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conselho do distrito

O Conselho do Distrito foi o mais importante órgão do governo da Ilha no Liberalismo, funcionando sob a presidência do governador civil. Dadas as constantes alterações políticas deste século, saindo o governador da Ilha, um dos seus membros ocupou esse lugar como governador interino. A primeira forma deste conselho foi o de Concelho da Prefeitura, criado pelo decreto de 6 de maio de 1832, passando, com o código administrativo de 31 de dezembro de 1836, a Conselho do Distrito. Era presidido pelo governo do distrito e composto por quatro vogais, o secretário-geral do distrito e três procuradores da Ilha, eleitos pela Junta Geral. Foi extinto pelo código administrativo de 17 de julho de 1886, que privilegiou as funções da Junta Geral. Palavras-chave: Administração-Geral; Governo Civil; Junta Geral; partidos políticos; Prefeitura; Liberalismo O Conselho do Distrito foi o mais importante órgão do governo da Ilha no Liberalismo, funcionando sob a presidência do governador civil. (Governo civil) Dadas as constantes alterações políticas deste século, saindo o governador da Ilha, foi um dos seus membros a ocupar esse lugar, como governador interino. A primeira forma deste conselho foi a de Conselho da Prefeitura, pois que a designação de governador civil fora, inicialmente, a de prefeito, tendo sido criado pelo decreto de 6 de maio de 1832; mas não há informação de ter sido montado com o prefeito e coronel de engenharia Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1847). O código administrativo de Passos Manuel, do ministro Manuel da Silva Passos (1801-1862), de 31 de dezembro de 1836, criou o Conselho de Distrito, fazendo desaparecer o anterior Conselho da Prefeitura. Este Conselho, também designado por Junta de Governo do Distrito, era composto por quatro vogais, três dos quais procuradores da Ilha, eleitos pela Junta Geral (Junta Geral), sendo presidido pelo governador civil e secretariado pelo secretário-geral do distrito; este assumia, inicialmente, a função de governador interino na ausência do efetivo, função que foi desempenhada, ao longo da segunda metade do século, pelo vogal mais antigo, principalmente quando os chefes dos partidos políticos locais começaram a conhecer uma certa importância e representatividade. A Junta de Governo do Distrito ou Conselho do Distrito reuniu, pela primeira vez, ainda no palácio de S. Pedro, do conde de Carvalhal (1778-1837), a 18 de janeiro de 1836. Os seus primeiros membros foram, assim, Carvalhal, na presidência, e, na capacidade de vogal, João Agostinho Jervis de Atouguia, secretário-geral do distrito, Filipe Joaquim Acciauoli e Domingos Olavo Correia de Azevedo (1799-1855). O secretário foi, então, João Nepomuceno de Oliveira (1783-1846), oficial maior da secretaria do governo civil. Em maio, na primeira reunião em que participou o administrador-geral  António Gambôa e Liz (1778-1870), depois barão de Arruda (Liz, António Gamboa de), estiveram presentes Filipe Acciauoli, Olavo Correia de Azevedo, José Joaquim de Freitas e Abreu e Jervis de Atouguia, que aqui já aparece como secretário desse conselho. Com a institucionalização da Junta Geral, seriam eleitos três membros efetivos, que na reunião de 29 de julho desse ano foram Jerónimo Pinheiro, António Joaquim Jardim e Aires de Ornelas e Vasconcelos (1779-1852), tendo sido eleitos, como substitutos, Manuel Joaquim Moniz e Valentim de Freitas Leal. Nos meados do século, os vogais do conselho venciam de gratificação anual 240$000 réis, pagos pelo cofre do distrito. O Conselho do Distrito passou a funcionar no Palácio de S. Lourenço, onde ocupava duas salas. Alguns governadores, como José Silvestre Ribeiro (1807-1891), apoiaram-se neste Conselho, entre outras ações, e.g., na tentativa de levar avante a construção de um teatro no Funchal; o mesmo fez o governador D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878) (Leme, D. João Frederico da Câmara), quando o vogal mais antigo era o visconde de S. João, Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875). No entanto, a partir do momento em que neste Conselho passaram a ter assento os principais líderes partidários, o mesmo funcionou como palco de disputa de poder, como ocorreu, especialmente, com o visconde do Canavial (1829-1902). Tal levou, inclusivamente à nomeação, pelo Governo de Lisboa, de governadores civis substitutos e, mais tarde, com o aumento das competências da Junta Geral, à extinção deste Conselho, pelo código administrativo de 17 de julho de 1886.   Rui Carita (atualizado a 28.02.2017)

Direito e Política História Política e Institucional

beatriz, dona

A duquesa D. Beatriz exerceu ao longo da sua vida uma intensa atividade política, por vezes pouco avaliada, intervindo na direção da Ordem de Cristo, de que foi por largo tempo administradora, muito provavelmente ainda no tempo do infante D. Fernando e, decididamente, após o falecimento do mesmo, em 1470. Posteriormente, como tia da Rainha de Castela, Isabel, a Católica (1451-1504), e como sogra do Rei D. João II (1455-1495), desempenhou um papel determinante na aproximação das coroas de Portugal, Castela e Aragão, mas, na sequência dos acontecimentos, viria a perder o genro e, depois, o filho mais velho. O projeto acordado com a sobrinha, no entanto, manter-se-ia e, com uma determinação notável e, por certo, com o apoio da filha, a Rainha D. Leonor (1458-1525), colocaria depois no trono de Portugal o filho mais novo D. Manuel (1469-1521) (D. Manuel, Rei). D. Beatriz era filha do infante D. João (1400-1442), mestre da Ordem de Santiago e 3.º condestável de Portugal, e de sua meia sobrinha D. Isabel de Barcelos (1402-1465), tendo nascido provavelmente em Barcelos ou em Alcácer do Sal, por volta de 1420. Educada entre a administração da Ordem de Santiago e a casa de Barcelos, D. Beatriz veio a casar-se, em 1447, com seu primo D. Fernando (1433-1470), duque de Viseu (Fernando, D., infante) e filho do Rei D. Duarte (1391-1438), tendo o casal tido nove filhos, dos quais somente cinco chegaram à idade adulta: D. João de Viseu (1448-1472), falecido sem descendência; D. Diogo de Viseu (1451-1484), depois assassinado por seu primo e cunhado D. João II, em 1484, dado que, no mínimo, mantinha contactos com a corte de Castela e Aragão; a Rainha D. Leonor, mulher de D. João II; D. Isabel de Viseu (1459-1521), depois duquesa de Bragança, tendo o marido, entretanto, sido sentenciado em Évora, a 21 de junho de 1483; e o Rei D. Manuel. O irmão mais velho de D. Beatriz, D. Diogo (1425-1443), faleceu prematuramente e a irmã D. Isabel (1428-1496) casou-se com João II de Castela (1405-1454), sendo mãe de Isabel, a Católica. Não se encontra especialmente estudada a influência do infante D. João dentro da dinastia de Avis, apagada pela quase omnipotência e presença de seu irmão D. Henrique (1394-1460), a quem quase sempre se opôs e por quem, também quase sempre, foi derrotado. Foi Mestre da Ordem de Santiago e 3.º condestável do reino, sucedendo a D. Nuno Álvares Pereira (1360-1431), e, quando lhe foi pedido, por seu irmão D. Duarte, o parecer sobre as guerras do Norte de África, votou contra a infeliz empresa de Tânger, com sólidas razões de prudência, e perdeu. Consumado o desastre e reunidas as cortes de Leiria, para tratar do resgate do infante D. Fernando (1402-1443), votou pelo seu resgate a qualquer preço, mesmo à custa da entrega da praça de Ceuta e foi igualmente vencido, não conseguindo salvar o irmão. Não espanta assim que, nas questões da menoridade de D. Afonso V (1432-1481), tomasse o partido do infante D. Pedro (1392-1449), o que não deve ter deixado de, uma vez mais, reacender as suas desinteligências com D. Henrique. Tomando em consideração as possessões da Ordem de Santiago, maioritariamente na orla costeira, perante as da Ordem de Cristo, essencialmente interiores e rurais, ressalta de imediato uma maior vocação de Santiago para a futura expansão; no entanto, D. Henrique iria desmentir essa hipotética vocação. Mais tarde, foi a filha do infante D. João, a duquesa D. Beatriz, que concretizou com vontade férrea a vocação expansionista marítima da Ordem de Cristo na época de D. Afonso V, o qual se encontrava muito mais virado para a ocupação do Norte de África, e, depois, do próprio país, colocando à sua frente o filho, o futuro Rei D. Manuel. A infanta D. Beatriz, título que logo usou após a morte do marido, teve a tutoria oficial dos filhos por delegação e mercê de D. Afonso V, em carta datada de Lisboa, de 10 de outubro de 1470. O papa Sisto IV (1414-1484) outorgou-lhe essa tutoria oficialmente, e a governação da Ordem de Cristo pelo breve Super caríssimo, de 19 de junho de 1475, que dirigiu à duquesa. O Rei comunicou para a Madeira, de Alenquer, a 16 de outubro de 1470, que como fizera mercê da “Ilha de juro e herdade” ao irmão, com o seu falecimento, “a infanta, minha muito prezada irmã”, iria mandar tomar posse da Ilha através de Gonçalo Godinho, “seu cavaleiro”, em nome de D. João, seu filho, “duque de Viseu e de Beja, senhor da Covilhã e de Moura, meu muito amado sobrinho” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, RG, t. 1, fl. 3). A 18 de outubro seguinte, também a infanta, em carta enviada de Setúbal, dava conhecimento do envio de Gonçalo Godinho para a tomada de posse, para tal munido de um seu regimento. A administração da infanta e duquesa cedo se fez sentir. A 27 de junho de 1471, pretendendo a Câmara do Funchal eleger novos vereadores, solicitou a opinião de D. Beatriz sobre a constituição das futuras listas e quais “os que se lançavam fora da Câmara e dos que são escusos por alvarás” (COSTA, 1995, 19). A situação conheceu alguma crispação no Funchal ao longo de dezembro, com o pedido de pareceres a alguns dos notáveis locais, como os genros de Zarco (c. 1390-1471), recentemente falecido, Martim Mendes de Vasconcelos e Diogo Afonso de Aguiar, mas também a Diogo de Teive, Mendo Afonso, João Afonso Mealheiro, João Gomes, o Trovador e, inclusivamente, ao 2.º filho de Zarco, Rui Gonçalves da Câmara (1430-1497), depois capitão da ilha de S. Miguel, nos Açores. A 1 de novembro, entretanto, já tinha ordenado D. Beatriz, através de carta trazida depois de Lisboa por Álvaro Eanes, escudeiro do duque D. Diogo, que todos os chamados homens bons servissem nos pelouros de oficiais dos concelhos, anulando quaisquer alvarás anteriores que eventualmente possuíssem. Do encargo, apenas se escusava o contador Diogo Afonso. A carta da infanta foi presente à vereação realizada a 31 de janeiro do ano seguinte de 1472, à qual, para além do capitão João Gonçalves da Câmara (1414-1501) (Câmara, João Gonçalves da), assistiram seus irmãos, os fidalgos Rodrigo Gonçalves e Garcia Rodrigues, bem como Diogo de Teive, Rodrigo Lopes, Pero Lourenço, Mendo Afonso, Pero Álvares, escudeiros, Gonçalo Anes, escrivão, João Preto, escrivão, Afonso Lopes, tabelião, João do Porto, sapateiro, Antão Gonçalves, João do Porto, barbeiro, Pero Gonçalves, Gonçalo Jara, João de Sintra, sapateiros, e muitos outros, levantando-se vários protestos, dado cancelarem-se privilégios considerados adquiridos. A voz do escudeiro Rui Lopes, que detinha um alvará emitido pelo infante D. Fernando e confirmado pela duquesa, conforme referiu, expressava a indignação sentida pelos atingidos, como Mendo Afonso, que invocou também possuir um alvará emitido pelo infante D. Henrique, confirmado posteriormente pelos infantes D. Fernando e D. Beatriz. Rui Lopes acusou então Álvaro Eanes, embora citando-o como seu amigo, de não ter defendido os seus interesses, como era seu dever, trazendo para a ilha uma decisão contida numa “carta de mulher” (Id., Ibid., 29). Na vereação de 3 de fevereiro o assunto voltaria à discussão, e Rui Lopes, fora de si, esgrimiu ainda outras razões, essas pessoais, pois que vindo a ser eleito para qualquer dos lugares camarários, como obrigado, “nunca havia de servir bem em nenhuma cousa” (Id., Ibid., 31). Acrescente-se que, em vida de D. Fernando, o concelho já se havia queixado relativamente aos pedidos de escusa, tendo o infante respondido nos seus apontamentos de 7 de novembro de 1466 que “os alvarás que tenho dado são tão poucos que os não entendo brigar em nenhuma maneira” (MELO, 1972, 36-37). Tinha faltado assim alguma coragem ao infante, em 1466, que sobrou à sua viúva, em 1471. O conflito acabou por ser dirimido, em consonância com as disposições da duquesa, e, em sessão realizada a 5 de fevereiro, a convocatória seguinte a todos os homens bons do Funchal já previa uma multa de 5$000 reais a quem se não apresentasse. Os recalcitrantes haviam sido derrotados pela sombra da duquesa. Pouco depois, em finais desse mês de janeiro, tendo conhecimento de que o bispo de Tânger, D. Nuno de Aguiar, em princípio natural da Madeira, tentava integrar a Ilha na sua diocese e, inclusivamente, visitar canonicamente a mesma, a infanta, em coordenação com o vigário de Tomar, sede da Ordem Cristo, opôs-se terminantemente. Esse monge cisterciense acompanhara D. Afonso V às jornadas de África, tendo estado presente nas tomadas de Arzila e Tânger, vindo assim a ser apresentado como bispo dessa nova diocese em 1468. Não havendo limites perfeitamente definidos, o novo bispo tentou englobar na sua diocese a população das ilhas atlânticas portuguesas, assunto que, de imediato, requereu para Roma, sendo atendido pelo Papa Paulo II (1417-1471), por breve de 28 de fevereiro de 1468. A posição de D. Nuno de Aguiar era de certa forma lógica, quer pela posição geográfica da nova Diocese, quer pelo povoamento dos arquipélagos atlânticos, feito na sequência da conquista de Ceuta. Por outro lado, havia ainda que considerar o papel das ilhas em relação a todo o Norte de África, verdadeiro teatro de operações, especialmente da Madeira, onde quase todos os mancebos, principalmente nobres, iam cumprir, passe a expressão, o serviço militar. Assim, existindo já a Diocese de Ceuta correspondente ao território marroquino mediterrâneo, ao criar-se uma nova diocese portuguesa para o território atlântico, a mesma deveria logicamente englobar as novas ilhas aí povoadas pelos portugueses. A petição do bispo de Tânger era, no entanto, entendida pela Ordem de Cristo como invalidada pelas doações conseguidas pelo infante D. Henrique (Organização eclesiástica), não se tendo tomado, de imediato, quaisquer providências de que se saiba. Mas a situação viria a alterar-se em 1472, quando o bispo resolveu visitar a Madeira. Assim, a infanta D. Beatriz, como tutora de seu filho D. João e, portanto, como administradora da Ordem de Cristo, opôs-se à visita do prelado que se intitulava “bispo das ilhas”, enviando carta aos capitães “e a todos os juízes e justiças oficiais”, ordenando “que não deixem entrar em esta ilha nenhum bispo”, “nem alguma outra pessoa” por sua licença ou representação (Id., Ibid., 58-60). Esta ordem tem a data de 21 de janeiro de 1472 e acompanhava uma outra do vigário de Tomar, o “Dom Prior e Comendador mor de Requerimento”, então frei Pedro Vaz, em que recomendava “que não usurpe ninguém a Jurisdição Espiritual destas ilhas”, carta enviada também à Câmara Municipal do Funchal, tendo estado ambas presentes na vereação de 2 de junho desse ano. A carta em nome do prior de Tomar exorta mesmo a população a que não se agaste, pois “cedo, com o favor divino, esperava el-Rei, nosso Senhor, criar bispo da mesma Ordem na ilha” (Id., Ibid.). No final desse ano, falecendo o duque D. João, envia a infanta à Ilha o seu contador Diogo Afonso para tomar posse da mesma em nome do novo duque D. Diogo. A partir de então, a administração da Ilha seria acompanhada com a presença de um contador, Luís de Atouguia, que se manteria depois, inclusivamente com o duque D. Manuel. A infanta interfere, entretanto, nos mais diversos campos, quando, por exemplo, os moradores acusavam os estrangeiros vindos do continente de prejudicar o comércio, solicitando a sua expulsão: uma posição que encontrara eco durante a gestão de D. Fernando. Não foi essa a posição da duquesa, que entendeu que a economia da Ilha se iria ressentir e assim o fez saber, através de carta datada de Beja, a 15 de março de 1473, recomendando “alguma temperança, que seja para bem da terra e a eles de não tanto agravo”. Face à situação, informa ainda que iria enviar o contador Luís de Atouguia, que fora guarda-roupa do infante, para superintender ao assunto, o que haveria de fazer dois meses depois, com “carta de crença” de 23 de maio e como contador do duque seu filho na ilha da Madeira (Id., Ibid., 67-69). Os anos seguintes foram de guerra com Castela, cujas armadas chegam a assediar a Madeira, para o que as gentes da Ilha se apressaram a apoiar as armadas montadas por D. Afonso V, esforço que o Rei agradece a 7 de agosto de 1473. Nessa sequência, viriam os moradores a solicitar a D. Beatriz a construção de uma fortaleza, uma pretensão a que a duquesa, em carta datada de Bragança, de 20 de fevereiro de 1476, se escusa por ir onerar a sua Fazenda, ao momento sobrecarregada com outras despesas (Defesa). A altura não podia ser pior, pois o infante D. João de Portugal casara-se, em 1471, com D. Leonor, filha da infanta, e tivera um filho em 1475, como a jovem princesa comunicou à ilha da Madeira. O Rei D. Afonso V, entretanto, entregara a regência ao futuro D. João II e invadira Castela para defender as pretensões ao trono de sua sobrinha D. Joana (1462-1530), a Beltraneja, e, em janeiro de 1476, o futuro D. João II entregara, por sua vez, a regência à jovem mulher e invadira igualmente Castela em apoio do pai, ocorrendo a desastrosa batalha de Toro a 2 de março desse ano. Por essa razão se encontrava a infanta D. Beatriz, mãe da Rainha regente, com a mesma em Bragança, pelo que a situação era muito delicada para decidir assuntos sobre obras de fortificação na Madeira. A dimensão política da infanta D. Beatriz à época é revelada na sua presença no conselho régio, reunido no Porto, em agosto desse ano de 1476, nas vésperas da partida de D. Afonso V para França, em busca do auxílio de Luís XI (1423-1483), tentando reverter o desastre de Toro, sendo a única figura feminina presente. Era a primeira guerra luso-castelhana depois do início dos Descobrimentos e logo as novas áreas sob a influência portuguesa foram envolvidas no conflito. A Rainha Isabel de Castela pretendia retomar a política de seu pai, o Rei João II (1406-1454), que sempre se opusera ao avanço das caravelas portuguesas ao longo da costa da Guiné, ao contrário de seu irmão Henrique IV (1454-1474), que nunca se interessara especialmente pelo assunto. Por isso, várias armadas castelhanas foram enviadas à Guiné, na tentativa de controlar a região da Mina. Os navios castelhanos atacaram pelo menos as ilhas de Porto Santo e de Santiago, em Cabo Verde (Cabo Verde). O interesse de Isabel pelo Atlântico colocava em causa os domínios da Ordem de Cristo, pelo que, no campo das moedas de troca, quando a diplomacia fosse chamada a sarar as feridas da guerra, teria na administradora daquela Ordem uma das primeiras interessadas. A guerra luso-castelhana foi decisiva para a recomposição do mapa político peninsular, unindo as coroas de Castela e de Aragão, pois Isabel, a Católica, era casada com Fernando de Aragão (1452-1516); quando o conflito caiu num impasse, com a abdicação de D. Afonso V, em 1477, embora só efetiva alguns anos depois e sendo o governo partilhado com o futuro D. João II, foi D. Beatriz quem representou Portugal no encontro que veio a decidir os termos da paz entre os reinos ibéricos. A Rainha Isabel de Castela era filha da homónima D. Isabel, irmã de D. Beatriz, o que as colocou numa posição de maior proximidade pessoal para tentarem resolver o conflito. Em meados de março de 1479, D. Beatriz, seguida por um pequeníssimo séquito, cruzou a fronteira luso-castelhana em Segura e dirigiu-se para Alcântara, onde era esperada pela sobrinha, em situação idêntica, numa povoação próxima da fronteira portuguesa, sem ter um exército a protegê-la. As conversações duraram cerca de uma semana e no final conseguiu-se um acordo, que é conhecido nos seus termos gerais: Portugal reconhecia a realeza de Isabel e comprometia-se a impedir que Joana, a Beltraneja, continuasse a ser pretendente ao trono castelhano; Castela ficava com o direito de conquistar o arquipélago das Canárias, mas reconhecia o direito de Portugal sobre os arquipélagos dos Açores, da Madeira e de Cabo Verde, tal como sobre a costa da Guiné a partir do paralelo das Canárias. O tratado viria a ser depois assinado em Alcáçovas, a 4 de setembro de 1479, por D. Afonso V e pelo príncipe D. João II, confirmado por Isabel, a Católica, em Trujillo, a 27 do referido mês, e ratificado em Toledo, por Fernando e Isabel, a 6 de março de 1480. Depois, foi D. Beatriz quem reuniu em Moura, nas célebres Terçarias, D. Joana – a Excelente Senhora em Portugal, mas a Beltraneja em Castela – e os infantes de Portugal e de Castela: o seu neto D. Afonso (1475-1491) e a sua sobrinha-neta D. Isabel (1470-1498), confiados à sua guarda e educação. Os infantes eram assim os reféns que ambos os reinos entregavam como penhores da paz; D. Beatriz entregava igualmente um dos seus filhos, alternadamente D. Diogo e D. Manuel, que também permaneceram como reféns em Castela. Em agosto de 1481, era inclusivamente comunicado para a Madeira, em carta expedida de Moura, que algumas questões então levadas pelo procurador Duarte Pestana, dado o duque D. Diogo e também a infanta estarem de partida para Castela, teriam de ser adiadas. A administração da Ordem de Cristo havia-se consolidado decididamente no quadro do Atlântico, reformulando mesmo a inicial divisão das capitanias no arquipélago dos Açores. Durante o governo das ilhas por D. Fernando (1461-1470), a atenção da administração da Ordem de Cristo concentrara-se sobretudo no desenvolvimento económico da ilha da Madeira e no início do povoamento da ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde. D. Beatriz distinguiu-se pela atenção especial que prestou às ilhas dos Açores, tendo promovido a troca do capitão de S. Miguel, que passou a ser Rui Gonçalves da Câmara, 2.º filho de Zarco, que adquiriu a capitania, iniciando uma dinâmica totalmente diferente e tendo dividido a ilha Terceira em duas capitanias. O impulso que veio a imprimir à Madeira também foi notório, pressionando ao cumprimento da justiça, para o que estabeleceu prazos e coimas dos testamentos e resíduos e, muito especialmente, a instituição de postos alfandegários (Alfândega), a fim de as mercadorias carregadas e descarregadas poderem ser realmente avaliadas, controlando todo o movimento dos navios, e para que se pudessem conhecer e arrecadar os respetivos direitos, sedeando-se um posto no Funchal e outro na capitania de Machico. Deve-se também à administração de D. Beatriz a determinação de 25 de junho de 1481, indicando que os procuradores dos mesteres fossem recebidos na Câmara quando fossem requerer, devendo ser “acatados com honra”, tendo-se acrescentado à margem, no registo camarário, que até então “os mesteres não vinham às vereações e requeriam de fora” (Id., Ibid., 114). Dois anos depois, a 21 de dezembro de 1483, seria o duque D. Diogo a determinar a instituição no Funchal da casa dos 24 mesteres “para requererem pelo povo miúdo” (Id., Ibid., 134-135). Um dos principais problemas destes anos, no entanto, foi o pedido de 1.200.000 réis feito à Madeira por D. Afonso V a 17 de agosto de 1478, para as despesas de guerra com Castela, que colocou em polvorosa os moradores. No ano seguinte, a 25 de julho, será o príncipe D. João a insistir na contribuição, então designada como peita e já só de 1.000.000, com o pormenor de a carta se encontrar registada como do “Rei D. João”, embora no texto se referira sempre “a mim e meu filho”, ou seja, D. Afonso V e o futuro D. João II. Os moradores ainda tentaram junto da infanta, que tratam por “Muito alta e muito excelente princesa e muito virtuosa senhora”, escusar-se ao pagamento (Id., Ibid., 96-98); depois foram mesmo procuradores ao reino, a infanta tentou aliviar a contribuição, mas uma grande parte acabou por ser paga. D. Beatriz assistiu depois à execução de seu genro, o duque de Bragança, em 1483, e ao assassinato de seu filho D. Diogo, a 27 de agosto de 1484, que D. João II comunicou à Madeira logo a 28 se agosto, enviando Gil Eanes, cavaleiro, especialmente para explicar o que se passara. A 13 de setembro, já era o duque D. Manuel a assumir a administração do ducado de Beja e Viseu, escrevendo de Setúbal para a Ilha, para que lhe enviassem os assuntos que estivessem pendentes da vigência de sua mãe e do falecido, embora só a 26 de novembro D. João II comunique que “outorgara ao duque, meu muito amado e presado primo”, o que pertencera ao seu falecido irmão (Id., Ibid., 140-141) e só a 10 de janeiro seguinte, de Montemor-o-Novo, escreva a comunicar ter feito mercê das ilhas ao duque de Beja, “meu muito presado e amado primo, o qual temos por filho” (Id., Ibid., 144-145). A partir de então parece ter sido discreta a ação de D. Beatriz, mas apoiando por certo o seu último filho, D. Manuel, na governação. Quando seu neto, o príncipe D. Afonso, morreu de acidente em Santarém, em 1491, D. Beatriz congregou as forças da sua casa com o apoio da filha, D. Leonor, para defender os direitos de D. Manuel à sucessão de D. João II. Viveu os últimos anos da sua vida em regra retirada em Beja, embora saibamos que, por exemplo, no Natal de 1500 estava em Lisboa, tendo participado nos festejos organizados por D. Manuel I, o mesmo acontecendo em 1502. A 6 de junho desse ano, na alcáçova real de São Jorge, em Lisboa, nasceu o príncipe D. João (1502-1557), futuro D. João III, que teve depois como padrinho o doge de Veneza, o célebre Leonardo Loredan (1436-1521), representado pelo seu embaixador em Lisboa e, como madrinhas, sua tia D. Leonor, viúva de D. João II, e sua avó D. Beatriz, duquesa de Beja. Segundo a tradição, teriam sido as rainhas velhas a encomendar o depois célebre Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, da autoria de Gil Vicente, que foi representado pelo próprio, a 7 de junho, uma terça-feira, na câmara da Rainha D. Maria, espetáculo a que assistiu o Rei, as madrinhas e a duquesa viúva D. Leonor de Bragança, para além de outros elementos da corte. D. Beatriz veio a falecer no seu convento de Beja, a 30 de setembro de 1506, onde, já sob sua tutela, se haviam formado 10 anos antes as primeiras freiras que, idas da ilha da Madeira, regressariam depois ao Funchal para fundar o convento de Santa Clara (Convento de Santa Clara).     Rui Carita (atualizado a 22.02.2017)  

História Política e Institucional

tenente-general

Ao longo do séc. XVII, o governador e capitão-general passou a ter um tenente-general como assessor para os assuntos militares, com funções de inspetor, dispondo de um ordenado de 80$000 réis anuais; tratava-se de um cargo honorífico na prática, o qual inicialmente não foi registado na Provedoria da Fazenda. A primeira referência ao posto de tenente-general concerne à nomeação de D. José de Melo Fernando, um dos sobrinhos do bispo D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), por três vezes governador da Madeira; o indigitamento não está datado e aparece seguido do de Nuno de Sousa Mascarenhas, a 6 de maio de 1645. D. José de Melo Fernando deve ter ido para o continente com o seu tio em meados de 1641, e supõe-se que a nomeação seja da primeira metade desse ano; Nuno de Sousa Mascarenhas foi para a Madeira com o Gov. Manuel de Sousa Mascarenhas (Mascarenhas, Manuel de Sousa), de quem era filho, o qual tomara posse do cargo a 11 de março de 1645. O cargo de tenente-general foi sempre contestado na Ilha, tendo prontamente havido queixas contra o Gov. Manuel de Sousa Mascarenhas, demitido cerca de um ano depois de tomar posse: por ocasião do seu despedimento, o despacho do Conselho da Fazenda de 28 de setembro de 1646, recebido pelo provedor Manuel Vieira Cardoso, instava Manuel Mascarenhas e devolver o dinheiro que mandara pagar ao filho, e que este se não “chame mais tenente-general sem mostrar provisão ou patente assinada por Sua Majestade” (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 968, fls. 182v.ss.). O lugar parecia, no entanto, ser necessário, uma vez que estabelecia a ligação do governador (enviado pela corte de Lisboa e sem especial sensibilidade para os problemas regionais) a outras entidades – por exemplo, os militares encarregados de levantar as companhias para os diversos domínios portugueses, como era o caso dos sargentos-mores (Sargento-mor) madeirenses, e os mestres-de-campo do continente. A precisão do cargo torna-se patente quando se considera que a Madeira se tornara especial campo de recrutamento daquelas levas de soldados pelo menos a partir de 1632, quando João de Freitas da Silva (c. 1605-1633) partiu do Funchal rumo ao Brasil com uma companhia de 90 homens e Francisco de Bettencourt de Sá (1602-1643) para ali encaminhou 70 soldados madeirenses (Pernambuco). A 19 de março de 1632, o Rei anuiu à proposta, feita pelo provedor da Fazenda Manuel Dias de Andrada, de enviar um terço (Terços) para o Brasil. Em 1638, Francisco de Bettencourt de Sá, então investido como mestre-de-campo, foi encarregado de levantar, nas ilhas da Madeira e dos Açores, um terço de 1000 homens com rumo à Corunha, o que originou protestos na Madeira. Nos finais de 1645 e inícios de 1646, foi constituído outro terço nas ilhas pelo mestre-de-campo Francisco de Figueiroa; esta unidade militar, composta de 110 soldados, era destinada à Baía, tendo saído do Funchal a 25 de julho de 1646. Em 1650, juntaram-se tropas na Madeira designadas para as fronteiras do Reino; em 1658, para as guerras do Alentejo. A 12 de abril 1660, a pedido da condessa da Calheta e de Castelo Melhor, D. Mariana de Lencastre de Vasconcelos e Câmara (c. 1590-1689) – embora só confirmada como donatária do Funchal a 14 de outubro –, era emitida carta patente de tenente-general da Madeira para Inácio da Câmara Leme (1630-1694). A carta apresenta a declaração expressa de que, se D. Mariana decidisse governar a Ilha, “como lhe pertence”, o tenente-general continuaria no cargo (ABM, Câmara Municipal do Funchal, liv. 474, fl. 154). O tenente-general viria a usufruir de um ordenado de 240$000 réis por ano, importância acrescida de 28$470 réis para palha e cevada. A criação deste posto sofreu a imediata contestação da Câmara do Funchal, dado que seria o tenente-general a assegurar o governo militar da cidade, para além de que o seu ordenado sairia da percentagem da renda da imposição aplicada às fortificações, entendendo a Câmara a verba como sua (o montante deveria servir nomeadamente para as obras das muralhas das ribeiras) (Defesa). O tenente-general substituiria o governador na sua ausência. Durante 12 anos, nos governos de Diogo de Mendonça Furtado (Furtado, Diogo de Mendonça), de D. Francisco de Mascarenhas (Mascarenhas, D. Francisco de) e de Aires de Saldanha de Sousa Meneses (Meneses, Aires de Saldanha de Sousa) parecem não ter ocorrido situações especialmente problemáticas, inclusivamente em 1668, quando uma sedição depôs o Gov. D. Francisco e nomeou interinamente como governador o morgado Aires de Ornelas e Vasconcelos (1620-1689). No entanto, o Gov. João de Saldanha de Albuquerque (Albuquerque, João de Saldanha de) viria a opor-se à existência do cargo de tenente-general após a sua tomada de posse a 20 de outubro de 1672. Deste modo, suspendeu Inácio da Câmara Leme, retirou-lhe o ordenado e deteve-o na fortaleza do Pico durante oito meses. O tenente-general recebeu uma sentença que lhe era favorável e foi novamente empossado; tinha, além disso, boas relações com a corte de Lisboa. Todavia, o conflito entre governador e tenente-general manteve-se: quando, por poucos dias, deixou a cidade, o governador preferiu que o bispo o substituísse, o que suscitou o protesto de Inácio da Câmara Leme. O assunto foi apresentado ao Conselho de Guerra a 25 de setembro de 1676, tendo este sido informado da queixa de que não “pertencia aos ministros eclesiásticos o governo militar”, o que demonstra tanto os princípios de centralização régia por que se regiam os membros do Conselho, como o seu desconhecimento das especificidades da expansão portuguesa. Os conselheiros recomendaram que o capitão-general fosse advertido de que, quando ausente do Funchal, deveria transferir as suas competências para o tenente-general “por ser o oficial maior de guerra que há naquela Ilha” e por lhe competir “essa proeminência”. As Câmaras Municipais da Madeira, através dos seus procuradores, tinham informado o Conselho de que o bispo do Funchal dava garantias de isenção e de respeito, enquanto o tenente-general, porque “natural da terra”, sendo “parcial e vingativo, inimigo de muitos homens nobres daquela Ilha, a quem com o poder do governo poderá vexar e molestar, de que se seguirão grandes discórdias e novidades”, atuaria contra os propósitos de paz do príncipe regente, o que não convenceu os membros do Conselho (ANTT, Conselho da Guerra, Consultas, cx. 103, mç. 35). O governador seguinte, Alexandre de Moura de Albuquerque (Albuquerque, Alexandre de Moura e), tomou posse a 9 de junho de 1676. Em janeiro de 1677, haveria de receber uma recomendação do príncipe regente no sentido de evitar futuros desentendimentos, pelo que deveria deixar o tenente-general encarregue dos assuntos militares; na mesma data, renovou-se a patente de tenente-general, a qual a Câmara do Funchal só posteriormente haveria de registar. Uma carta régia de 2 de junho de 1681 fixava que o tenente-general receberia uma tença anual de 20$000 réis, estabelecida a partir dos dízimos da renda da Deserta e do Bugio, em recompensa dos seus serviços, designadamente enquanto tenente-general da ilha da Madeira; por carta régia de 30 de abril de 1683, determinava-se ainda que o tenente-general deveria ter à sua porta uma guarda militar. No final de 1683, a Câmara do Funchal, ouvindo em vereação o juiz-de-fora, pediu ao Rei a suspensão do cargo de tenente-general, que o lugar não fosse provido, que o ordenado revertesse para a manutenção dos lázaros e enjeitados da Ilha, conseguindo aprovação da proposta pelo Conselho da Fazenda, com data de 10 de dezembro de 1683. No entanto, o alvará em causa citava que, em caso de necessidade, se poderia prover, “nos sobejos da Alfândega”, o lugar do tenente-general, o que levou a que o mesmo continuasse em funções. O Ten.-Gen. Inácio da Câmara Leme faleceria a 22 de novembro de 1694; a animosidade que, em vida, suscitara contra si levou ao seguinte apontamento do cura Francisco Bettencourt e Sá no livro de óbitos da Sé do Funchal: “faleceu o tenente-general que foi o primeiro e poderá ser o último” (ABM, Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 75, fl. 19v.) – o cura da Sé, porém, enganou-se, pois não fora o primeiro nem seria o último. A 13 de março de 1698 foi passada carta patente de governador da Madeira a D. António Jorge de Melo (c. 1640-1704), mestre-de-campo dos auxiliares de Lisboa. O governador solicitou a alguém da sua confiança “instruções de como se devia portar” “para fazer bem a sua obrigação”, e informações sobre quais os “interesses” envolvidos no lugar (BNP, Reservados, PBA 526, fls. 275-282). As informações recebidas demonstram um profundo conhecimento da Ilha, pelo que se supõe que tenham sido fornecidas pelo desembargador da Casa do Cível e do Conselho do Estado, o Dr. António de Freitas Branco (1639-c. 1700). Segundo essas “instruções”, o governador era assistido por um tenente-general, lugar que, de acordo com a documentação conhecida, não se encontrava preenchido. Data de 17 de março de 1699 a nomeação de Cristóvão de Ornelas de Abreu (1639-1709) como tenente-general, com um soldo de 40$000 réis “pagos pelos rendimentos da fortificação” (BNP, Reservados, cód. 8391, fl. 9); Cristóvão de Ornelas de Abreu era ex-governador da Colónia do Sacramento (posteriormente Uruguai), neto e filho dos sargentos-mores de Machico Jerónimo e João de Ornelas de Abreu (Sargento-mor). O ex-governador da Colónia do Sacramento só estaria esporadicamente na Ilha; por conseguinte, a 30 de julho de 1699, Inácio Bettencourt de Vasconcelos foi nomeado ad honorem, recebendo o soldo de sargento-mor. Cristóvão de Ornelas de Abreu faleceu a 7 de julho de 1709, sendo então nomeado, em carta de 4 de fevereiro de 1710, Inácio Bettencourt de Vasconcelos como tenente-general por D. João V; Inácio Bettencourt de Vasconcelos auferiria de 28$470 réis anuais “para fava e cevada do seu cavalo”, acrescentados ao soldo de 240$000, o que perfaria o vencimento anual de 268$470 réis (BNP, Reservados, cód. 8391, fl. 9). O novo tenente-general seria, no entanto, de idade avançada, o que justifica a carta de nomeação de Francisco Berenguer de Lemilhana (ou Francisco Berenguer de Andrada) a 15 de dezembro de 1716; esta nomeação é confirmada com novo alvará de mantimento, de 3 de junho de 1720, onde é referida a morte de Inácio Bettencourt de Vasconcelos. Ao longo do séc. XVIII, chegaram pontualmente a existir, no governo da Madeira, um coronel e um tenente-coronel com as habituais funções de inspeção: sabe-se, designadamente, de uma carta patente de coronel, passada por Duarte Sodré Pereira (Pereira, Duarte Sodré) a Jorge Correia de Vasconcelos Bettencourt a 10 de abril de 1710, a qual foi confirmada em Lisboa a 16 de novembro de 1712. Em 4 de abril de 1737, idêntica patente foi passada em Lisboa ao Cor. António de Brito Correia, o qual deveria ser pago no Funchal por intermédio de procuradores, algo que se supõe ser indicação de que não se deslocou à Madeira. Ao longo deste século, parece ter havido o posto de “ajudante do tenente-general”; por ocasião da tomada de posse do Cap.-mor Diogo Luís Bettencourt (m. 1771), a 8 de dezembro de 1756 em Machico, motivada “pelo falecimento de Francisco Ferreira Ferro”, faz-se referência ao “serviço de capitão de ordenanças e soldado pago, ajudante de tenente-general”, com um ordenado de 60$000 réis (ABM, Câmara Municipal de Machico, Registo Geral liv. 86, fl. 126; ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 974, fl. 94). O lugar de tenente-general não voltaria a ser preenchido. Contudo, nos finais do séc. XVIII, mais concretamente em 1784, com a possibilidade de esse posto ressurgir no âmbito da reforma das forças de “segunda linha” – os novos terços e as milícias (Milícias, Terços) –, a Câmara do Funchal alegou terem-se “perdido os papéis originais” do decreto de 19 de novembro de 1683, que extinguira o cargo (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 977, fls. 30-31). A reforma das forças militares portuguesas criaria um lugar de brigadeiro – e, depois, de general – na Madeira, no quadro das forças militares nacionais (Governo militar).   Rui Carita (atualizado a 23.01.2017)

Direito e Política História Política e Institucional

capitanias

A instituição do regime de capitanias-donatarias (Donatário), ensaiado no povoamento da Madeira e depois exportado para os Açores, Cabo Verde, São Tomé e Brasil, marcou profundamente a gesta dos Descobrimentos portugueses. No entanto, em meados do séc. XVI, este modelo parece ter atingido o limite do seu período de duração. Assim, as tentativas da sua reimplantação, nomeadamente por D. Sebastião (1554-1578), com a criação da capitania de Angola, em 1571, e por Filipe III (1578-1621), com a criação da capitania da Serra Leoa, em 1606, mostraram que este modelo estava já fora da sua época. O processo de centralização do Estado empreendido ao longo do séc. XVII, embora se compadecesse com a sua existência, dificilmente tolerava a sua proliferação.   Com a integração das donatarias na Coroa, os capitães donatários ficaram responsáveis perante a mesma pela manutenção das capitanias “em justiça e em direito”, como referem as respetivas cartas de doação (BNP, cód. 8391, fls. 1v.-2v.ss., 119v.-120v.ss., 403-405ss.), sendo os aspetos de justiça, em princípio, os mais importantes (Ouvidorias). Saliente-se que os capitães donatários não eram verdadeiramente proprietários das terras das mesmas, que pertenciam à Coroa, embora aí pudessem ter, pontualmente, propriedades. Com o tempo, as iniciais funções militares tornaram-se meramente honoríficas, restringindo-se à apresentação dos alcaides pequenos, com função de policiamento (Polícia de segurança pública), o mesmo acontecendo em relação aos assuntos da Fazenda régia, pois, embora os capitães donatários em Lisboa usassem o título de vedor-mor da Fazenda, essa função há muito que passara a estar cometida a um provedor. As cartas de doação dos sécs. XVI e XVII eram, geralmente, omissas relativamente à atribuição dos ofícios, mas essa mercê foi algumas vezes atribuída e confirmada, em documentos próprios, como recompensa por certos serviços ou pelo mérito e linhagem dos capitães donatários. Essa prorrogativa de “data dos ofícios”, como se designava, era geralmente concedida em uma ou duas vidas, ou seja, na vigência do donatário e do seu sucessor, embora fosse posteriormente confirmada nos sucessores. Era este o caso da apresentação de ofícios, essencialmente na área da justiça, como de alcaides, carcereiros, escrivães vários, tabeliães, meirinhos, inquiridores, contadores e distribuidores. A condessa da Calheta, D. Maria de Vasconcelos, por exemplo, conseguiu obter para o filho e para o neto, a 18 de agosto de 1624, a data dos ofícios concedidos ao seu marido, 5.º capitão e 3.º conde da Calheta, Simão Gonçalves da Câmara (c. 1565-c. 1620), somente em uma vida. Tratava-se, assim, da apresentação dos ofícios de escrivão dos órfãos do Funchal, da almotaçaria, alcaidaria e imposição da cidade, de meirinho da serra, de tabeliães do público e do judicial dos lugares da sua jurisdição, de meirinho da cidade, de inquiridores, contadores e distribuidores da vila da Calheta e lugares da capitania, assim como de juízes e oficiais da vila da Calheta. Na Madeira, as capitanias sofreram um rude golpe nos finais do séc. XVI com a nomeação de um superintendente das coisas da guerra ou encarregado dos negócios da guerra, que tinha a função de capitão-general das capitanias do Funchal e de Machico. O Rei Filipe II (1527-1598) teve um especialíssimo cuidado nessas nomeações, começando por escolher um descendente de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), a quem tinha já feito mercê da capitania de Machico: Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da). Saliente-se ainda que, logo na altura da nomeação, escreveu à jovem capitoa viúva do Funchal, mostrando a urgência do preenchimento do lugar e informando que não esqueceria os direitos do jovem capitão donatário, seu filho. Face à incapacidade dos descendentes dos primeiros capitães, muito especialmente do 4.º capitão, Diogo Teixeira (c. 1500-1540), dado como incapaz em 1538, a capitania de Machico foi entretanto entregue a João Simão de Sousa, vagando depois para a Coroa na sequência da morte do 4.º capitão, em 1540, dado que não tinha descendência legal. Em 1541, D. João III fez mercê da mesma a António da Silveira, que tinha sido capitão de Diu. No entanto, este vendeu-a num curto espaço de tempo, em 1549, com licença e faculdade de D. João III, a Francisco de Gusmão, mordomo da infanta D. Maria, para dote da sua filha, D. Luísa de Gusmão. Esta veio a casar com D. Afonso de Portugal (1519-1579), 2.º conde de Vimioso, que incorporou na Casa dos Vimioso a capitania de Machico. O 2.º conde viria a falecer em Alcácer Quibir, passando então a usar o título o seu filho mais velho, D. Francisco de Portugal (1550-1582), que viria a aderir à causa de D. António e a falecer em combate ao largo de Vila Franca do Campo, nos Açores. Ficando a capitania de Machico uma vez mais nas mãos da Coroa, esta foi entregue por Filipe II a Tristão Vaz da Veiga. O irmão mais novo dos Vimioso, D. Nuno Álvares de Portugal (c. 1555-c. 1625), move, ainda em vida de Filipe II, um processo à Coroa, alegando que o pai teria ficado vivo em Alcácer Quibir, pelo que o irmão assumira ilegalmente o título e a capitania de Machico. Assim, tendo falecido o assumido 3.º conde, D. Francisco de Portugal, em 1582, o irmão considera que a capitania não deveria ter vagado para a Coroa, pois o pai ainda poderia estar vivo algures em Marrocos. Falecido Filipe II, este longo e algo bizarro processo teve seguimento, conseguindo a Casa dos Vimioso (Condes de Vimioso), falecido Tristão Vaz da Veiga, em 1604, reaver a capitania. Ao longo do séc. XVII, as capitanias da Madeira encontravam-se, assim, na posse dos seus anteriores donatários. Dada a estadia na corte dos capitães do Funchal e de Machico – os condes de Castelo Melhor (Castelo Melhor, marqueses de) e os de Vimioso, e, depois, os marqueses de Valença (Valença, marqueses de) –, as funções de comando de tropas propriamente ditas continuaram no governador e no capitão-general, mas a capitania ficou como título, mantendo as rendas, uma certa intervenção camarária e as funções judiciais. O donatário passou a fazer-se representar na sede da capitania por um ouvidor (Ouvidorias) e lugar-tenente, que, em Machico, podia estar ligado, de alguma forma, a um certo ascendente militar, daí se justificando um certo alheamento, ou afastamento, do governador da Madeira em relação a Machico. Registam-se presenças várias dos governadores da primeira metade do séc. XVIII nas vilas da capitania do Funchal, mas não nos ocorre nenhuma nas vilas de Machico e Santa Cruz. Os ouvidores das capitanias regiam-se pelas Ordenações de Filipe II, especialmente pelo título LX, “Corregedores das Comarcas e Ouvidores dos Mestrados e de Senhores de Terras”. A situação das capitanias do Funchal e de Machico, com os capitães a residirem na corte e as mesmas a serem regidas por ouvidores, nunca foi extensível à capitania do Porto Santo, dada a presença física, no arquipélago, do respetivo capitão donatário. As coisas alteraram-se algumas vezes nos sécs. XVII e XVIII, nas ocasiões em que o donatário, por motivos vários, abandonou o arquipélago. Nesses casos, o próprio capitão do Porto Santo nomeou um governador durante a sua ausência e, quando tal se deu compulsivamente, a nomeação foi efetuada pelo governador e capitão-general da Madeira, antes da extinção das capitanias. A capitania do Funchal A evolução desta instituição não foi de forma alguma linear, até pela diferença nos seus rendimentos, provindos das rendas territoriais, de terras e foros, da redizima e do selo, bem como de moinhos, serras de água, sabão e sal. Para uma comparação, veja-se que, em 1653, por exemplo, o conde-capitão do Funchal pagou a importância de 100$000 réis respeitantes ao donativo (Donativo) para as despesas de guerra. Em 1662, as décimas dos dois primeiros quartéis foram orçadas em 130$000 réis para a condessa da Calheta e capitoa do Funchal, enquanto para o conde de Vimioso, donatário de Machico, foram orçados em 20$000 réis. A situação económica da capitania do Porto Santo era pior. Em 1693, por exemplo, a redízima, no valor de 76$800 réis, somente conseguia pagar o ordenado do capitão-mor Jorge Moniz de Meneses, nomeado a 31 de outubro de 1653, e o mesmo já havia acontecido com o anterior governador, Martim Mendes de Vasconcelos, nomeado em 1564. A sucessão por varonia da capitania do Funchal foi interrompida em meados do séc. XVII. O 8.º capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara (c. 1600-1656), faleceu sem descendência, pelo que assumiu a capitania a sua irmã, D. Mariana de Alencastre Vasconcelos e Câmara (c. 1605-1689), condessa de Castelo Melhor pelo seu casamento com o conde João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658). Já viúva, D. Mariana passou a utilizar também o título de condessa da Calheta e, ocupando o cargo de camareira-mor da Rainha D. Francisca Isabel de Saboia (1646-1683), o de marquesa de Castelo Melhor (Câmara, D. Mariana de Alencastre Vasconcelos e), título que só viria a entrar nos seus descendentes muito mais tarde, em 1766. A futura condessa da Calheta defrontou em tribunal os seus parentes mais próximos, pois, tendo a capitania a natureza de bem da Coroa, havia cabimento na sucessão para a aplicação da Lei Mental (que permitia a reversão de tal bem para a Coroa). Por alvará de 2 de outubro de 1539, o Rei D. João III concedera dispensa dessa lei, para efeitos de sucessão, ao 5.º capitão da capitania do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1512-1580), por duas vidas: uma por morte do dito capitão, sem filho nem outro descendente varão legítimo, e, outra, quando um qualquer donatário morresse sem filho nem descendente varão lídimo. O processo movido por D. Mariana conheceu, assim, sentença a seu favor em 1660 e, ainda, sobressentença em 1677, confirmando a entrada da capitania na Casa de Castelo Melhor. Com a extensão à Madeira do regimento dos corregedores das ilhas dos Açores, deu-se o primeiro passo para a reforma da organização da justiça, à qual, no entanto, se opõe, na corte de Lisboa, a Casa de Castelo Melhor. Em 1747, foi nomeado um novo juiz de fora de origem açoriana, Miguel de Arriaga Brum da Silveira (c. 1690-1755). Incumbido do lugar de juiz de 1.ª instância “com predicado de correição por 3 anos”, acumulou, sucessivamente, os lugares de mamposteiro-mor dos cativos e de provedor da Fazenda dos defuntos e ausentes (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 9, fls. 95v.-99). No entanto, quase imediatamente, voltam a registar-se as doações do conde de Castelo Melhor, “confirmadas por carta assinada pela Real Mão” (Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 9, fls. 116-131v.), e as anteriores questões entre o corregedor e o ouvidor, então levantadas pela Casa do conde. Abria-se, assim, caminho para a centralização da justiça e para a posterior extinção das capitanias e das ouvidorias. A capitania de Machico As primeiras especificidades que se destacam relativamente à capitania de Machico são o incumprimento da determinação de obrigatoriedade da nomeação de um letrado para este lugar, como existia no Funchal, e, ao mesmo tempo, a nomeação quase preferencial de um militar, acrescida da indicação diferenciada dos cargos de ouvidor e de locotenente. Este aspeto é de tal forma ressalvado que a nomeação é quase sempre primeiramente relativa a ouvidor e só depois, em alvará separado, a locotenente, diferenciando-se assim perfeitamente as duas. Pode, pois, depreender-se a sobrevivência, em Machico, das obrigações político-militares do capitão donatário. Este aspeto parece igualmente explicar, até certo ponto, o quase não provimento, na primeira metade do séc. XVII, do posto de sargento-mor das ordenanças desta capitania. Parece ter havido algumas dificuldades na Casa dos condes de Vimioso na apresentação dos seus ouvidores, locotenentes e outros oficiais nos inícios do séc. XVIII, como o juiz dos órfãos da capitania de Machico, associado ainda às rivalidades entre as Câmaras de Santa Cruz e de Machico. Houve também uma franca descoordenação entre as nomeações do marquês de Valença (título de que os Vimioso passaram a usufruir) e as apresentações dos ouvidores nestas décadas, acabando o governador da Madeira por ter de interferir nas ouvidorias, nomeando ouvidores interinos. Teria sido, provavelmente, o problema das ouvidorias que levou a mais uma alçada, desta feita de Manuel Vieira Pedrosa da Veiga, “corregedor com alçada por Sua Majestade, que Deus guarde, com especial ordem do dito Senhor em toda a ilha da Madeira”, que, no final de 1735, se apresentava em Machico como juiz de fora. Conforme se registou, não se faziam correições na Madeira desde 1684, pelo que o corregedor assumiu também as funções de ouvidor de Machico, dada a “ordem de correição às ouvidorias” que possuía, com “uma carta de D. João V sobre os excessos que se cometiam em várias vilas da Madeira”, vindo igualmente com ordem para investigar as “arrecadações dos bens dos concelhos” (ARM, Câmara Municipal de Machico, liv. 81, fls. 472v.-480), o que também ocorreu no Funchal. A Casa dos Vimioso e Valença deparou-se, entretanto, com algumas dificuldades económicas logo no início do século, abdicando do pleito sobre a capitania de Pernambuco para poder manter o título de marquês. A situação económica não se teria equilibrado e, tal como o marquês de Valença não conseguiu fazer valer os seus direitos à capitania de Machico na chancelaria régia ao longo do séc. XVIII, ainda que fosse presidente da mesa da consciência e ordens, também a vereação camarária mostrou francas reservas em aceitar a nomeação de ouvidores e locotenentes para a capitania, mesmo antes da sua extinção pelo gabinete pombalino. Assim, a 1 de janeiro de 1765, quando o ouvidor se apresentou em Machico para assistir à distribuição dos pelouros para o triénio seguinte, a Câmara recusou a sua presença, o que levou à intervenção do juiz de fora do Funchal no mês seguinte. O Rei D. José I despacharia favoravelmente o processo, comunicando à Câmara de Machico: “Tenho por bem dizer-vos, que tendes obrado bem em não consentirdes, que o suplicante servisse de ouvidor findo o seu tempo”. Na sequência destes acontecimentos, em setembro do mesmo ano, era admoestado o Gov. José Correia de Sá (Sá, José Correia de) devido à “falta de seriedade e reverência com que tratara o caso do ouvidor de Machico”, admoestação que seria transmitida à Câmara (Ibid., liv. 86, fls. 69v.-70). Não mais voltou a haver ouvidor em Machico, apesar dos pedidos do governador. A capitania do Porto Santo A situação desta capitania foi ainda mais nebulosa, não só pela pobreza das suas condições e habitantes, situação que piorou consideravelmente ao longo do séc. XVIII, como pelo consequente abandono a que, até certo ponto, foi votada pelos seus capitães donatários. Em face disso, desde o séc. XVII que o governador da Madeira nomeava governadores para o Porto Santo sempre que se verificava vazio de poder na ilha, visto que a mesma tinha governo próprio, na pessoa do seu capitão donatário. Assim, toda a documentação oficial produzida em Lisboa em relação ao Governo da Madeira foi sempre omissa em relação à ilha do Porto Santo, embora alguns governadores tenham proposto a Lisboa o alargamento das suas competências àquela capitania. Casa Colombo (exterior) Porto Santo. Arquivo Rui Carita.   Casa Colombo, Porto Santo. Arquivo Rui Carita.     Armas dos Perestrello. Arquivo Rui Carita Nos inícios do séc. XVII, o Porto Santo foi alvo de duas alçadas dos corregedores – primeiro de António Ferreira, em 1606, e, depois, de Simão Cardoso Cabral, em 1610 –, que visavam averiguar as queixas dos moradores contra o comportamento de Diogo Perestrelo Bisforte (c. 1560-1616), donatário da ilha. Na primeira vez, o governador foi afastado da ilha e teve ordem para se apresentar em Lisboa, regressando, no entanto, em 1610, altura em que a situação piora. Assim, nesse mesmo ano, teve nova ordem para se apresentar em Lisboa, onde ficaria seis anos, sendo perdoado a 15 de outubro de 1616. Desta feita, não terá regressado ao Porto Santo, pois faleceu no Funchal a 20 de dezembro desse ano. Afastado o Cap. Diogo Perestrelo Bisforte do Porto Santo, somente em abril de 1654 tomaria conta da capitania o herdeiro Diogo de Bettencourt Perestrelo (c. 1684), até porque, logo em 1617, a ilha foi devastada por piratas argelinos, quase não tendo ficado habitantes no seu território. Em 1606, após o primeiro afastamento do capitão, foi nomeado João de Ornelas Rolim como locotenente, com ordenado pago pelo donatário. Aquando do segundo afastamento do Cap. Diogo Perestrelo Bisforte, o governador da Madeira nomeou, em 1619, Martim Mendes de Vasconcelos como governador e capitão-mor do Porto Santo, a que se seguiram Roque Ferreira de Vasconcelos e Jorge Moniz de Meneses. Nos inícios do séc. XVIII, a capitania era governada pelo 9.º donatário, o Cap. Estêvão de Bettencourt Perestrelo, que presidiu, por exemplo, às eleições para a Câmara no dia 1 de janeiro de 1705 e às sessões seguintes para eleição dos vários agentes camarários, como o alcaide e os almotacés. O 9.º capitão surge em funções em 1674, embora o seu pai, Diogo Perestrelo, ainda fosse vivo em 1684, data em que mandou lavrar testamento. Após 12 anos de suspensão, por ter deixado “entrar na dita Ilha duas embarcações francesas” (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 16), este capitão foi restituído à sua capitania em fevereiro de 1703. Em 1707, ainda se encontra no Porto Santo, tendo sido “nas suas mãos” que o novo Sarg.-mor Duarte Pestana de Velosa prestou menagem (ABM, Câmara Municipal do Porto Santo, liv. 165, fl. 31). No entanto, perante novo desastre do assalto corsário de 1709, no qual, mais uma vez, a população não mostrou qualquer sinal de resistência, D. João V mandou-o apresentar-se, sob pena de prisão, em Lisboa, não voltando à sua capitania. O incidente encontra-se registado como ocorrido a 27 de junho de 1709, tendo desembarcado na ilha várias pessoas que, transitando numa barca proveniente da freguesia de São Vicente e com destino ao Porto Santo, haviam sido aprisionadas por um navio corsário francês. Mais uma vez, a população não reagiu, tendo o corsário francês feito o seu desembarque normalmente (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 30). A capitania ainda foi revalidada no 10.º donatário, Vitoriano Bettencourt Perestrelo, a 5 de setembro de 1722, mas não há qualquer informação sobre a sua presença no arquipélago. No entanto, como este donatário não vem referido no Índice da Antiga Junta e Provedoria, partimos do princípio que não se apresentou como donatário do Porto Santo no arquipélago, pois que, para efeitos de abono, a sua apresentação constaria dos registos da Fazenda. A capitania ainda voltou a ser revalidada, em 1747, em Estêvão de Bettencourt Perestrelo, filho de Vitoriano de Bettencourt e Vasconcelos, anterior “proprietário e senhor donatário da ilha do Porto Santo e governador dela” (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 972, fl. 217v.), então falecido, e confirmada em 1749. A mercê do novo capitão donatário era citada como “do senhorio e governo” da ilha do Porto Santo, “em que sucedeu a seu pai, por ser de juro e herdade” (Ibid., Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 972, fl. 230v.). Cita-se, no alvará, que era até então governador da ilha Jorge Correia de Miranda, efetivando-se, ao mesmo tempo, a colocação do tio do novo capitão donatário, Nicolau Bettencourt Perestrelo de Noronha, como sargento-mor do Porto Santo. O governador e capitão donatário não se deslocou de imediato para a ilha, mas conseguiu logo ter acesso às redízimas. Estêvão de Bettencourt Perestrelo tomou ainda menagem das mãos de D. José I, a 11 de março de 1755, e posse no Funchal, a 4 de junho de 1757, perante o governador da Madeira, o que foi até certo ponto uma originalidade, pois marcou a subordinação do lugar de capitão donatário do Porto Santo ao governador da Madeira. Aliás, a distância entre as datas da carta da donatária (1747), da menagem (1755) e da posse no Funchal (1757) revela bem as dificuldades experimentadas pelo capitão donatário para alcançar, na altura, os “seus direitos” (Ibid., Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 974, fl. 1). É muito provável que não tenha sequer fixado residência no Porto Santo, pois, no ano seguinte, a 15 de junho de 1756, em carta enviada do Funchal, apresenta uma representação ao secretário de Estado Diogo Corte Real sobre a difícil situação da ilha do Porto Santo, marcada pela esterilidade dos últimos anos, pedindo milho e farinha para acudir à fome dos habitantes. Na sequência do relatório elaborado pelo Eng.º Francisco de Alincourt (1733-1816) (Descrições militares), de abril de 1769, e do edital do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), citando “o ócio e a indigência dos moradores do Porto Santo” (AHU, Madeira, docs. 355, 356, 360-363), a situação catastrófica do Porto Santo teve de ser encarada de outra forma. As reformas pombalinas Com a criação, a 2 de agosto de 1766, de um governo centralizado para os Açores cometido a um governador e capitão-general e a consequente extinção das capitanias-donatarias naquelas ilhas, o gabinete do marquês de Pombal nomeou dois juristas práticos nestes assuntos, os desembargadores José Francisco Alagoa e Bartolomeu Geraldes de Andrade, para reverem toda a situação dos donatários insulares e “dos títulos dos sobreditos [...] que tiverem direito para serem conservados” (BNP, cód. 341, fls. 339-341). Logo a 4 de setembro do mesmo ano, foi elaborado, no palácio da Ajuda, um contrato de compensação ao conde de Castelo Melhor, que o conde registou, a 9 de setembro, no tabelião António da Silva Freire. Do processo completo, seria solicitada, mais tarde, em 1785 e 1788, confirmação a D. Maria I e enviada documentação à Câmara do Funchal para respetivo registo, em 1790 e 1792. Desta forma, a 4 de setembro de 1766, eram incorporadas na Coroa as capitanias da Casa de Castelo Melhor – a de Santa Maria, nos Açores, e a do Funchal, na ilha da Madeira –, alegando o Rei D. José a existência de “motivos justíssimos” e o “benefício da utilidade pública e do bem público e comum” dos seus vassalos. Revertiam, assim, para a Coroa as antigas “datas das sesmarias” e as jurisdições e nomeações dos ouvidores, dos oficiais de justiça, da Câmara, dos órfãos, das almotaçarias e dos tabeliães. Para além disso, as capitanias ficavam reduzidas às alcaidarias-mores, sendo também reduzidos os privilégios exclusivos “dos fornos de pão de poia, moendas e serrarias aos termos em que menos ofenderem ao direito divino, natural e das gentes, e fizessem calar aos atendíveis clamores dos habitantes das referidas duas ilhas” de Santa Maria e da Madeira (Ibid.). O antigo capitão do Funchal ficava, essencialmente, com o título da alcaidaria-mor e a redízima de todos os rendimentos reais da antiga capitania, praticamente sem encargos, o que significava que o que perdia em prerrogativas sociais ganhava em dinheiro. Ficavam francamente reduzidos os antigos privilégios de venda de sal, que não podiam exceder o preço taxado pelas antigas doações, já citadas, assim como o monopólio dos fornos de “pão de poia”, podendo os habitantes ter fornos particulares para o seu consumo doméstico e para “padejarem”. Viam-se igualmente reduzidos os antigos monopólios das moendas de água e das serrarias. Em contrapartida, o antigo capitão ficava com o título de marquês de juro e herdade, duas dispensas da Lei Mental e o título de conde da Calheta para o primogénito. Ficavam, igualmente, para a Coroa as fábricas de sabão branco de Lisboa e de Almada, mas eram cedidos ao futuro marquês a Qt. da Labruja, na Golegã, e parte dos terrenos da cerca de São Roque, em Lisboa, na base dos quais se veio a levantar o magnífico e célebre palácio no qual viveu o conde da Foz, que lhe deu nome, e onde estiveram outras entidades e instituições, como o Secretariado Nacional de Informação. Ainda no que respeita a bens patrimoniais, o marquês ficava com 10.000 cruzados anuais de juro, para constituir um vínculo. Nesta sequência se compreende a ordem do Conselho da Fazenda, de 20 de outubro do seguinte ano, 1767, dada ao provedor do Funchal para tomar posse “da capitania das vilas de Machico e Santa Cruz”. O ofício da Fazenda especifica que a capitania se achava vaga “desde o óbito do 5.º conde de Vimioso, D. Luís de Portugal (1656), sem sucessão, em que depois sem título se introduziu seu irmão, o 6.º conde de Vimioso, D. Miguel de Portugal (falecido em 1680), e depois muito menos, o filho natural deste, o marquês de Valença, Dom Francisco de Portugal (1679-1749), e o atual seu neto, Dom José Miguel de Portugal (e Castro) (1709-1775), os quais todos, não tirarão cartas, nem mercê têm para a poderem requerer”. Este ofício aproveitava ainda para solicitar que fossem revistos os demais bens da Coroa, não fossem encontrar-se em idênticas situações. Pedia-se que fossem enviadas ao Conselho as listagens desses bens com a indicação da respetiva situação, para se refazer o arquivo “que se incendiou pelo terramoto do primeiro de novembro de mil setecentos cinquenta, e cinco” (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 975, fls. 184-184v.). Em 1772, regista-se na Alfândega toda a documentação respeitante à capitania de Machico, parecendo o assunto ficar encerrado. Tentando acompanhar o que fizera o marquês de Castelo Melhor, os antigos capitães de Machico iniciam também a reivindicação das antigas rendas. Em 1783, conseguiu D. Afonso Miguel de Portugal e Castro (1748-1802), marquês de Valença, como tutor do seu filho, conde de Vimioso (1780-1840), receber 1443$330 réis da sua antiga capitania. Saliente-se que, entre 17 de junho de 1779 e 28 de outubro de 1782, a redízima tinha rendido 11.990$522. D. Afonso Miguel, sendo nomeado governador-geral do Estado da Baía em 1775, conseguiu, antes de partir, que D. Maria I o nomeasse marquês de Valença e o confirmasse donatário da “extinta capitania de Machico”, com o título de conde para o herdeiro e direito aos “bens, rendimentos e direitos da extinta capitania de Machico no mesmo Estado”, como especifica a Rainha (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda..., liv. 977, fls. 97-99). O novo marquês vice-rei ficou, assim, com mais um título e, tal como o marquês de Castelo Melhor em relação ao Funchal, com os rendimentos da alcaidaria da antiga capitania de Machico, que, em 1825, viriam a ser penhorados pelos seus descendentes.   Marquês de Valença. Brasil. Arquivo Rui Carita.     Armas do Marquês de Castelo Melhor. Arquivo Rui Carita Muito diferente foi a situação da capitania do Porto Santo, que, nestes meados do séc. XVIII, conheceu um dos piores momentos da sua existência, ao ponto de se tentar transferir toda a sua população para a Madeira. Desde os inícios do séc. XVIII que se vivia na ilha uma situação catastrófica marcada por inúmeros períodos de fome, o que tinha levado a população a um completo imobilismo. Quase todos os governadores alertaram Lisboa para esta situação, mas só se vieram a tomar medidas efetivas com Manuel de Saldanha de Albuquerque (1712-1771) e, sobretudo, com João António de Sá Pereira. A capitania foi extinta por diploma de 13 de outubro de 1770 após a morte do donatário em Lisboa, não se coibindo o próprio Rei D. José I de apelidar os portossantenses de vadios, referindo que “os sobreditos moradores cuidam em alegar genealogias para fugirem ao trabalho” (Anais do Município do Porto Santo, 1989, 16). Com a extinção da capitania em 1770, foram liquidados de imediato os rendimentos em atraso dos donatários, e, em maio do ano seguinte, o próprio governador da Madeira, António de Sá Pereira, deslocou-se à ilha, acompanhado do corregedor Francisco Moreira de Matos e do oficial Eng.º Francisco Salustiano da Costa (c. 1745-c. 1820) (Costa, Francisco Salustiano da), do seu médico, o Dr. João Joaquim Curado Calhau, e de 25 soldados. A provedoria recebeu ordens para fretar o iate de Francisco Teodoro e Manuel da Silva Carvalho, assim como para preparar provisões de biscoito e uma lista de remédios fornecida pelo médico do governador. João António de Sá Pereira procedeu a nomeações várias no Porto Santo, a primeira das quais foi a do Cap. Pedro Teles de Meneses como inspetor da agricultura, recebendo as primeiras instruções em 1770. A nomeação foi depois comunicada à Câmara do Porto Santo e ao marquês de Pombal, que a levou ao “Real Arbítrio”, recebendo a aprovação de D. José I (AHTC, Erário Régio, liv. 395, fls. 306-309). Na ilha, o governador Sá Pereira procedeu ao emparcelamento dos terrenos e à reorganização geral da população, assunto entregue ao corregedor. Como alguns ofícios tinham desaparecido por completo, nos finais do ano de 1770 já vários rapazes tinham sido transferidos para o Funchal e entregues a vários oficiais, que ficaram encarregados de os ensinarem. O Governo acabou por tomar a seu cargo a sua manutenção – alimentação, vestuário, alojamento e instrução –, nomeando, inclusivamente, um médico-cirurgião para os acompanhar, ao qual também foi entregue um dos rapazes. Entre os ofícios que estes jovens aprenderam, estavam os de sapateiro, alfaiate, oleiro, carpinteiro, pedreiro, ferreiro, cirurgião e sangrador. A nomeação e o trabalho do novo inspetor da agricultura não foram, como já era habitual neste domínio, pacíficos, pois, interferindo com muitos interesses, principalmente os dos proprietários madeirenses, o inspetor foi acusado de inúmeras irregularidades. Assim, ainda que a ilha do Porto Santo tenha sido de imediato dotada de regimento da agricultura, datado de 13 de junho de 1771, os resultados não foram muito animadores. Em finais de 1774, deslocava-se ao Porto Santo o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781) (Martins, Domingos Rodrigues), para inspecionar as fortificações, transformando-se, por sua decisão, o pequeno reduto de São José no forte que viríamos a conhecer (Fortes do Porto Santo). Entretanto, devem ter sido executadas obras na Câmara Municipal – também elas, certamente, orientadas e dirigidas pelo mestre Domingos Rodrigues Martins –, a ajuizar pelas armas que passou a ostentar, talvez ligeiramente anteriores às do forte de São José. Também por essa altura se devem ter iniciado outras obras, como as da Casa nobre que posteriormente seria ocupada pelo tribunal, ostentando tal edifício, no lintel da entrada, a data de 1788. O cargo de governador da ilha continuou a ser desempenhado pelo sargento-mor Nicolau Bettencourt de Noronha, tio do antigo Cap. Nicolau Bettencourt Perestrelo, entretanto falecido a 9 de abril de 1768. Nessa altura, o governador escreveu para Lisboa a alvitrar a nomeação do ajudante do sargento-mor de Machico, Matias Moniz de Bettencourt, que servia igualmente na sala do Governo do Funchal. Explica, então, que, encontrando-se o donatário “há anos nessa corte” (ARM, Governo Civil, liv. 530, fls. 17-18v.), com a morte do sargento-mor e governador, ficava a ilha a ser governada pela Câmara e pelo capitão mais antigo. Ora, como a ilha ainda tinha 300 homens de ordenanças, deveria ter um sargento-mor e governador para o controlo geral dessa gente. No entanto, só após a morte do donatário e a extinção da capitania tal pedido teve despacho de Lisboa. A proposta da nomeação do filho do falecido sargento-mor, Manuel da Câmara Perestrelo de Noronha, foi de 15 de maio de 1782, sendo confirmada apenas a 23 de setembro de 1785. Este ramo da família foi sendo todo nobilitado, devendo ter movido influências para não perder tal lugar. Este lugar passou, entretanto, a ser subordinado ao governador da ilha da Madeira, como consta das nomeações de Manuel Ferreira Nobre Figueira, sargento-mor do regimento de milícias de Vila Real, nomeado em 1797. Efetivamente, este sargento prestou menagem de tal lugar em São Lourenço, nas mãos do governador da Madeira, a 27 de setembro desse ano, e o mesmo viria a acontecer com João Baptista Rofle, capitão-tenente da Armada, nomeado em 1800.         Rui Carita (atualizado a 20.12.2016)

História Política e Institucional

arguim

A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha ficaria dependente da Diocese do Funchal, que para ali nomeava capelão e ouvidor, sendo depois sucessivamente ocupada por Holandeses, Ingleses, prussianos e Franceses, até ser por fim abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios das antigas fortificações, com uma pequena povoação de pescadores-recoletores, sendo objeto de diversas lendas e narrativas. Palavras-chave: comércio; Descobrimentos; escravatura; feitorias fortificadas; tradição oral. Arguim é uma ilha na baía do mesmo nome, situada na extremidade norte da República Islâmica da Mauritânia, na costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprimento por 2 km de largura. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes. A ilha faz parte do Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona protegida, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas. Vista aérea do Banco de Arguim. Arquivo Rui Carita. A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa da costa ocidental de África (África Marrocos). Na sequência da passagem do cabo Bojador, em 1434, as embarcações portuguesas ao serviço do infante D. Henrique (1394-1460) prosseguiram para o Sul, passando ao largo da costa saariana e atingindo a costa da Mauritânia. Estas navegações, que de início se revelaram lucrativas, em virtude de atos de corso e de razias, chegaram ao golfo de Arguim na déc. de 1440; e.g., a caravela de Nuno Tristão (c. 1410-1446) tê-lo-á alcançado em 1441, embora outros navegadores ali tenham passado por esses anos, como Gonçalo de Sintra (c. 1400-1444) e Diniz Dias (há divergências entre os vários cronistas quanto à sua ordem de chegada). Em 1443, voltava àquela área Nuno Tristão, então já acompanhado de um mouro, dado como Sanhaja Berber, que servia de intérprete; aí, adquiriu 28 escravos, que levou para Lagos, no Algarve. É desse ano o pedido oficial de carta de corso do infante D. Henrique ao seu irmão D. Duarte (1391-1438), passando aquele a usufruir de 1/5 das capturas efetuadas – que, em princípio, pertenciam ao Rei –, pedido também posteriormente feito pelo infante D. Pedro (1392-1449). Banco de Arguim. Em 1444, a expedição de Lançarote de Lagos a Arguim, na qual participaram forças da Madeira e, provavelmente, o sobrinho de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), Álvaro Fernandes, conseguiria recolher 240 escravos. As relações da Madeira com estas navegações vão manter-se nos anos seguintes, tendo Álvaro Fernandes e Lançarote de Lagos, em 1446, a explorado a embocadura do rio Senegal e a área de Cabo Verde. Este navegador, que já comandara uma caravela de Zarco em 1444, dirigiu a expedição que em 1447 ultrapassou Cabo Verde e que se supõe ter atingido a ilha de Goreia. As relações da ilha da Madeira com este tipo de comércio e com esta área – Arguim, depois Cabo Verde, Guiné, Angola, etc. – vão manter-se nos anos seguintes. Na Furna de Arguim, como era por vezes chamada esta baía de recifes, ficava a ilha dos Coiros, principal centro de comércio de peles de toda a costa e, para o Sul, localizavam-se as ilhas das Garças, de Naar e de Tider. Serviram as mesmas, com mar bonançoso, para abrigo e repouso das naus. Por ali passaram madeirenses, como os da caravela enviada por Zarco até ao cabo dos Matos, com seu sobrinho Álvaro Fernandes, depois o genro do capitão do Funchal, Garcia Homem de Sousa, e Diogo Afonso, Denis Eanes da Grã, João do Porto e outros. Deve datar de cerca de 1445 a substituição da pirataria, com uma função simultaneamente económica e bélica, pelo comércio pacífico – ou, pelo menos, mais pacífico, dado não ser nessa altura possível fazê-lo sem armas na mão. Em 1444, já se procurava estabelecer o tráfico com os nómadas cameleiros do rio do Ouro, tendo cabido a João Fernandes, um colaborador próximo do infante D. Henrique, beneficiando das informações de Ahude Meimão sobre a localização das principais povoações e o interesse comercial da região, concretizar esses planos. Em 1445, aquele navegador foi responsável pela realização das primeiras operações comerciais com as populações muçulmanas daquela região, promovendo a aquisição de ouro, de goma-arábica e de escravos, em troca de tecidos e de trigo. Em 1447, iniciaram-se as relações com o Suz, em Marrocos – grande mercado de escravos, de ouro e de açúcar –, tentando o infante D. Pedro, ainda nesse ano, estabelecer a paz e manter relações comerciais com o Bori-Mali e com os jalofos, na área da Guiné. Poucos anos depois, por volta de 1454-1455, o italiano Luís de Cadamosto (1432-1488) (Cadamosto, Luís de) explica, nas suas memórias, a propósito do contrato da feitoria de Arguim, que, quando esteve ao serviço do infante D. Henrique, as caravelas costumavam ir armadas de Portugal ao golfo de Arguim, umas vezes quatro, outras mais, “e de noite desembarcavam” e saíam sobre as aldeias costeiras de pescadores, “e faziam correria pela terra”, de modo que prendiam esses “árabes, tanto machos como fêmeas e os traziam a vender em Portugal” (GODINHO, 1956, III, 125-126). Pontão. Antigo embarcadouro. A ilha de Arguim veio a configurar-se como um local privilegiado para o estabelecimento de um posto comercial fixo, dado situar-se numa região esparsamente povoada, mas próxima dos circuitos comerciais percorridos pelas caravanas mercantis que atravessavam o Saara, as quais frequentemente se aproximavam da costa, devido à abundância de sal na região. Sendo um território dotado de um bom porto e de água potável, era facilmente defensável pela vantagem que a sua situação insular oferecia face à previsível hostilidade das populações autóctones, sendo por isso escolhido para centralizar o comércio da costa africana. Entre 1454 e 1455, já se tinha efetuado um contrato por 10 anos, explicando Cadamosto que ninguém podia entrar no golfo para traficar com os locais, “salvo aqueles que entrassem no contrato” celebrado com a Coroa para esse comércio, no qual se incluía a “feitoria na dita ilha, e feitores, que compram e vendem àqueles árabes, que vêm à marinha, dando-lhes diversas mercadorias, como são panos tecidos, prata e alquicéis, que são uma espécie de túnicas, tapetes e sobretudo trigo, do qual estão sempre famintos, e recebem em troca negros, que os ditos alarves trazem da Negraria, e ouro Tiber” (Id., Ibid.). Acrescenta o navegador italiano que o infante fazia então levantar “uma fortaleza na dita ilha, para conservar este comércio para sempre; e por esta razão todos os anos vão e vêm caravelas de Portugal à ilha de Arguim” (Id., Ibid.). O castelo só seria terminado após o falecimento do infante, em 1461, sendo a capitania entregue a Soeiro Mendes de Évora, o vedor da construção, que viria a ter carta de 26 de julho de 1464, de D. Afonso V (1432-1481), a conferir-lhe, a si e aos seus descendentes, a capitania-mor da ilha. Saliente-se, no entanto, que o estatuto comercial de Arguim conheceu variantes. Assim, por volta de 1455, aquando da visita de Cadamosto, a feitoria era administrada por uma sociedade privada, que tinha obtido do infante D. Henrique esse monopólio por um período de 10 anos, provavelmente entre 1450 e 1460. Mais tarde, segundo o cronista João de Barros (1469-1570), Fernão Gomes da Mina (c. 1425-c. 1485), após ter assumido o mercado de exploração do comércio da Guiné, que dominou entre 1468 e 1474, conseguiu também obter o de Arguim, ao preço de uma renda anual de 100$000 réis. A área em torno de Arguim era habitada por berberes e negros islamizados, chamados “mouros” pelos Portugueses, sendo uma importante zona de pesca. Da parte portuguesa, esperava-se intercetar o tráfego do ouro que as caravanas transportavam de Tombuctu para o Norte de África; contudo, foi o comércio de escravos que mais prosperou, recebendo Portugal de Arguim, aproximadamente a partir de 1455, cerca de 800 escravos por ano, na sua maioria jovens negros, feitos prisioneiros durante razias conduzidas no interior do continente pelos líderes tribais da região costeira vizinha. No decurso do mandato de Fernão Soares como capitão e feitor, entre maio de 1499 e dezembro de 1501, obtiveram-se 668 escravos e 12.558 dobras e meia de ouro – moeda que, em 1472, valia 327 reais brancos, na razão 1$896 reais brancos por marco (cerca de 235 g de prata) –, sendo parte deste convertida em escravos, totalizando 840 indivíduos. O feitor seguinte, Gonçalo Fonseca, conseguiria somente 406 escravos em dois anos e meio, mas o que se lhe seguiu, Francisco de Almada, entre 1508 e 1511, ultrapassaria a cifra de 1500 escravos. Em segundo plano estava o importante comércio da goma-arábica, produto que a região produzia em quantidade significativa e com qualidade superior, que se adquiria em Arguim a preços muito atrativos. O território conquistado em Arguim passou então a assumir-se como um centro de comércio, estabelecendo ligações comerciais com os portos de Meça, Mogador e Safim (Safim), em Marrocos. Destes lugares provinham os tecidos, o trigo e outros produtos que, na feitoria de Arguim, eram trocados por ouro e escravos; as mercadorias eram transportadas pela rota que ia de Tombuctu até Hoden. A criação desta feitoria representou um ponto de viragem na expansão portuguesa, assinalando o início da política de construção de feitorias fortificadas, dotadas de uma guarnição militar capaz de as defender contra os ataques dos povos autóctones. Em 1487, foi fundada uma feitoria no interior do continente africano, na localidade de Ouadane (ou Wadan), e, na mesma área, foram feitas outras tentativas de fixação de feitorias, e.g., na região de Cofia e junto à foz do rio Senegal, todas goradas face à hostilidade das populações locais e à dureza do clima. Nos anos de 1505 a 1508, a guarnição do castelo de Arguim era composta de 41 indivíduos, 18 dos quais eram soldados e 5 marinheiros. O comércio da feitoria estava sob o controlo da Coroa, sendo os capitães nomeados pelo Rei, habitualmente para comissões de três anos. Tinham direito a arrecadar 25 % dos lucros do comércio realizado na feitoria, sendo assistidos por um feitor, que arrecadava 12,5 % daqueles, e por um escrivão assalariado, que recebia 20.000 réis na fase inicial dos trabalhos. Em finais de 1555, ou em princípios de 1556, a feitoria de Arguim foi atacada pelo pirata português Brás Lourenço e, em 1569, a guarnição tinha-se reduzido a 30 pessoas. A manutenção da guarnição de Arguim não era fácil, tendo de recorrer-se às vizinhas ilhas Canárias ou à Madeira, como aconteceu em 1513, quando era capitão de Arguim Fernão Pinto (que deve ter sucedido a Francisco de Almada, capitão entre 1508 e 1511, embora o seu nome não conste das listagens geralmente divulgadas, que referem apenas o Cap. Pero Vaz de Almada, em 1514-1515). O mestre do navio enviado às Canárias pelo capitão de Arguim acabou por aportar a Machico, tendo requerido ao almoxarife Antão Álvares a compra de diversos mantimentos – 30 moios de trigo, 20 quintais de biscoito e uma parte de remel (possivelmente o açúcar local) –, deixando como pagamento a João de Freitas (c. 1470-1533), executor das dívidas à Fazenda, seis escravos, marco e meio de ouro, e meia onça de ouro em pó e em pedaços, e tendo sido lavrada quitação com data de 3 de maio de 1513. Três dias depois, o mestre do navio São Miguel Fadigas entregava mais 78 dobras de ouro, em pó e em pedaços, para pagamento de novos mantimentos. Não se conhece qualquer descrição do castelo henriquino de Arguim, nem da sua reformulação na época de D. Afonso V, embora a carta de alcaidaria-mor refira ter havido então obras, nem também das remodelações da déc. de 80 do séc. XV, se bem que se saiba que, ao passar, em 1481, a monopólio régio, sob D. João II (1455-1495), o castelo foi aumentado. Arguim foi perdendo a sua importância ao longo dos anos seguintes, à medida que os interesses comerciais portugueses se transferiam para regiões localizadas a sul (e, depois, para a Índia). Desconhece-se a data em que Arguim passou a estar na dependência da Diocese do Funchal, mas julga-se ter isso ocorrido com o abandono de Safim, em 1541, de cuja Diocese deveria depender, embora não houvesse uma clara definição dos seus limites. A referência a Arguim como pertencente à Diocese do Funchal parece datar da bula do Papa Júlio III, de 1550, que separou da antiga Arquidiocese (Diocese e arquidiocese do Funchal) os territórios das novas dioceses dos Açores, de Cabo Verde, etc., que passaram à jurisdição eclesiástica de Lisboa. A referência à integração da ilha de Arguim na jurisdição do Funchal dá-se com o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), que recebeu a doação de Arguim, do seu castelo e do produto das pescas na costa de Atouguia e que, em 1601, nas Extravagantes que adicionou às anteriores Constituições Sinodais, refere que “dispondo os casos da sua jurisdição nela colocava Ouvidor Eclesiástico” (LEMOS, 1601, título 16, const. 2). Aliás, antes de ser meio-cónego da Sé, o cronista Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) foi vigário de Arguim, em 1567, na ausência do P.e António Fernandes, sinal de que a freguesia já existia e dependia do Funchal (embora pouco tempo ali estivesse, passando rapidamente a Lisboa e aí conseguindo a indigitação para uma futura eleição como meio-cónego da Sé do Funchal).   Voyages en Afrique- Asie-Indes orientales et occidentales-Jean Mocquet-1617 Arguim seria visitada por Jean Mocquet (1575-1617) (Mocquet, Jean), aventureiro francês, em 1601, na sua primeira viagem de recolha de objetos exóticos e curiosos, que lhe permitiu ocupar o boticário régio de Henrique IV (1553-1610) e organizar um gabinete de curiosidades (Colecionismo) nas Tulherias para o seu sucessor, Luís XIII (1601-1643). Jean Mocquet conta nas suas memórias que, na sua primeira viagem, em que visitou o Funchal, seguiu “o desejo que tinha há muito tempo de viajar pelo mundo: quis começar pela África”. Partira de Saint Malo a 9 de outubro de 1601, em La Syréne, que se destinava à Líbia (nome pelo qual se designava a costa marroquina à época e, assim parece, também as ilhas atlânticas e da Mauritânia), e que era um “navio carregado de sal e bem equipado de víveres e munições para a guerra” (MOCQUET, 1830, 27). A embarcação passou por diversas peripécias, chegando a ter de combater com vários corsários; passado o cabo de São Vicente, dirigiu-se ao Norte de África, e depois de dobrar o cabo Branco visitou a velha feitoria de Arguim. Conforme se usava à época (como referido), Jean Mocquet refere-se à região como “Líbia”, contando que “de toda a Líbia vão buscar água ao porto de Arguim”, que se situa sobre uma pequena ponta relevada, a seis léguas de cabo Branco. A fortaleza tinha então alguns soldados portugueses e um capitão. Mocquet menciona que os Portugueses eram amigos dos chefes da região, que não eram todos negros, havendo chefes brancos, mas que eram todos muçulmanos. Faziam comércio de plumas de avestruz e de peixe, “que aqui usam como moeda de troca” (Id., Ibid., 34). Mocquet já não refere o rendoso comércio de escravos e de ouro.     Arguim estava a entrar em franca decadência; embora periodicamente visitada pelos pescadores da Madeira e sob a jurisdição do bispo do Funchal, a sua situação militar era muito precária e a guarnição insustentável. A fortaleza de Arguim teve, em 1612, um projeto de reconstrução, a cargo do arquiteto-mor Leonardo Turriano (1559-1628), e elaborado com base nos dados que este recolhera quando estivera em idêntica função nas Canárias, entre 1588 e 1590, sendo muito provável que se tenha deslocado a Arguim. O projeto, no entanto, não passou do papel: não há registo de qualquer despesa ou movimentação de pessoal nesses anos.     A pequena fortaleza de Arguim acabaria por ser conquistada, em 1638, por forças holandesas e, alguns anos mais tarde, por forças inglesas, sendo posteriormente recuperada pelos Holandeses, até que, em setembro de 1678, foi arrasada por forças francesas, embora depois tenha sido pontualmente reconstruída pelos Franceses. Devem datar de meados do séc. XVII (de cerca de 1665) os dois desenhos flamengos de Johannes Vingboons (1616/1617-1670) que sobreviveram e que parecem representar já a remodelação de Arguim pelos Holandeses. Em 1685, estava quase abandonada, sendo então ocupada por tropas brandeburguesas, transformando-se Arguim na primeira colónia do principado de Brandeburgo. Em 1701, com a incorporação do principado no reino da Prússia, Arguim transitou para o controlo prussiano. Em 1721, perante o desinteresse da Prússia pelas suas colónias africanas, o território voltou à posse da França, momento a partir do qual se fazem muitas representações cartográficas e, inclusivamente, um levantamento planimétrico de Arguim, com Perrier de Salvert, a 8 de março de 1721.   Mapa de Arguim de Gerard van Keulen-1720   A praça seria novamente perdida para os Holandeses no ano subsequente, voltando todavia à posse dos Franceses em 1724, que ali permaneceram até 1728, ano em que abandonaram a ilha ao controlo dos líderes tribais mauritanos. Fez-se explodir a fortificação por ocasião da retirada, pouco devendo ter restado dela. A ilha regressou ao controlo francês nos princípios do séc. XX, quando foi incorporada no então protetorado da Mauritânia; em 1960, com a independência da Mauritânia, Arguim passou a fazer parte do território do novo Estado.       Teatro. A Ilha de Arguim, de Francisco Pestana Durante a sua conturbada história, a ilha foi sempre um dos centros do comércio de goma-arábica e, durante muitos anos, um importante local de caça de tartarugas marinhas e de outras atividades mais ou menos artesanais, em que estavam inclusivamente envolvidos pescadores madeirenses – isso justifica a existência de várias pequenas embarcações, quer no Funchal, quer em Câmara de Lobos, com o nome de Arguim. Embora alguns dos seus proprietários não saibam onde fica, e se tenham limitado a repetir os nomes que já os pais e avós tinham utilizado para as embarcações, subsistem lendas e narrativas populares sobre a ilha – que aparecia e desaparecia, que era o local para onde teria ido viver D. Sebastião, etc. –, que foram inclusivamente objeto de peças de teatro. Na época moderna, a dificuldade de navegação dos navios de algum calado nesta área, em razão dos bancos de areia e dos afloramentos rochosos, é patente no desastre ocorrido em julho de 1816 com a fragata francesa La Méduse, que transportava pessoal para a colónia do Senegal e que encalhou na região, sendo abandonada com grande perda de vidas. O acontecimento ficou imortalizado na obra Le Radeau de la Méduse (A Jangada da Medusa), do pintor francês Théodore Géricault (1781-1824), de 1818-1819. Arguim encontra-se ainda na base da fundação do Convento franciscano da cidade da Baía, no Brasil, como resultado da influência da lenda de S.to António de Arguim: nos inícios do séc. XVII, terá aparecido na costa brasileira, roubada por corsários franceses, uma imagem de S.to António, proveniente da antiga praça africana, pelo que o santo foi eleito padroeiro da cidade (padroado que perderia por proposta dos padres jesuítas, em 1686, passando para S. Francisco Xavier). Em suma: foi em Arguim que se localizou a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha foi sucessivamente ocupada por Portugueses, Holandeses, Ingleses, Prussianos e Franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios da antiga fortificação, tendo uma pequena povoação, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recoletores da etnia imraguen, sendo, para os madeirenses, provavelmente até aos inícios ou meados do séc. XX, um destino de pesca, e permanecendo no seu imaginário como uma antiga lenda. Pesacadores. Arguim. 2006   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017) Imagens: Arquivo Rui Carita

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almeida, luís beltrão de gouveia e

O governo do Gen. Luís Beltrão de Gouveia e Almeida, nascido por volta de 1750, caracterizou-se por uma intensificação das dificuldades com as forças britânicas, que permaneciam na Ilha mesmo depois do retorno à soberania portuguesa e da assinatura dos acordos de paz com a França (Guerras napoleónicas; Ocupações inglesas). A época marcou o início de uma certa retração económica da Madeira no quadro do Atlântico, de que resultou também um menor interesse na posição estratégica da Ilha, pelo que os interesses ingleses e norte-americanos se transferiram para outros locais, como os vizinhos arquipélagos das Canárias e dos Açores. Acrescia que, com a presença das forças britânicas na Madeira, ficaram patentes uma série de problemas económicos e sociais e os atritos no relacionamento com a Igreja Católica, dificuldades que não deixaram de aumentar durante esses anos. O Gov. Pedro Fagundes Bacelar de Antas e Meneses (c. 1760-1813) (Meneses, Pedro Fagundes Bacelar de Antas e), após quatro anos de difícil governo, sofreu, a 4 de maio de 1813, “um ataque de paralisia” que lhe afetou o lado direito (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 3197-3198), ficando o governo entregue ao velho secretário João Marques Caldeira de Campos (c. 1760-1814), que estava em São Lourenço há 35 anos. A 4 de julho, o governador ainda mandou escrever que estava a recuperar e, optando por um período de recuperação em Lisboa, acabou por ali falecer a 1 de novembro seguinte. O Governo português, então no Rio de Janeiro, já a de 30 de janeiro de 1813 nomeara como governador o Ten.-Gen. Luís Beltrão de Gouveia e Almeida (c. 1750-1814), com patente de governador da Madeira e do Porto Santo por três anos. O tenente-general tinha foro de fidalgo da Casa Real e iniciou o seu notável percurso na Campanha do Rossilhão, para onde fora destacado em 1793, regressando em 1795, depois do que foi promovido a coronel. Em 1799, foi comandar as tropas de São Salvador da Baía, capital do Reino do Brasil, com a patente de marechal, assumindo logo funções de inspeção-geral. Regressado ao continente, foi promovido a tenente-general do Exército em 1805 e, no ano seguinte, nomeado governador da Beira, no âmbito de cujas funções ficava encarregado de mudar o quartel-general da praça de Almeida e o regimento de Penamacor para Viseu, seguindo depois com a corte para o Brasil. Luis Beltrão de Gouveia de Almeida. 1814. A 23 de abril de 1813, o Ten.-Gen. Luís Beltrão foi avisado para comparecer, a 27 seguinte, “às dez horas da manhã”, no paço do Rio de Janeiro, “para dar nas Reais Mãos” juramento de menagem pelo “governo de capitão da ilha da Madeira” (ABM, Governo Civil, liv. 200, fl. 4v.). O novo governador chegou ao Funchal a 7 de agosto – “depois de uma longa, mas feliz viagem” – e tomou posse no dia 10 seguinte na Câmara do Funchal, para a qual já no dia anterior tinha enviado a sua carta régia para transcrição (Ibid., liv. 202, fl. 1). Somente a 22 de março do ano seguinte, demonstrando já algum distanciamento de certas práticas anteriores, entrou como “irmão protetor e presidente” da Confraria de N.ª Sr.ª da Soledade do Convento de S. Francisco do Funchal (ABM, Governo Civil, liv. 235, fl. 7), coisa que os seus antecessores tinham feito quase logo após tomar posse.     Armas de Luís Beltrão de Gouveia de Almeida. 1814.   Chegado à Madeira, o novo governador tratou de montar o seu gabinete, pedindo a presença, como ajudante de ordens, do Cap. Joaquim de Freitas e Aragão, e, tal como os seus antecessores, comunicou imediatamente ao Rio de Janeiro as informações obtidas acerca da situação na Europa. Assim, a 10 de setembro, escrevia que “parece que os soberanos da Europa vão conhecendo à sua própria custa o despotismo da França”. Nessa altura, enviou para o Rio de Janeiro várias “folhas” inglesas, incluindo o periódico Star, de 21 de agosto, cuja leitura permitia depreender que Napoleão pretendia “vir a Espanha, reparar as perdas que fez seu irmão, e erros dos seus marechais”; Luís Beltrão rematava: “Agora, porém, com esta notícia do armistício roto, não lhe falta sarna com que se coce no Norte” da Europa (Ibid., liv. 202, fl. 2). A partir de 1812, desenvolveu-se na Ilha uma forte reação contra a presença inglesa, chegando mesmo, nos inícios desse ano, a pensar-se em enviar o Cor. Alberto Andrade Perdigão ao Rio de Janeiro para expor a situação, aproveitando a Câmara do Funchal a ida do coronel à corte para apresentar ali alguns assuntos e atribuindo-lhe para isso, inclusivamente, um subsídio de 1600$000 réis (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, liv. 1367, fl. 88); todavia, a deslocação não se concretizou. Ao fim de quatro meses na Ilha, a 1 de novembro, Luís Beltrão elaborou o ponto da situação militar insular, apresentando o que denominou por “considerações” para salvar a colónia “das mãos dos Ingleses”, uma vez que estes “já a devoram, com as suas vistas e medidas ambiciosas, enquanto não podem de outro modo” fazer, pois “aspiravam à sua posse absoluta” (ABM, Governo Civil, liv. 202, fls. 5v.-10). Assim, os Ingleses controlavam nessa altura toda a estrutura militar, tal como fizera Napoleão em Espanha e em Portugal, corrompendo mesmo “alguns desgraçados Portugueses”. Como exemplo, apresentava o Ten. Alexandre Teles de Meneses, filho de uma Inglesa “e péssimo Português, vendido aos Ingleses”, que nos anos seguintes não deixaria de criar problemas. O oficial empenhara-se em obter para os comandos ingleses – tanto para Robert Meade (1772-1852) como para Hugh Mackay Gordon (1760-1823) – informações sobre os vários trabalhos de levantamento das costas da Madeira efetuados pelo Cap. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832). Por esse serviço, Teles de Meneses “recebia 30$000 réis por mês, para fornecer as plantas”, entretanto copiadas pelo “paisano” Vicente de Paula Teixeira (1785-1855). Tenente-General Hugh Mackay Gordon-1823. Arquivo Rui Carita.     No “empenho” e no “mistério e na despesa” aí envolvidos, aos quais se uniam a “corrupção e compra dos seus assalariados”, não podia estar outra coisa senão um “interesse oculto” dos Ingleses em possuir todos os elementos necessários a uma mais profunda ocupação e domínio da Madeira (ABM, Governo Civil, liv. 202, fls. 5v.-10).       Charles Stuart-George Hayter-1830. Arquivo Rui Carita   Em relação ao contingente militar da Ilha, que lhes poderia resistir, tinha sido opção inglesa a sua diminuição (com o objetivo de o aumentar posteriormente, caso isso fosse favorável aos Ingleses). Luís Beltrão dava como exemplo a atitude do Gen. Robert Meade, anterior comandante das forças inglesas, que instara junto de Charles Stuart (1779-1845) – futuro conde de Machico e embaixador inglês na corte do Rio de Janeiro – para que se efetuasse um recrutamento de 3000 homens para o Exército de Portugal. Além disso, o governador anterior tinha entregado, lamentavelmente, o comando dos regimentos de milícias aos Ingleses, deixando assim que o comando dos regimentos dependesse deles; num quadro destes, o governador não sabia atempadamente quando se reuniam as milícias, por que o faziam, as ordens que tinham e o destino que se lhes dava. A despesa feita pela Fazenda portuguesa com a tropa inglesa, até ao final do ano de 1812, tinha ascendido aos 85.977$299 réis. A 5 e a 25 de novembro de 1813, Luís Beltrão enviou dois extensos relatórios sobre o “estado da agricultura da Madeira e as formas de promover o seu desenvolvimento”, o tipo de terrenos da Ilha e os aspetos do clima, por vezes sujeito a intensos nevoeiros que tornavam a subsistência difícil, pois “as névoas de S. João tiram o azeite e não dão pão”. A principal questão colocada era a da dificuldade dos caminhos – referindo o governador “que não uso o termo estradas, porque não existem” – a que acresciam os problemas das águas, da reflorestação dos picos da Ilha e do direito de propriedade dos terrenos. Escreve o governador que “todo o terreno desta Ilha, com pouquíssimas, ou talvez nenhumas exceções, tem três donos”: o primeiro dono era o senhor direto (quando havia emprazamento, o que raras vezes acontecia); o segundo era o senhor útil (quando o terreno não caía em comissão, o que também poderia acontecer); o terceiro era o colono, aquele que “cultiva de meias” o terreno (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3281). Estrada Norte da Ilha. Paulo Dias de Almeida. 1828   Curiosamente, e ao contrário do modo de ver do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), em meados do século anterior, Beltrão de Gouveia considera que o colono é o que tira maior benefício do solo, “porque come e cria todo o ano, de que não paga meação, porque só a devem dos géneros da colheita”. Acrescenta, no entanto, que “o colono é quase um servo da gleba, sem o saber e sem o ser por lei”. Como remate, o governador insiste no sistema de levadas (Levadas), sobre o qual deverá incidir um maior investimento insular, inclusivamente sob os auspícios da Fazenda Real (algo que só viria a acontecer algumas décadas mais tarde). Como refere o governador, enquanto a Ilha estiver enfeudada à “prestação à Inglaterra”, ele próprio não se arrisca a uma proposta desse género (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3281). Foi certamente nos inícios da construção do sistema de levadas que Beltrão de Gouveia encomendou a Paulo Dias de Almeida um estudo sobre a possibilidade de uma estrada que atravessasse a Ilha de Norte a Sul, desde a calçada de N.ª Sr.ª do Monte até às planícies das “freguesias do Norte, Porto da Cruz, Faial e Santana”, que o governador enviou a 24 de setembro de 1813, juntamente com um orçamento de 24.254$700 réis, tendo também começado a reunir várias informações sobre as levadas da ilha da Madeira (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 3282-3284), e cuja planta ficou conservada nos arquivos militares (DSI, GEAEM, cota 1337-1A-12-15). Neste contexto, nos inícios de dezembro de 1813, convocava a primeira reunião da Junta de Melhoramentos da Agricultura, estrutura anteriormente concebida, mas que ainda não havia sido possível reunir efetivamente. A principal tarefa de Luís Beltrão de Gouveia foi, no entanto, a de tentar travar a tentativa de implantação, na Ilha, de uma estrutura militar completamente controlada pelo comando inglês. Durante este período, o Cor. Gordon pressionara o governador por diversas vezes, no sentido de obter, para os oficiais que considerava afetos à Inglaterra, os lugares cimeiros nos principais corpos militares. Usando os mais diversos subterfúgios, Beltrão de Gouveia conseguiu sempre furtar-se às nomeações em causa. Nesse quadro de contínuo conflito, em meados de dezembro de 1813, o governador voltava a defrontar-se com o comandante inglês. De facto, tendo sido determinadas as salvas de ordenança pelas fortalezas do Funchal comemorativas do “dia de aniversário de Sua Majestade a Rainha” D. Maria I, o Cor. Gordon não as autorizara na totalidade. Como depois o governador informa para o Rio de Janeiro, encontrar-se-ia doente a mulher do médico inglês Shanthear e, para seu espanto, somente salvou a fortaleza do Ilhéu e metade do que lhe competia (ABM, Governo Civil, liv. 202, fl. 17), não tendo salvado a fortaleza do Pico , como também lhe competia. No final do mês, outro acontecimento veio azedar ainda mais as relações entre o governador e o Cor. Hugh Gordon. O Conselho de Guerra inglês condenara à morte um soldado que assassinara, num ato de insubordinação, um sargento. Ao saber do ocorrido e na iminência da execução, o Gov. Beltrão de Gouveia intercedeu junto do Cor. Hugh Gordon, referindo os inconvenientes de tal atitude, mostrando-lhe que essa execução “ofendia os direitos territoriais do soberano português, lembrando-lhe que Luís XIV expulsara a Rainha Cristina da Suécia, por mandar enforcar o seu secretário, quando se achava viajando naquele país e que no Rio de Janeiro, os senhores almirantes ingleses Curry e Dickson, respeitando o território português, mandavam cumprir as execuções capitais no alto do mar, a bordo de um navio de guerra” (ABM, Governo Civil, liv. 202, fls. 19v.-20). A indicação sobre a Rainha Cristina da Suécia não estaria correta, pois o seu secretário terá morrido noutras circunstâncias (salvo se o governador soubesse de outros pormenores que não sejam do domínio público). A execução, no entanto, acabou por ser cumprida no forte da Penha de França, tendo a ela assistido o Sarg.-mor do Batalhão de Artilharia, António Fernandes Camacho, em representação do comando português. A cerimónia foi feita perante a formatura geral das forças inglesas e do regimento de artilharia português, que, em conjunto, formaram um círculo em torno do local da execução. A sentença foi lida pelo major White, “achando-se armada uma forca, tendo-se exortado o soldado que ia ser enforcado por ter matado com um tiro de fuzil ao seu sargento. Ao meio-dia em ponto se enforcou o dito soldado, estando pendurado por espaço de uma hora”. As forças militares inglesas desfilaram perante o enforcado e só depois o carrasco cortou a corda, tendo o corpo caído para um carro e sido transportado para o Convento de S. Francisco (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 3313-3316). A reação de repulsa a este atropelo dos direitos dos Portugueses foi tal que nos princípios do séc. XX era ainda usual voltar a cara para o lado do mar quando se passava em frente dos muros desta velha fortaleza. Agravava ainda o facto ocorrido serem raríssimas as execuções capitais na ilha da Madeira, não havendo a elas qualquer outra referência nesta época. Os problemas entre o governador e as forças britânicas continuaram a existir e, em fevereiro de 1814, surgiram novas questões envolvendo a chegada ao Funchal de mais uma brigada de peças de artilharia. Londres, em vez de retirar as suas forças da Ilha, quando já se adivinhava o colapso de Napoleão em França, ainda as reforçava com mais armamento. A reação do governador foi protelar, como podia, o despacho do armamento, mandando inspecionar demoradamente todas as embalagens. Disso mesmo se queixou o Cor. Gordon a Londres: “todos” os artigos que chegavam à Madeira, destinados às forças britânicas, eram abertos e “demoradamente” examinados, o que o general entendia ser “contra a Convenção” entre os dois Governos e portanto uma “ofensa ao Governo britânico” (RODRIGUES, 1999, 398). A zona marítima da Madeira continuava, entretanto, a ser um dos palcos privilegiados da guerra de corso que opunha as potências marítimas, lideradas pela Grã-Bretanha, às continentais, lideradas pela França. A 6 de fevereiro de 1814, nomeadamente, entravam no porto do Funchal as naus S. Paulo, espanhola, com graves avarias, e a Magestic, inglesa, sob o comando do Cap. Hayes. O Gov. Luís Beltrão informava, então, que a nau inglesa estava transformada em fragata de guerra e que trazia, aprisionada, a fragata francesa Terpsichore, assim como 320 prisioneiros franceses. A fragata francesa tinha sido tomada no espaço marítimo compreendido entre a Madeira e a ilha de Santa Maria, nos Açores, e fazia parte de um conjunto de três fragatas que tinham tomado uma galera espanhola vinda de Lima, na América do Sul (na galera espanhola viajavam o marquês e a marquesa de Lima, que morreram na viagem). Em maio desse mesmo ano, o governador dava conta de que duas fragatas francesas (provavelmente as do conjunto de que fazia parte a fragata Terpsichore) haviam metido a pique o navio Conde das Galveias e o bergantim Bom Sucesso e Dois Amigos, cujos tripulantes e passageiros acabavam de chegar à Madeira, transportados pela galera portuguesa Comerciante. Esta época marca uma nova tentativa de abertura à Rússia, com a presença habitual de navios daquela nacionalidade no porto do Funchal, tendo-se o governador inclusivamente deslocado, logo em outubro de 1813, ano da sua nomeação, num bergantim russo, o Heleno, comandado pelo Cap. Drack Maschek, com 10 pessoas a bordo, o qual levara 60 dias de São Petersburgo a Portsmoyuth e 20 dias de Portsmoyuth ao Funchal. Em finais de 1812, tinha chegado à Madeira um “cônsul Ruciano”, o cavaleiro de Borel (ABM, Governo Civil, liv. 198, fl. 79v.), o qual em 1815 seria altamente elogiado pelo bispo de Meliapor, D. Fr. Francisco Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828) (Ataíde, D. Fr. Francisco Joaquim de Meneses e), vigário apostólico do Funchal. Em fevereiro de 1814, o governador informava o conde das Galveias, D. Francisco de Almeida de Melo e Castro (1758-1819), no Rio de Janeiro, que o Imperador da Rússia enviara a Henrique Correia de Vilhena Henriques (1769-c. 1830), irmão do visconde de Torre Bela (1768-1821), um magnífico anel de brilhantes em reconhecimento pelos serviços prestados em prol do estreitamento das relações comerciais entre a Rússia e a ilha da Madeira; em anexo à sua carta, envia a transcrição da carta do conde de Romanov, em francês, escrita em nome do Imperador, “mon maître” [“meu senhor”], no dizer do conde de Romanov, datada de 23 de outubro do ano anterior, bem como o anel para Henrique de Vilhena (ABM, Governo Civil, liv. 220, fl. 22v.). As relações intensificar-se-iam nos anos seguintes, com a estadia do futuro conde do Porto Santo, António de Saldanha da Gama (1778-1839), como ministro plenipotenciário na Rússia (que passaria pela Madeira entre finais de 1818 e inícios de 1819). Nos meses seguintes, avolumaram-se na Madeira as notícias das vitórias aliadas na Europa contra as forças napoleónicas, que o governador imediatamente comunicava, primeiro ao conde das Galveias e, em seguida, ao novo secretário de Estado, D. Fernando José de Portugal e Castro (1752-1817), marquês de Aguiar, na corte do Rio de Janeiro. Em abril e maio de 1814, e.g., comunicava ao Rio de Janeiro a entrada do “Exército Aliado do Norte” em Paris, os boatos de paz e as indemnizações de guerra pedidas pelos diversos Estados. Ainda nesse mês de maio, perante a confirmação da queda de Napoleão e o início das negociações de paz, o governador queixava-se da manutenção das forças inglesas na Madeira e manifestava os seus receios em relação às pretensões ocultas da Inglaterra sobre a Ilha (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 21v. e 22). Na sequência das informações recebidas sobre as futuras negociações a realizar em Paris, o Gov. Beltrão de Gouveia sugeria “que Sua Alteza Real tivesse também no Congresso quem o representasse com dignidade e interesse”, pois só dessa forma poderia salvar os seus Estados “de algum sacrifício”, numa provável alusão à situação da Madeira, ocupada por forças britânicas. Os receios do governador eram mais do que justificados, tendo este chegado a sugerir que um dos aliados de Portugal fosse o Imperador da Rússia, que tinha então três navios estacionados no Funchal. O Imperador era, porém, um dos aliados preferenciais da Inglaterra, que esta respeitava mas que também temia. O príncipe regente deveria, assim, fazer-se representar “com toda a sua luz naquele Congresso” por pessoas que o fizessem “com dignidade e muita fidelidade”, assim como interessar “eficazmente na nossa causa o Imperador da Rússia, que tem em vistas um mais intensivo comércio com o Brasil e com esta Ilha” (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 32v.-33). Nessa época, os navios espanhóis voltaram a fazer escala na Madeira, instalando-se novamente um consulado espanhol na Ilha. Entre problemas vários, refira-se a chegada da nau S. Paulo, comandada por D. António Pacaro. A nau arribara à Madeira devido a avarias sofridas no mar alto ao longo de uma viagem de 78 dias, encontrando-se a sua tripulação e passageiros, no total mais de 150 homens, atacados por escorbuto. Parte deles teve mesmo de ser transportada em padiolas para o Hospital da Misericórdia no Funchal. Com vista ao seu restabelecimento, o governador mandou alugar uma casa a Pedro Jorge Monteiro, afastada da cidade; e para o conserto da nau o morgado João de Carvalhal (1778-1837) (Carvalhal, 1º conde de) mandou cortar madeira nas suas vastas propriedades, e “não aceitou [o] preço dela” (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 29v.-30v.). Por outro lado, voltava a assumir um certo protagonismo o consulado norte-americano, cujo cônsul, Diogo Leandro Cathecart, se queixava, nos inícios de junho de 1814, de que a escuna britânica Ecclipse arvorara o pavilhão dos Estados Unidos por baixo do pavilhão inglês. De facto, “no dia 4, aniversário de Sua Majestade britânica, lembrou-se Guilherme Corneille”, comandante da referida escuna, de hastear desse modo as bandeiras. O governador refere que o assunto não tinha sido senão uma brincadeira, mas não deixava de ser uma ofensa à nação norte-americana. Na mesma altura, o cônsul comunica ao governador o interesse de um comerciante residente em Lisboa, Nicolau George Querk, “irlandês de um excelente carácter”, em adquirir alguns terrenos na Madeira, e também os receios que havia sobre as intenções inglesas a respeito da Ilha (ABM, Governo Civil, liv. 220, fl. 36).   George Day Welsh Também por essa altura, o governador informava o Rio de Janeiro de uma nova forma de posicionamento dos Ingleses na Ilha, que até essa data não tinha sido muito notória, mas que não escapara a Luís Beltrão, algo que, segundo o governador, “prova alguns temores que tenho exposto nos ofícios que tenho enviado a V. Ex.ª” (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 30v.-31). O assunto dizia respeito a D. Vicência de Freitas, filha de uma irmã do visconde de Torre Bela e viúva do Ten.-Cor. Francisco Anacleto de Figueiroa (c. 1760-1812), por sua vez primo de D. Antónia Basília de Brito Herédia, mulher de D. António de Saldanha da Gama (1778-1839), então ministro português na Rússia e futuro conde do Porto Santo. D. Vicência contraíra matrimónio com o súbdito inglês George Day Welsh (1776-c. 1830), natural dos Estados Unidos e residente na Ilha pelo menos desde 1808. O casamento ocorrera a bordo de uma nau inglesa, ao largo do Funchal, e segundo o rito anglicano, visto o bispo vigário apostólico do Funchal e o núncio de Lisboa se terem negado a conceder as necessárias licenças. Os nubentes haviam embarcado na nau e, “passadas quatro horas, voltavam ao porto” (Ibid.), casados. Acrescentava Luís Beltrão que “nem o visconde, nem outros poucos parentes aprovavam tal casamento e suas circunstâncias” (Ibid.); no entanto, os outros parentes (pelos vistos, a maior parte), sendo do seu interesse, não se importariam. Acontecia que George Welsh mantinha, por vezes, longas demandas com a vereação camarária, como acontecera em 1812, quando acusou o guarda da bandeira e intérprete da Casa da Saúde, José Joaquim da Costa, de carregar carne salgada em dois navios espanhóis que estavam de quarentena. Como alertava o governador, a comunidade inglesa começava, deste modo, a adquirir um vasto património imobiliário, o que envolvia problemas vários, entre os quais os decorrentes da venda de capelas, v.g., a capela pertencente a Bento da Veiga, fundada em 1580, em cujo terreno, adquirido pelo comerciante Robert Blackburn, teria origem a quinta da Palmeira, desaparecendo a capela. Ora, tais aquisições não se haviam registado até então, e os comerciantes estrangeiros não recusavam agora, inclusivamente, casar-se com elementos das principais famílias locais. Em meados desse ano de 1814, dois acontecimentos vieram, entretanto, possibilitar a alteração da forma de posicionamento do governo da Ilha em relação às pretensões inglesas. Em finais de janeiro, tinha adoecido gravemente o secretário do governador, João Marques Caldeira de Campos, uma das figuras mais importantes da Ilha e o grande apoio dos governadores anteriores. O secretário encontrava-se na Madeira há 36 anos e era um profundo conhecedor dos problemas da Ilha. No ano anterior, aquando da doença de Pedro Bacelar, assumira inclusivamente o gabinete do governador e tinha tido o cuidado de informar a corte do Rio de Janeiro de que essa seria a solução ideal até ser nomeado um novo governador, pois sobre a nomeação de um governo interino não tinha quaisquer dúvidas: “Que Deus nos livre” (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3197). Luís Beltrão não teve outra hipótese senão nomear um novo secretário interinamente, Gaspar Pedro de Sousa e Almada. Infelizmente, a doença era irreversível e a 5 de março o velho secretário falecia, pelo que o governador pediu a nomeação definitiva de Sousa e Almada, a que a corte anuiu a 6 de junho. A comunicação, com data de 10 do mesmo mês de junho, chegou ao Funchal a 9 de agosto de 1814, com uma rapidez muito pouco usual. Às duas horas da madrugada de 28 de junho de 1814, no palácio de S. Lourenço, repentinamente (o que gerou alguma celeuma), o Gov. e Cap.-Gen. Luís Beltrão de Gouveia e Almeida era “atacado de uma fortíssima apoplexia” que o levaria “à eternidade” a 1 de julho. Foi sepultado na capela do Santíssimo da Sé do Funchal (ABM, Governo Civil, liv. 220, fls. 38v.). Aparentemente, abria-se uma brecha nas autoridades superiores da Madeira e seria de esperar que o comando inglês aproveitasse de imediato a situação para alargar a sua influência. No entanto, não foi isso que aconteceu, pois o governo interino não autorizou este tipo de manobra por parte do comandante inglês, além de que uma nova convenção, assinada com o Governo inglês, cessara com a paz recentemente assinada.   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

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