUTUOSO, 1968, 86). Foi, assim, na sua primeira residência, a pequena capela de S. João Batista, ou de S. João da Ribeira, que se vieram a instalar, de novo, em 1464, e que, pouco tempo depois, teria breve de autorização do Papa Sisto IV, de 1476. Entretanto, Fr. Rodrigo de Arruda, logo que chegou ao Funchal, aproveitando as boas disposições dos habitantes e a autorização que já possuía, tratou de levantar um novo convento no centro da povoação. Os Franciscanos achavam o sítio em São João da Ribeira impróprio para a sua instalação, “escondido no meio da ribeira e tão distante do povo para o serviço dele, nas confissões e sermões, e noutros ministérios da alma”, ainda acrescentando as Saudades da Terra que a causa da mudança, para além de que “o lugar era ermo”, era que um frade, “por induzimento do Demónio, que sempre urde semelhantes teias”, se tinha ali enforcado, havendo assim necessidade de encontrar outro sítio (Id., Ibid., 85). O terreno escolhido foi um que pertencera a Clara Esteves, que em testamento o havia vinculado a um seu parente, o então escudeiro João do Porto, cedendo os religiosos, em troca, o Hospício de S. João, menos a capela, tendo tudo sido autorizado pela infanta D. Beatriz, como tutora de seu filho, o duque D. Diogo, grão-mestre da Ordem de Cristo, a quem a Ilha pertencia. A instalação no Funchal deve datar de 1473, como se pode ler na lápide sepulcral dos fundadores, Luís Álvares da Costa e seu filho, Francisco Álvares da Costa, provedor da Fazenda, igualmente o ano do testamento de Clara Esteves, de 1 de janeiro, que já deixava ao Convento, por certo ainda à comunidade de S. João da Ribeira, 2000 réis, uma peça de pardo para vestuário e 30 varas de burel para vestes. Laje sepulcral dos fundadores. 1473. Arquivo Rui Carita As instalações do novo Convento progrediram rapidamente, já tendo guardião em 1476, Fr. Rodrigo Contendas, tendo-se ali registado, em finais de 1482, o célebre milagre com a imagem de um crucifixo. Segundo a tradição, esta imagem, que “falava algumas vezes” com Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, aos pés de cujo altar foi depois sepultada, teria realizado um milagre, a 26 de dezembro de 1482. Nesse dia, pregando então o P.e Fr. Rodrigo, viu D. Helena o “braço direito do dito crucifixo derribado fora da cruz, todo ao lado do corpo”, milagre depois autenticado pelo bispo D. Fr. Loureço de Távora (1566-1629), a 24 de outubro de 1615 (BNP, IGRAPRF, 1775, fls. 85-88). O Convento passou logo a usufruir dos privilégios gerais concedidos por D. Afonso V, em 2 de abril de 1459, em que se isentava os Franciscanos do pagamento de fintas, taxas e tributos, como a sisa e a dízima, a “portagem costumada de peão”, o vinho, a carne e o pescado. O longo documento de isenção refere ainda aquilo que comprassem para seu mantimento, “para seus vestidos e necessidades”, materiais que comprassem para reparação dos mosteiros e casas, tais como pedra, cal, areia, madeira, pregadura, tabuado, cavalgaduras e animais de carga, “com seus aparelhos, que para servidão comprarem”, “posto que os tornem a vender”, etc. O mesmo se passava com as coisas que lhes fossem dadas ou deixadas, “que eles possuir não possam, e quaisquer joias e ornamentos” que comprassem ou lhes vendessem para os serviços divinos, assim como vestimentas, capas, livros, imagens e quaisquer outras coisas “que para isso pertencerem” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, mç. 1, n.º 4). As obras da primeira fase do Convento foram, assim, iniciadas em 1474, e o Convento já se encontrava habitado por volta de 1487, numa primeira fase das obras. Gaspar Vaz, que fora para a Madeira em 1539, por ordem de D. João III, em carta de 20 de maio de 1542 dá conta ao Rei das obras que, nessa altura, decorriam no Convento de S. Francisco, ordenadas pelo visitador da Ordem, Fr. Nuno, que, “por o mosteiro de S. Francisco estar mal remediado de dormitório, ordenou uma obra mui formosa e honrada, a saber: dormitório novo e debaixo refeitório com seu peio”, ou seja, uma fonte de água (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 72, doc. 9). O visitador que ordenara estas obras era também um pregador de grande fama e fora angariar fundos para as obras necessárias ao Convento do Funchal, e reformar igualmente os restantes Conventos franciscanos locais, que, após terem formado uma província autónoma, por bula de Sisto IV, de 1477, tinham voltado a depender da província de Portugal, por bula de Inocêncio VIII, em 1488. O Convento veio a ser sucessivamente ampliado, logo a partir de 1550, quando beneficiou de um legado de D. Maria de Atouguia, filha do provedor Francisco Álvares da Costa, que, falecendo solteira, a 11 de fevereiro desse ano, deixou uma pensão para missas por sua alma e para aquisição da cerca. Nos anos seguintes, era ampliada a igreja, sendo sagrada a 14 de março de 1554 pelo bispo castelhano D. Sancho Trujillo, que, passando pela Ilha vindo das Canárias, ali passou algum tempo. Este bispo castelhano pretendeu depois, inclusivamente, ser titular do bispado do Funchal, quando era bispo de pleno direito D. Fr. Gaspar do Casal (1510-1584), embora o mesmo nunca se tenha deslocado ao Funchal, tendo sido depois, em 1557, bispo de Leiria e, em 1579, de Coimbra. O Convento já possuía importantes adegas em 1566, conforme consta do saque corsário de outubro desse ano, onde alguns dos huguenotes franceses estiveram alojados e se teriam embebedado. Aliás, alguns dos frades do Convento de S. Francisco teriam sido dos poucos habitantes da cidade que afrontaram as forças francesas, por indicação do comissário, Fr. Baltasar Curado, na rua da Carreira, tendo à frente Fr. Álvaro de Miranda, que em Mazagão se havia notabilizado contra os mouros, mas ali foi morto, tal como cinco dos frades que o acompanhavam. No interior do Convento, ainda seria morto o sacristão, o P.e Fr. Rodrigo de Portalegre, que ali tinha ficado a esconder o tesouro com o vigário Fr. João dos Reis. O vigário, entretanto descoberto na sua cela, veio a escapar à morte por ter revelado o esconderijo das pratas do Convento. A cerca e o claustro de S. Francisco serviram depois para o enterramento das cerca de 300 vítimas do saque dos corsários franceses. Henrique Henriques de Noronha (1667-1730), mais tarde, por volta de 1722, escreve que os 10 Franciscanos mortos durante o saque de 3 de outubro foram sepultados no chamado “capítulo velho”, “debaixo de uma só campa”, seguindo as informações de Fr. Manuel da Esperança (ESPERANÇA, 1666, 684). O cronista acha serem muitos corpos para uma só sepultura, embora entenda que ali foi sepultado, pelo menos, Fr. Álvaro de Miranda, por determinação de seu irmão João Mendes de Miranda, porque da família do instituidor da capela daquele capítulo, ou seja, Simão Acciauoli (c. 1480-1544). Os Franciscanos mortos tinham sido, para além de Fr. Álvaro de Miranda e de Fr. Rodrigo de Portalegre, que refere como Rodrigo de Santiago, já mencionados, ainda Fr. Inácio de Leiria, Fr. Pedro de Eça, Fr. Pantaleão, Fr. Manuel da Cruz, Fr. Custódio Corista, Fr. Simão Corista e Fr. Francisco Cartaxo, assim como Fr. Gaspar “Terceiro”, um irmão donato, ou seja, que ainda não havia professado, embora já de alguma idade, por certo, que “pasmou e de pasmo morreu” (NORONHA, 1996, 240).   Planta da cidade 1570. Arquivo Rui Carita   Planta da cidade e Convento 1567. Arquivo Rui Carita Na armada de socorro de uma semana e pouco depois, provavelmente teria vindo o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1530-1595), que levantou uma planta da cidade, aproximadamente entre 1567 e 1570, onde se percebem as dimensões e a forma geral do Convento de S. Francisco. O edifício ocupava cerca de metade do posterior jardim municipal, dando sobre a rua dessa evocação nos começos do séc. XXI e ocupando a igreja o limite sul do jardim, com o adro lateral a avançar para a Av. Arriaga. A igreja parece já apresentar planta em cruz latina, com o braço sul do transepto saliente, tal como parece ter tido nártex nessa época, indicado com um ponteado para a colunata, como se encontra marcado para os claustros. O dormitório, sob o qual se encontrava o refeitório, deveria ficar para norte, e a cerca envolvia o Convento pelo norte e poente, prolongando-se até ao que é, nos começos do séc. XXI, a R. Conselheiro José Silvestre Ribeiro e ocupando a Av. Arriga quase até à R. das Fontes, tendo o teatro municipal sido levantado no antigo espaço da cerca do Convento. Registam depois as Saudades da Terra, entre 1585 e 1590, que, naquela altura, estava fundado um Mosteiro de S. Francisco da observância, “de boas oficinas, como um dos mais nobres e graves do reino” que os Franciscanos tinham em Portugal, em que sempre estavam perto de 50 frades (FRUTUOSO, 1968, 114). A grande mobilidade social dos Franciscanos é patente depois no recenseamento de 1598, “tirado pelos róis das confissões”, onde se refere o Mosteiro de S. Francisco, “que geralmente tem quarenta religiosos” (BGUC, cód. 210, fl. 30), o que é perfeitamente indicativo de que, mesmo pelos róis de confissões, era impossível assegurar um número concreto. A igreja era “muito grande e lustrosa”, segundo escreveu Frutuoso, especialmente após a ampliação levada a cabo pelo P.e Fr. Diogo Nabo, “guardião dela e comissário de toda a ilha”. Havia então oito capelas “muito ricas” e dois altares, que pensamos serem os colaterais, para além da capela-mor. Diziam missa “uma hora ante manhã”, onde concorria muito povo, dando muitas esmolas na portaria e tendo o púlpito sempre três a quatro pregadores. A cerca era muito grande, com “água de levadas”, com que regavam muita hortaliça “de couves murcianas, beringelas e cardos”, e tinham pomar com “árvores de espinho”, palmeiras, ciprestes, pereiras, romeiras “e toda a frescura que se pode ter de frutas e ervas cheirosas”, sem se ter necessidade das de fora. Na cerca, também tinham muitas uvas e, como a população era “gente de tanta caridade”, no verão juntavam de esmolas trinta pipas de vinho (Id., Ibid., 114).                     Pormenor de planta da cidade. Arquivo Rui Carita     Pormenor de planta da cidade. Arquivo Rui Carita A cerca do Convento de S. Francisco do Funchal, confrontando para poente com o solar de D. Mécia, como ficou depois conhecido, ficaria no final do século seguinte ligada a uma das mais célebres ocorrências de então. Este solar fora levantado, em princípio, por João de Ornelas de Magalhães, alcaide da fortaleza do Funchal por nomeação de 14 de maio de 1555, pois já figura na planta da cidade, dos anos de 1567 a 1570, e ostenta no portal exterior as armas desta família. O acidente ocorreu a 7 de março de 1695: encontrando-se D. Mécia de Vasconcelos na janela do seu solar, foi atingida por um tiro disparado por um Franciscano na cerca do Convento. Regista o termo de óbito do cura da Sé, o P.e Francisco de Bettencourt e Sá, que certo religioso de S. Francisco, “natural desta ilha”, para matar um francelho que estava pousado em uma árvore, lhe fez um tiro de espingarda e, disparando-a, deu “um perdigoto na testa por cima do olho” de D. Mécia, de tal sorte “que perdeu os sentidos e o juízo”, falecendo pouco depois (ABM, Sé, Óbitos, liv. 9, fl. 24). Certidão do Guardião do Convento de São Francisco. 1619. Arquivo Rui Carita Com a concentração de inúmeras capelas vinculadas às principais famílias insulares, muitas das quais com sepultura no Convento de S. Francisco, a comunidade adquiriu uma notável influência na vida económica e social insular, não deixando o edifício de crescer nos anos seguintes. O primeiro problema foi o dos testamentos e do usufruto dos legados dos mesmos e, depois, o da impossibilidade de, a curto prazo, cumprir muitos desses legados pios, logo nos meados do séc. XVI, especialmente pela enormidade de missas a celebrar “enquanto o mundo for mundo”, como por vezes se registou. A questão do elevado número de missas, estando muitas já em atraso, levou o prelado, nos finais desse século, a ter de solicitar autorização de Roma para o seu perdão (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, t. 3, 608-608v.). Depois, foi a progressiva centralização do poder nos sécs. XVII e XVIII, quer régio quer eclesiástico, aspeto relativamente ao qual os membros desta comunidade, com a sua tradicional liberdade de movimentos e de costumes, e a sua facilidade de palavra, não ofereciam especial vocação de subordinação. Os problemas com os legados testamentários ocorreram logo em meados do séc. XVI, colocando em oposição o cabido da Sé do Funchal e os Franciscanos. Queixaram-se, então, os membros do cabido a D. João III, “por descargo de suas consciências”, em carta de 22 de maio de 1550, das formas fraudulentas dos frades do Convento de S. Francisco “no fazer dos testamentos”. Contam que, tendo falecido um mês antes “um certo doutor físico de uma prosternação”, o mesmo fora visitado e “importunado”, quando acamado, por um padre que então servia de guardião do Convento, de nome Fr. António de Leiria, conseguindo que o mesmo fizesse testamento a favor do Convento. Escrevem os elementos do cabido que o testamento em questão “foi feito de tal maneira, que tendo ele perto de trezentos mil réis de fazenda, sem sua mulher viva e com três filhas para casar, despendeu em legados para o mosteiro, missa e ofícios, sessenta mil réis”. O enfermo ainda recuperou e pediu para ser revisto o testamento, mas tendo perdido a fala (embora acenasse a cabeça), os Franciscanos não aceitaram a alteração. Pedindo para ser enterrado na Sé, dado dali ser freguês, e vindo o corpo, os Franciscanos foram buscar “o defunto com a tumba”, que levaram para S. Francisco, não atendendo a “excomunhões” (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 84, doc. 59), nem ao provisor, deão e cabido que ali estavam. Os elementos do cabido queixam-se ainda de que os Franciscanos “usurpavam a jurisdição do arcebispado”, utilizando inibitórias do Dr. Luís de Alarcão, “como juiz apostólico com comissão do Núncio”, para mudarem o vigário da vila da Calheta, “desta jurisdição, que servia como ouvidor pedâneo pelo cabido”. Remata a missiva: “E porque isto é em grande prejuízo do Seu padroado, lho fazemos saber”, para se tomarem as devidas providências (Id., Ibid.). Assinam todos os membros do cabido, mas não consta que se tivessem tomado especiais providências contra os Franciscanos. No final do episcopado de D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), a 31 de outubro de 1607, reprovava-se o procedimento de alguns oradores franciscanos, que pregavam “paixões e escândalos esquecidos da obrigação do seu ofício”. Determinou assim o bispo que não fossem admitidos ao púlpito da Sé sem a sua expressa comissão e licença, tendo comunicado inclusivamente à hierarquia da Ordem as atitudes inconvenientes de Fr. António de Pádua, enquanto pregador na Catedral (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, n.º 19). Mais tarde, nas Constituições Sinodais do seu sucessor, de 14 de junho de 1615, o assunto voltava a ser recomendado ao comissário do Convento de S. Francisco do Funchal, alertando-o para que recrutasse pregadores experientes e sabedores, que soubessem atrair os fiéis, caso contrário o prelado reservava-se no direito de prover o lugar a pessoas mais competentes. O assunto, no entanto, atravessaria todo o séc. XVII e passaria ao seguinte. As questões com os Franciscanos ocorreram essencialmente por duas ordens de razões. A primeira, ligada à nova custódia de S. Tiago Menor da ilha da Madeira, determinada por patente do geral da Ordem, em 5 de junho de 1683, e confirmada por Inocêncio XI, a 30 de junho de 1683, pela qual os Conventos da Madeira voltaram a ser separados da província de Portugal. A situação foi sancionada por resolução régia de 6 de maio de 1688, ficando a nova custódia sob proteção régia, por alvará de 23 de janeiro de 1689, que colocava o Convento de S.ta Clara na dependência do custódio do Convento de S. Francisco. A situação levou a confrontos entre os frades e as freiras, com interferências dos primeiros nas eleições e na organização interna do Convento das Clarissas, que muito “escandalizavam” a população. O assunto já levara a um alerta do príncipe regente D. Pedro para o Gov. João de Saldanha da Gama, em 1673 (ABM, Câmara Municipal do Funchal, liv. 1215, fl. 63), mas também tocava ao prelado, que envidou esforços no sentido de serenar os ânimos entre as duas comunidades seráficas. A segunda razão dos problemas com os Franciscanos envolvia, periodicamente, as violentas e inoportunas pregações na Sé, cujo púlpito lhes estava atribuído, pelas quais eram inclusivamente pagos, mas que se afastavam por vezes bastante da contenção a que deviam obedecer. O assunto voltaria a agudizar-se poucos anos depois, sendo objeto de acórdão do cabido, de 16 de janeiro de 1684, onde se refere “que o púlpito não era lugar de despiques”, a propósito da contenda pessoal, e perfeitamente privada, entre dois pregadores franciscanos, os padres Fr. Raul de Santo António e Fr. Manuel de Santo Inácio, que aproveitaram os seus sermões para, do púlpito da Sé, fazerem ataques mútuos (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 3, fls. 32ss.). O cabido decidiu a suspensão dos Franciscanos, voltando a advertir o padre comissário do Funchal para, no prazo de 15 dias, enviar à Catedral religiosos de “melhor talento” de outros Conventos. Insistia o cabido que, caso contrário, preencheria o lugar de pregador “em sujeitos, que com mais exemplo e aproveitamento dos ouvintes, pregassem a palavra de Deus” (Ibid., fls. 47ss.). Os avançados anos do prelado e, muito especialmente, o desgaste sofrido com os problemas em que se viu envolvido com os Franciscanos, e outros, como a censura régia pela excomunhão lançada sobre o governador, que prendera, sem sua autorização, o deão da Sé, Pedro Moreira (c. 1600-1674), fizeram com que, depois de uma breve enfermidade, D. Fr. Gabriel de Almeida (c. 1600-1674) falecesse no Funchal, a 13 de julho de 1674, com pouco mais de dois anos de episcopado. Mais tarde, também a tradicional mobilidade da comunidade franciscana era alvo de provisões do Desembargo do Paço, de 24 de setembro de 1718 e de 21 de outubro de 1729, determinando-se que se deveria notificar os capitães dos navios e os respetivos cônsules, para que não levassem “religioso algum” sem expressa licença dos seus prelados, ou seja, dos superiores dos conventos, “sob pena pecuniária e de prisão”. O segundo diploma, dirigido ao custódio provincial, especifica inclusivamente que faltar ao cumprimento daquela provisão implicava a pena de cem mil réis “para os cativos” no Norte de África e um mês de cadeia (BNP, IGRAPRF, 1775, 88v.). Mas os Franciscanos eram “uma força da natureza” e, pouco tempo depois, o governador e capitão-general Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, a 21 de junho de 1738, queixava-se para o secretário de Estado, em Lisboa, da fuga da Madeira de Fr. Álvaro de São Luís (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, doc. 45). O Convento de S. Francisco do Funchal, no entanto, ocupou um importante papel na história da Madeira ao longo de todo o Antigo Regime. A igreja do Convento era o verdadeiro panteão de grande parte das mais antigas famílias do arquipélago, e nas suas Confrarias tinham assento não só os principais membros dessas famílias, como os quadros superiores da Ilha, incluindo governador, bispo e provedor da Fazenda, aspeto que persistiu inclusivamente até à extinção do Convento. Em 1722, Henrique Henriques de Noronha descreve o Convento, começando pela cerca e claustro, afirmando que tem um chafariz no meio “e um asseado jardim”, para o qual davam as varandas, sustentadas por colunas “de cantaria fina”. Para o claustro davam a sacristia e as casas da Confraria da Senhora da Soledade e dos Irmãos Terceiros, “ambas custosamente asseadas”, a última, em princípio, dedicada depois a Nossa Senhora da Conceição (NORONHA, 1996, 234). Refere o cronista que o Convento deveria ter, pelos seus estatutos, 50 religiosos, mas tinha então muitos mais. A igreja era de uma só nave, com quatro altares de cada lado da nave, dois colaterais e altar-mor, referindo Noronha que, em tempos, o cadeiral tinha ficado na capela-mor, mas que o removera Fr. Diogo Nabo antes de 1554, ampliando então aquela capela e passando a entrada principal para a fachada sul, devendo o cadeiral do coro ter passado para o fundo da nave, a poente. O altar-mor tinha “nobre retábulo”, já dotado de tribuna, e a mesma estava “coberta por excelente pintura do Santo Patriarca” (Id., Ibid., 236) dos Franciscanos, cuja pintura não sobreviveu. Toda a igreja fora azulejada em 1632, incluindo a capela-mor, onde tinham sepultura os religiosos, como era hábito nas casas franciscanas, tendo as armas dos Costa nas paredes e, ao centro, a sepultura dos fundadores Luís Álvares da Costa e Francisco Álvares da Costa, com a indicação da data de 1473, coberta por laje de brecha calcária da serra da Arrábida, que se encontra no cemitério de S. Martinho. O altar colateral do lado do evangelho era dedicado a St.o António “de Pádua, imagem milagrosa” (Id., Ibid.), como se podia constatar, segundo o cronista, pelos inúmeros votos mandados pintar e colocados na parede junto do mesmo altar. Fora fundado por Rui Gonçalves de Velosa, filho único de Gonçalo Anes Veloso, escudeiro do infante D. Fernando e fundador do Hospital e capela de S. Bartolomeu. O fundador deste altar encontrava-se sepultado aos pés do mesmo, com sua mulher Leonor Dória. No altar colateral do lado da epístola, dedicada às Almas Santas, onde figurava o Senhor do Milagre, “que representando estar morto tem a boca aberta, como quem fala”, encontrava-se sepultada, em frente, D. Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, que fora mulher de Martim Mendes de Vasconcelos, o Velho. Ao seu lado, e numa laje flamenga, com “lâminas de bronze” e uma figura feminina a rezar, estava sepultada Joana Valente, “devota das Chagas de Cristo” (Id., Ibid., 236-237), que fora a primeira mulher do terceiro capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530). Distribuídas pela nave da igreja, do lado do evangelho, encontrava-se a capela do Espírito Santo, depois também dos mártires de Marrocos, que fora fundada por D. Maria de Bettencourt (c. 1430-1491), mulher de Rui Gonçalves da Câmara (c. 1430-1497), mas cujo marido que não estava ali sepultado, dado ser capitão da ilha de São Miguel, nos Açores. Na parede lateral, estava um brasão com o leão de negro e rampante, armado de vermelho, dos Bettencourt, a “agarrar” uma flor-de-lis, símbolo da ligação desta linhagem à família real de França. Seguia-se a capela de N.a S.ra dos Anjos, mandada edificar por Manuel de Amil (1509-1585), filho do bacharel João Fernandes de Amil (c. 1460-c. 1520), que fora o primeiro provedor da misericórdia do Funchal. A terceira capela do lado do evangelho era dedicada a S. João Batista, tendo sido fundada pela família Mondragão e da qual era então administrador Francisco Luís de Vasconcelos Bettencourt Machado (1644-1717), pai da célebre morgada D. Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1789). A última capela era dedicada a S. Diogo, “que antigamente se chamou de Santiago” e fora instituída por Lourenço da Gama Pereira (c. 1521-1604), que ali se encontrava sepultado com a primeira mulher, Águeda Teixeira, e a segunda, Isabel de Mondragão. O instituidor era irmão do célebre António da Gama Pereira (1520-1595), desembargador do Paço na época de Filipe II de Castela, e que “dispôs as ordenações do reino” (NORONHA, 1996, 238-239) as famosas Ordenações Filipinas, terminadas e aprovadas em 1595, embora só editadas em 1603, elaboradas em colaboração com Damião de Aguiar e Jorge Cabedo de Vasconcelos, que Noronha não cita. Rainha Santa Isabel. 1640. Arquivo Rui Carita A primeira capela do lado da epístola devia corresponder ao inicial braço do transepto, sendo citada como “maior que as demais, custosamente ornada e com porta travessa para o adro”. Era dedicada à Rainha S.ta Isabel e encontrava-se entregue aos Irmãos Terceiros de S. Francisco, “e ali têm enterro os que querem” (Id., Ibid.). Desta capela deve restar a magnífica imagem da Rainha Santa, que a tradição dá como proveniente do Convento da Encarnação, mas que tem muito mais probabilidades de ser desta capela, até porque desde os inícios do séc. XX se encontrava no Museu Municipal, onde podia ter chegado pelos Irmãos Terceiros, antes de ter figurado no antigo Museu da Cidade nos inícios da déc. de 80 do séc. XX. Seguia-se a capela de N.a S.ra da Conceição, “imagem de grande devoção”, onde existiam as sepulturas de António da Silva Madeira e de Jerónimo Pires do Canto, que, por se terem extinguido os herdeiros, ficara devoluta para o Convento. A terceira capela era de N.a S.ra da Encarnação, fora instituída por Diogo de Barcelos e passara depois para Jerónimo Vieira da Costa. A quarta capela era de N.a S.ra da Graça e tinha sido edificada por João Gomes da Ilha (c. 1430-1495), o Trovador, pajem do livro do infante D. Henrique, e que passou depois ao seu filho Bárbaro Gomes Ferreira (c. 1460-1544), que fora vedor das obras da Sé. Por baixo desta capela ainda havia outra, mais pequena, “a qual edificaram de moderno” (Id., Ibid.) os irmãos da Confraria de S. Benedito, no dizer do cronista, pelo que seria capela levantada já nos inícios do séc. XVIII. Esta devoção era, em Portugal e no Brasil, geralmente dos escravos forros, havendo uma imagem deste frade na capela do Corpo Santo, mas não se conhecendo qualquer documentação a esse respeito para o Funchal. À volta dos claustros ainda existiam mais capelas, a começar pela levantada no chamado “capítulo velho” por Simão Acciauoli, dedicada a Nossa Senhora da Piedade, “que é de excelente pintura”, no dizer do cronista, que só teve idêntica referência para a pintura do retábulo-mor. No “capítulo novo” ficava a capela da Virgem Santíssima e, anteriormente, dos mártires de Marrocos, que, segundo a tradição, teriam passado depois para a capela do Espírito Santo, instituída por Maria de Bettencourt. Nesta capela tinham os religiosos “a sua aula, decentemente ornada”, e igualmente muitas “sepulturas nobres, cujos donos dizem os seus letreiros”. No andar superior ainda existiam mais capelas, como a de N.a S.ra da Estrela e, com especial destaque, “outra que chamam” de N.a S.ra da Escada, ou do Poço, com “imagem de muita devoção” (Id., Ibid., 241), curiosamente uma imagem, muito provavelmente flamenga, em pedra, o que, até por razões de transporte, não é comum. Na passagem dos claustros para a portaria ainda ficava a capela de N.a S.ra da Piedade, acerca da qual havia crentes que afirmaram “que a viram chorar” e, na sua sequência, a capela de S. Caetano. Na portaria havia a capela do Senhor Crucificado e, da parte de fora, outra capela de S. João Batista, “cuja imagem se tirou do mar, misteriosamente”. Igualmente da porta de fora da portaria e pegada com esta estava a capela de N.a S.ra de Jerusalém, “edificada com as próprias medidas do Santo Sepulcro”, seguindo-se logo outra capela da Virgem da Piedade, “onde concorre a todas as horas muita gente”. O mesmo se passava com a capela das Almas, que lhe ficava contígua, sendo “as suas paredes interiores cobertas artificiosamente de ossos e caveiras organizados” (Id., Ibid.). A capela dos Ossos dos Franciscanos do Funchal resistiu à reconstrução dos finais do séc. XVIII, sendo referida na Viagem à Cochinchina do botânico e pintor sir John Barrow (1764-1848), em 1792 e 1793, sendo inclusivamente representada em litografia colorida na edição de 1806 (BARROW, 1806, 37A). Apresenta retábulo ao gosto dos finais do séc. XVII e inícios do séc. XVIII, com pintura de S. Miguel das Almas e duas grandes imagens sobre a mesa do altar, uma das quais parece ser de S. Sebastião. As paredes e o teto encontravam-se totalmente revestidos de caveiras enquadradas por ossos longos, talvez tíbias ou perónios, sobre lambril pintado ou revestido a azulejos. A vida do Convento de S. Francisco foi de alguma forma contida na vigência do bispo jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742), freire da Ordem de Cristo, que chegou ao Funchal a 22 de junho de 1725, não se registando nesse episcopado especiais problemas. Dos poucos livros deste Convento que chegaram aos nossos dias consta o Livro das Patentes, iniciado em 1732 por Fr. Jorge dos Serafins, que fora examinador e definidor das custódias açorianas franciscanas e então custódio provincial da de S. Tiago Menor da ilha da Madeira. Das várias provisões lançadas pelo custódio provincial, a primeira aborda o inteiro cumprimento da celebração das missas a que os Franciscanos se encontravam obrigados, incluindo as do dia de finados, no qual deveriam dizer missa “pelas benditas almas do Purgatório”, assunto que os “reverendos prelados locais, respeitando a indigência dos conventos”, descuravam, inclusivamente deixando que alguns clérigos pobres cobrassem dinheiro pelas mesmas, em nome individual da alma encomendada, o que se proibia terminantemente a partir do dia 1 de novembro seguinte, pois essas missas eram em nome “das almas de todos os finados defuntos” (ANTT, Conventos, Convento de São Francisco do Funchal, liv. 1, fl. 7). A segunda provisão aborda o inveterado costume de muitos Franciscanos divulgarem “fora de portas” o que se passava no Convento, tal como as possíveis culpas de uns e de outros. O assunto já teria ido a capítulo e, em “nome do crédito dos religiosos desta Santa Custódia”, Fr. Jorge dos Serafins ameaçava com “pena de excomunhão maior, ipso facto incurrenda” todo aquele que revelasse a seculares, a religiosos de outra Ordem e a religiosas “defeito algum de seus irmãos” de que se pudesse atribuir culpa grave. Nessa sequência, advertia igualmente os padres pregadores e confessores que deveriam renovar as suas patentes 15 dias antes de as mesmas findarem, ou seja, no final do ano. As patentes deveriam ser entregues ao seu secretário, o P.e Fr. João de Santa Rosa, para serem avaliadas, o mesmo se passando com os novos padres que, no último capítulo, tinham sido instituídos “confessores de seculares”, e que até ao final de dezembro se deveriam pôr “expeditos para fazerem o seu exame”. Tendo tido conhecimento da falta de inúmeros livros nas várias livrarias dos Conventos da custódia, assunto que lembrara aos vários responsáveis e sobre o qual inclusivamente o Santo Padre já se pronunciara, listava vários dos livros em falta e voltava a ameaçar com pena de excomunhão os infratores (Id., Ibid., fol. 8). Com o novo bispo do Funchal, D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), que chegou à Ilha a 5 de setembro de 1741, a situação de início ainda teve outra cobertura, pois o prelado era Franciscano e vinha acompanhado de dois padres pregadores, igualmente “frades menores”, para o ajudarem na sua missão: Fr. Lourenço de Santa Maria e Fr. João do Sacramento. O novo bispo e os padres pregadores recolheram-se durante 12 dias no Convento de S. Francisco do Funchal, pelo que D. Fr. João do Nascimento só tomou posse da Diocese a 17 desse mês. De imediato, fez publicar uma carta pastoral, tal como fizera o seu antecessor, especialmente dedicada à “reforma dos costumes, à extirpação de abusos, restauração, perfeição e esplendor do culto divino”, assim como outra, dirigida ao cabido da Sé, introduzindo algumas modificações nos serviços do culto ali realizados (APEF, cx. 122, doc. 3, fls. 21v.-22v.). Ao longo do seu episcopado, no entanto, reacenderam-se alguns problemas, com situações que já vinham do anterior, como a demência do P.e Fr. João de São José Ferraz, cuja interdição foi solicitada pelo procurador-geral da custódia da ilha da Madeira, o P.e Fr. José da Conceição, em 1748, ou os incidentes relacionados com a expulsão da ilha de dois franciscanos, Fr. João de São José e Fr. José do Rosário, em 1755. Por vezes, era ao contrário, como em 1753, quando o custódio provincial, então Fr. José de Santa Maria, solicitou aos visitadores da mesma custódia no continente que obrigassem três religiosos do Funchal, que se encontravam em Lisboa, a regressar ao Convento, dado já ter expirado há muito o prazo da licença que lhes fora concedida. O controlo das instâncias superiores apertou-se ao longo do séc. XVIII, acusando os visitadores quase sempre os Franciscanos de “relaxados”, quer na forma como se comportavam dentro do Convento, quer em relação às eleições, aos seus deveres, etc., como se queixa em carta do Funchal, de 28 de maio de 1753, o visitador Fr. José da Natividade ao ministro Diogo de Mendonça Corte Real, enviando, inclusivamente, uma representação do custódio provincial Fr. José de Santa Maria (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, doc. 13). Os problemas envolviam mesmo a atividade exterior dos Franciscanos, como se queixa depois o Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804), futuro barão de Alverca, em ofício de 21 de novembro de 1768, a respeito de um caso contrabando de tabaco, envolvendo o guardião do Convento, Fr. António de São Guilherme. O Convento de S. Francisco do Funchal, no entanto, ultrapassou sempre os pontuais problemas em que se foram envolvendo alguns dos seus membros, pois manteve-se, até à sua extinção, graças à capacidade de intervenção dos Franciscanos e à força das suas Confrarias, como um dos mais importantes centros de decisão políticos e económicos da Madeira. Assim, embora o gabinete pombalino tenha decretado a restrição de entradas nos conventos, com a subida ao trono de D. Maria I, em março de 1777, e o afastamento do marquês de Pombal, logo se envidaram esforços para ultrapassar a situação, sendo autorizada a entrada de 12 noviços por ano no Convento de S. Francisco do Funchal. Em carta datada do Convento do Funchal, de 8 de junho de 1777, o vigário custódio provincial Fr. Manuel de São José acusava a receção da autorização régia e agradecia. O Convento devia ter por essa data cerca de 100 religiosos, entre padres professos, leigos e noviços. A documentação das suas Confrarias, na maior parte, não chegou aos nossos dias, mas mesmo numa altura de franca recessão desse tipo de atividades, como no consulado pombalino, sucederam-se as iniciativas desse género. Por petição de 23 de março de 1765, e.g., o morgado João José de Bettencourt de Vasconcelos (1715-1766), familiar do Santo Ofício e administrador da capela de S. João Batista da igreja de S. Francisco, encabeçava uma lista dos principais proprietários madeirenses para fundarem uma nova Confraria de Nossa Senhora dos Anjos, Mãe dos Homens, e de S. José, Rei dos Homens. A petição era dirigida a Fr. António da Encarnação, vigário custódio da província, e incluía inúmeros eclesiásticos, como os padres doutores António José de Vasconcelos, João Henriques de Aragão e Manuel José da Rosa, Domingos João Alves da Silva Barreto, o Cap. António Vogado Teles de Meneses e os importantes comerciantes Pedro Jorge Monteiro, José João Veríssimo e José Fayan, entre outros. Os estatutos da Confraria seriam aprovados a 15 de fevereiro de 1767, e, tendo já falecido o promotor, era eleito como prefeito da mesma o então governador e capitão-general José Correia de Sá, enviado à Madeira para a extinção da Companhia de Jesus, que assina juntamente com o secretário António João Spínola de Macedo, para além dos outros membros da mesa. O documento é ainda reconhecido a 5 de março seguinte, pelo tabelião de notas Bartolomeu Fernandes e por Domingos Afonso Barroso, provedor da Fazenda. A aprovação do Rei D. José ocorreu a 27 de outubro seguinte e foi registada no Funchal a 23 de abril de 1769, tendo sido eleito para prefeito o então governador e capitão-general João António de Sá Pereira, servindo de secretário o padre genealogista José Francisco de Carvalhal Esmeraldo e Câmara, filho do morgado Aires de Ornelas de Vasconcelos e depois fidalgo-capelão, por nomeação de 5 de fevereiro de 1782. Armas de Mouzinho de Albuquerque. Arquivo Rui Carita A importância das Confrarias do Convento de S. Francisco está ainda patente na confraria de N.ª S.ra da Soledade, que, nos finais do séc. XVIII, assumiu a tradição de integrar sempre como irmãos o governador da Madeira e a mulher, quando o acompanhava, elaborando artísticas folhas aguareladas com as armas dos mesmos. A tradição manteve-se até à extinção do Convento, sendo a última folha dedicada ao prefeito liberal e governador militar Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846) – e D. Ana de Mascarenhas de Ataíde –, que, a 14 de março de 1835, entrou como “irmão protetor e presidente da confraria”, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da mesma Confraria” (ARM, Governo Civil, liv. 235, fl. 71). Seria Mouzinho de Albuquerque, no entanto, como prefeito da província, poucos meses depois, em agosto desse ano, a determinar as instruções para a extinção do Convento e, logicamente, da Confraria da Soledade. Os elementos chegados até nós não nos permitem uma avaliação mínima da vida económica dos Franciscanos do Funchal. Os livros das Confrarias são muito escassos e os de “receita e despesa” quase inexistentes. A vida do Convento não se afastava, no entanto, da dos conventos de S. Bernardino de Câmara de Lobos ou da Piedade de Santa Cruz, mas era mais complexa, dado o maior número de frades e, também, dada a sociedade urbana e a classe social que serviam e onde se inseriam. Existem dois livros de sacristia de “Registos de Missa” que dão uma pálida ideia do movimento do Convento, que celebrava semanalmente, nos finais do séc. XVIII, quase 100 missas, enquanto S. Bernardino, na mesma época, e.g., celebrava entre 20 e 30, embora os preços fossem semelhantes: na generalidade, entre $200 e $300 réis a missa. Na primeira semana do mês de agosto de 1797, v.g., celebraram-se 85 missas, sendo 7 pelas obrigações do Convento, 19 pelas obras pias, 34 pelas capelas, 5 pelas Confrarias e 2 pelos frades. Houve ainda uma celebrada na Festa do Ilhéu, provavelmente a festa de Nossa Senhora da Conceição, e que deve ter custado 1$500 réis, dado envolver a deslocação, e 15 missas dos “ofícios de frade e de grade”, que é possível que correspondam às missas em que é dada a comunhão aos fiéis na grade. Somente foram contabilizadas 14 a $200 réis, sendo as restantes das obrigações gerais do Convento, rendendo o conjunto 4$300 réis. Celebraram missa nessa semana 23 religiosos, incluindo o custódio provincial, o guardião, “o mais digno”, etc., tendo o domingo 20 missas, o maior número, rondando as 10 a 12 nos restantes dias da semana (ANTT, Convento de São Francisco do Funchal, liv. 2, fl. 1). Na semana seguinte, a segunda semana de agosto de 1797, os números foram semelhantes, celebrando-se 95 missas, com um “noturno das Almas”, obrigação do Convento, em princípio, porque não contabilizado, rendendo nove missas a $300 réis e outras seis a $200, num montante de 3$900 réis (Ibid., fl. 1v.). Na terceira semana, celebraram-se 79 missas, uma com “com festa na Fortaleza”, que deve ser a de S. Lourenço e que deve ter rendido $800 réis, embora tenha havido outra, não especificada, que rendeu 450, contabilizando-se, com mais cinco missas a $300, duas a $250 e nove a $200, 5$050 réis (Ibid., fl. 2). Nos inícios do séc. XIX, os preços subiram em relação ao século anterior, passando as missas a render entre $300 e $500 réis, pelo que, embora não havendo um significativo decréscimo no número geral das mesmas, deu-se um franco aumento do montante global cobrado. Na quarta semana de julho de 1809, e.g., celebraram-se 87 missas, entre as quais umas de obrigação do Convento e 52 de grade, 1 a 1$000 réis e 51 a $400 réis, somando 21$400 réis, montante muito acima do cobrado semanalmente nos finais do século anterior. Para os anos seguintes, existem informações gerais da vida económica do Convento, entre 1809 e 1832, correspondendo, assim, sensivelmente à fase final da vida do Convento. A descrição do tipo de missas é mais sucinta, deixando de se referir as missas das Confrarias, provavelmente incluídas nas capelas, e aumentando o preço das mesmas, cobrando-se no mínimo 400 réis por missa. Os totais semanais passaram a rondar os 20$000 réis e, por mês, as missas renderam à sacristia quantias acima dos 80$000 réis. Para estes anos, as despesas gerais do Convento não se afastam especialmente, e.g., das do de S. Bernardino de Câmara de Lobos. No mês de julho de 1809, o Convento teve uma receita de 360$800 e uma despesa de 287$720. O Convento já vinha com um saldo positivo do ano anterior, “de alsas”, como se dizia, de 1808$236, ficando então com 1881$316, como certificam o guardião, Fr. Matias de S. Boaventura, o síndico, Pedro de Santa Ana, os discretos Fr. Manuel da Piedade, Fr. Januário das Chagas de São Francisco, Fr. António de São Joaquim e Fr. António de N.ª S.ª das Dores (Ibid., liv. 5, fl. 2). Tal como nos restantes conventos franciscanos masculinos, as principais receitas vinham das missas e cerimónias realizadas fora do Convento e da venda de hábitos de burel e hábitos de saial, com o pormenor de tanto se terem vendido os de saial para enterro de homens, como os de burel para enterro de mulheres, o que até então não se tinha verificado. Os preços também são muito mais altos que os praticados em S. Bernardino nos finais do século anterior: entre 3$000 a 6$000 réis, em S. Francisco, não incluindo, em princípio, acompanhamento. Por “um hábito de burel e três religiosos, a seiscentos réis cada, para Sabina, da freguesia de São Martinho”, e.g., só cobraram 4$800 réis, e por um hábito de saial para João Paulo Medina, sem referir acompanhamento, cobraram 6$000. Os Franciscanos cobraram 9$400 réis “por merecido” dos religiosos que tinham ido à festa da Visitação na misericórdia do Funchal, 18$000 pela novena e procissão do Carmo e mais 10$000 pelas matinas da dita festa. Nas despesas desse mês entrou essencialmente a aquisição de carne de vaca, que custou mais de 100$000 réis, tal como peixe, bacalhau, azeite, manteiga, queijos, toucinho, presunto, azeitonas, sal, milho, semilhas, couves, feijão, chá, açúcar, etc. Algumas aquisições vinham de fora, como as cebolas, compradas no Caniço, que tiveram um acréscimo de 2$000 réis, “pelo frete, carreto e pagamento do moço que tirou as cebolas do Caniço”. Nesse mês também se adquiriu cerveja e sabão, tal como se pagou $400 réis para amolar as navalhas de barba do irmão leigo Fr. José das Mercês. Também se adquiriram umas rodas para o relógio, que custaram 1$000 réis, tal como se pagou $400 pela montagem das mesmas e ao moço António de Aguiar seis meses e 20 dias, a 3$000 réis por mês, o que somou 20$000 (Ibid., liv. 5, fls. 1v.-2). A partir dos inícios do séc. XVIII, com a oficialização da custódia, tinha passado a Fazenda Real a tomar a seu cargo a manutenção destes edifícios e a assumir a reconstrução do Convento de S. Francisco do Funchal, dado o templo primitivo ser considerado acanhado e modesto. As obras do Convento tiveram início por volta de 1750, data do reenvio para o Funchal da planta efetuada pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), já devidamente corrigida, para o que D. João V tinha atribuído a valiosa esmola de 20.000 cruzados (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 973, fl. 112v.). O edifício teria então passado por várias ampliações, até para suportar a população de 100 religiosos, com admissão de 12 noviços em cada ano, autorizada a partir de junho de 1777. Em julho de 1780, deve-se ter inaugurado uma parte da construção, dado ter-se exumado, em 1880, uma inscrição alusiva a D. Maria I, ao Papa Pio VI e ao P.e Fr. Bernardo. A inscrição teria sido depositada no arquivo municipal, mas, segundo os autores do Elucidário, algumas décadas depois tinha desaparecido. No entanto, entre agosto e setembro já não havia dinheiro para continuar as obras, pedindo o principal do Convento a deslocação ao Brasil de dois irmãos leigos, para ali recolherem esmolas, certificando o velho mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins, a 19 de outubro desse ano, para a corte de Lisboa, que as obras ainda continuavam. No ano seguinte, voltou a haver pedidos de subsídios para as obras, requerendo os Franciscanos inclusivamente o edifício do extinto Colégio dos Jesuítas, dadas as obras e os vários cursos que lecionavam então em S. Francisco, motivando a troca de cartas entre o secretário de Estado Martinho de Melo e Castro e o bispo do Funchal D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1710-1784), em 9 de agosto e 6 de novembro de 1781. Nesta sequência, igualmente requereu Fr. Manuel de São Boaventura “as sobras do subsídio literário e do almoxarifado” do Funchal, para se continuar a construção do novo Convento (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, docs. 588 e 599). A 10 de fevereiro de 1782, as obras passaram por novas alterações; o mestre das obras reais José António Vila Vicêncio (c. 1720-1794) refere alterações de custo. Face às dificuldades de obtenção de pedra, as obras e correriam o risco de parar, pois o pedreiro de Câmara de Lobos encarregado de a fornecer faltara ao ajuste. Alvitra-se, então, o trabalho das companhias de ordenança no retirar da pedra da pedreira, entendido como uma esmola das mesmas para os Franciscanos, o que foi autorizado pelo governador a 30 de agosto desse ano (ABM, Governo Civil, liv. 520, fl. 104). O Convento esteve assim em obras durante todo o final do séc. XVIII, possivelmente sob uma desastrosa administração, pelo que nunca chegou a ser acabada a enorme igreja, até à extinção dos conventos nos meados do séc. XIX, o que levou à sua demolição. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido como “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A extinção do Convento de S. Francisco do Funchal foi acionada pelo prefeito Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, em agosto de 1835, em articulação com Diogo Teles de Meneses (1788-1872), provedor da Alfândega (ABM, Alfândega do Funchal, liv. 675), tendo decorrido sem especiais dificuldades e quase sem qualquer interferência da autoridade religiosa. O Convento de S. Francisco do Funchal foi desocupado por forças militares a 9 de agosto de 1834 e, pouco mais de 15 dias depois, a 27 de agosto, o prefeito mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Dado não terem ocorrido problemas, nesse mesmo dia 27 de agosto, o prefeito enviava para o provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851), instruções precisas sobre a execução do decreto de 30 de maio sobre a extinção dos conventos, para que tal se efetuasse nos restantes conventos do concelho do Funchal. As instruções determinavam que se deveria fazer o inventário dos bens do Convento em causa, entregando-se ao representante do cabido da Sé do Funchal as alfaias religiosas, os paramentos, “ornatos dos templos e utensílios de culto”. As imagens e as cruzes, porém, deveriam permanecer onde estivessem. As igrejas deveriam ser fechadas, ficando as chaves à disposição do prefeito, mas na posse do provedor do concelho, que elaboraria, entretanto, uma relação dos religiosos de cada convento. No espaço de um mês, os religiosos deveriam apresentar-se na prefeitura, com uma relação testemunhável, para que se verificasse se teriam direito à pensão anual para a sua sustentação, prevista no artigo 4.º do decreto de 30 de maio anterior. Luís Mouzinho de Albuquerque recomendava que a diligência deveria ser feita com “a mais escrupulosa atenção”, em que tudo fosse praticado com a maior “circunspeção, prudência e urbanidade”, para que de maneira alguma houvesse lugar a “escândalos dos povos ou pretexto à maledicência” (VERÍSSIMO, 2002, 69-77). As imagens e muitas das pinturas, entretanto, foram transferidas para outros locais, como a imagem do Senhor do Milagre do Convento de S. Francisco, que teria falado algumas vezes com Helena Gonçalves da Câmara – razão pela qual recebeu essa designação –, e que foi transferida para a Sé, inclusivamente com o diadema e o lampadário de prata, a 11 de março de 1835, assim como outras alfaias, pelo menos entre 1848 e 1850, na vigência do governador civil José Silvestre Ribeiro (1807-1891), para a igreja do Colégio do Funchal, que nesses anos foi reabilitada e entregue à Diocese. A transferência das pinturas e imagens que ainda restavam nas instalações do Convento para a igreja do antigo Colégio dos Jesuítas deve datar de fevereiro de 1847, tendo sido acordada entre o governador e o bispo D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1797-1862), quando se preparou a instalação, em S. Francisco, do Asilo de Mendicidade do Funchal, com cerca de 400 indigentes, cuja administração foi entregue ao prelado e cuja inauguração se fez a 27 de março desse ano (MENESES, 1848, 25-30 e 50-54). Algumas das telas existentes nesta igreja, como parte da coleção mariana da sacristia, senão mesmo toda, a tela dos mártires de Marrocos, a de Nossa Senhora do Pópulo, etc., pertenceram, por certo, ao Convento de S. Francisco, pois não fazem parte dos sucessivos inventários do Colégio, podendo a tela de N.ª S.ra da Porciúncula ter vindo da capela do Hospício da Ribeira Brava ou também de S. Francisco. O mesmo deve ter acontecido com algumas imagens, como a de S. Luís, Rei de França, em barro, aparentemente de produção regional, que se encontra na sacristia do Colégio, e o conjunto de imagens de roca, que se encontram no Museu de Arte Sacra do Funchal. O mesmo se teria passado com o conjunto de bustos relicários dos mártires de Marrocos, que foram descobertos quase emparedados na torre do Colégio e que igualmente transitaram para aquele Museu. Outra parte do espólio do Convento de S. Francisco transitou para o Convento de S.ta Clara, como foi o caso dos dois grandes painéis de azulejos de S. Francisco e de S.ta Clara, de oficinas de Lisboa (1740-1760), posteriormente remontados na portaria daquele Convento. No coro de baixo de S.ta Clara, algumas das pinturas que decoram as paredes laterais, segundo a tradição, terão vindo também de S. Francisco. A maioria das pratas, entretanto, fora arrecadada na Alfândega, e, em 28 de maio de 1836, elas seguiram para a Casa da Moeda de Lisboa, onde o antigo prefeito da Madeira fora provedor. Sem especial explicação, somente em virtude da portaria de 9 de junho de 1886, os livros do Convento de S. Francisco foram entregues à repartição da Fazenda do Funchal, sendo posteriormente incorporados na Torre do Tombo, juntamente com os da Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, mas não os que estavam no Governo Civil, que passaram, depois, ao Arquivo Regional da Madeira, nem a biblioteca, que deve ter recolhido ao paço episcopal e ao Seminário, peregrinando e perdendo-se pelos vários locais por que quer o paço, quer o seminário foram passando, assim se explicando que quase nada da importante documentação bibliográfica ali guardada tenha chegado até nós. O edifício foi logo disputado pelos novos poderes liberais instituídos, como a Câmara Municipal do Funchal, que o requereu e o recebeu por decreto de 7 de novembro de 1844, para construção, nesse espaço, de um amplo edifício destinado à instalação da nova Câmara Municipal e dos tribunais judiciais, mas a situação de instabilidade política retardou o projeto. O concurso público para apresentação de um projeto só se veio a realizar em 1864 e, a 11 de março de 1866, saía da Sé do Funchal “um luzido cortejo” presidido pelo bispo do Funchal, D. Patrício Xavier de Moura (1859-1872), que fora bispo de Cabo Verde, cortejo onde se incorporaram as autoridades superiores do distrito, procedendo ao lançamento da primeira pedra do novo conjunto de edifícios, que não passou da primeira pedra (SILVA e MENESES, 1998, I, 313). [caption id="attachment_14397" align="alignleft" width="199"] Convento de São Francisco. Arquivo Rui Carita.[/caption] [caption id="attachment_14394" align="alignleft" width="226"] Demolição do Convento de São Francisco[/caption] Nos anos seguintes, os edifícios do velho Convento arruinavam-se progressivamente, mas só devem ter sido demolidos nos inícios da déc. de 70, pois restam algumas fotografias do conjunto, ainda parcialmente de pé. Nos anos seguintes, parte da cerca foi dando origem aos novos arruamentos, depois as ruas Hermenegildo Capelo, Serpa Pinto e Conselheiro José Silvestre Ribeiro, e, por volta de 1880, ao jardim municipal e ao teatro municipal. Do conjunto edificado parecem só restar o brasão de armas nacionais e franciscanas, no canto sudeste do jardim, e o chafariz da cerca do Convento, que nos inícios do séc. XIX já estava na vizinha praça da Constituição, então passeio público, servindo de base ao conjunto do largo do Chafariz, cuja pilastra superior parece ter sido encomendada para o monumento à Constituição de 1820 – chegando ao Funchal depois da abolição da mesma, nunca chegou a ser montada no monumento, cuja base também já havia sido demolida.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

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convento das mercês

Com a prosperidade de algumas famílias madeirenses na segunda metade do séc. XVII, um certo fervor religioso e as necessidades da época de concentração de propriedades nos morgadios, que colocava a maior parte dos elementos femininos numa situação de resguardo social, também a família Berenguer de Leminhana, herdeira de um importante morgado na Calheta, fundou um pequeno recolhimento, em terreno quase anexo ao Convento de S.ta Clara. Este convento, tal como o da Encarnação destinava-se a “donzelas nobres”, havendo assim necessidade de outro, a que, em princípio, tivessem acesso as filhas das restantes famílias. Acrescia ainda que, com o tempo, a não obediência a algumas regras conventuais nesses conventos levantara algumas críticas e apontava também para a necessidade da fundação de um mosteiro de regras mais rígidas. No entanto, muito provavelmente para além de tudo isso teriam estado questões de prestígio social e de afirmação económica por parte da família dos fundadores. Neste quadro nasceu a fundação do que foi inicialmente recolhimento de N.ª Sr.ª das Mercês, em 1654, por Gaspar Berenguer de Andrada (1603-1691) e sua mulher Isabel de França Andrade (c. 1610-1659), senhores do morgado do Lombo do Doutor, fundado por Pedro Berenguer de Leminhana e ao qual se juntara a terça de Rodrigues Annes, “o coxo”, na Ponta do Sol. A ideia inicial era fundar uma capela e só depois se associou a ideia de um recolhimento religioso, dentro de uma regra mais rígida que a regra urbanista de S.ta Clara, e conseguindo-se, nessa sequência, alvará régio a 25 de agosto de 1661, confirmado em 17 de agosto de 1665 pelo Papa Alexandre VII, que elevou assim esta casa a mosteiro da primeira ordem de S.ta Clara, ou da Regra da Terceira Ordem de S. Francisco, de severa e estrita observância, as Capuchinhas, que deste modo se manteve através dos tempos até ao momento da sua extinção, mas prolongando-se depois nos novos mosteiros da mesma regra: o de S.to António do Lombo dos Aguiares e o da Piedade, na Caldeira de Câmara de Lobos, e inclusivamente para os Açores e para o Brasil. A família Berenguer distinguira-se francamente nas terras do Brasil, onde o fundador do Convento estivera na luta contra os Holandeses, encontrando-se esta família ligada, e.g., a João Fernandes Vieira (c. 1613-1681), que se casara com Maria César, filha de Francisco Berenguer de Andrade, tio do fundador do Convento e distinguindo-se igualmente naquelas terras outros membros, como o P.e Agostinho César e os seus irmãos Francisco Berenguer de Andrade e Luísa Berenguer, que se casou com o capitão-mor de Paraíba Manuel Pires Correia. Os instituidores encontravam-se ligados à família Lira e França e esta, por seu lado, também à família de Diogo Fernandes Branco (1583-1644), um dos mais destacados comerciantes da sua época e que se associou a João Fernandes Vieira. Não teriam sido, em princípio, os interesses económicos a presidirem decididamente à ideia de fundação do Convento das Mercês, pois que face à regra por que se optara, não podia possuir bens de raiz, pautando-se toda a sua vida económica por uma enorme austeridade. No entanto, também teriam pesado outros fatores de prestígio e afirmação social, patentes, e.g., nas dificuldades experimentadas logo nos primeiros tempos, inclusivamente, na legalização, pela autoridade eclesiástica, da capela inicial de N.ª Sr.ª das Mercês. As duas filhas de Gaspar de Berenguer e de Isabel de França, Maria e Margarida, e.g., haviam entrado para o Convento de S.ta Clara, onde haviam de professar e, se houvesse um recolhimento de que os Berenguer fossem patronos e instituidores, tal não só não acarretaria especiais encargos económicos, como configuraria outro protagonismo social. A doação do terreno para a capela teve a data de 4 de setembro de 1655 e, perante o projeto e o espaço da propriedade onde se deveria levantar, teria sido o P.e João Ribeiro da companhia de Jesus, primeiro confessor das freiras da Encarnação, a insistir com a doadora para o levantamento também, anexo à capela, de um recolhimento para “donzelas nobres” (NORONHA, 1996, 283). Os alicerces foram abertos a 12 de outubro de 1655, e a 20 do mesmo mês, com a assistência do governador general, Pedro da Silva da Cunha, do reitor do Colégio do Funchal, P.e Manuel Fernandes e demais nobreza local, foi celebrada missa, na qual pregou o cónego e escritor António Veloso de Lira (1616-1691), parente próximo de Gaspar Berenguer, altura em que se benzeu a primeira pedra e que foi colocada pelo governador, o qual mandou depois festejar o ato com salvas de artilharia da fortaleza de São João do Pico. Num curto espaço de tempo as obras iniciais encontravam-se em condições de receber as primeiras recolhidas, o que ocorreu no dia de Corpus Christi, a 15 de junho de 1656. Entraram “sete donzelas de exemplar virtude” (Id., Ibid.), entre as quais a irmã mais nova do fundador, sob o nome de Inês de Jesus, com Isabel da Cruz, Isabel de Jesus, Madalena do Sacramento, Catarina da Paixão, Maria da Encarnação e Isabel de São Francisco, que depois passou para o recolhimento do Bom Jesus da Ribeira. Nos meses seguintes ainda entrariam outras, perfazendo em pouco tempo o número de dezassete recolhidas. O recolhimento, entretanto, mesmo com o apoio, por certo, do Cón. Veloso de Lira, não tendo solicitado autorização ao vigário e provisor do bispado, o cónego e deão Pedro Moreira (c. 1600-1674), que aliás não havia estado no lançamento da primeira pedra, tal como parece não ter estado nenhum membro da comunidade franciscana, embora tenha estado presente o reitor do Colégio dos Jesuítas do Funchal, o que configurava, em princípio uma situação anómala, pelo que conheceu dificuldades de institucionalização pela autoridade eclesiástica. Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898) descreve, nos seus comentários à obra de Gaspar Frutuoso, as dificuldades de autorização levantadas pelo deão do Funchal na instituição do recolhimento da Mercês e na autorização da igreja ter sacrário, que só teriam sido ultrapassadas após um acidente ocorrido com o deão no Mar da Travessa, a caminho do Porto Santo. Segundo a lenda recolhida, provavelmente, nos escritos de um dos confessores do futuro Convento das Mercês, provavelmente o P.e Neto, a embarcação que transportava o Cón. Pedro Moreira ter-se-ia virado e, temendo o pior, o cónego teria evocado N.ª Sr.ª das Mercês, só então percebendo a reserva que estava a colocar à autorização canónica da capela e do recolhimento dos Berenguer. Regressado ao Funchal e aproveitando uma visita que efetuou à igreja matriz de S. Pedro, onde fora beneficiado, resolveu fazer uma visitação às Mercês, a 12 de fevereiro de 1658, autorizando a existência de sacrário na igreja. O deão e vigário geral Pedro Moreira teria ficado muito bem impressionado com o recolhimento, já organizado internamente com uma regente, auxiliada por uma vigária e uma escrivã, prometendo, inclusivamente, tomar as recolhidas “por filhas e súbditas em seu próprio nome e dos futuros bispos da diocese do Funchal” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, 268, 5v.), o que, em princípio era prometer demais, desde que se alcançasse licença do rei para se erigirem em mosteiro e com a regra depois determinada pela Santa Sé. Foi pedida licença a Lisboa para a instituição do mosteiro com o apoio do poderoso deão, o qual parece ter passado a uma grande proximidade da família Berenguer, vindo depois um dos irmãos do Cap. Berenguer a ser integrado no cabido da sé do Funchal, o futuro Cón. Bartolomeu César Berenguer. O pedido dos Berenguer, regente e recolhidas foi acompanhado de idêntico pedido do cabido, da câmara do Funchal, como “câmara da Ilha”, do governador e do provedor da fazenda. A partir de 1660, as recolhidas organizavam-se, inclusivamente, como instituídas em convento de capuchas e respeitando a mais rígida clausura, à semelhança do mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, dentro das normas da primeira regra reformada de S.ta Clara, embora sem terem ainda compromisso canónico. O nome de capuchinhas, quase de imediato, tornou-se uma referência e ficou como topónimo na travessa que passava a norte do futuro convento. O alvará régio emitido a 25 de agosto de 1661, embora só enviado de Lisboa a 20 de dezembro de 1663, fazendo referência ao pedido da Madeira, “por ser obra tão do serviço de Deus, Nosso Senhor e pia devoção dos moradores da Ilha”, ficando o mosteiro como professo na primeira regra de S.ta Clara, “assim como é o mosteiro da Madre de Deus desta cidade de Lisboa”, que também patrocinara a instituição (NORONHA, 1996, 284). Fica por padroeiro e fundador o Cap. Gaspar Berenguer de Andrade, pois, entretanto, já havia falecido Isabel de França. Ao mesmo padroeiro, para si e seus sucessores no padroado, ficavam “dois lugares de freiras para sempre”, estabelecendo-se um quantitativo de vinte e um membros para a comunidade capuchinha, que seria governada pelos prelados do Funchal e, na sua ausência, pelo deão “que ora é” e pelos vigários gerais que se seguirem e, faltando esses, pelas dignidades que se seguirem (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fls. 5v.-6). Em face da chegada do mesmo alvará, a 5 de julho de 1664, o Cap. Berenguer, a regente e as recolhidas solicitavam ao deão Pedro Moreira nova visita ao futuro mosteiro para autorização canónica. A visitação ocorreu a 21 de julho de 1664, depois de consultado o comissário do Convento de S. Francisco, indo o deão acompanhado pelo vigário de S. Pedro, freguesia de quem o futuro convento dependia, e pelo escrivão eclesiástico e de visitações, P.e Francisco da Fonseca. Entraram na igreja de N.ª Sr.ª das Mercês, “a qual achou muito ornada e decente”, por haver nela sacrário “como há, por sua licença”, onde se encerrava o Santíssimo, e no interior do recolhimento, referindo os dormitórios, o coro superior, o parlatório, o refeitório, a cozinha e a cerca, e “as mais partes altas e concernes à clausura das religiosas”. O experiente deão percebeu de imediato as limitações do local para um futuro convento de estrita observância, assunto que atravessará toda a história da instituição, determinando levantar o muro que corria até ao Convento de S.ta Clara, “seis a oito palmos” (cerca de 1,30 m a 1,75 m) e o que ia até às casas do Cap. Cristóvão de Atouguia da Costa, “oito a dez palmos” (entre 2,00 m 2,20 m), “por razão da rocha que está fronteira à cerca” donde se devassava “o serrado” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fls. 5v.-6). Na altura da visitação de junho de 1664, eram superioras do recolhimento a regente M.e Maria dos Prazeres, a vigária da casa, M.e Isabel da Cruz, e a escrivã, M.e Madalena do Sacramento. Nessa altura, assentou-se na necessidade de um confessor, um capelão, um feitor e um servente de fora. Os bens do convento foram determinados concretamente para a manutenção do futuro mosteiro, dotando-o o fundador e seus filhos, o ainda P.e Bartolomeu César Berenguer, José de França Berenguer (1638-1719), futuro patrono e o P.e Gaspar Berenguer de Andrade, dado o falecimento dos três filhos mais velhos, a 1 de julho de 1665, feita na nota do tabelião Manuel Fernandes Silva, perante o deão e as recolhidas, com 14 moios de trigo das suas propriedades na Ponta do Sol, Calheta, Estreito da Calheta e Porto do Moniz. Avaliando-se cada moio em 18$000 réis, dava um total de 252$000 réis, o que correspondia a 630 cruzados anuais, soma bastante avultada para a época. Igualmente se assentou que a sustentação de cada freira seria anualmente de 25 cruzados; do sacerdote-confessor, 40; o capelão e feitor, 40 cada; e o servente de fora, 25. A dotação inicial de instituição da capela havia sido de três moios de trigo anuais, no morgado da Ponta do Sol, a que se somaram depois mais onze para o mosteiro em outras propriedades de várias freguesias, importância bastante significativa para a época e o que viria a criar inúmeros problemas aos descendentes. No testamento do herdeiro, José de França Berenguer, aprovado a 29 de março de 1719, refere-se que o dote feito “a que se obrigava todos os nossos bens quanto bastassem para renderem cento e trinta mil réis” (Ibid., Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 85), pelo que se deduz ter havido posterior alteração à inicial dotação de 250$000 réis, do que se haveriam de queixar depois as freiras. Tal não deixou, no entanto, de motivar futuras disputas entre os herdeiros, tal como entre o deão e o cabido pela superintendência sobre o Convento. Com a chegada do breve apostólico de 17 de agosto de 1665 ao Funchal, a 20 de dezembro do seguinte ano de 1666, comunicado às religiosas o seu conteúdo pelo deão, novamente se procedeu a auto de vistoria, então a 6 de junho de 1667, tendo comparecido a madre regente, Inês de Jesus; a vigária do coro, Catarina da Paixão; as M.es Maria do Sacramento e Isabel de Jesus, porteiras; a M.e Isabel da Cruz, vigária da casa; e a M.e Francisca do Espírito Santo, sacristã. O recolhimento tinha na altura 18 freiras e as preocupações dos visitadores foram para a segurança da clausura: se todas as portas tinham “bons ferrolhos e boas fechaduras”, se as várias grades eram de ferro e “bem fortes para a segurança da clausura interior”, etc. Foram vistos os dois dormitórios, com um total de vinte celas e mais três, da enfermaria, consideradas bastantes (Ibid., Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 14). Face à vistoria positiva do deão Pedro Moreira e do escrivão da câmara eclesiástica Francisco da Fonseca, foi dada autorização para a passagem à fundação do convento, tendo sido escolhida pelo deão em S.ta Clara a nova madre do Convento de N.ª Sr.ª das Mercês, a Ir. Branca de Jesus, filha de João Bettencourt de Freitas e de Isabel Moniz, que ali professara em 1636. Para a fundação foi escolhido o dia de S.to António, 13 de julho de 1666. Estando nesse dia a M.e Ana do Evangelista à porta do Convento de S.ta Clara, da parte de dentro inúmeras freiras e, na de fora, o deão e vigário geral, acompanhado de Fr. Domingos da Assunção, comissário do Convento de S. Francisco e do de S.ta Clara, libertada dos seus votos de obediência à abadessa, “fechada numa cadeira (que são as carroças desta Ilha)”, a mesma frase utilizada anteriormente na fundação do Convento da Encarnação, deslocou-se a nova madre “acompanhada de muito povo” para o Convento das Mercês (Ibid., liv. 14). A nova prelada era esperada à porta do mosteiro, na parte de dentro, pela regente M.e Inês de Jesus e demais irmãs, e entrando o deão na clausura, apresentou-lhes a nova madre “eleita e confirmada por ele”. Após algumas exortações retirou-se, sendo fechada a clausura e levando as irmãs a sua prelada para dentro do Convento, entoando o hino Te Deum Laudamus e “dando graças a Nosso Senhor pela grande mercê que lhes fez”, deu-se início à canónica fundação do mosteiro (APE, cx. 26, doc. 1). A fundação e a construção do Convento das Mercês encontram-se ligadas a várias lendas piedosas. A primeira refere o aparecimento de N.ª Sr.ª das Mercês a Isabel de França ou a “certo religioso, grande servo de Deus” (NORONHA, 1996, 283), a ser assediada por um “esquadrão de demónios, disparando flechas contra ela”, prodígio depois representado num medalhão pintado no teto da igreja (FRUTUOSO, 1873, 592-593) e que estaria na base da fundação da primeira capela. A segunda refere as dificuldades económicas da construção do recolhimento, tendo aparecido a Virgem em sonhos a Isabel de França, dizendo-lhe que fosse ao seu jardim, onde estava uma “pedra de moinho e, junto da mesma outra pedra branca” debaixo da qual tiraria o dinheiro, quanto bastasse para acabar a obra. Assim, teria acontecido e voltando segunda vez, foi pressentida pelo marido, que quando chegou junto da mesma, querendo também continuar a retirar dinheiro “achou carvão” (Id., Ibid.). Outra lenda vinculada ao Mosteiro e propagada pelos cronistas religiosos tenta colar as questões que opuseram o Gov. Francisco de Mascarenhas (c. 1632-c. 1695) a vários nobres e religiosos, e que levaram à grave sedição que depôs o governador, ao facto de – entre outras razões - o mesmo ter tentado parar as obras do Convento das Mercês (Sedição de 1668). A sedição ocorreu a 18 de setembro de 1668 e foi planeada, em princípio, pelo deão Pedro Moreira, envolvendo de início os dois padres Agostinho César Berenguer e Bartolomeu César Berenguer, tio e sobrinho, aos quais aderiu de imediato o Cap. Gaspar César Berenguer, que aproveitou o levantamento e a colaboração do padre para libertar o filho José de França Berenguer, que estava preso em São Lourenço. À sedição associaram-se os frades de S. Francisco, mas não os padres do Colégio do Funchal, até porque a prisão do governador ocorrera quando o mesmo ia visitar a quinta do Pico, contando depois para Roma que teriam ficado incomunicáveis vários meses, por não quererem assinar a representação contra o governador. O Cap. Gaspar Berenguer seria o elemento eleito no Funchal para ir a Lisboa apresentar as razões dos revoltosos e, regressado, informou que as mesmas tinham sido aceites, o que não era verdade. Algum tempo depois apresentava-se no Funchal um novo governador e um juiz desembargador para averiguação do sucedido, arrastando-se o processo por anos, mas não havendo qualquer referência às obras do Convento das Mercês e, ao que parece, praticamente ninguém cumpriu as penas por que foi condenado. A situação económica do Convento nunca foi folgada, embora logo em 1661, tenham as freiras conseguido a isenção da contribuição para as despesas de guerra, constituída por uma maquia de cada alqueire de trigo. Nos anos seguintes queixavam-se ao príncipe regente D. Pedro, da grande pobreza em que viviam pela falta de esmolas dos moradores e dado serem os donativos o seu único património. Com essa exposição obtiveram, em 1676, uma esmola anual de dezasseis mil réis, paga pelos sobejos da alfândega do Funchal, tal como alguns anos depois, em 1715, recebiam nova mercê anual de quarenta mil réis para pagamento do confessor “que lhe ministre o pasto espiritual” (BNP, Reservados, fl. 75v.). A Coroa e os devotos financiavam a manutenção da sacristia, tal como os “hábitos e túnicas”, acrescentando o cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) que, para além do confessor, a Fazenda real também pagava o capelão “que apresenta o ordinário” (NORONHA, 1996, 284), verba que, contudo, não foi possível detetar nos registos da Alfândega. A coroa concedia: em janeiro de 1752, a mercê anual de uma arroba de cera para a festa de S. José, com vencimento de 3 de novembro do ano anterior ano de 1751 e, em de janeiro de 1784, a de mais duas arrobas de cera, com o mesmo vencimento de 3 de novembro, para a festa do Santíssimo e “outras da dita igreja” (BNP, Reservados, fls. 75v.-76). Nos inícios do séc. xix a coroa continuou a apoiar o serviço da sacristia com donativos, instituídos em 1803 e 1819. A sucessão da administração e padroado do Convento foi regulada pelo fundador, pela anterior escritura de 1 de julho de 1665 e por testamento feito em 21 de dezembro de 1686. No entanto, nos finais do séc. XVII, nos inícios de fevereiro de 1697, com mais uma situação de sé vacante, o cabido extrapolava os seus direitos e apoderava-se do controlo e superintendência sobre o Convento, que taxativamente e, segundo se encontrava estabelecido, era do bispo e, na sua ausência, do vigário geral, ou de quem o substituía, citando-se mesmo, que “não ao dito cabido”, mas ao “vigário geral dariam obediência e aceitariam de suas mãos as leis de seu governo”. O pleito subiu à coroa e, enquanto não havia resposta, o cabido acordou em resolução de 5 de fevereiro desse ano de 1697, que as capuchas reconhecessem “a ele Reverendo Cabido por seu prelado” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 3, 61v.-62). Nos anos seguintes foi a vez de se desentender a família dos padroeiros. O neto do padroeiro José de França Berenguer (1638-1720) casara-se com Maria de Castelo Branco, da qual tivera seis filhos. Ao falecer, já o seu filho mais velho, João de Andrade Berenguer (1671-1716), havia falecido, pelo que o pai deixou em testamento o segundo filho, Agostinho César Berenguer e Atouguia, como seu herdeiro, acrescentando: “e a quem nomeio na administração do padroado do Convento de Nossa Senhora das Mercês” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fl. 84). Acontece que o irmão mais velho, João de Andrade Berenguer havia casado com Tomásia de França e Andrade, com a qual teve dois filhos, João de Andrade Berenguer, entretanto falecido em 1716 e Antónia Josefa (1697-1743), casada com Jorge Correia Bettencourt, filho do Ten.-Gen. Inácio de Bettencourt de Vasconcelos (c. 1700-1720) (Tenente-general). Antónia Josefa e Jorge Correia Bettencourt disputaram o padroado do Convento das Mercês com o tio e, tomando posse da Diocese o bispo jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742), a 22 de julho de 1725, ao ter conhecimento da disputa, dentro do seu estilo pessoal mandou recolher toda a documentação do Convento no paço episcopal, afastando do padroado os vários herdeiros do Cap. Gaspar Berenguer e assumindo o controlo de toda a administração. Todos os herdeiros se queixaram do bispo em Lisboa e em Roma, mas o bispo mostrou-se inflexível. Não foi por acaso que um dos grandes opositores ao episcopado de D. Manuel Coutinho tenha sido o Cón. Bartolomeu César de Andrade, que pagou por isso longos períodos de prisão na torre da sé do Funchal. O assunto percorreu todo o séc. XVIII e ainda em 1788, o bispo D. José da Costa Torres (1741-1813) dava conhecimento ao ministro Martinho de Melo e Castro da situação, que muito afetava a vida das religiosas. O assunto só veio a ter desfecho já nos inícios do séc. XIX, por sentença de 19 de abril de 1807, a favor dos descendentes de Antónia Josefa Correia Bettencourt, então Ana Cândida Berenguer de Atouguia Neto casada com Henrique Correia de Vilhena (1769-c. 1830), representante da casa Torre Bela. Quase 100 anos depois, seriam igualmente os Torre Bela a apoiarem os núcleos das freiras do Convento das Mercês, quando em 1910 tiveram de abandonar o edifício e fixarem-se no Sítio da Palmeira e da Torre em Câmara de Lobos. Nos inícios do séc. XVIII, o cronista Henrique Henriques de Noronha descrevia o Convento, começando por elogiar a primeira madre abadessa, M.e Branca de Jesus, que, tendo professado em S.ta Clara na segunda regra, “instruiu na primeira as novas religiosas, de sorte que parecia a aprendera por muitos anos”, numa “destreza e agilidade” que era de admirar. A primeira abadessa recebera “as instruções do seu governo” do mosteiro da Madre de Deus, “daquela observância”, tendo-se tornado uma insigne prelada e nas suas mãos haviam professado 26 noviças, retirando-se no fim da vida para S.ta Clara “para lograr no fim das ações da sua vida a que merecia eterna pelas suas virtudes” (NORONHA, 1996, 284). O edifício do mosteiro tinha então suficientes “cómodos para capuchas”, com todas as oficinas necessárias e alguma extensão de cerca interior, com uma levada de água. A igreja era bem proporcionada e a capela-mor tinha “comungatório” e era dotada com um “vistoso retábulo” de N.ª Sr.ª das Mercês, “obra de Martim Conrado, insigne pintor estrangeiro”, única informação documental que se possui na Ilha sobre este pintor que executou perto de uma dezena de retábulos para a Madeira. O corpo da igreja tinha ainda dois altares colaterais, dedicados a S.ta Maria Madalena e S.ta Catarina de Alexandria, que o cronista apelida de “Santa Catarina Maior”, pinturas hoje na sacristia da matriz de S. Pedro do Funchal, atribuíveis, provavelmente a última, à oficina de António de Oliveira Bernardes (c. 1650-c. 1732). Havia ainda um altar de N.ª Sr.ª da Conceição, com uma “nobre” confraria de sacerdotes, o que era uma originalidade, pois que se encontravam proibidas as confrarias masculinas em conventos femininos. No pavimento da capela-mor estavam sepultados os padroeiros, referindo o cronista Henrique Henriques de Noronha que Isabel de França “cuja vida foi exemplar de virtudes”, acrescentando que “se afirma que apareceu resplandecente” à madre soror Isabel de Jesus, uma das primeiras recolhidas do futuro Convento, “certificando-a que por essa fundação, a aliviara Deus das penas do Purgatório, reduzindo-as a cinco anos somente”. Refere o cronista que se venerava na igreja uma relíquia do mártir S. Faustino, “uma canobla de um braço” (pedaço oco de osso), que fora enviada em 1725 pelo marquês Otaviano Acciauoli, que pertencera à marquesa sua mulher e que lhe foi dada pelo papa Inocêncio XIII, seu tio. Noronha ocupa ainda vários capítulos do seu trabalho com “as virtudes de algumas religiosas deste mosteiro” (Id., Ibid., 285-299), mas que serão eclipsadas posteriormente com as figuras das madres Brites da Paixão (c. 1632-1733) e Virgínia Brites da Paixão (1870-1929), a última, inclusivamente, foi obreira da resistência, manutenção e renascimento desta instituição religiosa na Madeira, de onde viria a irradiar para os Açores e para o Brasil. A vida interna espiritual do Convento das Mercês era muito rígida e não poucas vezes as candidatas não “passavam” no noviciado. Se alguma candidata entrasse sem vocação, as abadessas não descansavam enquanto a mesma não regressasse à família. Conta Henriques de Noronha que logo nos primeiros anos, sendo abadessa a M.e Inês de Jesus, irmã do fundador, sucedeu que entraram sem vocação “certas moças a quem seus parentes quiseram dar aquele estado” (Id., Ibid., 287). A madre, mesmo incorrendo no desagrado do prelado que facilitara a entrada das jovens, procurou convencê-las a sair do mosteiro, tendo conseguido que o deixassem “por sua vontade”. O bispo, segundo o cronista, acabou por pedir desculpa à abadessa. O cronista, no entanto, escrevia de acordo com o pensamento da sua época e foram muitos, com certeza, os casos de vocação perfeitamente forçada. O caso da M.e Isabel Filipa de Santo António, registado no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa de onde dependia o bispado é digno de registo. A freira em questão era filha de uma das mais nobres famílias do Funchal, os Câmara Leme, tendo-se chamado Isabel Filipa Telo de Meneses e Sá e, antes de entrar para o Convento das Mercês, segundo depois declarou ao Cón. Hugo Maguiére, de origem irlandesa, ter-se-ia apaixonado, ainda adolescente, por um indivíduo de condição inferior. Falecidos os pais, a tutela da jovem passou ao irmão mais velho, Jacinto da Câmara Leme que, perante a hipótese de um casamento desigual, negociou com o Convento a sua entrada nas Mercês, onde viria a professar, em princípio obrigada. A M.e Isabel Filipa de Santo António com a revolta que experimentava, praticou os mais desvairados desacatos no Convento, blasfémias, gritos, e até a uma tentativa de homicídio a todas as irmãs em religião, esmagando vidros num almofariz para misturar com a comida, uma sopa de favas, como veio a especificar. Chegadas as coisas a este ponto, entendeu a madre superiora não poder manter a situação nas paredes da instituição, denunciando o caso ao comissário do Santo Oficio, o Cón. Hugo Maguiere, que ouviu a madre em questão que, sem especiais remorsos, se assumiu como responsável pela morte de dois dos seus irmãos, que envenenara. Como, entretanto, na realização do processo tinham disponibilizado à madre os serviços de um advogado, ela decidiu usá-lo para o que verdadeiramente pretendia, e que mais não era que sair do Convento. Nas diligências para satisfazer os desejos da sua cliente, o causídico apelou para o Papa a pedir a dispensa dos votos da M.e Isabel Filipa, alegando que, apesar de já terem decorrido os cinco anos que a lei permitia para a revogação dos votos, a infeliz religiosa nunca dispusera, dentro desse tempo, dos recursos necessários à realização dos trâmites, pelo que tentava, agora, atingir aquele desígnio. Após endosso do papa, o bispo da Diocese, na altura D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), viu-se encarregado de encontrar uma solução para o caso e, apesar de já muito doente, ainda decidiu que a anulação dos votos não seria possível, condenando a freira a pedir à comunidade perdão de joelhos e a ser transferida para outra casa religiosa. Consultando os arquivos do Convento das Mercês, a M.e Isabel Filipa não consta. No entanto, consta a entrada de uma sobrinha sua, Vicência Juliana Câmara Leme Meneses Sá e Acciauoli, em 1760, com 13 anos de idade, poucos anos depois deste processo, filha de Francisco Aurélio da Câmara Leme e de Antónia Maria de Meneses Sá e Acciauoli. O mosteiro de N.ª Sr.ª das Mercês sofreu importantes obras de reconstrução nos meados do séc. XVIII, essencialmente a cargo da fazenda régia, dadas as complexas disputas entre os descendentes dos iniciais padroeiros. Por mandado do conselho da fazenda de 20 de julho de 1746 foi feita mercê de oitocentos mil réis, a favor do dito Convento, “por uma só vez” e pelas sobras das dívidas dos almoxarifes, para se efetuar o conserto dos muros da cerca, do dormitório, casa do noviciado e do coro da igreja (ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 19, fl. 177 v.), ainda havendo, com data de 9 de agosto de 1752, novo mandado do conselho da fazenda de mais quatrocentos mil réis para se acabarem as obras. No final do séc. XVIII e quando as instituições anteriores se tornavam menos rígidas, continuavam as freiras capuchinhas a lutar pelo seu completo isolamento, tendo sempre como principal preocupação, o muro que cercava o Convento. No início de 1782, e.g., o governador determinou uma rigorosa vistoria à cerca do Convento, “a pedido da madre abadessa e demais religiosas”, pois que as grades e a cerca eram devassadas em vários sítios e, o que era pior, “muitas pessoas têm a temerária ousadia de abrir buracos e encostarem escadas e outros instrumentos aos muros da dita casa; para assim poderem ver as procissões e outros atos religiosos em que as mesmas clausuradas se entretêm”. Ora tudo isso era “diametralmente oposto à modéstia e recolhimento daquela clausura” (ABM, Governo Civil, 535, liv. 11), pelo que o Cap. Eng.º José António Vila Vicêncio (c. 1720-1794) procedeu a uma completa inspeção a toda a cerca do Convento, de que elaborou relatório, procedendo-se, de novo a obras pontuais nos muros. O exemplo mais notável de profundo recolhimento e da total entrega a uma vida interior e espiritual foi, muito provavelmente, o da vida da M.e Brites da Paixão (c. 1632-1733). Filha natural do 6.º morgado do Caniço, Aires de Ornelas e Vasconcelos (1620-1689), foi o pai que lhe ofereceu a célebre imagem do Senhor da Paciência com quem a irmã falava como se fosse viva – segundo a tradição dos mosteiros das Mercês, depois de S.to António do Lombo dos Aguiares, para onde a imagem foi transferida –, que levou consigo para a casa paterna, no Lombo dos Aguiares, ao ser expulsa do mosteiro com as suas irmãs, em 1910. Foram-lhe atribuídas inúmeras graças, quer em vida, quer depois da morte, ocorrida em 1929, dedicando-lhe o povo um certo e especial culto, que levou o P.e Fernando Augusto da Silva (1863-1949) a iniciar o seu processo de beatificação, que abriu oficialmente em 2006 e em 2016 ainda corria. Foi com naturalidade que, algumas décadas depois, entrou para o Convento uma humilde rapariga de 17 anos, natural do Lombo dos Aguiares, que haveria de assumir o nome de Virgínia Brites da Paixão (1870-1929), devido ao facto de ser uma grande admiradora das virtudes da madre que ostentara aquele nome, existindo entre ambas muitos factos em comum. Foi com base na sua devoção e na da sua orientadora espiritual que surgiu depois o Convento de S.to António do Lombo dos Aguiares. Em 1834, com a implantação das diretivas do novo governo liberal e no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado, Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecida por “mata frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas, ficando as de religiosas, sujeitas aos respetivos bispos, até à morte da última freira, data do encerramento definitivo. Se para os conventos urbanistas o controlo das entradas e, inclusivamente, de saídas, fora mais ou menos fácil, para os conventos de capuchinhas, no entanto, tal não era fácil, dada a completa clausura ali praticada. Pelo que, embora proibidas de admitir noviças e, igualmente, de efetuarem profissões de fé pela lei de 5 de agosto de 1833, com a complacência, senão aquiescência das autoridades religiosas, continuaram a fazê-lo. As instruções de 31 de janeiro de 1862 determinaram a altura em que oficialmente o Convento passou à posse do Estado, já vindo a ser feitos inventários desde 1858. As autoridades civis, no entanto, ao longo do liberalismo foram mudando a sua posição inicial e perante o respeito popular de que gozava o Convento das Mercês, o mesmo manteve-se ao longo do séc. XIX. A M.e Ana Joaquina das Mercês morre em 26 de março de 1895 e, com a morte da última religiosa professa à data dos decretos de 28 e 30 de maio de 1834, o Convento foi oficialmente extinto. Os bens foram incorporados nos próprios da Fazenda Nacional, procedendo-se de novo à inventariação do Convento da Mercês, em setembro e outubro 1895, data da única planta do extinto convento que se conhece, levantada e desenhada por Joaquim António de Carvalho (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, cx. 2076). Em 2010, Nélson Veríssimo localizou uma aguarela do Convento das Mercês, feita no Funchal, a 18 de setembro de 1877, pelo pintor Edward John Poynter (1836-1919), muito provavelmente da varanda do Reid’s Santa Clara Hotel (Arquitetura do Turismo de Lazer), cujo paradeiro se desconhece. Na data da extinção do Convento, não havia arquivo e somente foi localizada uma pequena caixa de madeira com documentos por classificar. Os arquivos do Convento teriam sido assim já retirados pela Fazenda do Funchal, entre 1858 e 1862, integrando depois o acervo do governo civil e tendo sido, posteriormente, incorporados no arquivo regional. Só depois, a citada caixa, seguiu para Lisboa, para a Torre do Tombo. Dos vários inventários também não consta a célebre imagem do Senhor da Paciência, provavelmente já retirada do Convento pelas irmãs, pois acompanhou a M.e Virgínia da Paixão para o Lombo dos Aguiares e foi entregue ao Convento de S.to António ali instituído. Restavam no Convento da Mercês, à data da morte da M.e Joaquina, 19 professas, todas entradas posteriormente à legislação do primeiro liberalismo, que progressivamente foram requerendo autorização para continuar no Convento, pedido para o qual foram contando com o apoio das autoridades religiosas e civis insulares. A forma mais ou menos legal para a situação foi dada pela lei de 11 de abril de 1901, que autorizou as religiosas a organizarem-se numa Associação de N.ª Sr.ª das Mercês e, embora o Convento se encontrasse extinto, podiam as “associadas” permanecer no antigo edifício. A extinção efetiva do Convento veio a ocorrer com a implantação da República. De forma irrevogável, as pobres freiras foram, na noite de 13 de outubro de 1910, recolhidas em carro fechado e levadas para o andar térreo do Palácio de S. Lourenço, onde “aguardavam ser reclamadas pelas respetivas famílias” como noticiou o Diário de Notícias do dia seguinte (FONTOURA, 2000, 284). A Câmara Municipal do Funchal, logo em novembro desse ano, solicitava a cedência do imóvel para instalação da cadeia civil, sendo elaborado um termo de entrega do mobiliário e da igreja do Convento, algumas alfaias, livros, e outros objetos, ao Mons. João Luís Monteiro (1850-1923), mas os objetos mais valiosos, como eram as pratas da igreja, não fizeram parte da entrega. Parte do espólio de caráter religioso do suprimido Convento foi transferido para o Convento de S.ta Clara, e daí para a igreja matriz de S. Pedro. A transferência da cadeia civil da comarca não se chegou a efetuar e, em 1911, a câmara solicitou a demolição da igreja, sacristia e adro para ampliação da Trav. das Capuchinhas e da R. das Mercês. Em 1915, por pedido do presidente do Instituto de Beneficência Auxílio Maternal do Funchal, Henrique Augusto Rodrigues (1856-1934), coproprietário e fundador do Bazar do Povo e membro destacado do partido republicano, e com a concordância do governador civil, José Vicente de Freitas (1892-1952), foi entregue a este Instituto o que restava do velho e arruinado edifício, pouco depois totalmente demolido. No final do séc. XX, mais precisamente a 8 de setembro de 1998, no seguimento de uma sugestão das irmãs clarissas ao Governo Regional, foi descerrada junto àquela artéria uma pequena peça escultórica, da autoria de Ricardo Velosa, que pretendia evocar o antigo mosteiro de N.ª Sr.ª das Mercês que ali existiu entre 1667 e 1910, com dois baixos-relevos em bronze. Se o edifício do velho Convento das Mercês desapareceu totalmente, o espírito corporizado pelas irmãs manteve-se, mais ou menos recatadamente, como era timbre nestas freiras, que mantiveram, inclusivamente, o hábito nas suas residências de família. Serviu de elo de ligação entre as irmãs a M.e Virgínia Brites da Paixão que, embora residente no Lombo dos Aguiares, passava longos períodos nos vários núcleos residenciais. A madre faleceria em 1929, na residência de família do Lombo dos Aguiares e já não veria renascer o seu convento, desta feita junto da antiga capela de N.ª Sr.ª da Piedade, em Câmara de Lobos, instituído oficialmente em 13 de abril de 1931.     Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

Religiões Sociedade e Comunicação Social

convento de santa clara

A necessidade da instituição de um convento feminino no Funchal foi logo sentida com a consolidação do povoamento, tendo cabido a João Gonçalves da Câmara (1414-1501), segundo capitão donatário do Funchal, a iniciativa da fundação de um Mosteiro de S.ta Clara, não só para recolhimento das suas filhas, como de outras pessoas que desejassem seguir a vida monástica, o que então não se podia fazer no Funchal, por falta de casa destinada a esse fim. A família do 2.º capitão do Funchal assumia-se como a primeira família da Madeira, o que dificultava o casamento dos seus membros na Ilha, pelo que quatro das suas filhas se encontravam por casar. A dificuldade já havia ocorrido com as filhas de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), tendo o Rei D. Afonso V (1432-1481) enviado quatro moços fidalgos do reino para as desposarem. O Convento de S.ta Clara foi autorizado por bula de Sisto IV, Eximiae devotionis affectus, datada de 4 de maio de 1476, que concedia o padroado do futuro convento, ainda não construído, a João Gonçalves da Câmara, a sua mulher Maria de Noronha e aos descendentes. A autorização para ser construído o Mosteiro de S.ta Clara com base na igreja de S.ta Maria de Cima, onde a família Câmara estabelecera o seu panteão, foi recebida na Ilha através de uma carta do duque D. Manuel (1469-1521), datada de 17 de julho de 1488, de acordo com a carta que recebera do Papa. Como, até então, a missa dominical se realizava ora em Conceição de Cima ora em S.ta Maria do Calhau, que era sede única da paróquia da capitania do Funchal, determina o duque na carta de 1488 que, dado que a igreja da Conceição de Cima ia ser integrada no futuro convento, a alternância da missa passasse para a capela camarária de São Sebastião até se construir a “igreja grande” (Arquivo Histórico da Madeira, XVI, 1973, 212-213), que haveria de ser acabada para Sé. As obras do convento ter-se-ão iniciado logo nos anos seguintes, estando o edifício pronto por 1495. Havendo já, para a fundação do convento, nova bula do Papa Alexandre VI, Ex Muinto Nobis, de 29 de março de 1495, transmitida por D. Manuel a 13 de junho de 1496, aguardava-se a ocupação no Natal desse ano. Visto que tanto o capitão como as novas freiras ainda se encontravam no continente, a ocupação do convento ocorreu no domingo de 8 de novembro de 1497, depois da chegada das fundadoras, como escreve Henrique Henriques de Noronha. O 2.º capitão tinha enviado para o convento da Conceição de Beja duas filhas, mas uma faleceu ali, pelo que só regressou D. Isabel de Noronha, a primeira abadessa, cargo que ficou na família. No Funchal, tinha ficado D. Constança de Noronha, encarregada das obras, pois o pai estava fora, que recebeu no Funchal o pai e a irmã, assim como Joana de Albuquerque, Maria de Melo, Maria Passanha e Ana Travaços, freiras vindas do reino, e algumas educandas, que entraram no novo convento, tal como a irmã mais nova, D. Elvira de Noronha, que ficara no Funchal. Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de) deve ter seguido o texto de Gaspar Frutuoso (1522-1591), pois cita a entrada de D. Elvira e de D. Joana, o mesmo fazendo na sua genealogia. Não segue assim o texto de Jerónimo Dias Leite (c. 1537; c. 1593), que refere o falecimento de uma das filhas do capitão do Funchal enviadas para Beja, embora não enuncie o nome, que é confirmado pelo testamento do 2.º capitão do Funchal, de 1499, onde o mesmo refere ter falecido D. Joana de Noronha em Beja e ali se encontrar sepultada. O protagonismo teria sido sempre de D. Constança, que ficara a dirigir as obras e que, por breve do Papa Leão X, Exponi Nobis, de 25 de novembro de 1513, teve autorização de entrar como secular para o convento, vindo a sepultar-se na mesma campa que a irmã, D. Isabel de Noronha, cuja laje se encontra no corredor junto do coro de baixo, e tem a seguinte inscrição: “Aqui jaz Dona Constança de Noronha, que fundou este mosteiro e sua irmã, Dona Isabel, primeira abadessa, filhas do segundo capitão desta ilha”. Esta situação é confirmada em carta do corregedor D. Gaspar Vaz, escrita no Funchal em 20 de maio de 1542, em que comenta que o cargo de abadessa terá sido ocupado, durante as primeiras décadas, por familiares de João Gonçalves da Câmara, visto que a D. Isabel de Noronha terá sucedido a sobrinha, D. Brites de Ataíde, filha de Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530) e da segunda mulher, D. Isabel da Silva. Refere Gaspar Vaz que até então andaram “as abacias de parenta em parenta, todas Noronhas” e que, nesse ano, frei Nuno, visitador e guardião do convento de São Francisco, tinha ordenado nova eleição “e, com suas pregações e bom Regimento”, tinham eleito as freiras uma abadessa, também dessa “linha”, que viera de Portugal, “por nome Aparícia, virtuosa pessoa e para muito” (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 72, doc. 9). Foi devido ao seu prestígio que o padroado dos Câmaras se tornou significativo e se manteve, inclusivamente com os condes e marqueses de Castelo Melhor, pois o direito do padroeiro já não tinha a intensidade que atingira na Idade Média. Este assunto tinha já sido exposto a D. Manuel antes de 1489, respondendo o então duque de Beja a 11 de junho desse ano que, para o futuro convento, “não deveriam entrar estrangeiras, mas filhas e parentes dos principais da terra” (Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVI, 220). Assim, com D. Brites de Ataíde, também tinham entrado as irmãs D. Isabel e D. Maria de Noronha, todas filhas do 3.º capitão do Funchal, em cumprimento das diretivas régias. Com a eleição da madre Aparícia, a situação mantinha-se. A direção das obras deve ter continuado, nos anos seguintes, a cargo de D. Constança, que se manteve como administradora do convento até 1526, ano em que renunciou a favor de sua irmã, a abadessa D. Isabel e devem ter sido dirigidas pelo mestre João Gonçalves, que, até junho de 1503, data em que foi enviado a Lisboa, esteve à frente das obras da nova igreja, cuja coordenação tinha sido do 2.º capitão do Funchal. Não temos quaisquer informações sobre a estruturação do convento nesses anos, limitando-se a planta de Mateus Fernandes (III) (c.1520 – 1597), de 1570, arquivada no Rio de Janeiro, a mencionar: “Mosteiro de freiras posto sobre a ponta duma rocha” (BNB, cart. 1090203) - embora pareça ocupar, nesta representação, um espaço maior que o dos anos seguintes. Gaspar Frutuoso não vai muito mais longe na sua descrição do Funchal, de cerca de 1590: “mosteiro de freiras da observância, de grandes rendas e maiores virtudes”, dando a indicação de que teria 70 religiosas, das quais eram “sessenta de véu preto”, ou seja, professas, voltando a referir estar “sobre uma rocha muito forte, muito murado”, com boas vistas para o mar e poucas para terra, por os muros serem altos e de pedra e cal, “ainda que não é muito grande cerca” (FRUTUOSO, 1968, 115). Pelos edifícios existentes no início do séc. XXI, tudo leva a crer que a igreja já tinha avantajadas dimensões, tendo-se aproveitado a anterior pequena capela da Conceição de Cima para capela-mor da futura igreja, local onde foram enterrados os dois primeiros capitães. Terá sido deslocada, provavelmente, a porta da capela inicial, o elemento mais antigo de todo o conjunto, cujo portal de mármore é datável entre 1450 e 1460, e foi do continente, provavelmente das oficinas da área de Sintra ou Pero Pinheiro. Também deve ter sido deslocado o túmulo de Martim Mendes de Vasconcelos (c. 1420-1493), genro de Zarco, que será provavelmente anterior às obras do convento, tendo sido adossado na parede dos dois coros do futuro convento. Os chãos de ambos os coros possuem azulejos mudéjares de Sevilha, datáveis dos finais do séc. XV aos inícios do XVI, e, não parecendo obra facilmente desmontável, teriam sido dos primeiros do futuro convento. Das obras de 1490 a 1495, são também a arcaria dos claustros, de um gótico algo arcaico, mas elegante, uma série de pequenas portas de arco apontado, de acesso ao coro de baixo e à torre, e o piso inferior dos claustros e o superior, de acesso ao bloco de dormitórios para nascente que foi reformulado nos séculos seguintes. Contemporânea dessa fase das obras foi também a torre do convento, dos sécs. XVII e XVIII, tendo sobrevivido apenas a base da mesma, com portas góticas e larga estrutura de pedra aparelhada, com várias marcas de canteiro. Alguns anos depois, temos referência a alguma imponência ou altura desta construção, pois que, segundo escreve Gaspar Frutuoso, tendo os corsários franceses cercado o convento, a 3 de outubro de 1566, o defendeu Sebastião Mendes que ali tinha uma filha, tendo inclusivamente, a partir do campanário, derrubado com um tiro de arcabuz um francês que tentara subir o muro do edifício. Julgando estar o convento guarnecido por “gente de guerra”, os franceses afastaram-se para atacarem a fortaleza do Funchal, permitindo a saída das freiras para o Curral, “com cruz alevantada, sem impedimento de pessoa alguma” e levando consigo o guardião franciscano frei Baltazar Curado (Id., Ibid., 329-330). Dos primeiros anos de funcionamento do convento, se não de mesmo antes, será o cadeiral do coro de cima, dotado de um conjunto de cadeiras muito simples e austeras, separadas por colunelos oitavados, com pequenos capitéis e bases ressalvadas e trabalhadas (Cadeirais). As cadeiras são dotadas de misericórdias, para aliviar os longos tempos de oração e canto de pé, com pequeno espaldar e remate ressalvado sobre as costas, assentes no que deve ser o estrado original e com o chão revestido a azulejos mudéjares de base relevada, a chacota, com vidrado de óxido de cobre. A decoração do chão do coro de baixo é mais variada, utilizando já azulejos de aresta e corda seca, provavelmente nem todos de Sevilha, mas de outras oficinas mudéjares da Andaluzia, com várias cores de vidrado, pequenas losetas e tijoleira (Azulejaria). O Cap. João Gonçalves da Câmara, por escritura de 11 de setembro de 1480, comprara a Rui Teixeira e Branca Ferreira, moradores no Campanário, a propriedade do Curral, pela importância de 23$500 réis “de cinco ceitis ao real” e 50 cruzados de oiro, cuja área era desde o Passo da Cruz e Ribeira dos Socorridos “até onde ela nasce, de arrife a arrife, de uma a outra banda” (ANTT, Convento de S.ta Clara…, liv. 11, 63, liv. 18, 173). Como o convento foi fundado dentro da regra urbanista, ou segunda regra de S.ta Clara, que previa a existência de propriedades, foi com este prédio rústico, o mais vasto e importante que este convento chegou a possuir, que o fundador dotou o Mosteiro por ocasião de nele serem admitidas as suas filhas como religiosas. Pouco depois, toda esta área deixava de ser somente o Curral, para passar a ser o Curral das Freiras, especialmente depois da célebre fuga das religiosas em outubro de 1566. Pela edificação e proteção económica do Mosteiro também se interessou D. Manuel que, em alvará de 13 de julho de 1496, concedeu às freiras autorização para terem bens de raiz até ao valor de 200.000 réis, tanto em terras compradas, como provenientes de doações. O Convento de S.ta Clara obteve ainda dispensa de pagamento de foro das suas propriedades, ao qual, na altura, todos os conventos estavam obrigados durante um ano, e, por outro alvará de 4 de janeiro de 1512, o privilégio de poder ter uma pessoa leiga de fora com poderes para penhorar, executar e constranger os seus caseiros. As freiras voltaram a ter privilégio para possuir bens de raiz por alvará de D. Sebastião, de 7 de março de 1566. O convento gozava ainda de privilégios gerais, concedidos por D. Afonso V em 2 de abril de 1459, em que se isentava os Franciscanos do pagamento de fintas, taxas e tributos, como era a sisa e a dízima, “portagem costumada de peão”, nem de vinho, carne e pescado. O longo documento de isenção refere ainda tudo o que comprassem para seus mantimentos, “para seus vestidos e necessidades”, materiais que comprassem para reparação de seus mosteiros e casas, assim como pedra, cal, areia, madeira, pregadura, tabuado, cavalgaduras e animais de carga, “com seus aparelhos, que para servidão comprarem”, “posto que os tornem a vender”, etc. O mesmo se passava na área da alimentação “e coisas que sejam dadas, deixadas, que eles possuir não possam, e quaisquer joias e ornamentos”, que também comprassem ou lhes vendessem para os serviços divinos, assim como vestimentas, capas, livros, imagens e quaisquer outras coisas “que para isso pertencerem” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Avulsos, mç. 1, doc. 4). Desde os finais do séc. XV que as propriedades do convento foram crescendo, espalhando-se por toda a Ilha, especialmente na capitania do Funchal: arredores da cidade, Câmara de Lobos, Estreito de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Campanário, etc. Dada a diversidade de dimensões e os contratos que implicavam a sua exploração, houve que constituir um cartório próprio para fazer face aos problemas de organização e administração com os contratos e o pagamento de rendas, que iam desde dinheiro a géneros, pagos por centenas de foreiros, colonos ou simples arrendatários. O arquivo e cartório do Convento de S.ta Clara do Funchal é testemunho da grande empresa económica e agrícola que as freiras constituíram, tendo sido organizado, a partir dos meados do século XVII, por Sebastião de Teive. Ao longo do séc. XVII, as freiras negociaram em propriedades, vendendo, e.g., parte das propriedades que possuíam em São Vicente numa tentativa de concentrar os seus bens no sul da Ilha. Possuíam então prédios urbanos, moinhos e engenhos, mas também quintas e serrados, serras de água, etc. Funcionando como uma verdadeira empresa, chegaram a armar navios para o Brasil e a emprestar dinheiro a juros de 5 %. Um dos problemas com que se debateram nos inícios do séc. XVI foi o da água, rapidamente resolvido. O Convento herdara uma propriedade na Fundoa em São Roque, que pertencera a D. João de Noronha, com duas fontes, de que tomou posse a 13 de agosto de 1524. A 3 de janeiro de 1527, as freiras assinaram um contrato com o mestre Gomes Annes, da Ponta do Sol, e com o bacharel Lopo Dias, para a construção de um aqueduto no Pico dos Frias - “um cano de pedra e cal com alcatruzes” -, cedendo, em contrapartida, dois lugares no convento para as filhas do bacharel e outros dois para as do mestre. A 25 de outubro de 1578, haveriam de vender 2/3 da água do aqueduto aos irmãos Francisco, Gaspar e Diogo Frias, coproprietários da quinta com esse nome na base do pico que ficou, algum tempo depois, como Pico dos Frias, tendo sido com essa serventia que, por novo contrato, os irmãos Frias venderam aos padres da companhia de Jesus (Colégio dos Jesuítas), a 30 de julho de 1600, a quinta em questão. A partir de 1600, os padres ampliaram o aqueduto, onde quase podia passar um homem acocorado, trazendo a água de nova captação na Fundoa e levando-a até ao Colégio, no centro do Funchal. Embora o contrato salvaguardasse a água do convento, várias vezes houve interrupções do fornecimento, chegando as freiras a queixar-se, em 1664, de se encontrarem muito prejudicadas “nos lucros cessantes” dos doces e conservas que deixaram de fabricar por falta de água, e no que tinham “as suas negociações” (ANTT, Convento de S.ta Clara…, avulsos, livs. 11 e 16). Os cortes de água chegaram a levar as freiras a abandonar a clausura para se irem queixar ao Funchal, que era o desvio mais grave de disciplina de uma casa monástica. O insólito foi registado em versos gongóricos por António de Carvalhal Esmeraldo de Atouguia e Câmara (1662-1731), na Cítara de Aónio, e levou à intervenção régia, em 1712 e 1721, atribuindo-se a sua fiscalização ao provedor da Fazenda, através da nomeação de olheiros “para semanalmente visitarem o dito cano” (BNP, reservados, cód. 8391, 1775, 75-75v.). Os problemas da água, no entanto, manter-se-iam no século seguinte, especialmente quando o aqueduto passou para a administração régia, com o confisco dos bens dos Jesuítas. Este aqueduto encontra-se na base de várias lendas locais, contando-se que por ele comunicavam ilicitamente os padres jesuítas com as freiras de S.ta Clara, lendas depois ampliadas também aos Franciscanos, não contando, claro, com a quase impossibilidade de vencer por túnel o desnível entre o centro do Funchal e a ponta alcantilada de rocha onde se construiu o convento das clarissas. A comunidade foi constituída inicialmente para um número reduzido de freiras, que foi aumentando, tendo chegado, nos fins do séc. XVI, a mais de 100 religiosas, como regista o “Recenseamento dos fogos, almas, etc.” tirado pelos “róis de confissões” de 1598 (BGUC, manuscritos, cód. 210, 1598). Entre 1602 e 1677, entraram 173 noviças, pelo que, por 1720, o número de professas tinha aumentado para bastante mais de 100. Acresce ainda a este número, pelo menos, igual número de noviças, recolhidas leigas, servas, escravas e pessoal externo, onde se incluía um almocreve, um tabelião e outro pessoal. Face ao aumento do número de religiosas, fruto da prosperidade atingida pelas famílias terra-tenentes com a exportação do vinho, conseguindo assim verbas para os avultados dotes de entrada no convento, as freiras abalançaram-se a importantes obras, reformulando toda a igreja, mandando fazer um monumental sacrário de prata (Sacrários) e construindo várias capelas. O dote de entrada era, no início do séc. XVII, de 200$000 réis, além de mais 1$000 para alimentos durante o noviciado e propinas, sendo aumentado, em 1703, para 600$000 réis. A vida de uma candidata começava por um contrato que definia as condições da sua entrada no convento, o valor do dote, etc., sendo ainda necessário um breve do Papa e uma patente do provincial. Após o noviciado, para o qual as candidatas respondiam a uma série de perguntas, de que se elaborava auto e que ficava registado no Livro de Auto de Perguntas, seguia-se o estágio e a profissão, cerimónia que se fazia junto à grade do coro baixo, na presença do bispo ou de um seu representante, do escrivão da câmara eclesiástica e outras testemunhas, como o capelão do convento e o confessor da futura professa. A vida interna do convento complicou-se de alguma forma na segunda metade do séc. XVII com o estabelecimento da custódia de São Tiago Menor, pois ficou na dependência da mesma e o seu provincial a presidir ao capítulo que efetuava a eleição das abadessas, quase todas dos vários ramos da família Câmara. Passou assim a haver continuamente queixas ao bispo da interferência dos padres de S. Francisco nas eleições do Convento de S.ta Clara. Depois da eleição da abadessa procedia-se à eleição dos diversos cargos do convento: vigária da casa, escrivã, porteira-mor, segunda e da campainha, escutas da roda e das grades, assistentes do médico e vigárias de coro. Havia ainda outros cargos não vinculados a eleição, como rodeira-mor e segunda, mestra de noviças, mestra das confissões, sacristã, enfermeira-mor, escrivã e ajudante da escrivã, administradora do serrado ou cerca do convento, regente, saleira, forneira, azeiteira, provisora e duas discretas, que assistiam aos contratos efetuados junto da roda. As chamadas religiosas de véu preto, i.e., as freiras professas eram semanalmente chamadas a capítulo, para se tomarem as decisões mais importantes, que implicavam os assuntos gerais de património do convento e que só podiam ser tomadas por esse órgão colegial. De três em três meses, a madre abadessa dava ainda conta ao capítulo dos gastos e das receitas internas, que eram anualmente presentes ao bispo, ou ao seu representante, para aprovação. Entre os finais do séc. XVI e os inícios do XVII, foram os coros dotados de altares, cujas tábuas pintadas e as esculturas vieram de Lisboa, revestindo-se as paredes do coro de cima com azulejos pseudoenxaquetados que, dada a sua existência em várias igrejas da região e não se conhecerem exemplares no continente, devem ter sido uma encomenda da Fazenda Régia do Funchal. Entre 1620 e 1630, as freiras encomendaram em Lisboa novos azulejos policromos. No entanto, aquando da sua chegada ao Funchal, as imagens de figuras seminuas de inspiração indiana (nagas ou najiras) não teriam recebido a melhor aceitação, acabando por ser colocados depois como barras e remates junto da sanca superior da nave da igreja, a cerca de 10 m de altura. Das mais de 10 capelas desta época, subsistiu a de S. Gonçalo de Amarante, montada entre 1640 e 1660, onde poderia ter havido uma capela anterior, pois restou no chão um pequeno painel de azulejos de majólica, em princípio de produção nacional e datáveis dos últimos anos do séc. XVI. O retábulo de S. Gonçalo foi pintado por Martim Conrado, sendo a talha da oficina talha de Manuel Pereira (c. 1600-1679) e os azulejos da parede de uma oficina de Lisboa, datáveis de 1640 a 1660. De capelas anteriores, restaram os retábulos da Natividade, depois remontado na portaria, com um conjunto heterogéneo de pinturas das primeiras décadas do séc. XVII, e de S.to António, com a pintura central de uma boa oficina portuguesa e o pormenor quase insólito de apresentar os panos laterais pintados, pelo que parece ser uma oficina luso-oriental. Nos claustros, subsistiu a capela da Ressurreição, montada entre os finais do séc. XVII e os inícios do XVIII, com as paredes totalmente revestidas a azulejos de padrão camélia, datáveis de 1680, sensivelmente, mas a enquadrarem uma tela de Nossa Senhora da Candelária, das oficinas de Tenerife, nas Canárias, muito provavelmente já dos meados do séc. XVIII. Pelos anos de 1660 a 1667, quando se fizeram obras nos coros, foram as paredes da igreja totalmente revestidas por azulejos das oficinas de Lisboa com os padrões em voga nos conventos das clarissas dessa época. Foram aplicados, assim, azulejos do chamado padrão de S.ta Clara, porque presente em inúmeras igrejas dos conventos de clarissas, com pequenas variantes, embora também apareçam noutras igrejas, e o padrão Marvila, o mais complexo padrão de azulejos de tapete da segunda metade do séc. XVII, constituído por 12 azulejos diferentes (padrão de 12 x 12), demonstrando bem as potencialidades económicas do Convento de S.ta Clara do Funchal nesses anos. Por esta altura, também iniciaram as freiras de S.ta Clara um peditório para a feitura de um monumental sacrário de prata. Tudo leva a crer que a primeira encomenda foi feita ao prateiro José Dias de Araújo, que recebeu idêntica encomenda da Confraria do Santíssimo da Sé do Funchal e que, nos inícios de 1658, fugiu para o Brasil com a prata, de que muito se queixaram as freiras e os confrades da Sé. As freiras voltaram a fazer um peditório, tendo o trabalho sido entregue, em 1666, ao já velho prateiro e ourives Simão Lopes (c. 1610-1669). Como o trabalho não avançava e temendo que pudesse acontecer outro desvio, optaram por entregar o trabalho a uma equipa constituída pelos ourives António Neto (c. 1630-1707), António Araújo Feio (c. 1630-1706) e António Soares (c. 1650-1725). O sacrário foi dado por terminado a 12 de agosto de 1671, altura em que se encontrava enquadrado por talha do imaginário Manuel Pereira, com o qual trabalhara um marceneiro francês não identificado. O montante de toda a obra orçou em mais de um conto de réis. Perto dos finais do séc. XVII, visitava o Convento de S.ta Clara o depois célebre médico e naturalista inglês Hans Sloane (1660-1753), que recolheria pelo mundo uma série de curiosidades que viriam a constituir o núcleo inicial do Museu Britânico, em Londres. Em viagem para as Índias Ocidentais, na companhia do duque de Albmarle, ancorou a 21 de outubro de 1687 no Funchal e, embora só estivesse na cidade três dias, como médico já conhecido e tendo, inclusivamente já estado na Madeira, foi convidado pelo cônsul a ir a terra e, pela madre abadessa de S.ta Clara para se deslocar ao convento para ver algumas freiras que estavam doentes. Escreveria este médico inglês que as freiras “sofriam de clorose, muitas delas devido à vida solitária, melancólica, sedentária e falta de exercício”, e que, depois de as consultar, se deliciara com uma bela refeição de frutas e compotas; e acrescenta então que “os doces e a mobília do quarto tinham sido feitos pelas próprias freiras. Até agora, quer as compotas, quer o mobiliário, nunca vi coisas tão boas” (ARAGÃO, 1981, 162-163). A opinião não deve ser levada à letra, salvo nas compotas, pois não cremos que as freiras executassem trabalhos de marcenaria e carpintaria. Mas tudo leva a crer que no Convento de S.ta Clara haveria uma oficina de marcenaria, onde por certo não trabalhariam as freiras, ainda que os arranjos finais, provavelmente de douramento e pintura, pudessem ser feitos por elas. Acresce que a opinião de um especialista e colecionador internacional como Hans Sloane, depois elevado a barão e membro da Royal Society, onde sucedeu como presidente a Isaac Newton (1643-1727), segundo a qual nunca vira “coisas tão boas”, é um elogio indubitavelmente a ter em linha de conta. Nos inícios do séc. XVIII, o número de religiosas subia para 170, sendo 70 supranumerárias, muitas das quais não eram professas nem tinham feito votos. A comunidade albergava ainda mais de 100 criadas, a que recorriam várias religiosas para seu serviço privativo, repartindo-se por 12 dormitórios, o que numa casa de vida apertada e austera, como deveria ser um mosteiro, constituía um abuso. Havia então em S.ta Clara 17 capelas, uma das quais exterior; eram elas: da Ascensão do Senhor (no claustro), da Porciúncula, da Ressureição do Bom Jesus, do Sacramento (que era no claustro e de que ficaram as portadas), da Assunção (coro de cima?), da Senhora, da Senhora do Rosário, de Belém, da Encarnação (na portaria), do Desterro, da Conceição da Senhora, de S. José (de que só ficou a imagem), de S. Francisco, de S.ta Clara, de S. João, de S.to António (cujo altar passou para o coro de baixo) e de S. Gonçalo de Amarante. Neste elenco, não parece entrar o altar do Calvário ou da Piedade, no coro de baixo, nem o do Ecce Homo, no coro de cima. Também não é referida por Henrique Henriques de Noronha a capela de Nossa Senhora da Piedade, levantada nos meados do séc. XVII por Duarte Pestana e onde foi sepultada sua filha Beatriz Pestana, na “ilharga da igreja da banda da rua” (ANTT, Convento de S.ta Clara…, liv. 18, p. 172), indicação de que só terá sido incluída no convento depois de 1720, constituindo a sacristia, mas mantendo a laje sepulcral de Beatriz Pestana. Henrique Henriques de Noronha descreve a igreja de S.ta Clara quase como era conhecida nos começos do séc. XXI, embora com mais altares. Existiam então na nave os altares dos Reis Magos, de S.ta Clara, de S.ta Ana, de Nossa Senhora da Piedade e de S.ta Quitéria, parecendo que na reforma de 1770 a 1790, altura em que ali teria trabalhado a equipa do mestre Estêvão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), alguns dos altares passaram a outra evocação, pois desapareceu o de S.ta Clara e o de S.ta Ana, passando a haver um de S. José e outro de S.to António. Sobre a capela-mor refere a “gradinhola para as comunhões, na forma em que dispõe o Cerimonial Romano”, e as lajes tumulares dos capitães do Funchal, referindo a não existência da laje do 4.º capitão, João Gonçalves da Câmara III (1489-1530), embora o Nobiliário Genealógico o dê como ali enterrado (NORONHA, 1948, 112). Nesta descrição, salvaguarda que, como faleceu de peste, “ou não se lhe assinalou a sepultura, ou se lhe deu em outra parte, como era costume fazer-se aos que faleciam deste mal” (Id., Ibid., 265). Regista que aos pés da sepultura do 3.º capitão se encontrava a de seu neto, o 1.º conde da Calheta (1512-1580), com o lapso de escrever que faleceu em Lisboa, quando de facto, faleceu no Funchal. O curioso é que, depois, o 1.º conde da Calheta teria passado para a sepultura do avô, ou vice-versa, como já regista o Elucidário. Esta obra informa que, em março de 1919, tendo-se levantado o tabuado, se descobriu, do lado da epístola, a laje em questão, referente à sepultura dos dois, com duas linhas intermédias da inscrição raspadas, acrescentando: “de cuja circunstância não sabemos dar cabal explicação” (SILVA e MENESES, 1998, I, 209). Em 1748, a cidade do Funchal sofreu um forte terramoto e, numa primeira fase, incrementou-se uma série de devoções incentivadas pelo bispo franciscano D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), de que resultou, em S.ta Clara, a fundação da Confraria das Escravas de Nossa Senhora do Monte, entre 1750 e 1751; esta parece não ter tido especial continuidade, não havendo referências à existência de confrarias no Convento de S.ta Clara, visto que, logicamente, o mesmo já funcionava como uma irmandade. Entre 1765 e 1769, as freiras possuíam um total de 105 propriedades, que rendiam entre 9 e 10 contos de réis. Recebiam, ainda, pelo aluguer de várias casas, quase mais 20 contos, bem como 130 foros, pagos em trigo, que rendiam 19 moios e 15 alqueires, no valor de mais 500 réis, e ainda outro tanto de foros pagos em dinheiro. Os juros, a 5 %, do capital que tinham emprestado ultrapassavam um conto de réis. Estes anos, no entanto, representaram uma nova fase de relação entre as instituições religiosas e o poder centralizador da Coroa e do bispado do Funchal, restringindo-se, a partir de 16 de julho 1764, as entradas de noviças nos conventos e passando a haver um completo controlo sobre os seus rendimentos. Periodicamente, passaram a ser enviados pelo governador mapas com a relação das religiosas, anotando o que se dava diariamente a cada uma, tal como o rendimento e as despesas da comunidade. Com a passagem dos bens dos Jesuítas para a Fazenda Real e algum vazio de poder no controlo dos mesmos bens, veio a apropriar-se da água do aqueduto o morgado António João Correia Bettencourt, que a desviou para a sua Qt. da Achada. A questão levou a queixas das freiras e à intervenção do corregedor Francisco Moreira de Matos, em 1770, a favor das mesmas, a quem de direito pertencia a propriedade de 1/3 das águas em questão. Dada a origem nobre da maior parte das freiras de S.ta Clara, a sua posição foi quase sempre levada em linha de conta, não se escusando, por exemplo, o governador a determinar ao juiz pedâneo de Câmara de Lobos, em 1781, que, sempre que houvesse peixe para vender, se deveria guardar uma parte para as irmãs de S.ta Clara. Com efeito, a vida da maior parte das instituições madeirenses debatia-se com dificuldades na aquisição de peixe, mas tal não parece acontecer com este Convento, embora poucas vezes fosse possível localizar a origem do pescado. As contas anuais do convento, repartidas por quartéis, abrem sempre com a indicação do número de dias e a descriminação dos “dias de peixe” e de carne, indicados como “de vaca”. No primeiro quartel da vigência da madre Antónia Caetana de Santa Teresa, e.g., de maio a agosto de 1783 – as eleições eram sempre a 19 de maio, pelo que a marcação da vigência de uma nova abadessa começava nesse mês –, “houve noventa e dois dias, trinta e três de peixe, sessenta e três de vaca e seis providos” (de jejum?). As freiras adquiriram então peixe fresco, incluindo bacalhau e arenques, sendo estes últimos essencialmente para as serviçais e os moços de recados. Ao longo do século, também aparece a aquisição de sardinha e salmão (fumado?), embora este último quase desapareça nos finais do séc. XVIII. Saliente-se que as aquisições de peixe são essencialmente para os dias normais, pois para os inúmeros dias de festa as aquisições não referem peixe, mas carne, enchidos, frutas e doces (ANTT, Convento de S.ta Clara…, liv. 53, fls. 7-8). Um dos aspetos mais interessantes dos conventos femininos do Funchal é a indicação da aquisição de tabaco em todos os quartéis do ano, à volta dos 30$000 a 40$000 réis. O tabaco destinava-se a ser “repartido pelas religiosas e demais obrigações” do convento, entendendo-se como tal ofertas aos padres que se deslocavam ao convento, a feitores e outras entidades. A 11 de abril de 1771, registam-se 26$000 réis da aquisição de tabaco, sendo 3 réis despendidos com os padres do enterro da madre Ana Vitória e com o padre diácono, no dia oitavo e na festa de S.ta Maria Madalena (Ibid., liv. 53, fl. 10). Quando havia jejum, paralelamente ao peixe, ou em sua substituição, comiam-se ovos. A par do trigo aparece igualmente o arroz e, em épocas especiais, o cuscuz. Não se encontraram referências ao consumo de inhame por parte dos inúmeros serventes e escravos, o que era normal na Madeira, sendo apenas referido nos finais do século, nem ao de milho pelas freiras. A única referência encontrada de aquisição de milho destinou-se à alimentação dos homens que trabalhavam na cerca do Convento. O centeio também não se destinava às freiras, mas à alimentação da criadagem, servindo para fazer pão de mistura. Entre os vegetais, os mais citados são o agrião, a couve, a fava, a ervilha, o feijão, a lentilha, o nabo e a abóbora, para além de uma série de grãos não especificados. Um dos aspetos mais interessante da cozinha das freiras de S.ta Clara, que por certo não se afastaria muito da cozinha das casas abastadas do Funchal, era a excecional variedade das especiarias, com cravo-da-índia e do Maranhão, pimenta, canela, erva-doce, açafrão, almíscar, cominhos e gengibre, entre outras. Por último, referimos um dos aspetos que celebrizaram os conventos portugueses e que seria mencionado por todos os viajantes estrangeiros, como já em 1687 referira o médico inglês Hans Sloane: os doces e, logicamente, a obesidade geral das freiras. As próprias Constituições e Estatutos recomendavam a distribuição de determinadas iguarias nos principais dias festivos, como Natal, Páscoa e festa da Madre (S.ta Clara), não só às freiras em geral, como aos principais doadores e benfeitores do convento, entre o que se designava por “obrigações da casa” e “obrigações de fora”, que também se encontra no similar convento da Encarnação do Funchal (GOMES, 1995, 130-135). Pela leitura dos livros de receita e despesa de S.ta Clara, apercebemo-nos de imediato de uma maior autonomia deste convento, com muito mais propriedades, logo necessitando de menos aquisições no mercado local. Assim, as freiras recebiam das suas propriedades uma série de “miudezas que vieram para o convento”, como, por exemplo, em 1783: 19 canadas de manteiga; 41 canadas de leite do Curral; 7 sacos de inhame da horta da Calçada, o que até esta data não havia aparecido; 200 peras do foro pago na Calheta; 4 sacos de marmelos da Caldeira; 12 sacos de batatas; 4 sacas de castanhas verdes; 45 alqueires das ditas, secas; 6 alqueires de nozes; 170 abóboras; 370 cabos de cebolas; 4 cestas de alhos; 4 feches de canas da horta da Calçada; e 80 canecas de melado “que se repartiram pelas freiras” (ANTT, Convento de S.ta Clara…, liv. 53, fl. 7), quantitativos e proveniências que se mantêm mais ou menos ao longo do século. As freiras, no entanto, adquiriam ainda muita coisa no mercado local, principalmente para as suas inúmeras festas, fora dos já citados dias de peixe e dias de vaca. Assim, encontramos aquisições de perus, leitões, cabritos e coelhos, para além de aquisições específicas em Lisboa, o que no Convento da Encarnação não acontecia. No citado ano de 1783, veio de Lisboa uma pipa de azeite “com trinta almudes e seis canadas, a dois mil e trezentos réis a canada”, havendo também referência a amêndoa “que se mandou vir de Lisboa”. Ao longo de todos os quadrimestres existem verbas para pão-de-leite e broa para a merenda. Havia ainda festas especiais com manjares específicos: “talhadas de cidra, na eleição da abadessa”, a 19 de maio; carne de porco e de carneiro, a 24 de dezembro; “argolinhas” pelo Natal; “bolo de mel a 6 de janeiro”; “broa pelo São Pedro”; “bolo na festa da Conceição”; “sonhos na entrada do Advento”; etc. Importava-se do Brasil, especificamente, e.g., mel de cana para a confeção do bolo de mel (15 canadas em 1783, a 250 réis cada) e açúcar, posteriormente “purificado” no convento. Com base nestes condimentos se faziam “as obrigações”, como uns “pratinhos de ovos reais, que se deram às freiras no dia de São João”, que também aparecem referidos como oferta para fora (Ibid., livs.36-82). Nos meados do séc. XVIII, o Convento de S.ta Clara ter-se-á fechado um pouco mais sobre si próprio, datando dessa época uma petição inédita: a remoção do carneiro com os despojos de João Gonçalves Zarco, que estava colocado no centro da capela-mor e que, alegaram as freiras, interferia com os seus ofícios religiosos. A petição enviada ao marquês de Castelo Melhor, como representante da família Câmara, instituidora e patrona do convento, teve a data de julho de 1768 e, sendo autorizada, foi a sepultura removida no ano seguinte para o coro de baixo num carneiro em madeira pintada, com a inscrição de ter sido removida a 22 de fevereiro de 1769. Com as restrições advindas da centralização dos meados do século, as freiras não baixaram nunca os braços e foram-se queixando, sucessivamente, da situação em que se encontrava o convento por terem sido extintos os seus bens de raiz, como em 1777, quando solicitaram a revogação da decisão conseguindo manter parte dos mesmos, pois eram o único rendimento que tinham para o seu sustento. Voltavam a escrever à Rainha em 1793, quando o número de religiosas baixara para 63, solicitando a entrada de 17 noviças que assegurassem o prosseguimento da instituição, visto que, nessa data, as freiras eram “quase todas inábeis por idosas, e enfermas”, ficando apenas algumas que se ocupavam dos ofícios religiosos e existindo a necessidade de novas “para continuarem os ofícios divinos e substituírem aquelas”. Afirmaram ainda que o número, na altura da criação do mosteiro, seria de “cem religiosas professas” (o que não era verdade, pois fora de 60), acrescentando que as suas rendas bastavam “para o sustento de mais de oitenta”. A autorização foi concedida, mas a 22 de março de 1796 ainda se não tinha conseguido completar o número de 80 religiosas (Ibid., avulsos, mc. 25, fl. 33). No primeiro quartel do séc. XIX, estava este número reduzido a cerca de 70 e não estariam somente em causa as restrições governamentais, mas todo um outro enquadramento social e económico. O dote com que cada religiosa entrava por ocasião da sua admissão era de 800.000 réis, o dobro que fora no séc. XVII, para além de outras despesas, atingindo aproximadamente um conto de réis, não sendo fácil às pessoas pouco abonadas em meios de fortuna fazer parte desta comunidade religiosa. Neste primeiro quartel do século, voltaria a Madeira a ser ocupada por forças inglesas, face à invasão do território continental por forças francesas e espanholas, instalando-se as mesmas, a partir do dia 25 de dezembro de 1807, conforme fora previsto em Londres, nas fortalezas da baía da cidade, e depois no antigo Colégio dos Jesuítas. O número de forças inglesas, no entanto, era muito superior ao da ocupação de 1801-1802, pelo que houve que procurar outras alternativas, alvitrando-se a cedência do Convento da Encarnação, dadas as poucas freiras que ali viviam, tal como as que subsistiam no Convento de S.ta Clara, onde, entretanto, havia perfeitamente espaço para ambas a comunidades. A 7 de janeiro de 1808, as poucas freiras da Encarnação entraram em S.ta Clara e a abadessa elaborou uma relação das mesmas. Após a ocupação inglesa, em 1814, as freiras da Encarnação regressaram ao seu convento, que os prelados tentavam fechar desde os inícios do séc. XVIII, pois só dava problemas. As autoridades civis e eclesiásticas, tanto de Lisboa como do Funchal, tentaram, por várias vezes, reunir numa só as comunidades de S.ta Clara e da Encarnação, mas nunca conseguiram realizar a projetada reunião dos dois mosteiros, apesar de terem, inclusivamente, obtido um breve pontifício que a autorizava. Com a vigência do governo liberal, em 1834, no âmbito da Reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, e executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837) pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens, ficando as de religiosas sujeitas aos respetivos bispos até à morte da última freira, data do encerramento definitivo. Os bens dos conventos femininos foram sendo progressivamente incorporados na Fazenda Nacional, mas não imediatamente, pois só em 1890, no mês de novembro, por falecimento de Maria Amália do Patrocínio, última sobrevivente, encerrou o convento da ordem urbana de S.ta Clara, embora o edifício tivesse sobrevivido. Os bens do convento, entretanto, também se haviam depreciado. Em 1844, por exemplo, foi pedido ao vigário geral, bispo eleito de Castelo Branco e vigário capitular, o Con. Januário Vicente Camacho (1792-1872), autorização para as freiras de S.ta Clara utilizarem o dinheiro da arca do cabido, num quantitativo de dois contos de réis, dados os grandes atrasos causados em parte pela aluvião de outubro de 1842, que afetara as fazendas do convento, e os diminutos preços dos vinhos, achando-se a mesma comunidade sem meios de sustentar as “religiosas, criadas e mais pensões anexas” à mesma corporação. O vigário geral despachou favoravelmente a petição, “atendendo às circunstâncias extraordinárias” em que se achavam as “vendas do convento”. Existiam então já somente 10 freiras discretas em S.ta Clara: Jerónima do Céu, abadessa, Genoveva Rita do Céu, vigária da casa, Maria Júlia do Espírito Santo, mais digna, Ana Vicência de Santa Rita, madre da Ordem, Maria Eloro Assy, imediata, Margarida Jacinta de Cortona, Francisca Maria das Mercês, Ana Josefa da Natividade e Luzia Cândida das Mercês, discretas, e Carlota Matilde da Conceição, escrivã do convento (ABM, Arquivos particulares, Rui Carita, 1844). Nos anos seguintes, as religiosas do Convento de S.ta Clara, pressionadas pelo governador, José Silvestre Ribeiro, haveriam de participar na célebre grande exposição de Londres, de 1851, que daria origem às exposições universais, ganhando, com as suas “belas flores de penas”, a medalha de prémio na classe 29.ª. As freiras tinham-se especializado, desde os meados do século anterior, neste tipo de trabalhos, sendo registada pelos mais diversos visitantes, ao longo de todo o séc. XIX, a visita quase obrigatória a S.ta Clara e a aquisição desses trabalhos artesanais no chamado turismo romântico. Na ocasião, o periódico O Archivista noticiava que coubera à Madeira “a glória de colher uma palma no pacífico combate da indústria que acabava de pelejar-se no palácio de Cristal” de Londres, informando que haviam concorrido 17.000 expositores e só haviam sido atribuídos 2918 prémios. Registava assim “com a mais viva satisfação” o prémio atribuído às freiras de S.ta Clara “naquele brilhante teatro da indústria”, que fora a exposição realizada em Londres (FREITAS, 1852, 404-407). Os descendentes do fundador, que foram os capitães donatários do Funchal, e depois os condes e marqueses de Castelo Melhor, sempre se consideraram não só como padroeiros desta igreja e do convento, como também os “seus legítimos senhores e proprietários”, pelo que, em outubro de 1867, reivindicaram a posse e propriedade do convento, como também fizeram os Lomelino em relação ao Convento da Piedade de S.ta Cruz, mas o processo não teria sequência. Com o falecimento da última sobrevivente, a madre Maria Amália do Patrocínio, no mês de novembro de 1890, encerrou o convento da ordem urbana de S.ta Clara. Face ao novo ciclo político da época, fortemente dedicado ao novo projeto ultramarino português, por decreto de 12 de março de 1896, era o convento cedido à Congregação das Franciscanas Missionárias de Maria, a fim de ser ali estabelecido um instituto de preparação do pessoal feminino destinado às missões religiosas das antigas colónias portuguesas (SILVA e MENESES, 1998, I, 311), que começou a funcionar ainda nesse ano. Com a implantação da República e o espírito anticlerical desses primeiros anos, logo em finais de 1910 a concessão era cancelada e as irmãs franciscanas abandonavam o convento. Os decretos de 31 de outubro de 1912 e de 22 de setembro de 1913, entretanto, concediam os edifícios à Câmara Municipal do Funchal, à S.ta Casa da Misericórdia e à Associação do Auxílio Maternal, para a instalação de instalações hospitalares e assistenciais, mas cuja efetiva ocupação para esse efeito nunca chegou a acontecer. Entre outras hipóteses, chegou a ser alvitrada pelo então bibliotecário da Câmara do Funchal, Adolfo César de Noronha (1873-1963), nomeado em 11 de dezembro de 1914, a instalação no local de um museu de arte, aproveitando os bens artísticos ali depositados, inclusivamente provenientes do extinto Convento de São Francisco, iniciativa que não contou com o apoio das várias entidades regionais. Como os desígnios dos decretos de 1912 e 1913 não foram preenchidos, o Estado voltou a tomar posse do Mosteiro de S.ta Clara e, alterada a situação política, pelos decretos de 25 de janeiro de 1927 e 12 de junho do mesmo ano, o Ministério das Finanças autorizou a cedência ao Ministério das Colónias das diversas dependências do extinto mosteiro. A direção foi de novo entregue às Franciscanas Missionárias de Maria que, em 1928, voltaram com um objetivo bem determinado: estabelecer uma escola secundária para formar religiosas para enviar às missões do Ultramar e ainda um infantário e ensino primário, chegando a acolher cerca de 400 crianças. Embora encontrassem as instalações muito degradadas e em mau estado de conservação, souberam ultrapassar as dificuldades com a ajuda de vários quadros regionais, em especial de Romano de Santa Clara Gomes (1869-1949), então envolvido nas várias ações dos movimentos católicos insulares. O Convento de S.ta Clara voltara a ser ocupado por religiosas franciscanas, quase na sequência das iniciais ideias que haviam presidido à sua fundação, havia mais de 500 anos, numa adaptação a novas funções e realidades. Alguns anos depois, a 12 de dezembro de 1917, um submarino alemão bombardeou o Funchal, no quadro da Primeira Grande Guerra, em princípio para atingir o centro de comunicações do cabo submarino, na Calç. de S.ta Clara, mas atingindo a igreja, cuja capela-mor ficou parcialmente destruída, tendo ficado ferido o P.e Manuel da Silva Branco, que ali celebrava a Eucaristia, o sacristão e duas mulheres, uma das quais viria a falecer pouco depois. Nos anos seguintes, o retábulo seria restaurado, embora a pintura de Nossa Senhora da Conceição, de Alfredo Miguéis (1883-1943), só viesse a ser reposta em 1930, encontrando-se assinada com data de 1 de maio desse ano. A 26 de setembro de 1940, pelo decreto n.º 30.762, era publicada a classificação da igreja e todas as dependências existentes do antigo Mosteiro de S.ta Clara como monumento nacional. Em 1951, realizava-se nas salas do convento uma exposição de ourivesaria sacra e, em 1954, uma exposição de escultura religiosa; os conteúdos de ambas viriam a ser o acervo do Museu de Arte Sacra do Funchal, inaugurado a 1 de junho de 1955, no antigo paço episcopal. Em 1958, a antiga escola franciscana transformava-se no Colégio Missionário Ultramarino do Funchal, onde se formaram inúmeras religiosas que se deslocaram nos anos seguintes para as missões ultramarinas portuguesas. Na déc. de 50, o colégio missionário obtinha inclusivamente a cedência do forte de São João Batista do Desembarcadouro, em Machico, para colónia de férias. Em 1962, entretanto, um incêndio destruiu duas grandes salas na ala frente à Calç. de S.ta Clara e pátio interior, levando a nova e larga intervenção da Direção-Geral dos Monumentos Nacionais, iniciada nos finais da década de 1940 e inícios de 50. Na déc. de 90, as obras passaram à responsabilidade da Direção dos Assuntos Culturais e, em 1997, a zona envolvente e não construída para sul, incluída na antiga cerca do convento, foi cedida para instalação da secção de azulejos da Casa-Museu Dr. Frederico de Freitas.     Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

Religiões Sociedade e Comunicação Social

confrarias

As confrarias ou irmandades são organizações religiosas muito antigas, que se instituíram desde a Idade Média e se estabeleceram na Madeira com os primeiros povoadores. As confrarias eram então especialmente instituídas para os que desejavam as vantagens de ação prática que ofereciam as organizações religiosas, no sentido de uma certa proteção religiosa, social e até económica, na vida e na morte, mas que não sentiam vocação para entrar para as verdadeiras ordens religiosas. Dentro deste quadro, os madeirenses, desde os meados do séc. XV, resguardaram-se em confrarias, devendo as mais antigas da Ilha ser as dos marítimos e pescadores, sob a proteção do “Corpo Santo”, denominação popular de S. Pedro Gonçalves Telmo (1190-1246), arrogando-se a do Funchal de ser a mais antiga de todas as confraria da Madeira. As primeiras informações que temos do funcionamento de confrarias não apontam, no entanto, para a do Corpo Santo, mas sim para a da igreja de Santa Maria de Cima, onde depois se viria a levantar o convento de Santa Clara. Na vereação da câmara do Funchal, de 7 de fevereiro de 1489, foi perguntado a Gonçalo Eannes, cerieiro, “pela cera que tinha da confraria de Santa Maria de Cima e do círio”, ao que o mesmo respondeu que iria ver no “seu livro e o que achasse, diria por juramento” (COSTA, 1995, 238). Não se volta a mencionar o assunto e, na vereação de 17 de setembro de 1491, acordaram os vereadores a esse respeito que Pero Correia, que então tinha a “cera da confraria de Santa Maria de Cima”, “a emprestasse por peso” a quem o quisesse, devendo a mesma ser pesada perante o secretário da câmara (Ibid., 293). Não é fácil interpretar corretamente o que seria esta confraria à época e tal não invalida que, no cabo do calhau de Santa Maria, não estivesse já a funcionar a Confraria do Corpo Santo, cuja capela é mencionada nesses anos como já levantada. Quase todas as organizações profissionais do Antigo Regime tiveram, de acordo com o espírito do tempo, carácter religioso, e esse aspecto da sua atividade tinha, no sentir dos membros, tanta importância como a sua finalidade secular. Em muitos casos, os oficiais que formavam uma corporação organizavam-se independentemente desta numa confraria religiosa para em comum praticarem os atos de devoção, dentro dos princípios da caridade, fé e piedade. Existe assim um certo paralelismo entre corporação e confraria, quando não mesmo uma certa confusão e sobreposição. Às primeiras deviam corresponder os aspectos técnicos e profissionais, devendo organizar-se no âmbito camarário e dos ofícios e mesteres reunidos na Casa dos 24, e às segundas os encargos pios e de assistência, com especial relevância para o acompanhamento dos enterros, organizando-se no âmbito geral da paróquia ou freguesia onde estivessem instituídas. As primeiras confrarias teriam assim tido por base vínculos profissionais, num quadro, ainda herdado da Idade Média, no qual as atividades profissionais passavam de pais para filhos, servindo também as confrarias para a manutenção desses vínculos. Os oficiais mecânicos do Funchal, e.g., como os ferreiros, os serralheiros, os caldeireiros, os cutileiros, os ferradores, os picheleiros e afins, que trabalhavam com o ferro e o fogo, associavam-se sob a bandeira de S. Jorge, proclamando que a Confraria da Sé do Funchal tinha sido fundada em 1515, embora depois refiram 1562 e só se conheça documentação a partir de 1667. Num curto espaço de tempo, esta passou a associar também os barbeiros, os douradores e outros, aparecendo inclusivamente, na segunda metade do séc. XVII, mulheres e escravos e datando, assim, dos meados desse século o esbatimento progressivo dos iniciais vínculos profissionais nestas organizações. As confrarias organizavam-se sob a proteção de um orago e de acordo com um compromisso, sendo administradas por um juiz, um reitor ou um presidente, um escrivão, um tesoureiro e um número definido de mordomos, de acordo com os seus estatutos, sendo o de confrades mais ou menos ilimitado. A base económica eram as esmolas de entrada dos confrades, a que se seguiam as cotizações e os legados pios, sempre carregados com missas pela alma do doador, de forma a ser encurtada por esses sufrágios a sua permanência no Purgatório, como em muitos testamentos se refere. Uma das primeiras preocupações e obrigações da confraria era assim a aquisição de uma arca para guardar os seus bens e documentos, que só podia ser aberta na presença dos elementos diretivos. Sendo associações detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, mas também os apoiavam noutras situações – não só a eles como às suas famílias na eventual falta dos mesmos –, podendo conceder pensões, constituir pequenos hospitais e recolhimentos, etc. No quadro geral da sua constituição, encontram-se as Misericórdias, essencialmente assistenciais, com base nas quais vão surguir os primeiros hospitais e a assistência aos pobres de uma forma geral, à infância, presos e condenados, assim como ao enterramentos dos mortos (Cemitérios). Ao longo do séc. XVI, a constituição de confrarias na Madeira terá sido exponencial, embora mais em intenção que em efetivação. Ainda assim, com a crise religiosa vigente na Europa nos meados desse século e com a resposta católica que se consubstanciou na reativação dos tribunais da Inquisição, na implantação do Santo Ofício e, depois, na divulgação das normas emanadas pelo Concílio de Trento, a sua multiplicação é um facto. A Igreja assume então aspectos algo repressivos e, ao mesmo tempo, sigilosos, pelo que a proteção dada pelas confrarias passa a ser quase essencial à comum vida social e até profissional de qualquer cidadão. A sua multiplicação e capacidade de angariação de fundos levarão, entretanto, também a uma crescente necessidade de um maior controlo por parte das autoridades religiosas. As primeiras normas centralizadoras em relação às confrarias aparecem nas Constituições Sinodais de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), promulgadas em 1578 embora só editadas alguns anos depois, especificando que no “sagrado Concílio Tridentino é ordenado que os administradores assim eclesiásticos como seculares da fábrica de qualquer igreja, ainda que seja catedral, hospital, confraria, ou outros quaisquer lugares pios sejam obrigados em cada um ano a dar conta aos ordinários da sua administração e cargo”. Acrescenta-se ainda: “e não vindo os mordomos dar a tal conta, os confrangerá a isso com penas pecuniárias que aplicará para a dita confraria e meirinho, e com censuras, se necessário for” (BARRETO, 1578, 138-139). As normas de 1578 tinham carácter geral e visavam, essencialmente, as fábricas e os legados pios, tal como as receitas e despesas, quer das igrejas quer das confrarias, insistindo: “e o que se ficar devendo fará logo com efeito entregar e meter na arca da fábrica, que em cada igreja deve haver com duas chaves, uma das quais terá o recebedor e outra o escrivão do cargo”, determinação depois ampliada para três chaves, no caso das arcas de confraria, sendo a terceira para o vigário ou para o reitor da confraria, muitas vezes a mesma pessoa. A fiscalização das contas deveria ser feita “pelo S. João” ou até “oito dias depois da festa de que é a confraria” (Id., Ibid.), embora este assunto só se cumprisse verdadeiramente nas visitações. Nas seguintes Constituições, chamadas Extravagantes – porque fora do que já havia sido promulgado e por as anteriores “serem breves e não compreenderem tudo”, tendo havido ainda “casos que tinham necessidade de outras novas”, como mandou escrever D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) na abertura das editadas em 1601 (LEMOS, 1601, fl. 2) –, logo se determina que as eleições das confrarias da Sé tinham obrigatoriamente de ter a assistência do deão, ou seu representante, salvo a do Santíssimo (Id., Ibid., fl. 29). Associada às eleições estava a apresentação das contas, a serem entregues oito dias depois ao vigário geral, e, caso tal não acontecesse, seriam multadas em 1$000 réis “para a chancelaria e meirinho” (Id., Ibid., fl. 30), o que anteriormente não ficara estipulado. Para além disso, deixava-se cair o dia de S. João para só se mencionar a festa do orago. Canonicamente as confrarias passaram a reger-se, a partir de 1604, pela Constituição de Clemente VIII e, a partir de 1610, pela de Paulo V. Voltava-se a insistir que para a sua fundação se requeria o consentimento do prelado, que examinava os seus estatutos, geralmente sob a forma de “compromisso” depois alargado a “estatuto”, a quem competia dar-lhes ou negar-lhes a aprovação. Podiam fundar-se em todas as igrejas, embora a Congregação do Concílio de Trento, em 1595, proibisse as de homens nos conventos de religiosas. Clemente XIII também proibiu duas confrarias do mesmo santo ou evocação na mesma povoação, excetuando as “sacramentais” e as de doutrina cristã, que deveriam funcionar em todas as paróquias. As confrarias, para além do aspecto religioso, constituíam também um espaço de afirmação social, ostentando os irmãos eleitos para a mesa as suas varas nas festas, muitas vezes em prata, que lhes conferiam o estatuto e os restantes as suas capas, diferenciando-se assim dos demais. Por outro lado, as suas mesas de reunião, geralmente anexas aos respetivos altares, eram um local de encontro privilegiado, ali se trocando informações e, inclusivamente, fazendo negócios. O visitador da sé do Funchal regista, e.g., em 1601, ter visto nas mesas das confrarias, durante as missas, ajuntamentos de algumas pessoas que “se encostam a praticar com os estão nelas sentados, no que dão torvação e se ocasionaram já desordens”. Para evitar esses encontros, que perturbavam os atos religiosos, determinou, sob pena de excomunhão, “que mais se não juntem nem encostem a praticar nas ditas mesas” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 33, fls. 30-30v.). As questões de prestígio social de uma confraria incluíam igualmente a aproximação às autoridades eclesiásticas, como era o caso dos elementos do cabido que, como membros de um órgão coadjuvante do prelado, especialmente numa diocese com longos períodos de sé vacante, motivavam as confrarias a solicitarem constantemente a sua presença, palavra e proteção. Na sequência das Constituições de D. Jerónimo Barreto e da implantação da organização tridentina, o cabido deliberou inclusivamente, em 1584, “não irem daqui por diante a uma solenidade de confraria, fora das da Sé, sem que pelo caminho se dessem dois mil réis, fora a esmola da missa e dos ministros que se vestem para ela, que será o que somente costumam dar” (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, 151v.-152). Nos primeiros anos de fundação da sé do Funchal, não devem ter funcionado ali confrarias, pois as primeiras teriam sido instituídas na velha igreja de N.ª Sr.ª do Calhau e lá continuaram a funcionar, salvo a do Santíssimo Sacramento, obrigatória em todas as igrejas matrizes, que em 1566 já tinha altar próprio na sé, dado então como do Santo Sacramento (Sé do Funchal). Esta confraria só oficializou o seu compromisso no séc. XVII, mas no século seguinte arvorava-se na mais antiga da sé, com início logo da primeira metade do XVI, anterior ainda a 1515, data que depois várias delas citam como a da sua fundação, o que se referia, com certeza, à vaga intenção de se reunirem como tal, longe de toda a oficialização a que foram posteriormente obrigadas. Nesse quadro, talvez se tenha igualmente instalado, pela mesma altura, a confraria de S. Miguel Arcanjo, anjo protetor de Portugal, cujos confrades alegavam a sua fundação também em 1515. O arcanjo S. Miguel era então devoção muito especial da casa real portuguesa e de D. Manuel em particular, pelo que logo após a instituição da sé do Funchal seria lógica a fundação de uma confraria dessa evocação na catedral, o que, a ter-se verificado, não foi, no entanto, no quadro institucional que determinou depois o Concílio de Trento. Nesse quadro, somente bastante mais tarde, em 1572, a mesma veio a ser instituída e associada aos santos irmãos padroeiros dos sapateiros, provavelmente para, juntando as duas devoções, ganhar um outro peso económico. Mas tal também alegaram depois as confrarias de S. Jorge e de S. Roque. Em 1602, requeriam os “mordomos da confraria do Bem-aventurado S. Roque sita na sé da cidade do Funchal da ilha da Madeira, que no ano de 1521, por causa do grande mal da peste, que o povo da dita cidade padecia”, se juntaram as autoridade da cidade e, lançando sortes, saíra por padroeiro Santiago Menor (Voto da cidade do Funchal), “ao qual logo dedicaram casa e votaram por si e por seus sucessores fazer-lhe a festa cada ano”, o que, como já escrevemos, só veio a ocorrer depois. Acrescentam ainda os mordomos que “logo tomaram juntamente por seus protetores os Bem-aventurados S. Sebastião e S. Roque” e que a câmara ficara de apoiar economicamente as suas festas. Acontecia que a câmara apoiava as festas de S. Sebastião “cada ano, por ordinária, na renda da imposição dos vinhos”, com vinte mil réis, pelo que requeriam ao rei que o mesmo se passasse com a sua confraria, ao que o rei acedeu a 25 de abril de 1603 (Ibid., avulsos, mç. 22, doc. 24). No entanto, uma coisa seria a Confraria de S. Sebastião, instalada numa capela da câmara do Funchal, e outra seria a Confraria de S. Roque, instalada na Sé, mas o Rei aceitou as razões evocadas. Em carta do bispo D. Fr. Fernando de Távora (c. 1510-1577), datada de 15 de junho de 1572 e escrita em Lisboa, pois que nunca foi à sua diocese, mandava o prelado que se levantassem mais dois altares no transepto, dado que os existentes eram poucos para o serviço da Sé, prevendo-se a instalação de mais duas confrarias, cujos estatutos enviou depois. Não foram, no entanto, enviados diretamente ao cabido, como seria lógico, mas para os confrades das Confrarias de S. Miguel e, posteriormente, da Ascensão do Senhor, que os apresentaram, depois, para aprovação ao mesmo cabido. A Confraria de S. Miguel e dos santos irmãos Crispim e Crispiniano, aos quais tinham os sapateiros do Funchal obrigação de mandar “cantar missa no dia” 24 de outubro, dia que lhes era dedicado, foi instituída oficialmente por aprovação do prelado de 26 de agosto de 1572, ordenando-se-lhe que para ela fizessem um “retábulo muito bom” (Ibid., avulsos, liv. 2, fls. 114-115). O assunto foi apresentado depois ao cabido, em reunião na sacristia, a 29 de setembro, pedindo os membros da confraria para se servirem do altar de S.to António, no qual “pudessem fazer sua confraria, com sua mesa e oficiais”, obrigando-se os suplicantes ao encargo do “ornato” e da festa anual do seu santo protetor. Prometiam os confrades de S. Miguel, S. Crispim e S. Crispiano também recompensar o cabido com “a esmola acostumada que dão por missa, que é de mil réis de pensão, além da esmola que se costuma dar ao sacerdote e ministros que os visitem”, entre outros compromissos. O auto foi assinado no transepto da sé, sobre o altar da Ascensão (Ibid., liv. 2, fls. 117-118). A situação indica desde logo um aspecto importante: que os altares eram do cabido da sé, que sobre os mesmos exercia absoluto controlo, assim como uma coisa era a institucionalização da confraria, da responsabilidade do prelado, e outra era o seu funcionamento, da responsabilidade do cabido. Talvez daí o pormenor do auto ter sido assinado no braço oposto do transepto, onde estava então o inicial altar da Ascensão. A confraria veio a funcionar talvez de início e como pediram, no altar de Santo António, mas depois em altar montado na parede nascente da mesma capela, na sequência do altar de S. Roque, que já existia em 1566 (FRUTUOSO, 1968, 347) (Saque dos corsários ao Funchal). Em 29 de outubro de 1572, instituiu-se a Confraria da Ascensão do Senhor, de “irmãos nobres”, cujo pedido a D. Fr. Fernando de Távora partiu de “um nobre da casa d’el-rei” e da qual foi primeiro reitor Gaspar Mendes de Vasconcelos, por certo o interlocutor em causa, chegando a instituição da confraria ao cabido na mesma forma da de S. Miguel. A confraria pretendia celebrar e instalar-se na capela de Santana, referindo o bispo, em Lisboa, que tinham a obrigação de fazer retábulo e obras “conforme suas possibilidades” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, fl. 115), o que não entendemos bem, dado já existir um altar da evocação da Ascensão. As contrapartidas em relação ao cabido eram também nos mesmos termos das anteriores. Os confrades da nova Confraria da Ascensão do Senhor, pouco tempo depois, entre 1573 e 1590, fazendo jus à condição de “irmãos nobres”, encomendariam ao célebre pintor Fernão Gomes (1548-1612) o retábulo para o altar, das melhores tábuas e com as maiores dimensões existentes não só na sé como em toda a ilha, dado possuir mais de três metros de altura. Em 1603, em princípio, temos informação também da existência de uma Confraria de S.to António na Sé. O assunto parece ter sido despoletado por um milagre ocorrido na aluvião do primeiro de dezembro de 1601, conforme escreve Henriques de Noronha. Segundo este autor, nesse dia a Ribeira de João Gomes transbordou e começou a inundar a igreja do Calhau, chegando a “quatro palmos de água, quando os sacerdotes e seculares mais zelosos se arrojaram a salvar o Santíssimo Sacramento e as imagens”. Com a de Santo António se abraçara “Diogo Barbosa, ourives de oiro e a depositou em sua casa”, reparando então “que tinha a cor do rosto desnudada, os olhos elevados ao céu, vermelhos e chorosos, com algumas lágrimas que tinham corrido sobre o Menino Jesus”. A imagem foi depois levada para a igreja de Santiago, posterior matriz de Santa Maria Maior, e “repetiu o Santo outra vez as lágrimas e [foi] justificado o sucesso, primeiro pelo vigário-geral, António Moniz da Câmara, e logo pelo prelado, o venerável bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos”, pelo que, ouvido depois “um conselho de teólogos”, foi lavrada sentença sobre o milagre e a mesma publicada a 12 de janeiro de 1602 (NORONHA, 1996, 338-339). A 23 de maio de 1603, a pedido da Confraria de S.to António da Sé e da congénere de N.ª Sr.ª do Calhau, D. Luís Figueiredo de Lemos, ordenava que fosse “festa de guarda o dia de Santo António” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, doc. 18). A confraria deveria estar em instalação e, com o falecimento do prelado, não se deve ter passado à sua oficialização com estatutos, pois não se volta a referir a Confraria de S.to António da Sé até aos finais do século, quando os mordomos pediram ao Rei a reforma do altar e, na desmontagem do antigo, na tarde de 20 de fevereiro de 1697, o pedreiro Teodósio Pestana caiu de cima do mesmo. O pedreiro salvou-se por ter conseguido agarrar-se à corta do lampadário, tendo o sucedido sido considerado um milagre e lavrando-se auto em 1702 (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 4, doc. 20). Estas organizações eram detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, especialmente no Funchal. Administravam prédios arrendados e foros, que tinham herdado com determinadas obrigações pias, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, e não só, constituindo os juros uma das suas principais fontes de rendimento. Não admira assim que a principal preocupação das autoridades religiosas fosse o controlo das contas e dos elementos colocados à frente das confrarias. Cite-se, e.g., o “instrumento de obrigação de juro a retro”, assinado na casa do cabido da sé a 5 de setembro de 1697, entre o Cón. Pedro Bettencourt Henriques, em nome da Confraria do Amparo, e o P.e Daniel Gonçalves Jardim, por si e em representação da sua mãe e irmãos. A confraria emprestava 100$000 réis com um juro anual de 6$250 réis, “em dinheiro de contado”, “que é por razão do estilo da praça, de 6 e 4 por cento”, isto é 6,25 %. Como garantia, os devedores hipotecavam diversas propriedades na freguesia da Ponta do Pargo, cultivadas de vinhas, árvores de fruto e inhame (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 21, doc. 5). As confrarias estendiam-se, entretanto, por toda a cidade, com sede nas igrejas matrizes, mas também pelos conventos da cidade e da ilha, tal como pelas freguesias rurais e respetivas matrizes, estando também, no entanto, pontualmente sedeadas em determinadas capelas isoladas, as ermidas. Porém, o movimento de doações e de encargos, face à concentração populacional na área do Funchal, quase não tem comparação com o que se passa no resto da ilha. O P.e Francisco Vaz da Corte, vigário de S. Pedro do Funchal, e.g., a 3 de dezembro de 1608, deixou à Confraria do Santíssimo da sua igreja uma naveta de prata para o incenso, “no valor máximo” de 20 cruzados; mas também 15 cruzados à congénere Confraria da Sé e 2$000 réis à da Candelária de S. Pedro, para a ajuda do retábulo; e 2 cruzados por ano à do Bom Jesus da sé, impostos numa fazenda que tinha na Carne Azeda (VERÍSSIMO, 2000, 390). No séc. XVIII, algumas confrarias do Convento de S. Francisco do Funchal funcionavam quase como se se tratassem de casas de penhores, o que aliás acontecia com quase todas as restantes da ilha, mas aqui de forma institucional e oficial, registando o empréstimo, inclusivamente na secretaria do governo em S. Lourenço. A 23 de março de 1757, e.g., o P.e Manuel Franco Herédia, de Machico, solicitou um empréstimo a esta confraria de 20$000 réis, com um juro anual de 1$000, apresentando como penhores um cordão de ouro e um par de sevilhanas, avaliados em 38$950 réis (Id., Ibid.). O Convento de S. Francisco do Funchal detinha uma excecional importância na vida social insular e era tradição, e.g., entre os finais do séc. XVIII e os meados do séc. XIX, os governadores, entrarem para membros da Confraria de N.ª Sr.ª da Soledade como “Irmão Protetor e Presidente da Confraria”, após tomarem posse. O último foi o prefeito e Cor. Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, com a mulher, “a Ilustríssima e Excelentíssima Senhora D. Anna Mascarenhas de Athaide”, que assina o termo a 14 de março de 1835, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da Mesma Confraria” (ABM, Governo Civil, liv. 246, fl. 71). O Convento de S. Francisco do Funchal, entretanto, foi extinto e desocupado por forças militares, a 9 de agosto do mesmo ano de 1834, às ordens do mesmo prefeito, que pouco depois mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Entre os finais do séc. XVI e os inícios do séc. XVII instituíram-se assim confrarias um pouco por toda a ilha, sendo comum, inclusivamente, as pessoas pertencerem a várias confrarias instituídas em várias igrejas, entretanto também abertas a mulheres. Nos meados do séc. XVI, e.g., já se detetam nove confrarias na freguesia de Santa Cruz, sendo ainda criadas no século seguinte as de S. Benedito, dos Santos Passos e da Ordem Terceira de S. Francisco. O testamento de Filipa de Sousa, de 1680, benfeitora da Misericórdia daquela vila, declara que era irmã das Confrarias de N.ª Sr.ª do Rosário, dos Santos Passos, N.ª Sr.ª da Piedade, de S.to António e de S. Benedito. Outra benfeitora, Catarina de Ornelas, tinha declarado, em 1658, que era irmã de N.ª Sr.ª do Rosário, S.to António, Nome de Deus e S. Bento do Convento, que, cremos, era no Convento da Piedade de S.ta Cruz, tal como também aí seria sedeada a dos Irmãos Terceiros (Convento da Piedade de Santa Cruz). A instalação das confrarias no norte da ilha foi mais tardia e difícil, dada a escassez de recursos e o isolamento geral dos pequenos núcleos populacionais. A exceção vai para a freguesia de S. Jorge, com uma certa liderança naquela costa, que logo nos inícios do séc. XVI, a 4 de dezembro de 1515, era dotada com um importante conjunto de alfaias enviadas de Lisboa. Pelos provimentos das visitas da primeira metade do séc. XVII, publicados pelo P.e Silvério Aníbal de Matos, antigo pároco de S. Jorge, temos muitas informações sobre a vivência das confrarias, então montadas sem estatutos superiormente aprovados. Tal terá sido o caso da Confraria do Santíssimo Sacramento, que teria resultado de um privilégio dos reis de Portugal a essa freguesia para celebrar a Festa do Corpo de Deus no seu dia próprio e à qual deveriam concorrer os eclesiásticos das restantes paróquias do Norte. Nos provimentos da visita de 20 de julho de 1647, refere-se um pedido feito pelos irmãos dessa confraria, que dado se terem “comprometido a dar um arrátel de cera cada um, em cada ano para a dita Confraria e os gastos que se fazem com os padres na Semana Santa”, pretendiam colmatar parte dessa despesa com a posterior venda da cera “para pagamento dos ditos padres” (MATOS, 2000, 16), solicitação não atendida pelo visitador. As festas da Semana Santa, a que deveriam acorrer os demais vigários da costa norte, os quais, nesta época, se limitavam praticamente só ao de Santana e a alguns outros que, entretanto, se encontrassem na área, levantaram sempre inúmeros problemas. Na visita de 1636, refere-se que “alguns fregueses se queixam da opressão que tinham em darem de comer aos padres que vinham fazer a festa e que antes lhes queriam dar dinheiro seco” a cada um deles, “pelos três comeres da véspera, do dia e do seguinte”. Nessa altura o visitador estabeleceu então a verba de $450 réis, “os quais lhes darão os mordomos de seus bolsos, não lhe dando de comer”, entendendo que tal dinheiro deveria sair “das esmolas das confrarias”. Entretanto, também o vigário de S. Jorge entendia que deveria ser pago pelo trabalho acrescido desses dias, tal como acontecia aos outros padres, acabando o visitador doutor Lucas Gonçalves Correia, a 18 de agosto de 1650, por entender que deveria ser igualado “na benesse com os vigários das outras paróquias”, até por “saber cantar” e “pelo trabalho dos tais dias, porque conforme sua obrigação, não está obrigado a tanto quanto a devoção cristã se tem aumentado nas procissões, paixões e mais cerimónias da dita semana” (Id., Ibid., 17). A festa do Corpo de Deus, no entanto, envolvia grandes custos e, na visita de 23 de julho de 1681, o cónego Dr. Marcos da Fonseca Cerveira, “informado que os mordomos do orago desta igreja, sendo seis, tinham muitos gastos para assistirem nela à festa do Senhor S. Jorge, mas também em dia de Corpo de Deus”, determinava uma nova articulação dos encargos. Assim, deveriam eleger-se dez mordomos, “a saber, seis para a festa de S. Jorge e quatro para assistirem com o sustento aos padres que vierem para a procissão do Corpo de Deus”, repartindo os encargos por um número superior de fregueses, “para que lhes seja aliviado o gasto” (Id., Ibid., 18). Teria sido na sequência do aumento dos encargos sobre os fregueses, que vinha de uma anterior visitação, que, logo em 1643, “algumas pessoas devotas e zelosas do serviço de Deus” se queixavam ao visitador, o licenciado Francisco Rebelo, vigário da Ponta do Sol, “que se extinguiram nesta igreja de alguns anos a esta parte, algumas confrarias e devoções que nela havia”, pelo que se não faziam as festas a alguns santos, entendendo-se que era “falta muito notável em um povo tão cristão”. O visitador insistia então perante “todos que de novo tornem a ressuscitar as suas antigas devoções, e se ofereçam a servir e festejar os santos, que seus pais e avós com tanta devoção festejavam”, acrescentando: “E obriguem os mesmos Santos a intercederem por eles a Deus Nosso Senhor na Sua Glória” (Id., Ibid., 17). A inicial igreja do calhau de São Jorge tinha altar-mor e dois altares colaterais ou laterais – um dos quais, provavelmente, servindo de altar do Santíssimo –, devotados ao Bom Jesus e a Nossa Senhora da Encarnação. Embora não encontremos referências concretas à articulação interna da matriz, a referência a três altares e as determinações de instituição de confrarias com as devoções do Bom Jesus e de Nossa Senhora da Encarnação levam a pensar já se encontrarem levantados, claro que sem a qualidade dos que viríamos a conhecer na matriz da Achada. As visitações referem ainda a necessidade de constituição de uma confraria do orago da freguesia, o que era obrigatório na sequência das determinações do Concílio de Trento, que funcionaria depois no altar-mor com essa evocação. Nesse quadro, nos provimentos da visita de 1631, o licenciado Francisco de Aguiar determinava “ordenar a Irmandade do Bom Jesus” de modo a que tivesse os seus compromissos devidamente assinados, tal como os da irmandade de Nossa Senhora da Encarnação, para serem assinados e terem “licença do Ordinário”. Os compromissos teriam sido mais ou menos elaborados, pois, 10 anos depois, na visitação de 11 de julho de 1641, o mesmo licenciado Francisco de Aguiar atendia a uma súplica dos irmãos da Confraria de Jesus, que pediam que se “lhes baixasse a pensão de cento e cinquenta réis que todos os anos pagam à confraria, em razão do compromisso da irmandade” para um tostão, ou seja, $100 réis, pelo que o visitador assentou que nessa “parte revogo o dito compromisso e mando que daqui em diante paguem somente um tostão” (Id., Ibid., 16). Mais tarde, nos provimentos de 20 de julho de 1647 do licenciado Simão Gonçalves Cidrão, era de novo determinada a organização da confraria do orago da freguesia: “Mando ao Reverendo Vigário que ordene com os fregueses que haja Irmandade da Confraria de S. Jorge” (Id., Ibid.). Os confrades, em princípio, não elaboravam de forma detalhada os estatutos das suas confrarias, facto de que se queixou, nos meados do século seguinte, o bispo D. frei João do Nascimento (1741-1753) em visitação pessoal a esta e às outras freguesias, mandando então que esses fossem elaborados por toda a ilha, daí resultando a grande parte dos estatutos que conhecemos. Na visita de 1647, também foram registadas outras prescrições referentes à organização económica das confrarias, já determinadas nas Constituições Sinodais de alguns anos antes: “E para melhor governo das confrarias e para que cessem as queixas de se dizer que se salvam os mordomos ou outras pessoas dos sobejos delas, ordeno que se faça uma caixinha de três chaves, dentro da qual se lançará todo o dinheiro e um livro em que se irá assentando o que à confraria pertence”. As indicações do visitador contrariavam em princípio as vigentes depois nas confrarias da Madeira, que determinavam que as chaves ficassem na posse do vigário, do procurador da igreja e a outra de “quem o reverendo vigário e procurador parecer” (Id., Ibid.). Na maioria das confrarias que conhecemos, a maior parte com estatutos dos meados do séc. XVIII, as chaves ficavam com o juiz da confraria, o tesoureiro e o escrivão, embora as duas últimas funções fossem muitas vezes e alternadamente ocupadas pelo vigário da freguesia. O visitador determinava ainda que a “caixinha” deveria estar “em outra, dentro da igreja ou na parte que aos três parecer mais segura, a qual se fará dentro de um mês” (Id., Ibid., 17). Desconhecemos se chegou a ser feita nessa altura a “caixinha” em causa, só havendo depois referência a uma arca das três chaves, mas para todo o serviço da freguesia. A especial devoção da freguesia de São Jorge, no entanto, deveria ser a de Nossa Senhora da Encarnação, devoção que aliás se manterá depois na igreja da Achada. Assim, o cónego Cidrão, na visitação de 1647, faz um provimento curioso, mandando abrir “uma fresta de quatro dedos em largo, e um palmo pouco mais ou menos em comprimento” na porta principal da igreja, “para que os devotos vejam a Senhora e santos e se encomendem mais a eles com mais fervor e devoção”. Uma das referências mais interessantes nos provimentos é a prática penitencial para expiação dos pecados, especialmente nas sextas-feiras da Quaresma e, muito especialmente, na Quinta-feira Santa. Nos provimentos de 1641, estabelece o visitador, sem referir quais as penitências, “que os que se disciplinarem em Quinta-feira das Endoenças ou Sexta-feira da Quaresma, o não façam por entre as mulheres, da porta travessa para cima” (MATOS, 2000, 16-17), donde se deduz ficarem as mulheres dessa porta para a frente e os homens para trás. Tomando como exemplo as confrarias do Porto do Moniz, as mesmas só se teriam instalado verdadeiramente nos finais do séc. XVII, facto de que se queixavam amargamente os visitadores. A Confraria do Santíssimo de N.ª Sr.ª da Conceição, e.g., ainda não estava instalada em 1666, determinando o visitador a sua montagem com a escrituração de um livro onde constassem as entradas de irmãos, bem como a receita e despesa da irmandade. A confraria estava montada nos finais do século, tendo aderido à mesma os principais proprietários locais, mas não era acessível aos restantes fregueses, dado o pagamento de uma cota de $600 réis anuais. Vieram assim a surgir as Confrarias de S. Sebastião, dos Fiéis de Deus, que utilizavam uma bandeira de Misericórdia, mas que pertenciam ao Santíssimo, tendo de ser alugadas, e cujas cotas eram de $060 réis anuais, e ainda uma Confraria das Almas. A Confraria das Almas seria acusada pelo visitador de 1685 de não cumprir as suas obrigações, quer no acompanhamento dos defuntos quer na satisfação das esmolas, que nesta Confraria era de $200 réis. O visitador advertia, inclusivamente nos seus provimentos, que quem não cumprisse o pagamento das “esmolas” deveria ser expulso, excetuando os que, devido à sua pobreza, não pudessem pagar. A situação não melhorou nos anos seguintes e o visitador de 1689 mencionava que as Confrarias das Almas eram das principais em qualquer igreja, ainda que, no Porto do Moniz, parecesse “não haver almas nem quem se lembrasse delas” (RIBEIRO, 1996, 230). Os provimentos parecem não ter tido especial efeito, pois, em 1691, voltava-se a registar em novo provimento que deveria haver um livro de contas e das entradas dos irmãos. Os problemas económicos, quase mais que os religiosos e de costumes, parecem atravessar grande parte dos provimentos das visitações. Assim aconteceu na igreja de S. João Batista da Fajã da Ovelha, em 1678, quando o cónego Marcos Cerveira condenou os empréstimos a juros praticados pelas confrarias e ordenou ao vigário que cobrasse todas as importâncias em dívida, “assim por escritos, como sem eles”, porque eram necessárias à “obra do retábulo” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal, Provimentos e Visitações..., mf. 144-145, fl. 113-113v). Situação diversa era a vivida na cidade do Funchal, onde, embora sempre ocorressem queixas de falta de verbas, as confrarias proliferaram e, com as mesmas, os luxos das suas festas e dos seus altares. Temos assim ainda na Sé as Confrarias do Senhor Jesus, por reforma da de Santa Ana, de N.ª Sr.ª do Rosário e de N.ª Sr.ª do Amparo, devoções comuns aos finais do séc. XVI e inícios do séc. XVII, da Conceição, dos meados do séc. XVII, de S. José e, ainda, a das Almas, com compromisso aprovado pelo bispo, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), a 6 de maio de 1713, e a do Senhor dos Passos, dos meados do séc. XVIII. A Confraria de S. José, incorporando os oficiais carpinteiros e pedreiros, mas também entalhadores e outros, deve ter seguido o exemplo dos sapateiros, instituídos em confraria em 1562, e a dos ferreiros, instituídos em 1572, mas só lhe conhecemos documentação da segunda metade do século seguinte. Um alvará de 23 de dezembro de 1688, assinado pelo arcediago do Funchal, doutor António Valente de Sampaio, por ordem do então vigário geral e provisor do bispado, José Mendes de Vasconcelos, autoriza oficialmente os irmãos da Confraria de S. José a “levarem Cruz em Procissão”, acrescentando que a mesma deveria ser acompanhada de “pelo menos, seis irmãos” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., Regimento Geral das Capelas…, liv. 19, fl. 33). Por essa época, os mordomos da Confraria de S. José da Sé exploravam uma pedreira no Cabo Girão. O problema da pedra regeu-se, durante o Antigo Regime, pelo alvará manuelino de 9 de fevereiro de 1502, que liberalizava o seu corte e utilização enquanto “bem comum”. A primeira dificuldade teria ocorrido nos finais do séc. XVII, sendo objeto de uma sentença do juiz de fora da Ilha, Manuel de Sousa Teixeira, datada de 28 de março de 1696, a favor da Confraria de S. José da Sé do Funchal e contra o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos. O padre entendia possuir direitos contra a provisão citada, “alegando o direito de posse sobre as terras da pedreira de Cabo Girão” e “exigindo um tributo de 600$000 réis, por cada barco de pedra caída e 400$000 réis, de cada barco que se tirasse da mesma pedreira”. O despacho do juiz de fora foi confirmado pelo ouvidor Teotónio Martins de França, a 24 de maio seguinte, e, mais tarde, pelo ouvidor Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723), a 18 de abril de 1698. Subiu ainda à Relação de Lisboa, onde voltou a ter o mesmo despacho, a 15 de dezembro de 1699, assim como o do juiz da Coroa, a 13 de fevereiro de 1700, ficando tudo registado na Alfândega do Funchal (BNP, reservados, cod. 8391, fls. 29-33) e na Câmara do Funchal (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 247v.), devendo o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos pertencer à família dos instituidores da capela de S.to António visto conseguir fazer todos estes recursos. A relevância desta confraria no séc. XVIII é notória pelo recurso à eleição como juízes dos representantes da família dos Bettencourt de Vasconcelos e Sá, onde se sucedem, em 1760, João José de Vasconcelos Bettencourt (1715-1766), reeleito nos anos seguintes, e, em 1768, a irmã, a “Ilustríssima e Excelentíssima Senhora Dona Guiomar Madalena de Sá e Vilhena” (1705-1789), como vem escrito, que assina a partir daí as atas, sendo esta situação, a de uma mulher aparecer como juiz de uma confraria de homens, neste caso dos pedreiros e carpinteiros do Funchal, única na Ilha, com muito pouco paralelo em Portugal (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 25-27, 29 e 32). D. Guiomar assinaria os termos de eleição até 1779, inclusivamente o termo de 17 de maio de 1771, onde se levantou na mesa o problema do empréstimo das cortinas da confraria e onde se deliberou “que nenhum escrivão nem tesoureiro emprestassem as cortinas”, sob pena de pagar “a condenação imposta pela visita”, repor às suas custas as mesmas e “ser lançado fora do serviço” da confraria. Excetuavam-se, no entanto, os empréstimos “a S. Francisco, ao Corpo Santo, ao Rosário, a Santa Clara e ao Carmo” (Ibid., fl. 34). A morgada faleceu em 1789, pelo que na eleição desse ano, a 19 de março, era eleito para juiz o sobrinho, o “Ilustríssimo Senhor” João de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt de Sá Machado (1733-1790), que assina a folha já com uma letra algo trémula (Ibid., fl. 54), falecendo pouco depois. A 15 de novembro de 1790, fez-se eleição para novo juiz e, “na falta de seu pai”, como filho mais velho, foi eleito o coronel Luís Vicente de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt Sá Machado (c. 1752-1798), que assina com uma letra de excecional segurança para a sua época (Ibid., fl. 56). O coronel faleceria em 1798, mas só em 1800 a confraria deve ter conseguido que aceitasse a eleição para juiz o futuro conde de Carvalhal (1778-1837), embora não assine a folha (Ibid., fl. 66). O futuro conde de Carvalhal continuaria a ser oficialmente juiz da confraria até 1808, quando já saíra da ilha em 1802. Na eleição de 20 de março de 1809, presidida pelo cónego João Francisco Lopes Rocha, que assina o termo, já não se faz referência à eleição de qualquer juiz, o mesmo acontecendo na seguinte, a 20 de maio de 1814, presidida pelo mesmo cónego, agora também arcediago, que já nem assina a ata. Como se pode ver pelo espaçamento das datas das eleições, as velhas confrarias dos ofícios agonizavam lentamente, não havendo referência a mais eleições até aos meados do séc. XIX. As confrarias religiosas foram confrontadas ao longo do séc. XVIII com uma complexa situação de centralização do poder régio. Ao longo desse século, as relações da corte portuguesa com Roma foram um longo "braço de ferro", tentando-se transformar a igreja em Portugal numa “igreja portuguesa”, logo sob a superintendência da coroa e dentro de um processo de centralização do poder régio. Em relação à Madeira, numa primeira fase, assistimos à tentativa do recrudescimento do papel da Inquisição e, depois, à campanha rigorista da “jacobeia”. A campanha dos bispos jacobeus na Madeira assentou num especial rigorismo de interpretação dos preceitos religiosos, com enfâse na prática da confissão, na educação do clero, na moralização geral dos costumes e na centralização do poder episcopal, com o primeiro prelado jacobeu, D. frei Manuel Coutinho (1715-1741), e, após o terramoto de 1748, com o seu sucessor, D. frei João do Nascimento. Os princípios por que se orientavam os jacobeus assentavam no propósito de fazer observar escrupulosamente os preceitos religiosos do catolicismo, tanto ao nível do clero como entre os seculares. Tentavam adequar os costumes das populações à ética cristã, aprofundando uma piedade mais espiritual e interior do que ritualista, estimulando a prática quotidiana da “oração mental”, o regular exame individual da consciência, a correção fraterna dos que pecavam, a frequência dos sacramentos, com particular destaque para a confissão, a mortificação dos vícios e das paixões desordenadas, os jejuns, o desprezo do mundo, a pobreza no vestir e a frugalidade no comer. Nesta mesma linha de cuidados, surgia a necessidade de se observarem as contas das confrarias, das quais não se encontravam registos em quase lugar nenhum, o que se atribuía à incúria de um clero pouco vigilante, depois das capelas e legados pios, dos conventos e recolhimentos, etc. As reações dos clérigos ficaram traduzidas no relatório que o vigário geral apresentou ao bispo em finais de 1725. Nesse relatório foram apresentadas as queixas dos ministros eclesiásticos por serem obrigados a fazer exame, a apresentar habilitações “de genere”, a entregar a tempo os róis de confessados, a dar as contas das confrarias, etc., o que de todo estranhavam, “dizendo que o rigor era demasiado” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., doc. 270, fls. 195-202). A situação da freguesia de S. Jorge face às novas diretivas emanadas pelo bispo D. frei Manuel Coutinho está bem patente na visita de 10 de outubro de 1727 feita pelo doutor Silvestre Lopes Barreto, vigário e ouvidor eclesiástico da colegiada de N.ª Sr.ª da Conceição da vila de Machico, àquela freguesia, quando era ali vigário o P.e António Fernandes Barradas. Regista o visitador nos seus provimentos que achara não existir “livro do tombo das missas e obrigações e pensões anexas”, mas “tão-somente uma pauta muito diminuta”, ordenando que “em termo de seis meses” se fizesse o respetivo tombo, onde se haveria de registar os encargos, legados e obrigações, que se era preciso ir sempre atualizando. O mesmo se deveria passar em relação a cada uma das confrarias e às ermidas, acrescentando ainda que, em relação às missas, havia então determinações muito específicas do prelado para se não aceitarem “pensões de missas perpétuas”, salvo se com seu consentimento (MATOS, 2000, 17). Teceu em seguida o visitador uma série de considerações sobre as confrarias, com especial destaque para o que se encontrava regulado pelas Constituições Extravagantes sobre a eleição dos novos mordomos, de que se deveriam fazer os termos de eleições, as responsabilidades dos tesoureiros e do vigário, que deveria aprovar as contas do tesoureiro, etc. Explicava ainda os inconvenientes resultantes da falta de registos, como era o caso “do grande número de missas caídas, a que era obrigada a dizer a Confraria de N.a Sr.a da Encarnação desta igreja, que todas mando satisfazer para alívio e bem das almas dos testadores” (Id., Ibid.), onde se deveriam encontrar as inúmeras missas deixadas no testamento do P.e Tomé Caldeira. Silvestre Lopes Barreto refere ainda a vistoria que fizera no Livro da Arca das Três Chaves, onde achara “tudo na mesma confusão, no lançar do dinheiro na dita arca e nos termos do dito livro”, voltando a insistir na separação das entradas e das saídas, assim como nos títulos dos bens das confrarias. Sobre os fregueses de S. Jorge, refere o visitador que fora informado de que, devendo ir ouvir missa, chegavam atrasados, pelo que determinava “que dobrando o sino pela segunda vez” viessem todos para a igreja, para que à terceira vez que tocassem os sinos já estivessem todos reunidos para ouvir o vigário, sob pena de multa em $200 réis “para a fábrica da igreja”. O visitador também fora informado de outras infrações no adro da igreja, “ajustando contas e armando conversas, de que muitas vezes resulta haver pendências e gritadas”, tudo contribuindo para o descrédito dos lugares sagrados. Os infratores deveriam ser multados também em $200 réis, mas pagos no aljube (ABM, S. Jorge, Registo de Provimentos..., mf. 681, cota 58, fls. 1-3v.). A seguinte visita ocorreu a 28 de agosto do seguinte ano de 1728, então pelo bispo D. Fr. Manuel Coutinho, cujos provimentos se iniciam com uma ríspida admoestação ao P.e António Fernandes Barradas, na medida em que este não tinha elaborado o “tombo da sua igreja”, nem o que dizia respeito às “missa e obrigações”, ameaçando-o “com pena de suspensão do seu ofício” se não desse princípio àquela obra e continuasse a ter somente uma “pauta das missas”. Dava-lhe assim mais seis meses para elaborar os tombos, após o que viria a S. Jorge o juiz dos resíduos para “tomar conta das capelas nesta paróquia” (Ibid., fls. 35v.-36v.), mas o vigário, quase de imediato, era afastado. O projeto de D. frei Manuel Coutinho era o de “plantar nova cristandade” no território insular, como se registou nas memórias que mandou elaborar sobre o seu trabalho na Madeira. A delimitação da área de manobra das confrarias, a tentativa de chamar à diocese o controlo absoluto sobre os legados pios, envolvendo os bens e seus encargos, criou uma profunda crispação que, aliás, foi apanágio de todos os episcopados jacobeus, como o do seu sucessor, D. João do Nascimento, dentro de um programa de ação rigoroso e reformador, que raramente conheceu desvios. Data deste episcopado a reforma de uma parte substancial dos estatutos das confrarias madeirenses e a criação de uma nova confraria, a dos Escravos de Nossa Senhora do Monte, a 6 de abril de 1750, “dia em a Igreja Católica solenizou os Prazeres da mesma Senhora”, na sé do Funchal e em todas as mais igrejas, revelando bem o título adotado o espírito jacobeu estirado no compromisso de serem “escravos servos” (ABM, Confrarias, liv. 53, fl. 1). Numa segunda fase, temos a centralização pombalina, que levou à extinção da Companhia de Jesus, “um estado dentro do próprio Estado”, à delimitação das entradas nos conventos e ao controlo económico das confrarias. O governo da Diocese foi então entregue a D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que se pautou por um certo autoritarismo, certamente inspirado no gabinete pombalino e, provavelmente, no facto de ter iniciado o seu episcopado na Madeira, assumindo o governo de armas. Assim, em 1760, o juiz dos resíduos e provedor das capelas, Pedro Nicolau de Bettencourt Freitas, queixava-se do bispo e do vigário-geral pela prisão arbitrária e vexatória do seu filho João José Bettencourt e Freitas e do seu irmão Francisco José Bettencourt e Freitas. O problema da provedoria e do juízo das capelas, onde constavam os registos das missas das confrarias, mas não só, arrastou-se com as interferências contínuas do prelado em tudo o que dissesse respeito a esse assunto e não pararia de extremar até aos finais do século, pois era impossível cumprir os legados pios estipulados, por vezes, centenas de anos antes. Entre as principais lesadas estavam as confrarias, cuja vida assentava, principalmente, nos legados pios, assunto que em breve passava para o foro civil, sob a tutela do governador. No quadro da centralização régia, em 1766, procedera-se à incorporação na coroa das capitanias, sendo estas extintas na déc. de 90 juntamente com as ouvidorias. Procedeu-se também a reformas na organização religiosa, na tentativa de reduzir as regalias, posse de bens e a percentagem de membros pertencentes ao clero em relação à população ativa, aspectos que começaram a ser sensíveis logo em 1766 com a retirada progressiva da superintendência do bispo sobre as confrarias, passando nessa altura a aprovação dos estatutos para a coroa, assunto que levaria anos a resolver. Foram igualmente colocados em causa os beneficiados da diocese, ordenando, uma vez mais, o rei, a 27 de julho de 1768, o envio de listas completas e atualizadas de todos os beneficiados e de todas as colegiadas insulares. Acumulavam-se, entretanto, em Lisboa as queixas contra a ação do prelado e dos seus visitadores, principalmente na área dos resíduos e capelas. Uma das queixas foi emanada pela câmara da Ponta do Sol, em novembro de 1779, e assinada por todos os vereadores. A queixa era acompanhada de um relatório assinado pelo então provedor José Vicente Lopes de Macedo Correia e referia as violências e vexames praticados pelo visitador eclesiástico, bacharel Manuel Roque Ciríaco de Agrela, com os tesoureiros e administradores das confrarias e irmandades da Ilha, narrando circunstanciadamente vários casos (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 542 e 553). As queixas repetiram-se no ano seguinte, novamente pelo provedor e então também pela Câmara Municipal do Funchal, envolvendo, genericamente, os abusos e excessos de jurisdição frequentemente exercidos pelo bispo e seus visitadores, vigários e párocos sobre as confrarias. A situação não deixou de piorar nos anos seguintes e, com a chegada do novo governador João Gonçalves da Câmara Coutinho, em 1777, o ministro Martinho de Melo e Castro (1716-1797) teve mesmo de admoestar o governador e o bispo. A carta abre com um pedido de desculpas: “Vossa Senhoria desculpe a um ministro velho, com alguma experiência do mundo, a sincera liberdade do que lhe disser; na certeza de que toda ela nasce do ardente desejo que tenho de que sirva bem”. Ao longo de 16 páginas, não deixando de criticar a ação do bispo, “demasiado zeloso”, e do vigário geral, “mais pronto a atear conflitos, que os resolver”, admoesta o governador para que não se repetissem mais questões entre as duas autoridades, “para que nem Vossa Senhoria tenha o desgosto, nem eu o pesar, de que elas cheguem à Real Presença” (Ibid. doc. 71, fl. 15). A nomeação para novo bispo do Funchal recaiu em D. José da Costa Torres (1741-1813), prelado que iria enfrentar corajosamente, acrescente-se, uma das situações políticas e económicas mais complexas da história portuguesa e insular, com o rescaldo da guerra de independência das colónias inglesas da América do Norte, de 1775 a 1782, e, depois, as ideias maçónicas que iriam conduzir à Revolução Francesa, em 1789. A ação do prelado estendeu-se depois, mais uma vez, ao juízo da provedoria dos resíduos, sobre a qual exerceu algumas pressões que parecem ter-se estendido ao “conteúdo das contas”, pelo que o tribunal da mesa da consciência e ordens, em 16 de outubro de 1780, ordenou ao governador: “fareis ouvir por escrito ao reverendo bispo do Funchal” sobre esse assunto, devendo depois comunicar os resultados aos deputados daquela mesa (ABM, Governo Civil, liv. 535, fls. 13v.-14). Em causa estava a superintendência régia sobre o juízo dos resíduos e capelas, estabelecida deste a vigência do gabinete pombalino, sobre o que, logicamente, a Igreja mantinha as maiores reservas, entendendo ser assunto seu. Tentou a igreja madeirense nesses anos recuperar algum espaço de manobra perdido anteriormente através de uma nova imagem, de acordo com os gostos da época, dentro da tentativa de recuperação do antigo protagonismo regional do prelado. As obras envolveram a abertura de duas grandes janelas na fachada e a montagem de uma varanda corrida e, interiormente, o alargamento das paredes das naves laterais para que aí tivesse lugar a remontagem da maioria dos altares das confrarias, até então no transepto. O problema foi a sequente montagem dos altares, a que as confrarias, de certa forma, resistiram. Para fazer face à situação, D. José da Costa Torres tentou acabar com as antigas irmandades de ofícios, que haviam levantado parte dos altares do transepto, por provisão episcopal de 18 de abril de 1792, alegando a sua “irregular ou nula administração”, passando os seus documentos e receitas para a fábrica da sé, que se encarregou do cumprimento das respetivas obrigações pias. O assunto, no entanto, não era linear e as confrarias tinham, de certa forma, personalidade jurídica independente, pelo que, embora não afrontando o prelado, os novos altares só vieram a ser montados nos anos seguintes. Tal como no continente, também na Madeira se viveu um clima de grande agitação com a proclamação da Constituição de 1820, a reação absolutista de 1823 e a Carta Constitucional de 1826. Se, por um lado, era ideia dos liberais a completa separação entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa e a delimitação de outras áreas, como a que conduziu à extinção imediata dos conventos, por outro lado, tiveram que contemporizar com toda uma tradição ancestral, definindo a Carta Constitucional que os portugueses apenas podiam professar a religião católica romana, credo oficial do reino. A partir desta data, algumas confrarias iniciam timidamente a sua reformulação, enviando os seus novos estatutos ao governo de Lisboa, como a Confraria de S. Miguel da Sé, que os reforma em 1819 e em 1839. Com os acontecimentos políticos que se desenrolaram com a implantação do governo constitucional, e que protelaram o preenchimento das dioceses em Portugal, houve uma rutura entre o governo português e a cúria romana. Assim, o bispo D. Francisco José Rodrigues de Andrade (1761-1838) saiu da Madeira em maio de 1834 e só em junho de 1843 foi confirmado D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1810-1862) como bispo do Funchal. Chegado ao Funchal no ano seguinte, foi durante o seu episcopado que ocorreram as sedições contra os calvinistas e, com a chegada à Madeira de José Silvestre Ribeiro (1807-1891) em finais de 1846, também o bispo D. José Xavier saía, nos inícios de 1848, do Funchal, ficando a sé vacante até meados de 1859. A atuação dos seguintes governadores foi algo mais contemporizadora e a da Igreja mais tradicional. Dentro de uma nova segurança, tentou então recuperar algumas das suas estruturas, incentivando as velhas confrarias, como podemos ver no Livro da Confraria de São José. Por ata de 20 de fevereiro de 1859, tentou-se assim a reativação da confraria. Tinha então falecido o último tesoureiro, António Rodrigues Santos, pelo que os confrades rogaram a presença do cónego João Frederico Nunes, “atual Mordomo da Reverenda Fábrica” da sé, para que presidisse à sessão, “fazendo as vezes de conservador, como é costume na confraria”, pedido a que o mesmo anuiu, tomando assento na mesa (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 73). Até então, no entanto, nunca tinha sido costume nesta confraria a figura do “conservador”, embora existente noutras confrarias, como na do Senhor Bom Jesus, citado desde 1735 nos estatutos da confraria e entregue a um capitular, e na Confraria de S. Miguel, lugar entregue ao próprio deão. Compareceu então à eleição da nova mesa da Confraria de S. José o genro do falecido tesoureiro, que pediu à mesa “em seu nome, pelos mais herdeiros, suas cunhadas e sogra” que tomasse conta das alfaias, livros e mais objetos pertencentes à confraria, à guarda do seu sogro, e que os desobrigassem dessa responsabilidade, o que, depois de conferido, foi aceite. Foi então eleito o cónego para conservador, “por escrutínio secreto”, tendo este aceitado. Foi ainda solicitado ao mesmo cónego que escrevesse ao 2.º conde de Carvalhal (1831-1888) participando-lhe de que havia sido eleito para juiz da confraria, “como tem sido feito aos Maiores de Sua Ex.ª”, colocando-se em primeiro lugar o nome de D. Guiomar, depois João de Carvalhal, o filho e coronel Luís Vicente de Carvalhal “e, ultimamente, o falecido Exmo. Sr. Conde de Carvalhal”, que aliás falecera em 1837, ou seja, 22 anos antes (Ibid., fl. 74). Foi ainda decidido aceitar como novos irmãos os oficiais dos diferentes ofícios de carpinteiro e pedreiro, “que espontaneamente comparecerão e declararão que queriam entrar”, perdoando-se-lhes, “por essa ocasião somente”, “a joia do costume” ($400 réis), ficando a pagar anualmente $100 réis no dia da festa do orago. Seguidamente, foram então eleitos o tesoureiro, o escrivão e os 12 mesários e mordomos (Ibid., fls. 73v.-74v.). O livro apresenta depois algumas folhas em branco e, a folhas 77, uma interessante cartela, embora algo ingénua, encimada pelas armas do 2.º conde de Carvalhal e com o termo de eleição do conde, assinada por “O Irmão da Mesa servindo de secretário o fiz e assino”, António Joaquim Abreu Jardim. Mais à frente, aparece a lista dos “Irmãos antigos” (Ibid., fls. 79-82v.), somente 10, e a lista dos novos irmãos, que entraram naquele dia 20 de fevereiro de 1859, discriminados com o nome completo, estado e morada: 113 membros, o que não deixa de ser espantoso. A 5 de maio do mesmo ano, ainda entraram mais 17 irmãos, a 26 de fevereiro do seguinte ano de 1860, mais 5, a 28 de abril, mais 1 e, a 29, mais 2. No entanto, as folhas seguintes estão em branco, sinal de ter sido “sol de pouca dura”. As confrarias de ofícios tiveram um importante papel de coesão social no Antigo Regime, estabelecendo normas de comportamento, disciplinando e desenvolvendo hierarquias, bem como socorrendo e prestando assistência, especialmente aos doentes, pobres e defuntos. Com a centralização do poder régio, a partir do gabinete do marquês de Pombal, o seu controlo passou a ser objeto de disputa entre a Coroa e a Igreja, sendo progressivamente cerceada a sua autonomia, que se apagou discretamente ao longo do regime liberal. As velhas confrarias dos ofícios extinguiam-se, assim, progressivamente ao longo da segunda metade do séc. XIX, resistindo somente as sacramentais, ou seja, as do Santíssimo e as dos oragos de cada freguesia. Pontualmente, no entanto, subsistem outras, renascendo também algumas dentro de uma certa liturgia de celebração, no âmbito, hoje exclusivo, das paróquias. Não é, pois, de excluir futuros renascimentos de associação e devoção que nos ultrapassam, como a adesão de mais de 100 novos membros à confraria de São José da sé em 1859.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

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