ovington, john
Nascido em Melsonby, Yorkshire, em 1653, entrou aos 15 anos para o Trinity College de Dublin, obtendo o bacharelato em 1675 e a licenciatura em 1678. Finalizou a sua formação no John’s College de Cambridge, onde ingressou em 1779. Não se sabe quando foi ordenado, mas muito provavelmente terá sido no mesmo ano de ingresso no John’s College. Integrou a Companhia das Índias Orientais 10 anos depois, partindo a 11 de abril de 1689 do porto de Gravesend, no navio inglês Benjamim daquela Companhia, como capelão de bordo, dentro do costume dos navios ingleses, de guerra ou mercantes, de contratar um capelão. Foi nessa viagem que passou pelo Funchal, tendo como destino Surat, na província de Guzerate, na Índia, onde aquela Companhia inglesa se havia instalado em 1608 e consolidado a sua presença após a batalha de Swally, a 29 e 30 de novembro de 1612, contra uma armada portuguesa enviada de Goa para os desalojar. O Rev. John Ovington domiciliou-se em Surat durante dois anos e meio, mas a cidade entrava em decadência com a transferência da sede da Companhia para Bombaim, em 1687, cidade que entrara para a Coroa inglesa em 1662 no dote de casamento de D. Catarina de Bragança (1638-1701) com Carlos II (1630-1685). A Rainha D. Catarina de Bragança introduzira o chá na corte inglesa, pelo que essa bebida passou a gozar de certa divulgação, sendo um dos principais negócios da Companhia das Índias Orientais. Regressado John Ovington a Inglaterra por volta de 1692, veio a editar as memórias da sua viagem em 1696, sendo estas, posteriormente, sucessivamente reeditadas e traduzidas. No entanto, à época, foi o folheto que escreveu a divulgar o chá, editado em 1699, que lhe deu renome, para o bem e para o mal. Até essa data, o chá era considerado uma bebida somente de senhoras, o que lhe veio a causar alguns problemas, tendo sido o seu principal delator um capitão de navio concorrente da Companhia, Alexander Hamilton, que não se escusou de o apelidar de “fêmea Ovington” e “mole hermafrodita” (SILVA, 1981, 177-178). No entanto, os trabalhos de Ovington já haviam sido reconhecidos antes de 1696, tendo sido nomeado capelão do Rei Guilherme III (1650-1702), ensinando na Universidade de Dublin e acabando os seus dias, solteiro, como reitor de St. Margaret, Lee, no condado de Kent e Diocese de Rochester, em finais de junho de 1731. Alguns anos depois, especialmente após a tradução francesa de Jean-Pierre Niceron (1685-1738), editada como Voyages Faits à Surate & en d'Autres Lieux de l'Asie & de l'Afrique (Paris, 1725), a sua obra passa a ser conhecida como apresentando franca influência mongol e aspetos do ascetismo indiano e persa deveras interessante. Seguiremos a tradução de António Ribeiro Marques da Silva, feita a partir da edição da responsabilidade da Oxford University Press, editada em Londres em 1929 e incluída em A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700. A sua descrição da ilha da Madeira começa pela habitual abordagem histórica inglesa, na base da mítica viagem de Machim e Ana de Arfet, a que, com alguns anacronismos, se segue a viagem dos primeiros capitães, não nomeados, que, desembarcados depois para o povoamento, “em pouco tempo, transformaram a região num paraíso” (OVINGTON, 1981, 196). Ovington deve ter consultado a descrição de Cadamosto (1432-1488), pois utiliza termos e medidas iguais, elogiando a fertilidade do solo da Ilha e ressaltando “que todos os seus produtos, pela notável beleza e abundância, fizeram-na ganhar o título de ‘Rainha das Ilhas’” (Id., Ibid.). O capelão refere também que dali se exportava vinho e açúcar, sendo este “considerado o melhor do mundo” (Id., Ibid., 197). No entanto, o principal produto de exportação da Ilha era o vinho, tendo as videiras vindo de Creta e sendo então três ou quatro castas, com as quais aquele era produzido. Um, menos apreciado, era da cor do champanhe; outro, mais forte e de cor mais clara, era semelhante ao vinho branco; a terceira espécie, rica e deliciosa, era designada por Malvasia; a quarta espécie era o tinto, mas era muito inferior em gosto. O texto de Ovington é um dos primeiros textos a descrever o tratamento do vinho madeirense: “Para fermentar e tratar o vinho, trituram e cozem uma pedra chamada gesso, da qual atiram nove ou dez libras para dentro de cada pipa”. O reverendo cita igualmente que, por aquela data, se começou a perceber as qualidades da fermentação ao calor do sol, informando que se desviava o batoque “da abertura da pipa e, desta maneira, o vinho ficar exposto ao ar” (Id., Ibid., 197-198). John Ovington refere que eram “muito vulgares os citrinos, dos quais os nativos fazem um doce delicioso” (Id., Ibid., 198) chamado sucket, que era anualmente exportado para França, em dois ou três pequenos barcos. O açúcar com que realizavam a cristalização de frutos, “muitas vezes receitado como remédio para a tuberculose pulmonar”, raramente era exportado devido à sua escassez, pois mal chegava para as necessidades da Ilha (Id., Ibid.). O termo “sucket” utilizado por Ovington deve corresponder a qualquer doce que se chupava, a uma espécie de rebuçado de funcho que deve ter visto apenas na Ilha, pois, na época, os doces de exportação seriam chamados de compotas, doces e casquinha, uma conserva feita com cidra cristalizada, conforme consta da documentação local. No entanto, este negócio de doces era mais importante do que Ovington pensava, exportando-se muito mais do que os três citados pequenos barcos para França. O informador de António Jorge de Melo (c. 1640-1704) afirmava mesmo que poderiam estar envolvidos nos cômputos gerais anuais cerca de 20 embarcações só de um tipo destes doces. As bananas devem ter estarrecido o puritano reverendo, que refere: “são tão apreciadas e até veneradas que ganharam, entre os nativos, a crença de serem o fruto proibido. E parecendo confirmar esta crença, as plantas exibem as vastas folhas que sendo tão grandes os levaram a dar crédito à sua utilidade na proteção da nudez de Adão e Eva. É considerado quase crime sem perdão cortar com uma faca este fruto que, depois do corte, apresenta leve semelhança com o Nosso Salvador crucificado; e isto, segundo dizem, é ferir a sua sagrada imagem” (Id., Ibid., 199). Seguindo a descrição de Ovington, lemos igualmente: “os negociantes ingleses, que se calcula não ultrapassarem uma dúzia, seguem a maneira de viver inglesa característica das suas cidades e da casa de campo. Enfastiados da cidade, recreiam-se nas suas propriedades rurais, para as quais nos convidaram solenemente levando-nos a nós, forasteiros, a um fresco lugar onde borbulhavam fontes à sombra da ramagem de laranjeiras e limoeiros. A Natureza aqui oferecia-nos um quadro de alegria e amor e esperava-nos com toda a pompa, amenidade e beleza de paisagem campestre. As colinas e vales abafados de vinha, ofereciam-nos o penetrante odor das uvas maduras” (Id., Ibid., 199). O vinho da Madeira ocupa uma boa parte do texto referente à Ilha, escrevendo com certo espanto Ovington que os madeirenses “quando bebem em companhia não impõem aos outros o vinho que devem beber. O criado empunha a garrafa entregando ao convidado o copo e lentamente verte a quantidade que aquele deseja. Deste modo, cada um toma a quantidade que lhe apetece, não sendo, por isso, os mais sóbrios forçados a beber de mais contra sua vontade” (Id., Ibid., 200). Acrescenta ainda que urinar na rua é considerado indecente e pode fazer com que “as pessoas sejam censuradas por embriaguez” (Id., Ibid.). Esta passagem de Ovington leva-nos a pensar que os excessos de consumo de álcool vigentes na Madeira nos séculos seguintes não eram então notórios. As apreciações mais complexas do reverendo anglicano vão para a forma de viver e vestir dos madeirenses, que lhe deve ter inspirado algum receio e que, a par de informações vinculadas provavelmente pelos comerciantes ingleses, o fez esboçar um quadro quase tenebroso da Madeira daquele tempo, a que é necessário dar o desconto devido à sua condição de puritano e estrangeiro. Escreveu, assim, que as pessoas optavam por uma maneira de vestir extremamente solene, trajando todas de negro, à semelhança, segundo entendeu, dos elementos eclesiásticos, “para melhor captarem as boas graças dessa classe que disfruta de tanta autoridade entre eles” (Id., Ibid.). Acrescenta ainda que não conseguiam deixar de viver sem “a galhardia que atribuem ao uso de uma espada ou punhal. Esses apêndices inseparáveis são até usados pelos criados que servem à mesa e que orgulhosamente se pavoneiam com os pratos, naqueles trajes solenes, com os punhos de uma espada de, pelo menos, uma jarda de comprimento (quase um metro) e isto em pleno verão” (Id., Ibid.). Esse e outros pormenores levaram o capelão anglicano a escrever que “o execrável pecado do homicídio ganhou também, não apenas impunidade, mas até reputação. Mergulhar as mãos em sangue tornou-se característica de qualquer cavalheiro de posição social e distinção” (Id., Ibid., 203), acrescentando: “são muito propensos a este crime, caindo frequentemente nele, devido ao fácil acolhimento das igrejas que os resguardam de qualquer ação judicial e aonde acorrem sempre que se lhes ofereça oportunidade” (Id., Ibid.), o que, embora fosse verdade, não era assim tão linear (Alçadas). O capelão anglicano atribuía esta situação à Igreja Católica, dizendo que “o número de clérigos aumenta aqui, assim como em outros países papistas, até para opressão de leigos com os quais parecem rivalizar em quantidade. Custa a crer como tantos ricos eclesiásticos podem ser sustentados com o labor de tão escassa população” (Id., Ibid.). Acrescentava ainda: “reduz-se este espanto sabendo que – segundo nos dizem – com o fim de evitar uma sobrecarga para a igreja, ninguém neste país é admitido na clerezia, se não conseguir possuir algum património” (Id., Ibid.). As apreciações mais difíceis de Ovington apontam para uma certa promiscuidade sexual que encontrou na Ilha e que, mais tarde, também apontará a Bombaim. Embora seja de colocar algumas reservas às suas observação, parece não haver dúvidas quanto à existência de uma certa libertinagem na Ilha, já confirmada, e.g., com Giulio Landi (c. 1510-1578) nos anos 30 do século anterior. Ovington cita que “a inconstância do marido encoraja (embora sem o direito de desculpar) a mesma leviandade da esposa, cujo sexo é dotado de uma fraqueza que não lhe dá resistência contra os encantos de sedutoras tentações. Portanto, são aqui as mulheres tão capazes de enganar os maridos como estes de enganar as mulheres, uns aos outros igualmente acessíveis a forasteiros, especialmente as mulheres, cuja disposição nesse sentido é mais excitada pelo facto de viverem enclausuradas, guardadas e afastadas de qualquer convívio” (Id., Ibid., 202). Ovington aponta como uma das principais razões de tal situação os arranjos matrimoniais efetuados pelas famílias, à semelhança, e.g., do que era praticado na Índia, onde as crianças de tenra idade se comprometiam, através de contrato, aos cinco ou seis anos. Ao preparar-se um casamento, as primeiras informações procuradas eram sobre a ascendência e posição económica do pendente, procurando-se evitar a “detestada afinidade com os mouros e judeus, entre eles muito numerosos” (Id., Ibid.). No âmbito deste tema, ressalta ainda que uma das atitudes que mais o “surpreendeu foi a proibição que uma certa velha dama levantou às pretensões de um jovem candidato à mão de sua filha, informada da saúde e vigor da constituição do jovem, assim como da moderação e castidade nos seus costumes dos quais constava nunca ter sofrido qualquer doença venérea” (Id., Ibid., 203), concluindo a senhora que tal se devia à fraqueza da constituição física do jovem, pois “pensava não haver necessidade de objeções de consciência para pecados tão veniais cuja prática, em sua opinião, era meritória” (Id., Ibid.). As apreciações gerais sobre a cidade são sumárias, registando Ovington que “as casas são feitas sem grande dispêndio ou esplendor, nem se distinguem pelo embelezamento artístico nem interiormente se apresentam ricas de ornamentos e mobiliários. Algumas atingem uma razoável altura” – por certo as típicas torres do Funchal para se ver o mar – “mas sem outra característica de grandeza. Geralmente são de telhados baixos, permitindo todas a ventilação através de janelas que, sem vidros, ficam abertas durante o dia e fechadas com postigos de madeira, à noite” (Id., Ibid., 200-201). No entanto, o reverendo deixou-se extasiar perante a igreja dos Jesuítas, que considerou “de longe o mais belo de todos os seus templos” (Id., Ibid., 204), descrevendo principalmente as iluminações e festas por ocasião do dia de S.to Inácio. Informa, então, que se cantou “uma série das mais escolhidas antífonas com o acompanhamento melodioso de instrumentos e música coral, suficientes, se a sua doutrina lhes correspondesse, para nos cativar e levar à conversão” (Id., Ibid.). Conta, por último, que “algumas capelas, assim como as casas, são construídas sobre colinas tão íngremes que parecem ameaçar de quedas graves os que saem delas, os quais certamente não deixarão de invocar a proteção dos santos, para afastamento desses perigos” (Id., Ibid.). O texto de John Ovington encontra-se logicamente eivado de referências anticatólicas, dada a época em que foi escrito, na qual não havia, e.g., nenhum cemitério ou igreja anglicana. Para tal também concorreu um problema que terá havido com alguns marinheiros do navio da Companhia inglesa, que Ovington e os companheiros entenderam que teriam sido presos em terra pelos padres do Colégio dos Jesuítas, que serão acusados pelo reverendo de serem profundamente incultos, “de grande incapacidade cultural, facilmente denunciada na sua ignorância”, de tal forma que apenas um em cada três com quem conversou “compreendia o latim” (Id., Ibid., 204). Isto não pode, no entanto, ser verdade, salvo se, em vez de padres, tivesse estado à conversa com leigos. Também acusa os cónegos da Sé de profunda indolência e de atrasarem o relógio da torre uma hora para não rezarem as matinas às 4 h da manhã. Como o “levantar-se cedo representa uma grande maçada, especialmente para homens corpulentos, decidiram que o relógio, de manhã, nunca bateria as quatro horas senão quando fossem realmente cinco” (Id., Ibid., 206), o que era explicado como uma pontual avaria. Para resolver o assunto dos seus homens presos em terra, o capitão do navio optou por sequestrar uma embarcação vinda das zonas rurais para o Funchal, que transportava um abade e um vigário. O capitão escreveu então uma carta ao cônsul britânico, que pensamos ser John Carter, para interceder junto do governador, então Lourenço de Almada (1645-1729), propondo a troca dos prisioneiros. Ao contrário do que esperava, recebeu a bordo alguns dos comerciantes britânicos, “trazendo consigo dinheiro para uma viagem” (Id., Ibid., 208), tal era a situação de insegurança sentida em terra com o sequestro dos eclesiásticos. Face à situação, o capitão optou por enviar todos para terra, incluindo o abade e o vigário, “até porque pensava que os padres seriam tão inúteis para ele no mar, como geralmente o são em terra, constituindo um pesado fardo em terra como no mar” (Id., Ibid.), esquecendo-se John Ovington que também era padre, pelo que o mesmo, em princípio, também se aplicava a ele. Esta memória terá sido escrita algum tempo depois do referido acontecimento, pois acrescenta que, dia e meio depois da partida do navio, chegavam ao Funchal dois navios de guerra franceses e que, mal tinham deitado a âncora, a tornavam a levantar, seguindo para as Canárias, informados de ter sido esse o destino do navio inglês. O Benjamim, no entanto, torneou a ilha da La Palma, a leste, e seguiu diretamente para a ilha de Santiago, em Cabo Verde, malogrando assim a perseguição francesa (Id., Ibid., 209). Na sequência do texto sobre a Madeira, descreve ainda os peixes-voadores que observou a bordo e um tornado que sofreram. Obras de John Ovington: A Voyage to Suratt, in The Year 1689 (1696); An Essay upon the Nature and Qualities of Tea (1699). Rui Carita (atualizado a 15.12.2017) artigos relacionados: açúcar banana vinho
melo, antónio júlio de santa marta do vadre de mesquita e
António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), 3.º visconde de Andaluz, foi para a Madeira como secretário-geral do governador, D. Tomás de Sousa e Holstein, marquês de Sesimbra; porém, o marquês de Sesimbra não estaria um ano no lugar. António Melo foi nomeado para o lugar de governador civil do Funchal em setembro de 1879. Coube ao seu Executivo tentar acalmar a agitação política, que se devia à nomeação de nobres da Corte, o que não se enquadrava já na vida política portuguesa. Palavras-chave: Arranjos familiares; Governo civil; Partidos Políticos; Regeneração; Tumultos populares. O governador civil do Funchal D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), do Partido Regenerador, foi exonerado em 1868 pelo Executivo do açoriano conde de Ávila, António José de Ávila (1806-1881), do Partido Reformista ou Partido Popular, então uma cisão do Partido Histórico (Partido Histórico e Partidos políticos). As complexas alianças entre estes partidos levaram o Governo de Lisboa a colocar em S. Lourenço duas figuras da aristocracia da Corte de Lisboa: o marquês de Sesimbra, D. Tomás de Sousa e Holstein (1839-1887), filho do duque de Palmela (1781-1850), como governador civil, e o 3.º visconde de Andaluz, António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), como secretário-geral. Estas duas escolhas foram alicerçadas em vagas ligações familiares às antigas famílias insulares e foram por certo resultado da pressão dos elementos do Partido Histórico, incapazes de compreender as novas realidades dos meados e da segunda metade do séc. XIX. O marquês de Sesimbra era casado com uma filha dos marqueses da Ribeira Grande, descendentes de Zarco, mas dos Açores, e viria a ser sogro do futuro conselheiro Aires de Ornelas e Vasconcelos (1866-1930); o visconde de Andaluz estaria para se casar com uma filha do barão da Conceição, Fortunato Joaquim Figueira (1809-1885), abastado proprietário que se havia fixado no Funchal nesse mesmo ano de 1868. O marquês de Sesimbra – ou de Cezimbra, como então aparece escrito – foi nomeado por decreto de 9 de setembro e viria a tomar posse a 17 de outubro de 1868, após Te Deum na catedral do Funchal celebrado à uma da tarde; disso nos dá conta o visconde de Andaluz, seu secretário-geral, que o comunicou às autoridades do Funchal, convidando-as para o evento. A administração do marquês ir-se-ia pautar por uma simples gestão administrativa, sendo praticamente toda a correspondência assinada pelo secretário-geral. Realizadas eleições em maio do seguinte ano de 1869, e passado o verão, o marquês de Sesimbra retirou-se, nos primeiros dias de setembro, para o continente, não completando um ano de governo na Madeira. Palácio e Fortaleza de São Lourenço. 1870. Arquivo Rui Carita O visconde de Andaluz tinha sido nomeado governador civil do Funchal por decreto de 4 de setembro, tomando posse a 8 do mesmo mês. Faria então uma proclamação aos “Habitantes do distrito do Funchal! Por decreto de 4 do corrente Houve por Bem Sua Majestade” nomeá-lo governador civil. Apelava então: “Auxiliai-me com o seu conselho e com as suas luzes […] pela prosperidade desta Terra, que eu hei de esforçar-me em promover os interesses dela com solicitude e dedicação” (ABM, Alfândega do Funchal, circular de 9 set. 1869). Era um discurso um pouco ultrapassado para a época, semelhante às proclamações liberais dos anos 30 e 40, conhecidas no Funchal durante a vigência da Junta Governativa de 1847 e o conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891) – proclamações que alguns anos depois ainda viriam a surgir, então ainda mais estranhas ao contexto político da época. O novo governador tentou fazer face à situação algo agitada que se vivia, não só política, como geral. No arquipélago, nem sempre se encontrava gente à altura para os vários locais diretivos e, ao mesmo tempo, não se conseguiam definir especificamente estruturas partidárias, daí resultando vagas organizações articuladas em relações pessoais em torno dos membros mais influentes das elites locais. Em maio de 1870, e.g., tendo o visconde de Andaluz suspendido o administrador do concelho de Santana, “não havendo naquela localidade pessoa com os requisitos necessários para, na atual conjetura entrar na referida vagatura”, solicitava à Casa Fiscal da Alfândega do Funchal a disponibilização do funcionário Joaquim Pinto Coelho (1817-1885) para ocupar o lugar (Ibid., Alfândega do Funchal, of. 23 abr. 1870) – uma nomeação acertada, considerando o tempo em que aquele funcionário ocupou o lugar da Alfândega. Nos inícios de 1870, por decreto de 2 de janeiro, procedeu-se à dissolução das Cortes e, a 3 de fevereiro seguinte, à reunião das assembleias eleitorais. Na Madeira, as eleições decorreram a 1 de maio, voltando a sair os nomes de Luís Vicente de Afonseca (1803-1878) e Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901). Porém, as eleições decorreram muito mal e, especialmente em Machico, ocorreram tumultos graves. Acontece que o governador destacara para os principais centros eleitorais forças de Caçadores 12, nem sempre comandados por elementos capazes de manter o sangue frio. As forças militares acabaram por se refugiar na igreja matriz e, acossadas pela populaça, fizeram fogo sobre a multidão, o que resultou em vários mortos (Tumultos populares). Houve também incidentes em outros locais, inclusivamente no Funchal. O Partido Popular, que se achava na oposição, tinha um certo domínio sobre as massas populares e quando Joaquim Ricardo da Trindade e Vasconcelos (1825-1906), então membro do Partido Fusionista, desembarcou no Funchal, ido precisamente de Machico, foi preso na Pontinha e conduzido à Pr. da Constituição para justiça popular. Evitou o assassinato o jovem Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898), uma das figuras prestigiadas do Partido Popular, que se interpôs entre os populares e Trindade e Vasconcelos. Como o visconde de Andaluz tinha feito vários contactos e estabelecido um pacto de não intervenção nos assuntos do Partido Popular, foi isso que aconteceu em relação a novas alterações da ordem pública em Machico, aquando dos funerais das vítimas do dia 1 de maio. Os acontecimentos de Machico produziram grande sensação na imprensa madeirense e, de imediato, no continente, sendo o visconde violentamente atacado nas Cortes e na imprensa de Lisboa. Em julho ainda apareciam na comunicação social de Lisboa abaixo-assinados respeitantes aos acontecimentos de Machico e à maneira pouco ortodoxa como haviam sido encaminhados juridicamente. Um conjunto de cinco guardas da Alfândega do Funchal, e.g., fora indiciado e preso “pelo crime de cumplicidade nas mortes e ferimentos feitos pela força militar dentro do templo de Machico” (A Revolução de Setembro, n.º 8416, Lisboa, 5 jul. 1870, 1). O despacho fora emitido pelo juiz da comarca oriental do Funchal, Cassiano Sepúlveda Teixeira, e os guardas não entendiam como podiam ser acusados de “crimes eleitorais e políticos” e de “crimes de violência contra membros da assembleia eleitoral” (Ibid.), quando o que estava em causa era uma série de mortes entre a população local, cujos autores tinham sido os soldados de Caçadores 12, como se queixam então os guardas António José Nunes, Jacinto Augusto Ferreira, Januário Esteves de Sousa, Augusto Celestino Lacerda e António Vieira. O visconde de Andaluz foi exonerado em poucos dias, por dec. de 14 de maio de 1870. Foi nomeado como governador do distrito do Funchal Afonso de Castro (1824-1885), que tomou posse a 19 desse mês de maio, mas que não estaria na Madeira senão oito dias, face a mais uma intentona militar do duque de Saldanha (1790-1876) em Lisboa. Poucos meses depois, e face ao insucesso das nomeações, D. João Frederico da Câmara Leme voltava a ocupar o lugar de governador civil. O 3.º visconde de Andaluz era bacharel em Direito e herdou o título de seu pai, Joaquim José dos Mártires de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1806-1863), que o tinha recebido por doação de sua tia materna, Maria Bárbara do Vadre de Almeida Castelo Branco, viúva do 1.º visconde, António Luís Maria de Mariz Sarmento, dado do casamento não ter havido descendência. Embora tenha sido uma situação algo insólita, o 3.º visconde de Andaluz, um ano depois do falecimento do pai, conseguiu a confirmação do título por carta régia do D. Luís (1838-1889), de 17 de dezembro de 1864. Casou-se no Funchal com D. Ana Joaquina Figueira, filha dos barões da Conceição. Desse casamento houve quatro filhas, tendo-se a mais velha casado com o conde de Vila Verde, D. Pedro de Almeida e Noronha Portugal Camões Albuquerque Moniz e Sousa (1865-1908). A 4 dezembro de 1890, o 3.º visconde de Andaluz ainda seria nomeado governador civil de Santarém, lugar que ocupou até 2 de janeiro de 1892. Terá falecido cerca de 10 anos depois. Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)
leme, luís da câmara
Filho do morgado D. João Frederico da Câmara Leme e de uma das filhas dos viscondes de Torre Bela, D. Maria Carolina Correia Pinto, nasceu no Funchal a 26 de março de 1819, sendo irmão do Ten. D. Jorge da Câmara Leme (1807-1889), que ainda entrara nas lutas liberais, do Ten.-Cor. e governador civil do Funchal D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), e ainda de D. José da Câmara Leme (c. 1823-1883), capitão do estado-maior. Descendiam do ramo dos Câmara da linha de Garcia Homem de Sousa e de uma das filhas de Zarco, descendência que se cruzara, entretanto, com os Leme (Genealogias) e de que a principal figura fora, nos meados e finais do séc. XVII, o Ten.-Gen. Inácio da Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general). D. Luís da Câmara Leme assentou praça em 1836, sendo despachado alferes de Caçadores 5 em 1837 e enviado, a 18 de outubro de 1838, para servir no comando da 9.ª Divisão Militar, com sede no Funchal, ordem assinada pelo então ministro da Guerra, conde do Bonfim (1787-1862), que fora governador da Madeira. Pouco tempo depois, no entanto, terá estado em Lisboa, pois, em 1844, concluiu com distinção a Escola do Exército, sendo promovido a tenente em 1845 e a capitão em 9 de abril de 1851, referindo-se na nomeação definitiva como capitão do corpo do estado-maior, de 4 de agosto desse ano, assinada pela Rainha e pelo duque de Saldanha (1790-1876), que frequentara o curso preparatório da extinta Academia de Marinha e da também já extinta Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho, onde fizera os cursos de Engenharia e Artilharia, tal como frequentara, na Escola do Exército, o curso de estado-maior. É possível que tenha sido mobilizado para Lourenço Marques, mas não conseguimos confirmar a informação, nem a sua estadia em Moçambique, que, a ter ocorrido, teria sido por pouco tempo. Na déc. de 50, entretanto, D. Luís da Câmara Leme entrava decididamente na política. Havendo terminando a legislatura de 1853 a 1856, mandou o alvará de 18 de agosto de 1856 convocar as comissões de recenseamento para procederem à eleição dos quatro deputados que competiam à Madeira. A realização das eleições teria apresentado dificuldades fora do Funchal, mas, em dezembro desse ano, foram eleitos o antigo governador, José Silvestre Ribeiro (1807-1891), D. Luís da Câmara Leme, Sebastião Frederico Rodrigues Leal, então redator do periódico O Funchalense, e António Correia Herédia (1822-1899). D. Luís da Câmara Leme voltaria a concorrer às eleições de 1860, que uma vez mais conheceriam algumas dificuldades de realização. A 7 de janeiro de 1860, e.g., só existiam as nomeações para as comissões do Funchal e do Porto Santo e, no mesmo dia, oficiava-se para a Ponta do Sol, para que fossem tomadas as devidas providências para “a completa liberdade dos eleitores”, colocando-se a hipótese de se ter de enviar uma força armada para o concelho, dadas as manifestações de violência ocorridas (ABM, Governo Civil do Funchal, liv. 8, fls. 114-115). O figurino mudara entretanto, passando a existir círculos e, sendo a primeira vez que tal ocorria, parece ter sido esse o motivo das dificuldades, embora a acusação recaísse quase sempre sobre os Herédia da Ribeira Brava. Vieram a ser eleitos pelo círculo do Funchal Luís Vicente de Afonseca (1803-1878), pelo da Calheta D. Luís da Câmara Leme, pelo de Santa Cruz Luís de Freitas Branco (1819-1881), e pelo da Ponta do Sol António Gonçalves de Freitas (1827-1875). Sendo dissolvido o Parlamento por decreto de 27 de março de 1861 e mandando-se proceder a novas eleições ordinárias de deputados às Cortes, que decorreram a 20 de maio desse ano, foram eleitos os mesmos deputados das eleições de 1860. Em 1853, D. Luís da Câmara Leme servira sob as ordens do Mar. Saldanha, que muito o considerava e de quem se tornaria muito amigo, justificando-se a dedicatória de “súbdito e obrigadíssimo amigo” no seu primeiro grande trabalho de fundo: Elementos da Arte Militar, em que se não assume como autor, mas somente como coordenador, editado em 1862 com “juízo crítico” do Ten. José Maria Latino Coelho (1825-1891), então secretário da Academia Real das Ciências. Este trabalho ainda teve uma II parte, em 1863; e III e IV partes em 1864, recolhendo logo os melhores elogios, como na Gazeta de Portugal, tendo tido edições aumentadas nos anos seguintes. Por estes anos era chefe da 3.ª secção da secretaria da direção-geral de Engenharia e, em 1864, teve a nomeação de subchefe da 3.ª repartição do Ministério da Guerra, sendo promovido a major em 1866. Nos inícios desse ano de 1866 foi nomeada uma comissão par dar parecer acerca do armamento com que deveria ser dotado o exército português, “visto que a época das armas de carregar pela boca tinha acabado como o último tiro de espingarda de agulha do soldado prussiano nos campos de Sadowa” (LEME, Diário de Lisboa, 19 set. 1866). Luís da Câmara foi o redator dessa comissão, que manifestou a opinião de que se adotasse a carabina do sistema Westley-Richards de carregar pela culatra e do cano Whitworth, como sendo o modelo mais perfeito para os caçadores. Em vista disso ordenou o ministro da Guerra que se fizesse um contrato provisório para a compra de 8000 carabinas desse sistema para caçadores e 2000 clavinas para a cavalaria. O “Relatório apresentado a sua excelência o ministro da Guerra…”, datado de 10 de setembro de 1866, saiu no Diário de Lisboa, de 19 do referido mês, sendo reproduzido no dia seguinte na Gazeta de Portugal. Nessa sequência, Luís da Câmara, então chefe interino do gabinete do ministro da Guerra, teve ordem de ir a Londres ratificar esse contrato, a 25 de outubro desse ano, com ordem de embarque e ajudas de custo despachadas por António Maria Fontes Pereira de Melo (1819-1887), também oficial de engenharia. A deslocação a Londres terá corrido muito bem e, a 18 de julho de 1867, foi nomeado para ir estudar na Exposição Universal de Paris, realizada nesse ano, “tudo o que se faz relativo às artes e ciências militares, formulando depois um relatório das suas observações para ser presente ao Governo” (AHM, Processos Individuais, cx. 1097, n/catalog.). O “Relatório a S. Ex.ª o ministro da Guerra…” de 1867, na sequência da visita à exposição de Paris, saiu no Diário do Governo de 24 de dezembro desse ano, continuando nos números seguintes, e foi depois impresso em separado com data do referido ano, mas, por certo, já no ano seguinte. Face aos contatos estabelecidos em Londres e, depois, em Paris, o Maj. Câmara Leme publicaria novo trabalho em 1868, sob o título Considerações Gerais acerca da Reorganização Militar de Portugal, que o confirmava como um dos militares portugueses mais bem informados do seu tempo. Nesses anos, como chefe da repartição de gabinete da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, interessou-se especialmente pela situação económica dos militares, o que granjeou então profunda gratidão e reconhecimento. Entre as várias ações desenvolvidas contam-se os contactos com a congénere Secretaria dos Negócios da Fazenda e o facto de ter levado os militares a seu cargo a aderirem ao Montepio Oficial. Em 1870, quando se deu a revolta de 19 de maio, promovida pelo Mar. de Saldanha, o Maj. Câmara Leme foi chamado ao ministério que o referido marechal organizou, a 22 desse mês, como “antigo deputado da Nação Portuguesa” (AHM, Processos Individuais, 3.ª div., sec. 23.ª, cx. 1097, dec. 22 jun. 1870), tendo sido encarregando da pasta da Marinha e Ultramar, com nomeação datada de 20 de julho, sendo então agraciado com a carta de conselho. Com data de 1 de agosto, ainda seria nomeado interinamente para a pasta das Obras Públicas, Comércio e Indústria, substituindo o marquês de Angeja. O gabinete de Saldanha, entretanto, teria muito curta duração, pois, a 29 de agosto do mesmo ano de 1870, outro golpe levou à queda do ministério, sendo provisoriamente substituído por outro, formado pelo marquês de Sá da Bandeira e o velho marechal teve de aceitar retirar-se para Londres, para onde foi como ministro plenipotenciário e onde veio a falecer com 86 anos, a 20 de novembro de 1876. Nos meados de 1874 era dado por terminado o período legislativo de 1871 a 1874, sendo fixadas para 12 de julho seguinte as eleições, que passariam a partir daí a ocorrer no mesmo dia que no “continente do reino” (ABM, Governo Civil do Funchal, liv. 8, fls. 188v.-189). Nestas eleições foram então eleitos D. Luís da Câmara Leme (irmão do então governador civil), pelo Partido Popular, e Ricardo Júlio Ferraz (1824-1880), pelo Partido Regenerador. Este era sócio da firma açucareira Ferraz & Irmão, sucessora das várias firmas fundadas por seu pai, pelo que juntamente com Câmara Leme viria a apresentar um projeto de lei para a extinção do direito que o açúcar madeirense pagava no continente e nas restantes ilhas – projeto esse que a Comissão da Fazenda veio a aprovar em 22 de março de 1875 pelo prazo de cinco anos. D. Luís da Câmara Leme seria promovido a tenente-coronel em 1874, e a coronel, em 1876. Em 1878 foi eleito par do reino, tomando posse na respetiva Câmara a 10 de janeiro de 1879. Neste ano também exerceu o cargo de governador civil do distrito de Lisboa, sendo promovido a general de brigada em 1883 e reformando-se, como general de divisão, a 4 de junho de 1884. General de divisão reformado, do conselho de Sua Majestade, ministro de Estado, par do reino, deputado, sócio correspondente da Academia Real das Ciências e da Sociedade Literária Almeida Garrett, etc., tratou sempre com conhecimento das questões ligadas aos militares, com que também se salientou na imprensa, em artigos dispersos por vários jornais e revistas militares. Câmara Leme foi um propagandista acérrimo da responsabilidade ministerial e das incompatibilidades entre cargos políticos e, nos últimos tempos, já alquebrado pelos anos mas ainda com admirável lucidez de espírito, renovava em quase todas as sessões legislativas o seu antigo projeto de lei nesse sentido, fazendo sempre largas considerações sobre o assunto, para provar a conveniência da sua aprovação, que nunca viu realizada, e cujas principais linhas ainda veio a publicar em 1893. Nos últimos anos, e quando já muito afastado da política partidária ativa, a sua voz era ainda ouvida no Parlamento com atenção e respeito. A oficialidade do exército português, que sempre lhe consagrou a maior veneração pela defesa dos seus interesses ao longo de muitos anos, cotizou-se, nos finais do século, para lhe oferecer uma comenda especialmente executada num dos melhores ourives da capital. Para esse efeito foi aberta subscrição, que num curto espaço de tempo excedia os 8.000$000 réis. O Gen. D. Luís da Câmara Leme aplicou então metade dessa quantia em esmolas para as viúvas pobres dos oficiais do exército, ficando o resto para custear a comenda. Faleceu em Lisboa, a 27 de janeiro de 1904, sendo cavaleiro da Ordem da Torre e Espada e da de N.ª S.ra da Conceição de Vila Viçosa e comendador da de S. Bento de Avis, em 1866; tal como das de Cristo e de Santiago da Espada; de S. Maurício e de S. Lázaro, de Itália; grã-cruz de Isabel “a católica” e de Carlos III, de Espanha; grande oficial da Legião de Honra, de França; e da de Leopoldo, da Bélgica. Era ainda condecorado com as medalhas militares de ouro de bons serviços, e de prata de comportamento exemplar. Elemento especialmente combativo, já se encontrava envolvido, em finais de 1838, num processo por desacato no passeio público de Lisboa, cujos contornos não conseguimos determinar corretamente, mas que sugere que Câmara Leme era já um nome de certa importância, dado ter sido especificamente nomeado pelo então ministro da Guerra. A referência consta da documentação do seu processo individual e, em princípio, teria sido a razão para o conde do Bonfim lhe passar ordem, a 18 de outubro desse ano, para que regressasse “a servir às ordens do comandante da 9.ª Divisão Militar” no Funchal (Ibid., Processos Individuais., 3.ª div., sec. 23, cx. 7, n.º 9, Minuta de ofício…, 1867). O seu espírito combativo e de defesa da classe militar é referido numa carta de Lisboa, de 15 de março de 1869, do diplomata Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901) para o irmão, o então Cón. D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880), onde refere estar em causa a nomeação de governador civil do Funchal para D. João Frederico da Câmara Leme. Escreve o diplomata Agostinho de Ornelas, que era o ministro do Reino, que tinha “muita repugnância a aceitar” a nomeação do “João Câmara, porque o Luís tem feito e faz aqui uma guerra terrível ao Ministério, procurando excitar contra ele os militares que estão geralmente descontentes com as reformas que feriram os seus interesses” (GOMES, 1997, 98-99). Pelos meados da déc. de 40, D. Luís era dado como muito próximo da célebre artista Emília das Neves e Sousa (1820-1883), filha do açoriano Manuel de Sousa, tal como o irmão mais velho de D. Luís, um dos “bravos do Mindelo” (Leme, D. Jorge da Câmara). A “bela Emília” fez a sua estreia nos palcos de Lisboa em 1838, data dos referidos desacatos no passeio público de Lisboa do então Alf. Câmara Leme, e teria sido a primeira grande vedeta feminina a surgir em Portugal, tendo atuado, inclusivamente, no Brasil. Um texto anónimo, Emília das Neves, Documentos para a sua Biografia, por um dos seus Admiradores, editado em 1875, é atribuído a Câmara Leme. Alguns biógrafos citam um primeiro casamento de D. Luís da Câmara com Emília das Neves e que a mesma, falecendo em 1883, o teria feito herdeiro da sua apreciável fortuna, então avaliada em 80 contos de réis. Contudo, à data do seu falecimento, em 1883, Emília é sempre mencionada como solteira, tal como então o seu possível biógrafo. O Gen. D. Luís da Câmara Leme casou-se mais tarde, na freguesia dos Mártires de Lisboa, a 5 ou 15 de outubro de 1887, com D. Ana de Albuquerque (1858-1924), que foi escritora e também atriz no teatro de D. Maria II e que, nascida em São Tomé e Príncipe e filha de Luís Maria do Couto de Albuquerque da Costa, fidalgo e cavaleiro da casa real, bem como sócio correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa, era igualmente senhora de apreciável fortuna, tal como uma das mulheres mais cultas do seu tempo. Obras de Luís da Câmara Leme: Elementos de Arte Militar (1862-1864) (atr.); “Relatório apresentado a sua excelência o ministro da Guerra em desempenho de uma comissão concernente à aquisição das novas armas de fogo portáteis” (1866); “Relatório a S. Ex.ª o ministro da Guerra acerca dos objectos militares mais notáveis apresentados na exposição universal de Paris em 1867” (1867); Considerações Gerais acerca da Reorganização Militar de Portugal (1868); Emília das Neves, Documentos para a sua Biografia, por um dos seus Admiradores (1875) (atr.); Incompatibilidades Políticas sob o Aspecto Histórico, Jurídico, Político e Moral (1893). Rui Carita (atualizado a 14.12.2017)
leme, joão frederico da câmara
Filho do morgado homónimo, que também usava o apelido Homem de Sousa, e de D. Maria Carolina Correia, filha dos viscondes de Torre Bela, nasceu no Funchal, a 18 de março de 1821. Teve como irmãos o Ten. D. Jorge da Câmara Leme (1807-1889), que colaborou ativamente nas lutas liberais, o deputado e general D. Luís da Câmara Leme (1817-1904), ministro da Guerra e D. José da Câmara Leme (c. 1823-1883), capitão do estado-maior. Descendiam do ramo dos Câmara da linha de Garcia Homem de Sousa e de uma das filhas de Zarco, descendência que se cruzou com os Leme (Genealogias), nos inícios do séc. XVII e de que a principal figura foi, nos meados e finais de Seiscentos, o Ten.-Gen. Inácio da Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general). D. João Frederico da Câmara Leme seguiu, como os irmãos, a carreira militar, assentando praça, como voluntário, no batalhão de infantaria 16, em Évora, a 3 de outubro de 1842, já com alguma idade para a época. Aí serviu “2 anos, 5 meses e 16 dias” (AHM, Processos individuais, João, 6-19), até 18 de março de 1845, data em que foi promovido a alferes, por decreto, passando a porta-bandeira do regimento de granadeiros da rainha, em Lisboa. Promovido a tenente, por dec. de 1 de agosto de 1849, integrou o batalhão de caçadores 6, a 18 de outubro de 1850 e, no ano seguinte, por dec. de 5 de julho, foi promovido a capitão graduado, contando antiguidade desde 29 de abril. Por razões que se desconhecem, muito provavelmente para assumir o controlo das propriedades da família e entrar na vida política, algo que seu irmão D. Luís começara a ensaiar em Lisboa, optou por ser colocado na disponibilidade, por dec. de 15 de janeiro de 1852, passando para ajudante do corpo de artilheiros auxiliares da ilha da Madeira, por dec. de 27 de julho de 1856, ano em que o irmão foi eleito deputado pela Madeira; D. João Frederico tornou-se ainda capitão do corpo auxiliar, por dec. de 25 de novembro de 1861. Nos anos de 1857 a 1862 decorreu um conflito político, com aspetos anticlericais, envolvendo a presença das ordens religiosas em Portugal e que levou as irmãs de S. Vicente de Paulo a abandonarem o Hospício Princesa D. Maria Amélia e até o país. Nos meados de março de 1859, o gabinete do duque de Loulé, que formava a nova corrente progressista histórica, caiu, perante a dissidência de alguns dos seus próprios apoiantes. O novo governo, então constituído pelo Partido Regenerador e com o qual voltava, novamente, António Maria Fontes Pereira de Melo, terá tentado fazer outras alterações, mas a sua vigência durou pouco tempo. Assim, foi nomeado governador civil do Funchal, por dec. de 21 de maio de 1860, o Cap. D. João Frederico da Câmara Leme, que comunicou a tomada de posse a 27 de maio, através de um impresso dirigido às autoridades superiores do distrito. Mas, em breve, a correspondência continuaria a ser assinada pelo anterior governador, o 2.º conde do Farrobo (1823-1882), genro do duque de Saldanha (1790-1876), como se nada se houvesse passado. Não deixa de ser curioso que, nos documentos do processo militar individual de D. João Frederico da Câmara Leme, não conste qualquer documentação desta sua primeira nomeação para governador civil, nem haja referência a ela nos registos biográficos de Luiz Peter Clode ou no Elucidário Madeirense. Os inícios de 1868 foram marcados, no Funchal e uma vez mais, pela tentativa de tomada do palácio de S. Lourenço pelo antigo administrador do Porto Santo, João de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt (1825-1892). Como membro, à data, do conselho de distrito, porque era chefe do Partido Regenerador, e tendo sido exonerado o anterior governador e conselheiro, Jacinto António Perdigão, por dec. de 16 de janeiro, passado este a governador civil de Bragança, a 30 desse mês, João de Santana de Vasconcelos enviou uma circular a todas as autoridades insulares a informar que tinha tomado posse nesse dia. Porém, desta vez, ficou em S. Lourenço apenas cerca de 10 dias. Com efeito, a 10 de fevereiro, tomou posse o Cap. D. João Frederico da Câmara Leme, nomeado por dec. de 25 de janeiro de 1868. D. João Frederico deparou-se com uma situação muito difícil e à qual, nesta sua segunda permanência no Governo Civil, não conseguiu responder da melhor maneira, até porque não teve cobertura política do governo do central. Os finais de 1867 tinham sido marcados por uma subida generalizada dos preços, motivada pela situação de difusão geral da crise no país e agravada pelo imposto da sisa, ou imposto sobre o consumo, na ordem dos 6,5 %. Este valor, decretado em dezembro, que deu origem a graves tumultos por todo o continente, em breve se espalhava à ilha da Madeira. O movimento ficou conhecido como janeirinha, dado ter decorrido nos primeiros dias de janeiro de 1868, resultando em vários motins, tendo sido um, no Funchal, designado por pedrada, o responsável por ter impedido o desembarque de Jacinto de Santana e Vasconcelos (1824-1888). O capitão e governador civil D. João Frederico da Câmara Leme, depois do sucedido no Funchal e, especialmente, na Câmara de São Vicente, onde, entretanto, se deslocou, devido a novos tumultos (Tumultos populares), deve ter sentido uma profunda insegurança no palácio do governo de S. Lourenço. Assim, em abril desse ano, requisitou mesmo uma força militar para ficar em permanência nas imediações do palácio, “não só para defesa do cofre central, como dos arquivos que existem no mesmo edifício” (Alfândega do Funchal) (ARM, Alfândega do Funchal, liv. 680, 18 abr. 1868). A força ficou aquartelada nos armazéns de bagagens da Alfândega, de forma algo provisória. E, com o decorrer dos acontecimentos, depois de 1870, tomou mesmo assento definitivo, quando D. João da Câmara Leme ocupava já o lugar de governador civil. Para o efeito, por proposta do próprio governador e após a aprovação da Junta Geral, foram adquiridas, em Lisboa, 30 camas “e seus pertences”, transportadas para a Madeira no vapor Maria Pia. D. João Frederico da Câmara Leme foi exonerado pelo novo executivo, do açoriano conde de Ávila (1806-1881), que lhe ofereceu o lugar de governador civil de Santarém, para o que teve decreto de nomeação, a 25 de janeiro de 1868, “dada a desistência do coronel Francisco de Mello Breyner” (AHM, Processos individuais, João, 6-19), mas não aceitou o lugar. No entanto, só veio a ser exonerado a 9 de setembro e, a 14 de outubro, dado que “frequentara o tirocínio para oficial superior em Lisboa” (Id., Ibid.), foi de novo colocado no batalhão de caçadores 12 do Funchal, como regista o despacho do rei D. Luís e do marquês de Sá da Bandeira, tendo tido ordem de embarque para o Funchal, a 9 de outubro do mesmo ano. O periódico A Revolução de Setembro, por essa altura, transcrevia uma série de notícias da ilha da Madeira: “Dizem-nos cartas dali, que foi muito mal recebida a notícia ‘encapotada’ da transferência para Santarém do governador civil D. João da Câmara Leme. Não ajudou também a notícia de que o Frade [deverá tratar-se do bispo de Viseu, D. António Alves Martins (1808-1882), que fora franciscano e era então um dos elementos proeminentes do Partido Reformista] apresentara e premeditara impor como deputado governamental pelo círculo da Ponta do Sol o ex-deputado Lampreia”; “Dizem também, que o marquês de Sesimbra, novo governador, não será bem recebido. ‘O Direito’ e ‘A Ordem’, jornais de mais confiança na Ilha, passaram à oposição. Já o esperávamos: Quem tem Razão Direita, não podia andar por muito tempo desviado do Bom Caminho” (A Revolução de Setembro, 26 set. 1868). O Governo do marquês de Sesimbra (1839-1887), décimo quarto filho do duque de Palmela (1781-1850) e o Governo seguinte, do visconde de Andaluz, que viera como secretário-geral do marquês de Sesimbra, foram de vaga gestão da crise motivada pela oposição dos duques de Loulé e Saldanha, que se alternaram à frente do gabinete ministerial de Lisboa. A situação manteve-se até às eleições de julho de 1870, mas configurava-se uma nova nomeação para o Funchal. O governo cessou funções a 26 de outubro, mas, já então, o Cap. D. João Frederico da Câmara Leme estava novamente nomeado governador civil do Funchal, voltando a tomar posse, então com um Te Deum na sé do Funchal, a 31 de outubro de 1870, tal como comunicou às restantes entidades superiores da Ilha, em informação impressa. A nomeação fora bastante anterior, pois fora mandado “marchar para Lisboa”, por “ordem telegráfica” do ministério da Guerra de 20 de maio desse ano, como refere o comandante do batalhão de caçadores de Tomar, onde estava colocado (AHM, Processos individuais, João, 6-19). No dia seguinte, 21 de maio, foi colocado no seu lugar, em Tomar, o Cap. Alexandre Magno de Campos, perguntando o comandante se o mesmo também ficava na situação de “supranumerário”, como estava Câmara Leme (Id., Ibid.). As eleições e as nomeações eram acordadas, muitas vezes, entre os quadros madeirenses, em Lisboa e no Funchal, como expressa uma carta de 15 de março de 1869, onde o diplomata Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901) voltava a dar instruções ao irmão, o então cónego D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880), ainda não sabendo se concorreria às eleições de 1870, estando dependente do número de deputados a eleger por cada círculo eleitoral na Madeira. Equacionava, assim, as posição dos irmãos D. João Frederico e D. Luís da Câmara Leme, adiantando uma situação interessante, que era o ministro do Reino ter “muita repugnância a aceitar o João Câmara, porque o Luís tem feito e faz aqui uma guerra terrível ao ministério, procurando excitar contra ele os militares que estão geralmente descontentes com as reformas que feriram os seus interesses” (GOMES, 1997, 98-99). D. João Frederico da Câmara Leme, desta vez, estaria à frente dos destinos da Madeira durante mais de cinco anos, o que foi um verdadeiro recorde para o tempo, só ultrapassado pelo conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891), que esteve seis anos em S. Lourenço. Entre outros apoios, pois fora nomeado por um gabinete “histórico” e o seguinte, “regenerador”, confirmou-o, contando com uma certa estabilidade governativa por parte dos novos gabinetes de Fontes Pereira de Melo, gozou de um muito especial auxílio: o do bispo do Funchal então nomeado, uma das mais interessantes personalidades da Igreja da Madeira: D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880). Confirmado bispo titular de Gerasa, em 1871, nos inícios e meados de 1872, foi governador da diocese do Funchal e a 27 de outubro de 1872, tomou posse efetiva do bispado. Familiar, em certa medida próximo, do governador civil, como todos os grandes morgados insulares, e vindo a sofrer, à frente da diocese, os mesmos problemas que D. João da Câmara Leme enfrentava no governo civil, estabeleceu-se uma discreta, mas profícua colaboração entre ambos, apoiados nos irmãos deputados em Lisboa, embora não ao mesmo tempo: D. Luís da Câmara Leme e o diplomata Agostinho de Ornelas e Vasconcelos. O governador civil procurou outros apoios ao longo do seu mandato, nomeadamente, no Conselho do Distrito, cujo vogal era Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875), elevado a visconde de São João a 3 de maio de 1871 (São João, visconde), e na nova Junta Geral do Distrito. Nas eleições de 1874 ocorreram alguns distúrbios, nomeadamente, no Porto Moniz, para onde o governador teve de destacar uma força militar, mas essas eleições elegeram de novo o seu irmão general, D. Luís da Câmara Leme, pelo Partido Popular. Ao longo desse ano, instalou-se progressivamente o telégrafo submarino, com o qual o governador foi comunicando oficialmente às restantes autoridades superioras da Ilha. D. João Frederico da Câmara Leme começou a acusar algum desgaste pelos cinco anos de governação, que, inclusivamente, lhe haviam afetado a saúde. Por isso, nos inícios de 1876, pediu a sua exoneração, concedida a 1 de maio desse ano. Entretanto, também nos começos de 1876, já estaria indigitado um novo governador civil para o Funchal, Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro, cuja comunicação de nomeação terá chegado a 7 de abril. Levando este algum tempo em Lisboa, tomou posse do lugar interinamente, a 18 do mesmo mês, o novo secretário-geral Joaquim Curado de Campos e Meneses. A 8 de maio, tomou posse o antigo morgado das Cruzes, Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880), membro do Conselho do Distrito, segundo o art. 223.º do Código Administrativo. E, a 10 de junho, finalmente, o novo governador Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro. O ex-governador D. João Frederico da Câmara Leme casara, a 30 de julho de 1854, com D. Maria Carlota da Gama Freitas Berquó, filha do militar e político brasileiro marquês de Cantagalo (1794-1852). Do matrimónio resultou uma descendente, D. Maria Teresa da Câmara Leme, nascida a 10 de maio de 1854 e falecida em 1942, mas que não casou, não havendo, assim, sucessão, como aconteceu a todos os outros três irmãos de D. João Frederico. D. João Frederico estava, então, colocado em Tomar, embora essa colocação não conste na sua folha de matrícula militar. Foi daí que partiu, em 1870, para ser governador civil do Funchal, vindo a faleceu na mesma cidade, como Ten.-Cor., a 6 de fevereiro de 1878. Foi cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada (1847) e da de Avis (1862), comendador da de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa (1867), possuindo ainda as medalhas de Valor Militar, Bons Serviços e Comportamento Exemplar (1866 e 1867). Rui Carita (atualizado 14.12.2017)
vasconcelos, joão da câmara leme homem de, visconde e conde do canavial
A vida política, económica e social madeirense foi marcada no último quartel do séc. XIX pela personalidade conflituosa do futuro conde do Canavial, Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos. Filho do morgado António Francisco da Câmara Leme Homem de Vasconcelos e de Carolina Moniz de Ornelas Barreto Cabral, nasceu no Funchal a 22 de junho de 1829, foi simultaneamente clínico, professor, funcionário público, homem de ciência, jornalista e escritor, político e industrial, em todas essas ocupações revelando interessantes qualidades e capacidade e de trabalho, mas também uma personalidade algo conflituosa. Foi autor de uma vastíssima produção literária, quer científica, quer política, que é difícil trabalhar de forma científica, pois nem sempre se consegue separar o que era polémica científica e industrial do que eram atitudes políticas e pessoais. Concluídos os estudos secundários no Funchal, veio a formar-se em medicina pela Universidade de Montpellier, em França, bacharelando-se em 1852 e doutorando-se em 1857, colaborando ali em vários periódicos, fazendo traduções e tendo obtido o lugar de membro da Academia das Ciências e Letras daquela cidade. Começou assim logo por desenvolver um notável trabalho científico na sua área de especialidade a que, regressado à Madeira, juntou também a de investigador da área científico-industrial de tratamento do vinho da Madeira, de que era um dos mais importantes produtores. O Dr. João da Câmara Leme, regressado de França, fez em 1859 repetição dos seus atos académicos na Escola Médica de Lisboa, sendo no ano seguinte nomeado demonstrador de anatomia da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e, em 1867, professor proprietário. No ano seguinte, editava logo um Relatório e Projecto de Regulamento para a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal (1868), entrando de imediato em conflito com o Dr. António da Luz Pita (1802-1870), então deputado em Lisboa, polémicas que se prolongaram pelos anos seguintes. Escrevem os autores do Elucidário Madeirense, que o conheceram pessoalmente, que “teve de sustentar algumas lutas com os seus colegas no magistério, publicando a tal respeito dois grandes volumes, que, apesar da parcialidade com que possam porventura estar escritos, são trabalhos de incontestável valor” (SILVA e MENESES, 1998, I, 232). Paralelamente à sua atividade como médico e diretor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, promoveu ainda a fundação da Companhia Fabril de Açúcar Madeirense (CFAM), com sede junto à ribeira de São João, onde introduziu notáveis aperfeiçoamentos nos processos destinados ao fabrico da aguardente, essencialmente no sentido de um melhor aproveitamento da matéria-prima empregue. Registou de imediato patente da sua invenção, o que deu lugar a uma série de contestações e polémicas, voltando a, sobre esse assunto, publicar inúmeros folhetos. Na polémica viria a entrar outra das grandes figuras da Madeira do seu tempo, o depois comendador William Hinton (1817-1904), a qual polémica, embora não só, veio a inviabilizar alguns anos mais tarde a Companhia da ribeira de São João. A constituição e vida da CFAM, liderada pelo futuro visconde do Canavial, foi um bom exemplo do quadro geral em que se desenvolveu a atrasada revolução industrial na Madeira. Beneficiando do inegável espírito empreendedor do promotor, mas também da sua teimosia e, inclusivamente, de um experimentalismo algo deslumbrado, sempre à procura de uma nova tecnologia, e sem bases técnicas e científicas para tal, a vida da Companhia foi confrontada com a concorrência feroz dos comerciantes britânicos instalados na Madeira. A todo este quadro, juntaram-se as dificuldades de associação e de entendimento dos proprietários madeirenses, muito provavelmente ainda politicamente agudizadas pelos antigos morgados, entretanto radicados no espaço continental. Os estatutos da CFAM só foram aprovados em 1867, arrastando-se a constituição da Companhia por mais de 10 anos, o que implicou que a fábrica de São João só entrasse em funcionamento em 1871. O futuro visconde apetrechou-a com sofisticada aparelhagem, a que ainda associou outros aperfeiçoamentos da sua autoria, de que imediatamente registou a patente. No entanto, não só William e o filho Harry Hinton (1859-1948) vieram a contestar o registo dessa patente, como a sofisticada aparelhagem acabou por não se mostrar rentável. A 26 de agosto de 1878 foi solicitada a intervenção do Banco de Portugal por insolvência financeira da CFAM. A ideia voltou a aparecer em 1892, tomando como exemplo a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, chegando-se mesmo a propor em reunião camarária, de 11 de outubro desse ano, um subsídio anual de 100 mil réis e que a nova associação fosse presidida pelo conde do Canavial. Mas tal como já se inviabilizara o anterior projeto da fábrica de São João, também a associação se extinguia em 1902. Em 7 de setembro de 1876, organizava-se a partir do Pacto da Granja, no continente, uma nova fusão, então entre elementos das antigas formações histórica e reformista, de que nasceu o Partido Progressista, de Anselmo José Braamcamp, que foi o primeiro partido no sentido moderno do termo com programa, apresentando um regulamento interno, com assembleia geral e centros locais. O líder na Madeira viria a ser o Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos, depois visconde do Canavial, aderindo ao partido parte dos antigos membros do Partido Fusionista e do Regenerador. O Partido Fusionista teve como órgão o Correio do Funchal, substituído depois pelos periódicos A Fusão, A Voz do Povo e A Imprensa Livre. Em meados de 1879, com a queda do executivo, saía da Madeira o governador e conselheiro Afonso de Castro, logo assinando, a 21 de julho, a correspondência do governo civil, como membro do conselho do distrito, João da Câmara Leme, como visconde do Canavial, embora a 28 de agosto já não o faça, só voltando a assumir-se como visconde a partir de agosto do ano seguinte. Estranhamente, não se encontra qualquer documentação oficial da sua nomeação como visconde, mas apenas o dec. de 22 de abril de 1888, que o nomeia como conde, citando-se ainda a carta de 28 de março e o alvará de “mercê nova” de 15 de dezembro de 1888 (CLODE, 1983, 107), não havendo contudo confirmação alguma na chancelaria régia. A partir de então, desenvolveu o futuro visconde uma verdadeira campanha para vir a ocupar o lugar de governador civil do Funchal, assim como para passar a utilizar o título de visconde do Canavial. A luta política deve ter sido terrível, a avaliar logo pelos membros do conselho do distrito que assinam alternadamente a correspondência como governador substituto: o visconde do Canavial a 21 de julho e o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880) a 30 do mesmo mês. Luta que deve ter tido eco também nos corredores do poder em Lisboa, até pela utilização então intensiva do telégrafo submarino, através da Madeira Station no Funchal da Brazilian Submarine Telegraph Company Limited. A nomeação de João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos como governador substituto para o distrito do Funchal só viria a ser assinada a 30 de julho de 1879. O decreto terá chegado ao Funchal poucos dias depois e o futuro visconde, a 8 de agosto, logo emite proclamação impressa e inflamada ao sabor de alguns dos governadores anteriores, que eram, no entanto, efetivos, pois nenhum até então tinha feito especial alarido com o facto de ser “governador substituto” (ARM, Alfândega do Funchal, liv. 683). O novo governador substituto teria alguns curtos meses de estado de graça, pois em breve O Direito o acusava de se encontrar a receber três ordenados: o de governador substituto, o de professor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e o de delegado de Saúde. A 15 de fevereiro, o governador distribuía um comunicado com um desmentido atestado pelo delegado do Tesouro em como, passando a receber o ordenado de governador substituto, suspendera os outros. O futuro visconde do Canavial não seria confirmado naquela altura, pois, caindo o gabinete progressista em Lisboa, o novo gabinete regenerador demitiu de imediato os governadores civis progressistas e, a 26 de abril de 1881, já assina a correspondência do Funchal o vogal do Concelho do Distrito servindo de Governador Civil, João Maria Curado de Vasconcelos (1825-1896). A breve trecho, um autêntico terramoto político varreria o país, com epicentro na Madeira: a eleição do Dr. Manuel de Arriaga, candidato pelo Partido Republicano às cortes, a 26 de novembro de 1882, em eleições suplementares, dado o falecimento do deputado madeirense Dr. Luís de Freitas Branco (1819-1881). Ainda antes do anúncio oficial do apoio dos regeneradores ao líder do Partido Progressista, já O Direito alardeava não poder haver qualquer compromisso com os progressistas, temente, talvez, de ver candidatar-se pela Madeira o visconde do Canavial, até há pouco governador civil substituto do Funchal. Numa intensa campanha ao longo do ano entre os partidos monárquicos, acabou por ser eleito na Madeira o candidato republicano. Nos inícios do ano 1886, o presidente do ministério Fontes Pereira de Melo propunha um adiamento das eleições, para poder organizar uma série de diferendos, o que se estava a tornar um crescente motivo de tensão entre governo e oposição. O rei D. Luís não acedeu à proposta do chefe do governo, pelo que Fontes se viu na contingência de ter de pedir a demissão do gabinete. Foi então chamado ao governo o Partido Progressista, liderado por José Luciano de Castro, mas o início do novo governo progressista foi ocupado com as complicadas negociações que levaram ao casamento do príncipe herdeiro D. Carlos, atrasando uma série de nomeações. Teria sido o caso da nomeação do governador civil do Funchal, para o então líder dos progressistas, visconde do Canavial, lugar que só foi preenchido por dec. de 1 de julho de 1886. Após as eleições de março de 1887, o governador civil, visconde do Canavial, iniciou a convocação das eleições das juntas de paróquia, que somente ocorreram no Funchal e em Machico. O visconde do Canavial insistiu nas convocatórias por três vezes, sem resultado, essencialmente pelos custos que mais uma estrutura política acarretava, mas também por causa da conotação com a divisão eclesiástica tradicional e da ideia rural de que a paróquia era dirigida pelo “senhor pároco” ou “senhor vigário” e não por um elemento eleito entre os “senhores morgados”. A pressão do visconde do Canavial conduziu a um levantamento geral na ilha, que, começando nos meios rurais, quase envolveu o Funchal: a Parreca. Perante a contestação geral, mas só depois de muito pressionado, o visconde do Canavial veio a apresentar demissão a 26 de março de 1888, tendo sido entregue o governo ao visconde da Calçada, Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa (1812-1902). Apesar das dificuldades do seu governo e dos resultados da comissão de inquérito à Parreca, seria elevado a conde do Canavial no final desse ano de 1888, embora se desconheça a documentação oficial, como mencionámos acima. O conde do Canavial viria a falecer na sua residência, à rua da Carreira, a 13 de fevereiro de 1902. Quase 20 anos depois, surgiu a ideia de se levantar um monumento à sua memória, iniciativa de Abel Capitolino Batista; o trabalho foi entregue ao jovem escultor macaense Raul Xavier (1894-1964) e erguido sobre plinto de mármore branco, projeto do arquiteto Fernando Pires. A primeira pedra foi lançada a 1 de dezembro de 1921 e o monumento inaugurado a 2 de março de 1922, no passeio público, frente à sé do Funchal, tendo usado da palavra Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), em nome dos alunos do liceu (Diário de Notícias, 22 fev. 1922). A inauguração do monumento naquela altura e naquele local levantou enorme celeuma, dado o seu enquadramento monárquico, vindo a ser transferido para o Campo da Barca, a 6 de dezembro de 1932. Rui Carita (atualizado a 31.12.2016)
cunha, bartolomeu vasconcelos da
O governador e capitão-general Bartolomeu Vasconcelos da Cunha era filho de Francisco de Vasconcelos da Cunha, governador de Angola entre 1635 e 1639, e que tivera o título de conde do Porto Santo. Tomou posse do governo da Madeira a 16 de outubro de 1651 e, ao contrário dos seus antecessores, não teve especiais problemas com os provedores da Fazenda nem com os juízes de fora do Funchal, ou com os corregedores. Com o aumento de movimento no porto do Funchal, datam da sua vigência como governador as complexas obras de fortificação do Ilhéu Grande do porto do Funchal. Este governador veio para o Funchal acompanhado de uma senhora que não era a sua mulher, de quem teve vários filhos, mas tal não obstou que fosse depois governador interino de Angola e general na Índia, perdendo-se depois no mar, vindo para o Reino em 1663. Palavras-chave: arquitetura militar; cartografia; fortificação; Guerras do Brasil; Guerras da Aclamação; relações institucionais. Armas da família Vasconcelos. 1515. Arquivo Rui Carita O governador e capitão-general Bartolomeu Vasconcelos da Cunha (c. 1610-1663), a quem chamaram na Ilha “o Monstrinho” (NORONHA, 1996, 55), era filho de Francisco de Vasconcelos da Cunha, governador e capitão-general de Angola entre 1635 e 1639, e de sua segunda mulher, D. Isabel de Brito. A família ocupara desde os meados do século anterior importantes postos no quadro do Império, tendo o homónimo bisavô, em princípio, comandado a armada que em 1559 partiu de Lisboa e, no ano seguinte, com o governador Mem de Sá, desalojou os Franceses da baía de Guanabara do Rio de Janeiro, no Brasil. O jovem Bartolomeu Vasconcelos da Cunha participara nas campanhas da Catalunha e de Milão, onde foi capitão de cavalaria, oferecendo-se por requerimento de 26 de maio de 1636, quando o pai se encontrava como governador e capitão-general de Angola, a D. Filipe III (1605-1665), pedindo que lhe fizesse a mercê de uma companhia de Infantaria do Terço, com o título de capitão, oferecendo a sua fazenda ao serviço real, para participar na restauração da capitania de Pernambuco. Com a aclamação de D. João IV em Lisboa, achando-se o pai, Francisco de Vasconcelos da Cunha, na corte de Madrid – e despachado com o título de conde do Porto Santo, dada a sua ascendência nos Mendes de Vasconcelos, pontualmente governadores nesta Ilha e com muita fazenda nas Índias de Castela, que tinha comércio com Angola –, largou tudo e veio para Lisboa, sendo recompensado com a comenda de S. Cristóvão de Nogueira e de S.ta Maria da Torre da Horta, na Ordem de Cristo. O mesmo se passou com o filho, Bartolomeu Vasconcelos da Cunha, então nas campanhas do Brasil, e que regressou também ao continente, participando depois nas campanhas da Aclamação, em Olivença, onde atingiu o posto de mestre-de-campo. Foi-lhe passada a patente para o governo da Madeira em 23 de agosto de 1651, de que deu menagem em Lisboa ao primeiro de outubro do próprio ano, e a 16 tomou posse na Câmara do Funchal, na presença do anterior governador, Manuel Lobo da Silva (c. 1610-c. 1695). O novo governador não veio para o Funchal com a mulher, Juliana de Melo, sua prima, filha de José de Melo, irmão de sua mãe, mas com Antónia Micaela da Cunha. Esta senhora era filha de Tomás Bação e Catarina da Cunha, e sobrinha do inquisidor Francisco Cardoso de Torneo, bispo eleito de Portalegre, que estivera em visitação na Madeira em 1618, no tempo do governador Pedro da Silva (c. 1580-1639) (Inquisição). Essa situação deve ter levado o zeloso cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) a abster-se sobre esse assunto, limitando as suas informações a referir que no Funchal, em 1654, tinha nascido Troilo Vasconcelos da Cunha (1654-1729) (Cunha, Troilo Vasconcelos da), depois funcionário superior da Junta dos Três Estados e autor de várias composições poéticas. A atuação do novo governador Bartolomeu Vasconcelos da Cunha foi excecionalmente discreta, não havendo especiais problemas com os provedores da Fazenda nem com os juízes de fora do Funchal, ou com os corregedores, como ocorrera com os seus antecessores. Até então esses desentendimentos eram frequentes e continuaram, colocando de sobressalto as populações. O relacionamento estreito, no entanto, até porque não usual, também era de desconfiar. O mercador Diogo Fernandes Branco (filho) (c. 1636-1683), então a residir em Lisboa, foi prontamente informado das relações de Bartolomeu Vasconcelos com o ouvidor da capitania do Funchal António Ferreira Pinheiro, comunicando-lhe o gerente da sua casa comercial, em carta de 12 de dezembro de 1651, que o novo governador nada fazia nem despachava sem o conselho do ouvidor “e por ele se governa” (VIEIRA, 1996, 233), insinuando assim proceder por advertência do conde-capitão. A casa dos Condes da Calheta era então gerida pelo 4.º conde, João Gonçalves da Câmara V (1590-1656), que se casou duas vezes, dado a primeira mulher ter falecido de parto. Do segundo casamento teve uma filha, Mariana de Lencastre Vasconcelos e Câmara (c. 1610-1698), que se casou com o primo, João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658), 2.º conde de Castelo Melhor, sendo possível que nesta data já houvesse uma certa ligação destas duas casas senhoriais a tudo o que dissesse respeito ao Funchal, até pela instituição da Companhia Geral do Comércio do Brasil, tendo o 2.º conde, pelo menos em outubro de 1649, ancorado no Funchal, a caminho do Brasil. Com o aumento de movimento no porto do Funchal, principalmente devido às relações preferenciais com o Brasil, data do início da vigência do governador Bartolomeu Vasconcelos da Cunha o recomeço das complexas obras de fortificação do ilhéu Grande do porto do Funchal. O pedido foi enviado para Lisboa pelo provedor da Fazenda do Funchal, com data de 5 de outubro de 1651, citando que os moradores da Ilha tinham pedido ao governador, aquando da sua chegada, que o mesmo requeresse ao Rei que se fizesse uma fortaleza no ilhéu “que está junto neste porto, para segurança do mar e embarcações que nele estão cada hora” (ANTT, JPRFF, liv. 396, fl. 7v). O provedor especifica que lhe parecia “obra muito necessária, porque com o dito reduto feito no dito Ilhéu, nos não cometerão os piratas tantas vezes, como o fazem, acanhoando os que no Porto estão, de que recebiam perda & da terra os não podiam defender em nada, por estar distante a artilharia”. Acrescenta ainda que o gasto na obra seria mínimo para a fazenda, dado ser do “donativo, que os moradores desta Ilha em si puseram para reparo & guarda dela” (Id., Ibid.). O governador também escreveu para Lisboa no mês seguinte e a resposta veio pouco tempo depois, com data de 10 de fevereiro do ano seguinte e dirigida ao mesmo. Cita então que se tinha visto a carta de 6 de novembro, em que se transmitia o pedido dos “moradores da dita ilha, oficiais da Câmara, nobreza, militares e eclesiásticos” (ARM, Ibid.; RG, t. 6, fls. 116v-117) e se tinha visto também a planta enviada. Em face das informações enviadas pelo governador e pelo provedor, de que nos trabalhos se recorreria ao pessoal das companhias de ordenanças: “vos valeríeis da gente da terra, por companhias, ou esquadras” e “que para a alvenaria os ditos moradores se ajustariam convosco, de sorte que acudiriam à obra com as pessoas e fazendas”, o Rei autorizou o início da construção. Pedia, no entanto, para ser informado das necessidades de artilharia e alvitra a deslocação de pessoal da “outra fortaleza que hoje há”, ou seja, S. Lourenço, tal como se fazia na barra de Lisboa com as fortalezas de S. Julião da Barra e de S. Lourenço da Cabeça Seca, o Bugio, “para se escusarem outros soldados e despesas” (Id., Ibid.). Os primeiros trabalhos na área datavam da época do governador D. João de Menezes (c. 1600-1649), entre 1634 e 1636, mas a inscrição que Bartolomeu Vasconcelos da Cunha mandou colocar sobre a pequena porta superior refere que foi feita no tempo do seu governo e da primeira pedra. Claro que não foi e nem foi acabada, como prova o mapa do engenheiro Bartolomeu João (c. 1590-1658), num desenho muito rudimentar e que pouco tem que ver com a fortaleza que conhecemos hoje, totalmente reconstruída mais de 100 anos depois, pelo engenheiro Francisco de Alincourt (1733-1816). Fortaleza do Ilhéu. 1654. Arquivo Rui Carita. Ao longo do seu governo, Bartolomeu Vasconcelos da Cunha consolidou a organização da companhia do presídio da fortaleza e foi preenchendo os lugares de chefia militar que foram vagando. Em 1653, ou pouco antes, tinha falecido Martim Mendes de Vasconcelos, que exercera o lugar de governador do Porto Santo ao longo de 33 anos, família na qual o governador colocava os seus ancestrais. Foi nomeado para o lugar o capitão Roque Ferreira de Vasconcelos, até então capitão entretenido, com alvará régio de 8 de julho de 1641. Fez juramento e menagem do cargo a 2 de maio de 1653, perante o governador da Madeira. O governador, no entanto, não concordara com a nomeação, informando o Rei de que, se a escolha dependesse da sua vontade, recairia sobre Jorge Moniz de Meneses. Reconhecia ao recém-nomeado “qualidades e partes” (ANTT, Conselho de Guerra, consultas, mç. 14, doc. 66), mas considerava um grave impedimento a sua avançada idade. Sepultuta do licenciado Bento de Matos Coutinho. Arquivo Rui Carita Em 1652 houve protesto dos artilheiros, que eram auditados, desde o alvará de 30 de maio de 1648, pelo juiz de fora do Funchal, função anteriormente exercida pelo auditor de guerra e pelo licenciado Bento de Matos Coutinho (c. 1595-1651), cargo então extinto pelo Conselho da Fazenda. A pedido dos mesmos artilheiros, D. João IV escreveu ao governador, a 22 de dezembro de 1652, para que o lugar voltasse a ser instalado. Contudo, 40 anos depois, ouvidos dois dos governadores, voltava-se a desobrigar Manuel Maciel de Afonseca do cargo de auditor-geral da gente de guerra do presídio e as funções regressavam ao juiz de fora do Funchal. O governo de Bartolomeu Vasconcelos da Cunha ficou marcado pela execução do mapa da Madeira de Bartolomeu João: “Descrição da Ilha da Madeira, cidade do Funchal, lugares, ribeiras, portos e enceadas, e mais secretos; feita por Bartolomeu João, engenheiro dela em tempo do governador, capitão desta ilha no ano de 1654”, que o investigador Paul Alexander Zino (1916-2004) localizou em Londres, em 1940, à venda na casa de Francis Edward Lda. O assunto foi comunicado ao Arquivo Histórico-Militar de Lisboa mas, não se conseguindo a verba necessária para a sua aquisição, a carta foi adquirida pelo investigador madeirense, regressando ao Funchal, de onde teria sido levada pelo coronel William Henry Clinton (1769-1846), na primeira ocupação britânica de 1801-1802 (Ocupações britânicas). Carta de Bartolomeu João. 1654. Arquivo Rui Carita A referência que temos a uma carta deste género executada por Bartolomeu João é anterior a 1654 e mandou-a executar o governador Nuno Pereira Freire (c. 1590-c. 1650), em outubro de 1642, para ser enviada ao Rei (Cartografia). Por certo, o mestre das obras deve ter ficado com elementos para executar outra carta para o novo governador, a qual, muito provavelmente, teria sido novamente enviada ao Rei, mas ficando um exemplar em S. Lourenço, de que há referência ali se encontrar em 1799. Sendo a carta de Bartolomeu João proveniente da biblioteca da abadia de Welbeck, dos duques de Newcastle, a cuja família pertencia o coronel Clinton, este teria levado a carta na sua bagagem de regresso a Londres, oferecendo-a depois a seu primo duque. Esta carta é essencial para o estudo da arquitetura militar da Madeira e não só, sendo um dos mais importantes e completos documentos iconográficos, somente com paralelo, mas bastante tempo depois, na grande vista do Funchal de Thomas Hearne (1744-1817), datada de 1772. A 6 de dezembro de 1653, faleceu em Lisboa o príncipe herdeiro, D. Teodósio (1634-1653), somente com 19 anos, mas que se havia já imposto como herdeiro do trono, recebendo o título de 9.º duque de Bragança e depois o de príncipe do Brasil, pelo que parte da correspondência para o Funchal sobre o donativo para as levas para ali recrutadas já era assinada pelo príncipe. O seu falecimento abriu uma crise política, com consequências futuras ainda mais graves, pois se a sua educação tinha sido preparada cuidadosamente, tendo sido seu mestre o P.e António Vieira (1608-1697), tinha-se descuidado francamente a educação do segundo filho, o infante D. Afonso (1643-1683). Para o governador da Madeira também teria sido uma grave contrariedade, pois era moço-fidalgo do paço o seu filho mais velho, Francisco de Vasconcelos da Cunha (c. 1630-1662), que com o falecimento do príncipe, “desenganado das bem fundadas esperanças que tinha deste grande Príncipe, ou por superior vocação, deixou os morgados e as comendas de seu pai e avô, em que havia de suceder por mercê já feita e se recolheu à Religião da Companhia de Jesus” (COSTA, III, 1712, Ibid., 555), onde viria a falecer. Com a morte do infante D. Teodósio foram marcadas as cortes para juramento do novo herdeiro, aproveitando-se o ensejo para a reunião do capítulo geral da Ordem de Cristo, em Tomar e em setembro desse ano de 1653. No entanto, até pela doença de D. João IV, e à semelhança do que acontecera antes, as cortes acabam por se reunir em Lisboa, com o clero em S. Domingos, a nobreza em S. Roque (junto dos Jesuítas) e o terceiro estado em S. Francisco (como era lógico, junto dos franciscanos). Foi nestas cortes que apareceram os primeiros pedidos dos Açores e da Madeira para se fazerem representar em cortes, na primeira fila, o que não deixa de ser um pedido estranho. Aliás, os procuradores da cidade de Angra às cortes de 1653 chegam a pedir ao Rei que, para o arquipélago dos Açores, nunca houvesse vice-Rei nem governador nas várias ilhas. A questão tinha por base pedidos anteriores, logo a seguir à aclamação, mas que só foram a despacho nove anos depois, uma vez analisada pelo desembargador Tomé Pinheiro da Veiga (1570-1656), “procurador da minha Coroa” (ABM, Ibid., fl. 118v), tendo a resposta afirmativa chegado com data de 6 de julho de 1654. As câmaras do Funchal e das vilas, todas em situação difícil, não encontraram, no entanto, uma maneira de conseguir receita para manter um procurador às cortes, nem atinaram com pessoa que pudesse, à sua própria custa, desempenhar o cargo honroso de figurar na primeira bancada. Nos inícios de 1655 foi apresentado novo governador para a Madeira, então Pedro da Silva da Cunha (c. 1610-c. 1670), que tomou posse a 22 de abril desse ano, regressando Bartolomeu Vasconcelos da Cunha a Lisboa. No entanto, o ex-governador foi preso, “tanto que chegou”, como escreveu António Carvalho da Costa (1650-1715), “até aparecer a dita D. Antónia no convento de Santana, onde faleceu” (COSTA, Ibid., 556). A situação, no entanto, não afetou a carreira política e militar de Bartolomeu Vasconcelos da Cunha, que passou no ano seguinte à Índia, como capitão-mor das naus, mas que, passando por Angola, entre os meados de 1653 e outubro de 1654, foi aí governador interino, sendo depois general de Mormugão, Terras de Salsete, Bardes e fortaleza da Ganda, na barra de Goa, e depois de ocupar estes postos se perdeu no mar, vindo para o reino no ano de 1663. Da sua ligação com Antónia Micaela da Cunha teve Bartolomeu Vasconcelos da Cunha: Maria de Vasconcelos, que morreu religiosa no Convento de Santana em Lisboa, para onde entrara com a mãe; Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, religioso da Santíssima Trindade, em Lisboa, aonde se recolhera depois de ocupar vários postos de guerra, “deixando as esperanças de outros maiores” (Id., Ibid., 556), para que estava apontado, e que ainda era vivo em 1712; o poeta Troilo de Vasconcelos da Cunha, nascido no Funchal, como acima escrevemos, que se casou com Mónica da Silva Coutinho, cujo pai era o alemão João Herve, e a mãe Mariana da Silva Coutinho, mas cuja descendência entrou toda para ordens religiosas; e Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, por certo também nascido no Funchal, que em 1712 era “moço-fidalgo da Casa de Sua Majestade, como o foram seus pais e avós, aos quais imitando, serve a el-Rei na guerra” (Id., Ibid.). A mulher do antigo governador da Madeira, Juliana de Melo, deve ter falecido quando o marido estava no Funchal, pois este Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha teve alvará de moço-fidalgo com data de 15 de setembro de 1657, sendo então dado como “filho natural” (TORRES, 1840, 303). O pai, tal como o filho Troilo Vasconcelos da Cunha, cultivou largamente a heráldica e a genealogia, havendo na biblioteca do último uma coleção interessante de trabalhos sobre os Vasconcelos, onde se encontra, inclusive, um que foi impresso em Madrid, em 1646, a “favor de Bartolomeu de Vasconcelos” (Id., Ibid., 4), o que não deixa de ser interessante, pois tanto Francisco como o filho, depois governador da Madeira, tinham optado, logo em 1640 ou em 1641, pelo apoio à realeza de D. João IV. Rui Carita (atualizado a 03.03.2017)