cunha, bartolomeu vasconcelos da
O governador e capitão-general Bartolomeu Vasconcelos da Cunha era filho de Francisco de Vasconcelos da Cunha, governador de Angola entre 1635 e 1639, e que tivera o título de conde do Porto Santo. Tomou posse do governo da Madeira a 16 de outubro de 1651 e, ao contrário dos seus antecessores, não teve especiais problemas com os provedores da Fazenda nem com os juízes de fora do Funchal, ou com os corregedores. Com o aumento de movimento no porto do Funchal, datam da sua vigência como governador as complexas obras de fortificação do Ilhéu Grande do porto do Funchal. Este governador veio para o Funchal acompanhado de uma senhora que não era a sua mulher, de quem teve vários filhos, mas tal não obstou que fosse depois governador interino de Angola e general na Índia, perdendo-se depois no mar, vindo para o Reino em 1663. Palavras-chave: arquitetura militar; cartografia; fortificação; Guerras do Brasil; Guerras da Aclamação; relações institucionais. Armas da família Vasconcelos. 1515. Arquivo Rui Carita O governador e capitão-general Bartolomeu Vasconcelos da Cunha (c. 1610-1663), a quem chamaram na Ilha “o Monstrinho” (NORONHA, 1996, 55), era filho de Francisco de Vasconcelos da Cunha, governador e capitão-general de Angola entre 1635 e 1639, e de sua segunda mulher, D. Isabel de Brito. A família ocupara desde os meados do século anterior importantes postos no quadro do Império, tendo o homónimo bisavô, em princípio, comandado a armada que em 1559 partiu de Lisboa e, no ano seguinte, com o governador Mem de Sá, desalojou os Franceses da baía de Guanabara do Rio de Janeiro, no Brasil. O jovem Bartolomeu Vasconcelos da Cunha participara nas campanhas da Catalunha e de Milão, onde foi capitão de cavalaria, oferecendo-se por requerimento de 26 de maio de 1636, quando o pai se encontrava como governador e capitão-general de Angola, a D. Filipe III (1605-1665), pedindo que lhe fizesse a mercê de uma companhia de Infantaria do Terço, com o título de capitão, oferecendo a sua fazenda ao serviço real, para participar na restauração da capitania de Pernambuco. Com a aclamação de D. João IV em Lisboa, achando-se o pai, Francisco de Vasconcelos da Cunha, na corte de Madrid – e despachado com o título de conde do Porto Santo, dada a sua ascendência nos Mendes de Vasconcelos, pontualmente governadores nesta Ilha e com muita fazenda nas Índias de Castela, que tinha comércio com Angola –, largou tudo e veio para Lisboa, sendo recompensado com a comenda de S. Cristóvão de Nogueira e de S.ta Maria da Torre da Horta, na Ordem de Cristo. O mesmo se passou com o filho, Bartolomeu Vasconcelos da Cunha, então nas campanhas do Brasil, e que regressou também ao continente, participando depois nas campanhas da Aclamação, em Olivença, onde atingiu o posto de mestre-de-campo. Foi-lhe passada a patente para o governo da Madeira em 23 de agosto de 1651, de que deu menagem em Lisboa ao primeiro de outubro do próprio ano, e a 16 tomou posse na Câmara do Funchal, na presença do anterior governador, Manuel Lobo da Silva (c. 1610-c. 1695). O novo governador não veio para o Funchal com a mulher, Juliana de Melo, sua prima, filha de José de Melo, irmão de sua mãe, mas com Antónia Micaela da Cunha. Esta senhora era filha de Tomás Bação e Catarina da Cunha, e sobrinha do inquisidor Francisco Cardoso de Torneo, bispo eleito de Portalegre, que estivera em visitação na Madeira em 1618, no tempo do governador Pedro da Silva (c. 1580-1639) (Inquisição). Essa situação deve ter levado o zeloso cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) a abster-se sobre esse assunto, limitando as suas informações a referir que no Funchal, em 1654, tinha nascido Troilo Vasconcelos da Cunha (1654-1729) (Cunha, Troilo Vasconcelos da), depois funcionário superior da Junta dos Três Estados e autor de várias composições poéticas. A atuação do novo governador Bartolomeu Vasconcelos da Cunha foi excecionalmente discreta, não havendo especiais problemas com os provedores da Fazenda nem com os juízes de fora do Funchal, ou com os corregedores, como ocorrera com os seus antecessores. Até então esses desentendimentos eram frequentes e continuaram, colocando de sobressalto as populações. O relacionamento estreito, no entanto, até porque não usual, também era de desconfiar. O mercador Diogo Fernandes Branco (filho) (c. 1636-1683), então a residir em Lisboa, foi prontamente informado das relações de Bartolomeu Vasconcelos com o ouvidor da capitania do Funchal António Ferreira Pinheiro, comunicando-lhe o gerente da sua casa comercial, em carta de 12 de dezembro de 1651, que o novo governador nada fazia nem despachava sem o conselho do ouvidor “e por ele se governa” (VIEIRA, 1996, 233), insinuando assim proceder por advertência do conde-capitão. A casa dos Condes da Calheta era então gerida pelo 4.º conde, João Gonçalves da Câmara V (1590-1656), que se casou duas vezes, dado a primeira mulher ter falecido de parto. Do segundo casamento teve uma filha, Mariana de Lencastre Vasconcelos e Câmara (c. 1610-1698), que se casou com o primo, João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658), 2.º conde de Castelo Melhor, sendo possível que nesta data já houvesse uma certa ligação destas duas casas senhoriais a tudo o que dissesse respeito ao Funchal, até pela instituição da Companhia Geral do Comércio do Brasil, tendo o 2.º conde, pelo menos em outubro de 1649, ancorado no Funchal, a caminho do Brasil. Com o aumento de movimento no porto do Funchal, principalmente devido às relações preferenciais com o Brasil, data do início da vigência do governador Bartolomeu Vasconcelos da Cunha o recomeço das complexas obras de fortificação do ilhéu Grande do porto do Funchal. O pedido foi enviado para Lisboa pelo provedor da Fazenda do Funchal, com data de 5 de outubro de 1651, citando que os moradores da Ilha tinham pedido ao governador, aquando da sua chegada, que o mesmo requeresse ao Rei que se fizesse uma fortaleza no ilhéu “que está junto neste porto, para segurança do mar e embarcações que nele estão cada hora” (ANTT, JPRFF, liv. 396, fl. 7v). O provedor especifica que lhe parecia “obra muito necessária, porque com o dito reduto feito no dito Ilhéu, nos não cometerão os piratas tantas vezes, como o fazem, acanhoando os que no Porto estão, de que recebiam perda & da terra os não podiam defender em nada, por estar distante a artilharia”. Acrescenta ainda que o gasto na obra seria mínimo para a fazenda, dado ser do “donativo, que os moradores desta Ilha em si puseram para reparo & guarda dela” (Id., Ibid.). O governador também escreveu para Lisboa no mês seguinte e a resposta veio pouco tempo depois, com data de 10 de fevereiro do ano seguinte e dirigida ao mesmo. Cita então que se tinha visto a carta de 6 de novembro, em que se transmitia o pedido dos “moradores da dita ilha, oficiais da Câmara, nobreza, militares e eclesiásticos” (ARM, Ibid.; RG, t. 6, fls. 116v-117) e se tinha visto também a planta enviada. Em face das informações enviadas pelo governador e pelo provedor, de que nos trabalhos se recorreria ao pessoal das companhias de ordenanças: “vos valeríeis da gente da terra, por companhias, ou esquadras” e “que para a alvenaria os ditos moradores se ajustariam convosco, de sorte que acudiriam à obra com as pessoas e fazendas”, o Rei autorizou o início da construção. Pedia, no entanto, para ser informado das necessidades de artilharia e alvitra a deslocação de pessoal da “outra fortaleza que hoje há”, ou seja, S. Lourenço, tal como se fazia na barra de Lisboa com as fortalezas de S. Julião da Barra e de S. Lourenço da Cabeça Seca, o Bugio, “para se escusarem outros soldados e despesas” (Id., Ibid.). Os primeiros trabalhos na área datavam da época do governador D. João de Menezes (c. 1600-1649), entre 1634 e 1636, mas a inscrição que Bartolomeu Vasconcelos da Cunha mandou colocar sobre a pequena porta superior refere que foi feita no tempo do seu governo e da primeira pedra. Claro que não foi e nem foi acabada, como prova o mapa do engenheiro Bartolomeu João (c. 1590-1658), num desenho muito rudimentar e que pouco tem que ver com a fortaleza que conhecemos hoje, totalmente reconstruída mais de 100 anos depois, pelo engenheiro Francisco de Alincourt (1733-1816). Fortaleza do Ilhéu. 1654. Arquivo Rui Carita. Ao longo do seu governo, Bartolomeu Vasconcelos da Cunha consolidou a organização da companhia do presídio da fortaleza e foi preenchendo os lugares de chefia militar que foram vagando. Em 1653, ou pouco antes, tinha falecido Martim Mendes de Vasconcelos, que exercera o lugar de governador do Porto Santo ao longo de 33 anos, família na qual o governador colocava os seus ancestrais. Foi nomeado para o lugar o capitão Roque Ferreira de Vasconcelos, até então capitão entretenido, com alvará régio de 8 de julho de 1641. Fez juramento e menagem do cargo a 2 de maio de 1653, perante o governador da Madeira. O governador, no entanto, não concordara com a nomeação, informando o Rei de que, se a escolha dependesse da sua vontade, recairia sobre Jorge Moniz de Meneses. Reconhecia ao recém-nomeado “qualidades e partes” (ANTT, Conselho de Guerra, consultas, mç. 14, doc. 66), mas considerava um grave impedimento a sua avançada idade. Sepultuta do licenciado Bento de Matos Coutinho. Arquivo Rui Carita Em 1652 houve protesto dos artilheiros, que eram auditados, desde o alvará de 30 de maio de 1648, pelo juiz de fora do Funchal, função anteriormente exercida pelo auditor de guerra e pelo licenciado Bento de Matos Coutinho (c. 1595-1651), cargo então extinto pelo Conselho da Fazenda. A pedido dos mesmos artilheiros, D. João IV escreveu ao governador, a 22 de dezembro de 1652, para que o lugar voltasse a ser instalado. Contudo, 40 anos depois, ouvidos dois dos governadores, voltava-se a desobrigar Manuel Maciel de Afonseca do cargo de auditor-geral da gente de guerra do presídio e as funções regressavam ao juiz de fora do Funchal. O governo de Bartolomeu Vasconcelos da Cunha ficou marcado pela execução do mapa da Madeira de Bartolomeu João: “Descrição da Ilha da Madeira, cidade do Funchal, lugares, ribeiras, portos e enceadas, e mais secretos; feita por Bartolomeu João, engenheiro dela em tempo do governador, capitão desta ilha no ano de 1654”, que o investigador Paul Alexander Zino (1916-2004) localizou em Londres, em 1940, à venda na casa de Francis Edward Lda. O assunto foi comunicado ao Arquivo Histórico-Militar de Lisboa mas, não se conseguindo a verba necessária para a sua aquisição, a carta foi adquirida pelo investigador madeirense, regressando ao Funchal, de onde teria sido levada pelo coronel William Henry Clinton (1769-1846), na primeira ocupação britânica de 1801-1802 (Ocupações britânicas). Carta de Bartolomeu João. 1654. Arquivo Rui Carita A referência que temos a uma carta deste género executada por Bartolomeu João é anterior a 1654 e mandou-a executar o governador Nuno Pereira Freire (c. 1590-c. 1650), em outubro de 1642, para ser enviada ao Rei (Cartografia). Por certo, o mestre das obras deve ter ficado com elementos para executar outra carta para o novo governador, a qual, muito provavelmente, teria sido novamente enviada ao Rei, mas ficando um exemplar em S. Lourenço, de que há referência ali se encontrar em 1799. Sendo a carta de Bartolomeu João proveniente da biblioteca da abadia de Welbeck, dos duques de Newcastle, a cuja família pertencia o coronel Clinton, este teria levado a carta na sua bagagem de regresso a Londres, oferecendo-a depois a seu primo duque. Esta carta é essencial para o estudo da arquitetura militar da Madeira e não só, sendo um dos mais importantes e completos documentos iconográficos, somente com paralelo, mas bastante tempo depois, na grande vista do Funchal de Thomas Hearne (1744-1817), datada de 1772. A 6 de dezembro de 1653, faleceu em Lisboa o príncipe herdeiro, D. Teodósio (1634-1653), somente com 19 anos, mas que se havia já imposto como herdeiro do trono, recebendo o título de 9.º duque de Bragança e depois o de príncipe do Brasil, pelo que parte da correspondência para o Funchal sobre o donativo para as levas para ali recrutadas já era assinada pelo príncipe. O seu falecimento abriu uma crise política, com consequências futuras ainda mais graves, pois se a sua educação tinha sido preparada cuidadosamente, tendo sido seu mestre o P.e António Vieira (1608-1697), tinha-se descuidado francamente a educação do segundo filho, o infante D. Afonso (1643-1683). Para o governador da Madeira também teria sido uma grave contrariedade, pois era moço-fidalgo do paço o seu filho mais velho, Francisco de Vasconcelos da Cunha (c. 1630-1662), que com o falecimento do príncipe, “desenganado das bem fundadas esperanças que tinha deste grande Príncipe, ou por superior vocação, deixou os morgados e as comendas de seu pai e avô, em que havia de suceder por mercê já feita e se recolheu à Religião da Companhia de Jesus” (COSTA, III, 1712, Ibid., 555), onde viria a falecer. Com a morte do infante D. Teodósio foram marcadas as cortes para juramento do novo herdeiro, aproveitando-se o ensejo para a reunião do capítulo geral da Ordem de Cristo, em Tomar e em setembro desse ano de 1653. No entanto, até pela doença de D. João IV, e à semelhança do que acontecera antes, as cortes acabam por se reunir em Lisboa, com o clero em S. Domingos, a nobreza em S. Roque (junto dos Jesuítas) e o terceiro estado em S. Francisco (como era lógico, junto dos franciscanos). Foi nestas cortes que apareceram os primeiros pedidos dos Açores e da Madeira para se fazerem representar em cortes, na primeira fila, o que não deixa de ser um pedido estranho. Aliás, os procuradores da cidade de Angra às cortes de 1653 chegam a pedir ao Rei que, para o arquipélago dos Açores, nunca houvesse vice-Rei nem governador nas várias ilhas. A questão tinha por base pedidos anteriores, logo a seguir à aclamação, mas que só foram a despacho nove anos depois, uma vez analisada pelo desembargador Tomé Pinheiro da Veiga (1570-1656), “procurador da minha Coroa” (ABM, Ibid., fl. 118v), tendo a resposta afirmativa chegado com data de 6 de julho de 1654. As câmaras do Funchal e das vilas, todas em situação difícil, não encontraram, no entanto, uma maneira de conseguir receita para manter um procurador às cortes, nem atinaram com pessoa que pudesse, à sua própria custa, desempenhar o cargo honroso de figurar na primeira bancada. Nos inícios de 1655 foi apresentado novo governador para a Madeira, então Pedro da Silva da Cunha (c. 1610-c. 1670), que tomou posse a 22 de abril desse ano, regressando Bartolomeu Vasconcelos da Cunha a Lisboa. No entanto, o ex-governador foi preso, “tanto que chegou”, como escreveu António Carvalho da Costa (1650-1715), “até aparecer a dita D. Antónia no convento de Santana, onde faleceu” (COSTA, Ibid., 556). A situação, no entanto, não afetou a carreira política e militar de Bartolomeu Vasconcelos da Cunha, que passou no ano seguinte à Índia, como capitão-mor das naus, mas que, passando por Angola, entre os meados de 1653 e outubro de 1654, foi aí governador interino, sendo depois general de Mormugão, Terras de Salsete, Bardes e fortaleza da Ganda, na barra de Goa, e depois de ocupar estes postos se perdeu no mar, vindo para o reino no ano de 1663. Da sua ligação com Antónia Micaela da Cunha teve Bartolomeu Vasconcelos da Cunha: Maria de Vasconcelos, que morreu religiosa no Convento de Santana em Lisboa, para onde entrara com a mãe; Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, religioso da Santíssima Trindade, em Lisboa, aonde se recolhera depois de ocupar vários postos de guerra, “deixando as esperanças de outros maiores” (Id., Ibid., 556), para que estava apontado, e que ainda era vivo em 1712; o poeta Troilo de Vasconcelos da Cunha, nascido no Funchal, como acima escrevemos, que se casou com Mónica da Silva Coutinho, cujo pai era o alemão João Herve, e a mãe Mariana da Silva Coutinho, mas cuja descendência entrou toda para ordens religiosas; e Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, por certo também nascido no Funchal, que em 1712 era “moço-fidalgo da Casa de Sua Majestade, como o foram seus pais e avós, aos quais imitando, serve a el-Rei na guerra” (Id., Ibid.). A mulher do antigo governador da Madeira, Juliana de Melo, deve ter falecido quando o marido estava no Funchal, pois este Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha teve alvará de moço-fidalgo com data de 15 de setembro de 1657, sendo então dado como “filho natural” (TORRES, 1840, 303). O pai, tal como o filho Troilo Vasconcelos da Cunha, cultivou largamente a heráldica e a genealogia, havendo na biblioteca do último uma coleção interessante de trabalhos sobre os Vasconcelos, onde se encontra, inclusive, um que foi impresso em Madrid, em 1646, a “favor de Bartolomeu de Vasconcelos” (Id., Ibid., 4), o que não deixa de ser interessante, pois tanto Francisco como o filho, depois governador da Madeira, tinham optado, logo em 1640 ou em 1641, pelo apoio à realeza de D. João IV. Rui Carita (atualizado a 03.03.2017)
conde de lançarote (herrera, agustín de)
D. Agustín de Herrera y Rojas (1537-1598), senhor de Forteventura e conde de Lançarote, acompanhou a partir das Canárias a crise sucessória portuguesa (Crise sucessória de 1580) e a presença de D. António, Prior do Crato (1531-1595) nos Açores, pelo que, abordando a 26 de janeiro de 1582 a situação naquele arquipélago, ofereceu os seus serviços a Filipe II (1527-1598), o qual, de imediato, o aproveitou para governador militar da Madeira. O oferecimento do conde de Lançarote terá chegado a Lisboa no mês de fevereiro, numa carta em que enunciava as medidas que tinha tomado nas Canárias em relação aos navios portugueses e continha algumas informações sumárias sobre os acessos à ilha Terceira, cuja única abordagem possível seria pela vila da Praia, mas com “mais gente e mais governo, pois era gente obstinada e preparada”, mostrando ter tido conhecimento do desastre da Batalha da Salga, naquela ilha, a 25 de julho de 1581, onde as forças ibéricas de Filipe II tinham sido rechaçadas. A carta remata: “Se sou de algum serviço no mar ou em terra, mande que ordenem de mim como de fiel vassalo e criado” (Arquivo do Museu Naval de Madrid, Colección Sans de Barutell, mç. 4, doc. 592). Embora Filipe II se tivesse comprometido nas cortes de Tomar a não nomear governadores que não fossem portugueses, face à situação de emergência, nomeou o conde de Lançarote como capitão da ilha da Madeira, a 19 de março de 1582, e, no mesmo dia, escreveu ao duque de Medina Sidónia, D. Alonso Pérez de Guzmán y Sotomayor, ou Alonso Pérez de Guzmán el Bueno y Zúñiga (1550-1615), avô da futura duquesa de Bragança, D. Luísa de Guzmán (1613-1665), a comunicar-lhe a nomeação para “capitão de guerra” da “ilha Madeira que, como sabeis, é destes reinos de Portugal, e a sua guarda e segurança” de grande importância (AGS, Guerra y Marina, mç. 134, docs. 210-211). O Monarca explica também ao duque que enviara os despachos para o conde; “todavia, para o caso de tardarem ou de lhes suceder algo na viagem por mar” (Ibid.), parecera-lhe melhor enviar também por Sanlucar de Barrameda um duplicado, noutro navio, para ter a certeza de que lhe chegavam às mãos. O conde deveria levar 200 homens de Lançarote, instalá-los num dos castelos da cidade, ou fora deles, conforme fosse mais conveniente, e permanecer na Ilha durante esse verão. A rapidez da nomeação quase apanhou desprevenido o conde, que determinou a mobilização geral dos seus homens a 11 de abril, partindo o primeiro contingente de oficiais e 170 soldados a 5 de maio, com o conde e uma guarda pessoal moura, assim como um reforço de artilheiros tudescos enviados pelo antigo embaixador e então capitão-general da artilharia D. Francés de Alava y Belmonte (1518/19-1586), chegando ao Funchal na manhã do dia 29 do mesmo mês. Foi então enviado um emissário a terra que, após negociações com o licenciado João Leitão (c. 1540-c. 1602) (Leitão, João) e os oficiais da Câmara, acordou o desembarque da força e a sua instalação na futura fortaleza de S. Lourenço. A chegada destas forças causou algum pânico na população, embora o conde fosse conhecido. Primeiro, os artilheiros tudescos enviados por D. Francés de Alava foram dados como luteranos (Saque do Funchal de 1566). Segundo, a guarda pessoal do conde, constituída por mouros, relembrou as escaramuças de triste memória de Santa Cruz de Cabo de Gué (Marrocos). Para acalmar os ânimos, o Corr. João Leitão e o juiz de fora Manuel Vieira tiveram de ir à rua explicar tudo à população amotinada. A segunda leva só chegou ao Funchal a 13 de junho, acossada por um temporal e sumariamente armada de piques e lanças. Entretanto, a somar a esse percalço, o facto de terem pisado novamente as Canárias tinha levado à deserção de parte desses soldados. As primeiras preocupações do conde de Lançarote foram para a segurança interna e externa da Ilha. Assim começou por visitar as duas fortalezas do Funchal, S. Lourenço e S. Filipe da Praça do Pelourinho, com o mestre das obras reais Mateus Fernandes (c.1520-1597), inteirando-se do seu estado e das suas necessidades. Conforme informa logo a 18 de junho e, depois, a 28 do mesmo mês, ambas as fortificações apresentavam dificuldades de defesa, dado encontrarem-se no meio da cidade e ao lado de edificações mais elevadas. No entanto, repartiu de imediato os seus soldados por ambas e procedeu depois a pequenas obras de adaptação. Da reorganização feita pelo conde de Lançarote resultou a constituição do comando militar, da primeira guarnição militar e, especialmente, da instalação de uma força permanente em S. Lourenço, então da responsabilidade de Filipe II e, depois, da Coroa portuguesa (Presídio). Encontravam-se presos no Funchal dois partidários do Prior do Crato e, logo nos primeiros dias da chegada à cidade, o conde de Lançarote e o licenciado João Leitão tinham interrogado pessoalmente frei João do Espírito Santo, preso em S. Lourenço. Relata o conde a Filipe II, a 1 de junho, que o franciscano teria tido tanto medo, que lhes entregara uma “quantidade de papéis, selos e insígnias reais”, que tinham ficado com João Leitão, tal como havia feito “uma Relação de certos avisos de coisas da Terceira” (AGS, Guerra y Marina, mç. 134, doc. 41). A ideia do conde foi de o executar de imediato, como no mesmo dia escreveu também ao secretário Juan Delgado, seu amigo pessoal, dando-lhe conta de que os papéis do franciscano tinham ficado em poder de João Leitão para os enviar a Filipe II, porque se estivesse no seu âmbito “já o frade tinha desaparecido e se faria com o próprio Pedro de la Radueta, francês, executando-se neles uma boa justiça de fartos e bons efeitos” (Ibid., Guerra y Marina, mç. 134, doc. 43). Tal não era a opinião do Corr., pelo que foi montado um tribunal presidido pelo conde e constituído pelo licenciado João Leitão, juiz de fora, e pelo provedor Manuel Vieira, tal como pelos vereadores camarários do Funchal, tribunal esse que determinou a pena de morte para os apoiantes de D. António, pena sancionada por Filipe II. A execução foi efetuada nos últimos dias de agosto, sendo o frade submetido a garrote, dentro da fortaleza, e o seu corpo enterrado na horta. Pedro de La Randueta foi enforcado e o seu corpo pendurado de um dos canhões da fortaleza para ser visto da rua. Esteve assim 24 horas, até ser recolhido pelos irmãos da Misericórdia. O conde de Lançarote conseguiu, entretanto, que viessem do continente, nos finais de agosto, 200 arcabuzeiros sob o comando do Cap. Juan de Aranda y de Lodeña, tendo como segundo oficial Luís de Benevides, e por sargento Francisco de Hermosilla. Estas tropas vieram pagas com um soldo de 4 ducados de 10 réis ao mês, passando as tropas das Canárias a ser pagas com idêntico quantitativo. Esta força ficou instalada em S. Lourenço, mas tal obrigou as restantes a terem de sair, o mesmo acontecendo, inclusivamente, ao conde de Lançarote. As primeiras ações foram para não interferir esta força em coisa alguma da vida da cidade, criando-se dentro da fortaleza todas as condições para que estes soldados não aparecessem na rua. Assim foram feitas obras de ampliação das casernas, com madeira e ladrilhos cedidos pela Câmara Municipal do Funchal, uma padaria, um talho e até uma taberna. Depois de instaladas as forças permanentes, autorizou-se as expedicionárias a regressarem às suas terras nas Canárias. Estas forças saíram do Funchal a 11 de novembro de 1582, devidamente pagas, salvo os capitães e oficiais das companhias, entendidos pelo conde como de sua casa e que se reintegraram nas suas ilhas de Lançarote e de Forteventura. Com a presença do Cap. Juan de Aranda na fortaleza e o entendimento perfeito que se estabelece com o governador, os problemas imediatos de segurança foram transferidos para aquele. O conde de Lançarote passa a manter um certo afastamento dos problemas pontuais e a definir as medidas mais globais. Nesta altura, inspecionam-se mais profundamente as defesas gerais e fortificações do Funchal e define-se a principal necessidade da cidade: a construção duma fortaleza no pico das Freiras, depois de S. João (Fortaleza de S. João do Pico), vindo a elaborar-se um parecer a esse respeito enviado a Filipe II. O parecer dos oficiais castelhanos sobre as fortificações do Funchal, entendidas, dentro e fora, como muito pequenas e sem praças para manobras das forças militares, acabaria por levar ao progressivo afastamento do mestre das obras reais Mateus Fernandes. Com a instalação de uma guarnição militar no Funchal, entendida por Filipe II como uma guarda pessoal, logo, paga pelos dinheiros de Castela, adveio uma série de problemas relacionados, principalmente, com o pagamento destes militares. Ao contrário do que seria de esperar, o Rei parece nunca ter querido definir concretamente as formas deste pagamento, optando por o centralizar em Lisboa e Madrid. O alto custo de vida no Funchal, ao tempo, e que se manteve, levou também às mais pungentes queixas dos governadores e oficiais. O Cap. Juan de Aranda, logo que chegado à Ilha, queixava-se de que “o dinheiro de Castela vale aqui, nesta ilha, quatro maravedis cada real, enquanto em todas as partes costuma valer dez vezes mais” (Ibid., Guerra y Marina, mç. 134, doc. 57), chegando mesmo o próprio conde de Lançarote a afirmar, desesperado: “Não se encontra nada de comer nesta ilha senão a peso de ouro. Sabe Deus que me têm roubado como se fossem franceses” (Ibid., Guerra y Marina, mç. 131, doc. 138). A situação de conflito entre o presídio castelhano e a população do Funchal foi assim agravando-se e, antes de abandonar a Madeira, em março de 1583, o conde de Lançarote já alertava para o assunto. Os governadores seguintes e os capitães dos presídios queixaram-se sempre da situação, mas a mesma manteve-se ao longo do século seguinte, enquanto permaneceu no trono a dinastia dos Habsburgos, chegando a levar à morte por fome alguns dos soldados do presídio de S. Lourenço, situação dificilmente compreensível, e também por tumultos. Idêntica situação ocorreu com os restantes presídios de Lisboa, dos Açores e até das próprias ilhas Canárias. Mais tarde, quando nomeado governador Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), ainda em Lisboa, tentou o mesmo que esta situação fosse clarificada, o que parece também não ter conseguido. Esta situação deve ter levado igualmente às dificuldades com que vieram a deparar as relações deste presídio com a sociedade civil do Funchal. Se no que diz respeito às forças canarinas não temos referências a dificuldades de relação com a população, o mesmo não se passou em relação ao presídio regular do Cap. Juan de Aranda, onde foi sentenciado de morte o soldado castelhano Francisco de Espinosa, pena executada no Lg. do Pelourinho, facto que é incompreensível (Presídio). A ilha da Madeira ainda passou nesses meses pela ameaça da armada de D. António nos Açores, pois embora derrotada na batalha naval de Vila Franca do Campo, ao largo da ilha de S. Miguel, a 26 de julho de 1582, muitos dos navios haviam conseguido regressar à ilha Terceira. Os navios franceses e portugueses começaram a movimentar-se a partir de 14 de outubro; a 10 de novembro, Filipe II alertava mesmo a Câmara do Funchal, insistindo que deveriam ajudar o conde de Lançarote na defesa da Ilha, assinando o documento como o faziam até então os Reis de Portugal, com “Rey” e as cinco chagas de Cristo. A Armada do Prior do Crato, no entanto, confrontara-se com uma tempestade, dispersando-se, acabando muitos dos navios por optar pelo regresso a França. No entanto, uma dessas embarcações desgarrada teria aportado à costa norte da Madeira, a 19 de novembro de 1582, desembarcando três elementos, os quais, uma vez detetados e presos, foram conduzidos ao Funchal, onde revelaram os planos de assédio à Ilha, e igualmente a Arguim. Nos inícios de 1583, ainda se configurava nova ameaça, então do Alm. Manuel Serradas (c. 1540-1583), natural da ilha Terceira, mas que se radicara na Madeira, onde deixara a família, então sob apertada vigilância no Funchal. Participara na Batalha de Vila Franca do Campo sob as ordens de Filippo Strozzi (1541-1582), que falecera nessa batalha e assumira, entretanto, o comando dos navios sobreviventes da mesma batalha. A esquadra saiu de Angra nos primeiros dias de fevereiro desse ano, com destino, uma vez mais, a Arguim, à Madeira, às Canárias e a Cabo Verde. A esquadra, no entanto, passou ao largo da Madeira, não se aproximando, e a primeira vítima foi a feitoria de Arguim, que foi totalmente saqueada e de onde foi retirada toda a artilharia disponível. A 28 de fevereiro, a esquadra encontrava-se frente à ilha de La Gomera, nas Canárias, que tentou atacar, mas desistiu e seguiu para Cabo Verde. Na viagem foram assaltadas algumas embarcações de pesca madeirenses e os pescadores distribuídos pelos navios da esquadra. Num golpe de audácia, os pescadores madeirenses de uma das caravelas da esquadra de Manuel Serradas conseguiram desarmar os algozes e, assumindo o controlo da embarcação, trazê-la para o Funchal, onde os corsários viriam a ser sumariamente julgados e enforcados. Algumas ilhas de Cabo Verde viriam a ser saqueadas por Manuel Serradas, especialmente a de Santiago; foi saqueada em particular a cidade da Ribeira Grande, depois Cidade Velha, tendo o saque ocorrido ao mesmo tempo que o do almirante inglês John Hawkins (1632-1595). As notícias dos saques em Cabo Verde chegaram ao Funchal a 18 de março, através do Cap. Rodrigo Álvares, que, tendo sido preso, conseguira fugir, relatando então os prejuízos, calculados num milhão de cruzados, e o roubo de 40 peças de artilharia de bronze, tal como de todo o material ligeiro encontrado. Manuel Serradas estava de volta a Angra em abril de 1583, mais uma vez não se tendo aproximado da ilha da Madeira. O rescaldo desta expedição criou alguma animosidade entre o conde de Lançarote e o Corr. João Leitão, de que o conde se queixou a Filipe II. Entendia Lançarote que o encarregado do “serviço da guerra” era ele, pelo que lhe competia castigar “os soldados de D. Antonio, que tantos danos tinham feito” (AGS, Guerra y Marina, mç. 143, docs. 181 e 183-184). O corregedor, entretanto, resguardava-se com os trâmites da justiça, sendo inflexível em relação aos desejos imediatistas do conde de Lançarote, que teria quase enforcado tudo e todos. Passada a primeira ameaça da armada francesa de D. António e com a queda da ilha Terceira em julho de 1583, onde o Alm. Manuel Serradas viria a ser executado, D. Agostinho de Herrera conseguiu autorização para regressar às suas terras, por carta régia de 5 de setembro desse ano de 1583, devendo ter saído da Madeira entre os dias 18 e 23 desse mês. Entregou então toda a governação ao desembargador João Leitão e deixou-lhe também a companhia do presídio, com o seu comandante – o capitão castelhano D. João de Aranda – como conselheiro militar. Esta situação, e enquanto não foi nomeado governador para o Funchal, levou o Cap. João de Aranda a superintender sobre os assuntos militares, escrevendo diretamente para o Rei, em Madrid e dando conhecimento à Câmara do Funchal da troca de correspondência. Desconhecem-se, no entanto, as determinações régias daí advindas, que, dada a atuação habitualmente prudente de Filipe II, não devem ter sido nenhumas. Nesta sequência, João de Aranda já tentara igualmente fazer valer os seus serviços para conquistar uma melhor posição no continente, através do seu amigo conde de Lançarote, tentando mesmo depois outras influências em Lisboa, mas o Rei manteve-o na Ilha quase até ao final do século. O conde de Lançarote, no entanto, parece ter regressado à Madeira, ou aí terá ficado após a entrega do governo, pois estava no Funchal em outubro, assinando a 17 desse mês a nomeação de Pedro de Valdavesso para pagador do presídio. Também estava no Funchal a 12 de novembro desse ano; só nesse dia houve reunião geral na Câmara do Funchal para registo da carta régia de 5 de setembro, cujos signatários foram o conde de Lançarote, João Leitão, João de Bettencourt, Zenóbio Acciauoli, Cap. João de Aranda, sargento-mor Mateus Cabral e Cap. Fernão Favila de Vasconcelos. O conde de Lançarote tinha criado muito boas relações na Madeira, especialmente com Zenóbio Acciauoli (c. 1530-1598), tendo assistido à consagração da capela de N.ª Sr.ª do Faial na quinta dessa evocação, na encosta de Santa Maria Maior, feita pelo bispo D. Jerónimo Barreto (1543-1589) e mantendo depois correspondência com o mesmo. Mais tarde, já como marquês de Lançarote, deslocar-se-ia de novo ao Funchal para a confirmação do casamento de sua filha D. Juana de Herrera, entretanto legitimada, ou D. Joana de Roxas e Sandoval, com o primogénito Francisco Acciauoli de Vasconcelos (1563-1648), filho de Zenóbio e de D. Maria de Vasconcelos. O casamento tinha ocorrido nas Canárias, a 25 de abril de 1588, e sido depois confirmado na Sé do Funchal pelo bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos (1544-1608), tendo-se deslocado o pai da noiva para o efeito à Madeira, acompanhado, entre outros, do seu governador Diego de Cabrera Leme, também ele com relações familiares na Madeira. Lançarote tinha saído da Madeira para Lisboa, onde chegou a 1 de dezembro de 1583, aguardando ordens, provavelmente, para se deslocar a Madrid, havendo correspondência para Filipe II e Juan Delgado, então enviada da sua residência em Vale Paraíso. Em Lisboa, teria intercedido pela construção da fortaleza do Pico e pela promoção do Cap. Juan de Aranda. Não se conhecem pormenores da sua deslocação a Madrid, mas aquela deve ter ocorrido nos primeiros meses de 1584. Seguiu depois para Sevilha e Cádiz, voltando a pisar a terra dos seus antepassados já como marquês, título que lhe foi concedido a 1 de maio de 1584, essencialmente, pelo trabalho desenvolvido na Madeira. Rui Carita (atualizado a 28.02.2017)
costa, antónio pereira da
Cónego e mestre de capela da sé do Funchal, António Pereira da Costa é uma figura algo misteriosa na Madeira, acabando por ser conhecido quase somente pelas obras de sua autoria que foram editadas em Londres, Concertos Grossos com Doys Violins, e Violão de Concertinho Obrigados, e Outros Doys Violins, Viola e Orgão e XII Serenata’s for the Guitar, de 1760, ambas dedicadas ao morgado João José de Vasconcelos Bettencourt (1703-1766), irmão mais velho da célebre empresária D. Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789), com a agravante de se conhecerem, até ao momento, apenas os exemplares existentes na Biblioteca de Arte da FCG. Tudo leva a crer que António Pereira da Costa, que terá nascido por volta de 1717, foi para a ilha da Madeira como mestre de capela do bispo D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), cuja entrada no Funchal aconteceu a 5 de agosto de 1757. O músico terá estabelecido estreitas relações com a família Sá Machado, que utilizava igualmente os sobrenomes Vasconcelos Bettencourt, entre outros, e provavelmente com o também Cón. João José de Sá, meio tio de João José de Vasconcelos Bettencourt, que estudou em Coimbra e faleceu em 1782. Sabemos que o morgado João José de Vasconcelos Bettencourt nunca gozou de muito boa saúde, tendo-se deslocado a Londres para consultas em 1760, ocasião em que terá sido acompanhado pelo mestre de capela da sé do Funchal, sendo aquele o local onde António Pereira da Costa editou os referidos Concertos Grossos e as 12 Serenatas para Guitarra, obras pomposamente dedicadas ao morgado, exibindo, inclusivamente, as suas armas. Esta importante família madeirense gozou de uma interessante vida cultural, devendo pertencer à mesma Francisco João de Vasconcelos Bettencourt, de quem também nos faltam informações. Em 1746, funcionaria no Funchal uma nova academia, a Assembleia dos Únicos do Funchal, para a qual entrou o dito morgado, a 15 de março. A sua “oração de sapiência”, em manuscrito, terá estado na posse do Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo, mas desconhece-se hoje o seu paradeiro (AZEVEDO, 1873, 787; SILVA e MENEZES, 1998, I, 9). Vinte anos depois, precisamente, a morgada e empresária D. Guiomar de Vilhena assumiria o lugar de juiz da confraria de S. José da sé do Funchal, a confraria dos pedreiros e carpinteiros da cidade, assinando as atas das eleições durante dez anos, situação perfeitamente ímpar e inusitada no seu tempo. O morgado João José de Vasconcelos Bettencourt faleceu no Funchal, em 1766; muito provavelmente, o mestre de capela António Pereira da Costa retirou-se para o continente com a morte do seu patrono, se já não o tinha feito antes. A diocese do Funchal conheceu, por esses anos, uma situação algo conturbada, com a extinção da Companhia de Jesus, muito especialmente, com a disputa pelos bens dos Jesuítas entre a diocese e a Provedoria da Fazenda, chegando o prelado e o governador a insultarem-se quase publicamente, não espantando que algumas pessoas se tenham tentado demarcar da situação. Os elementos sobre o mestre de capela da sé do Funchal António Pereira da Costa são, assim, muito limitados, mas a sua obra musical é importantíssima, não só por integrar as primeiras peças musicais madeirenses a serem editadas, para mais em Londres, mas também pelo pormenor de uma delas se apresentar em português e a outra em inglês, sendo publicadas por editores diferentes. Acresce que este conjunto avaliza uma cultura musical de certa forma importante para os meados do séc. XVIII na Madeira, pois as obras em causa foram editadas para serem vendidas em Inglaterra e nas mesmas o próprio autor aparece retratado com a idade de 43 anos. Rui Carita (atualizado a 31.12.2016)
castro, inácio joaquim de
O final do séc. XVIII anunciava grandes alterações no quadro europeu, com a aliança da França revolucionária com a Espanha e a declaração de guerra ao Reino Unido, o que levou a corte de Lisboa a sentir a necessidade de reforçar as forças militares no continente. Foi nesse quadro que foi enviando para a Madeira, em janeiro de 1797, o Maj. Inácio Joaquim de Castro, encarregado do recrutamento de pessoal para o exército continental e, depois, de rever o sistema defensivo da ilha da Madeira. A morte do governador e a nomeação de um governo interino complicaram a atuação do major na Ilha, acabando por ser transferido para a ilha de S. Miguel, nos Açores. Palavras-chave: defesa; fortificação; governo interino; guerras napoleónicas. Nascido por volta de 1750, Inácio Joaquim de Castro foi um major e engenheiro militar que teve um papel central na problemática da defesa da ilha da Madeira entre os finais do séc. XVIII e o séc. XIX, tornando-se, depois, governador militar da ilha de São Miguel, nos Açores, e acabando os seus dias como comandante da fortaleza de S. Julião da Barra, em Oeiras. Face à emergência da França como potência militar, os finais do séc. XVIII anunciavam grandes alterações no quadro europeu, com incidência no território continental e nos domínios ultramarinos portugueses. Portugal tinha mantido a neutralidade no decurso da Guerra da Independência americana, mas, quando a França declarou guerra à Grã-Bretanha e à Espanha, foi arrastado para o conflito na sequência do tratado de 1778 assinado com a Espanha, que obrigava as partes a ajudarem-se uma à outra em caso de ataque por uma terceira potência. A 29 de janeiro de 1793, o Governo espanhol solicitou essa ajuda a Portugal e obteve-a. A partir de então, a França deixou de reconhecer a Portugal o estatuto de neutralidade, afirmando que, ao combater contra a república, se tornara uma potência beligerante e, por isso, em guerra. A posição portuguesa agravou-se com a assinatura, em 1795, do Tratado de Basileia entre Espanha e França, pelo qual os dois países firmaram a paz, constituindo uma aliança ofensiva e defensiva que foi depois cimentada pelo Tratado de Santo Ildefonso de 18 de agosto de 1796, e com a declaração de guerra da Espanha ao Reino Unido, em outubro do mesmo ano. Foi nesse quadro que, em janeiro de 1797, o Maj. Inácio Joaquim de Castro foi enviando para a Madeira, acompanhado de dois ajudantes: o Sarg. artífice de fogo Faustino José Lopes e o cabo artilheiro Manuel Joaquim de Sá. Note-se que o major já tinha sido abonado com uma tença de 12$000 réis num dos almoxarifados do reino e com o hábito da Ordem de Cristo, com data de 4 de dezembro de 1778. O seu envio para a Ilha teria sido algo precipitado, pois somente no ano seguinte, mais concretamente a 11 de junho de 1797, se especificavam os abonos de vencimentos, como veio a escrever na cartografia por si levantada levantada, não se conhecendo registos no arquivo do Governo do Funchal que atestem ter-lhe sido dada ordem para os estudos de defesa da ilha da Madeira. O principal móbil do envio do Maj. Inácio Joaquim de Castro teria sido o recrutamento de pessoal para o exército continental, tendo sido apenas alguns meses depois, em junho de 1797, que se acrescentou a reforma do sistema defensivo da ilha da Madeira. Saliente-se que, permanecendo na Ilha bastante mais tempo do que o inicialmente previsto, o major se veio a bater, mesmo contra a opinião geral dos quadros superiores locais, incluindo a do governador, pela reformulação total de toda a estrutura defensiva, incluindo pessoal, material e instalações, ainda que não tenha tido qualquer êxito nesse escopo. Ao longo dos sécs. XVII e XVIII, a Ilha tornara-se uma importante fonte de recrutamento da Coroa, fornecendo diversos contingentes militares para as guarnições ultramarinas de Angola (África), da Índia e do Brasil. Estes contingentes destinavam-se geralmente a acompanhar governadores em trânsito pela Ilha e com destino àqueles domínios, embora por vezes tenham seguido isoladamente. Da mesma forma, a Madeira enviou levas de casais para povoamento, como foi o caso do povoamento do Estado de Santa Catarina, no sul do Brasil, em meados do séc. XVIII. A função de Inácio Joaquim de Castro era, assim, a de levantar um importante contingente insular para as forças continentais, que se estimava, em Lisboa, em cerca de 4000 homens. No entanto, como seria de esperar, o major encontrou os maiores entraves na Madeira, entre os quais se contou o próprio Gov. Diogo Pereira Forjaz Coutinho. Logo nos primeiros contactos, o governador levantou as maiores dúvidas relativamente ao facto de se poderem levantar 1000 homens na Madeira, na medida em que isso seria muito prejudicial à defesa da Ilha, assim como “à sua cultura, tanto de terras de pão, como de vinhas”. Com alguma ironia, acrescentou mesmo que o prejuízo também se estenderia “por consequência aos rendimentos de Sua Majestade” (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 961-962). A Ilha possuía então pouco mais de 20.000 homens capazes de pegar em armas, como se veio a apurar algum tempo depois, num cômputo geral populacional que não chegou aos 80.000 habitantes, pelo que uma tal sangria seria prejudicial, não só à sua segurança, como até à sua subsistência. No entanto, nos meses seguintes do ano de 1797, conseguiu-se recrutar algumas centenas de homens, recorrendo-se algumas vezes à violência, como estava aliás previsto na diretiva de Lisboa, mas não se chegou sequer ao milhar apontado pelo governador e muito menos ao pedido de Lisboa de 4000 homens. Na segunda metade do séc. XVIII, com a estadia em Portugal do conde de Lippe (1724-1777), procedera-se a uma reforma geral da organização militar continental europeia, que não se estendeu totalmente à Madeira (Defesa). Assim, a organização militar insular continuava a assentar na antiga organização dos terços “pouco disciplinados”, porque recrutados entre os lavradores, mesmo entre “homens com negação para pegar em armas”, como mais tarde referiria Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832) (CARITA, 1982, 26). A defesa do Funchal e das suas velhas fortificações assentava em duas companhias pagas, uma de artilharia e outra de infantaria, sendo o trabalho de artilharia ainda feito pelo velho quadro de bombardeiros, que somente por essa altura foi reconvertido no novo Corpo de Artilheiros Auxiliares. Desde 1566 que não se tinha consumado nenhuma ação ofensiva de envergadura contra o Funchal e, desde o saque ao Porto Santo em 1618, contra o arquipélago da Madeira, pelo que, com a supremacia do poder marítimo inglês durante o séc. XVIII, a defesa da Ilha acomodara-se à situação. Contudo, com os problemas surgidos neste final de século, tornava-se urgente proceder à reformulação de toda a defesa. É o próprio Sarg.-mor Inácio Joaquim de Castro que, a 22 de junho de 1797, em carta ao governador, informa estarem reunidas as circunstâncias para serem “atacados por qualquer força francesa”, reforçando essa ideia com a indicação “como Sua Majestade nos diz” (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 975, n.º 6). Foi neste contexto que, ao longo dos três anos seguintes, Inácio Joaquim de Castro procedeu à elaboração de um vasto plano geral de defesa da Ilha, no qual se incluía a extinção dos antigos terços e a reforma dos regimentos de milícias, no sentido de aproximar a organização insular das determinações gerais e da legislação aprovada em 1796 para as forças de primeira linha. O major propôs ainda a criação de um novo corpo de artilharia e a reformulação da vasta rede de fortificações existente na Ilha, que era, na sua opinião, inoperacional na sua quase totalidade. As alterações nos quadros diretivos da Ilha que ocorreram entretanto, com o falecimento do governador, a 30 de março de 1798, e a formação de um governo interino, não ajudaram. Nessa sequência, a 4 de julho, o corregedor ausentava-se, sendo substituído pelo juiz de fora do Funchal, o desembargador José Filipe Ferreira Cabral. Ao longo desse ano, ainda se alteraria a constituição do governo interino com a chegada do novo corregedor, o desembargador José Maria Cardoso Soeiro, a chegada do novo bispo D. Luís Rodrigues de Vilares (c. 1740-1810), e a morte, a 10 de novembro, do Cor. Luís Vicente de Carvalhal (c. 1752-1798), então substituído pelo coronel das milícias de São Vicente, Anastácio Henriques Pereira. Nesse quadro de guerra interna entre os principais quadros insulares, já tanto o governador Diogo Pereira Forjaz como, depois, o governo interino tinham levantado as mais diversas questões contra o projeto de defesa de Inácio Joaquim de Castro, para não se alterar o status quo da Ilha. Assim, se, a 22 de maio de 1798, o governo interino registava a carta de confirmação para os trabalhos de fortificação da Ilha, de que se encontrava encarregado Inácio Joaquim de Castro, a 19 de julho seguinte eram suspensos tais trabalhos, com base num aviso régio sobre as despesas da fortificação. Entretanto, a 28 de setembro voltava-se a confirmar a necessidade de os continuar e registavam-se então os vários abonos que o sargento-mor e os seus ajudantes deveriam vencer. A título de exemplo, o novo corregedor e juiz de fora José Filipe Ferreira Cabral considerava que empregar o dinheiro da Fazenda na fortificação da Ilha seria “sempre inútil, pois é a natureza que a faz defensável, por rochedos imensos e inacessíveis”, como escreve pessoalmente para o ministro Rodrigo de Sousa Coutinho (1745-1812), a 18 de agosto de 1798 (Ibid., doc. 1019). Nesse sentido, perto do final desse ano e, por certo, para se poderem opor às ideias de Inácio Joaquim de Castro, os membros do governo interino oficiavam ao Ten.-Cor. António Alberto de Andrade Perdigão, então no continente, ordenando-lhe que regressasse à Madeira no primeiro navio. Nos inícios do ano seguinte, seria a vez de Inácio Joaquim de Castro se queixar para Lisboa das intrigas que lhe movia o novo corregedor e juiz de fora, queixas que volta a referir em abril seguinte. António Alberto de Andrade Perdigão, ajudante de ordens do Governo, assim como o sargento-mor de milícias do Funchal, Francisco João Barreto, regressariam ao Funchal em 15 de setembro desse ano. A situação mudou, pelo menos aparentemente, com a chegada do novo prelado D. Luís Rodrigues de Vilares, figura de certo relevo oriunda dos quadros da Universidade de Coimbra, que a breve trecho se impôs e opôs decididamente aos restantes membros do Governo interino, passando inclusivamente a despachar os assuntos de Governo no paço episcopal, e não em São Lourenço. As posições do prelado tiveram, no início, o apoio de Inácio Joaquim de Castro, que não deixou de aplaudir a sua ação. Mas, em breve, movimentar-se-iam as forças vivas da Madeira contra o avanço das obras de fortificação e contra a reformulação e o aumento das forças militares. Em causa estava a cobrança da antiga contribuição, ou finto, de 9000 cruzados anuais para as obras da fortificação, que, “caída em desuso”, se não cobrava há 18 anos (Ibid., doc. 1100). Face à situação geral do país e da Ilha, teria havido ordem régia para a Junta da Fazenda proceder à sua cobrança, o que, devido aos 18 anos em falta, somaria uma quantia exorbitante de 162.000 cruzados. Em agosto de 1799, o bispo do Funchal enviava para Lisboa uma série de representações, dos membros da Casa dos 24 e do corpo de nobreza da cidade, solicitando que a contribuição não fosse cobrada na totalidade, pois arruinaria a maior parte dos contribuintes (Ibid., docs. 1100-1102). Com as várias opiniões nem sempre favoráveis em relação ao trabalho de Inácio Joaquim de Castro, o quadro geral da fortificação da Ilha não sofreu especiais melhorias. Em causa estavam, como sempre, os aspetos económicos que a ação requeria, assim como o desvio de braços dos trabalhos agrícolas. Mesmo o movimento contínuo de corsários franceses pelos mares da Madeira, em resposta ao comportamento idêntico da armada inglesa, não despertou na Madeira a consciência da necessidade de se alterar o caminho das coisas. Nos finais de 1799, Inácio Joaquim de Castro era transferido para os Açores, com o cargo de governador e capitão-general da ilha de São Miguel, o que por certo era abonatório do trabalho que desenvolvera na Madeira. Na altura da sua saída e nos inícios do ano seguinte, escrevia para Lisboa, ao ministro Rodrigo de Sousa Coutinho, recordando mais uma vez que um “governo a 3 é de todo incompatível com o sistema que se deve seguir sobre a defensiva de uma ilha nas atuais circunstâncias”, porque a “segurança depende de um bom governo”, e acrescentando: “se os franceses aqui vierem” – como se temia – “nós não estamos na ordem governativa para os recebermos” (Ibid., docs. 1126, 1128, 1148). Forte do Gorgulho Do plano levantado, somente conhecemos seis elementos: um esquisso da planta da Ilha e outro da planta do Funchal, dois esquissos respeitantes aos arredores do Funchal, do Gorgulho e da Praia Formosa (Fortes da Praia Formosa) e outras duas plantas das vilas de Santa Cruz (Fortes de Santa Cruz) e de Machico (Fortes de Machico), as mais antigas representações planimétricas que se conhecem dessas vilas, posteriores cidades. Para além do interesse destas duas últimas plantas, parece que o único trabalho do plano de defesa posto em prática foi a reformulação do forte do Gorgulho. O major contou com o apoio de António Rodrigues de Sá, ajudante de milícias do regimento do Funchal. No entanto, a dispersão destes documentos pelos arquivos nacionais são demostrativos da profunda crise vivida nos anos seguintes. Inácio Joaquim de Castro desenvolveu idêntico trabalho em Ponta Delgada, levantando toda a parte baixa da cidade, da fortificação e dos molhes do porto e chegando a defender a baía com o fogo das baterias de São Brás perante o assédio de um corsário inglês, em 1803. Machico. 1799 O major acabaria os seus dias a comandar a guarnição da torre de São Julião da Barra, conhecendo-se correspondência sua até 1818. Deverá ter falecido pouco tempo depois, por volta de 1820. Santa Cruz. 1799 Rui Carita (atualizado a 29.12.2016)
conde da calçada (diogo de ornelas de frança carvalhal frazão e figueiroa)
Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa era filho de Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa e de Ana Emília de França Dória e Andrade. Casou com uma prima, Carlota Augusta de Freitas Albuquerque, sobrinha de Daniel de Ornelas e Vasconcelos, futuro barão de S. Pedro, que o deve ter encaminhado para a carreira política. Em junho de 1851 já era membro do concelho do distrito e, embora lhe não conheçamos filiação partidária, a 4 de outubro de 1882, teve carta de governador civil substituto do Funchal, lugar que ocupou inúmeras vezes. Foi agraciado entretanto com o título de visconde da Calçada, em 1871, e, com o de conde, em 1882, em homenagem à casa em que vivia na Calçada de Santa Clara, hoje casa-museu Dr. Frederico de Freitas. Palavras-chave: eleições; governador civil; visconde da Calçada; Heráldica; Morgados e titulares; Museus; partidos políticos; casa-museu Dr. Frederico de Freitas. Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa era filho de Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa e de Ana Emília de França Dória e Andrade. Seu pai era proprietário da chamada Casa da Calçada, abaixo do convento de Santa Clara, e também do morgado de Gaula e de outros nos Açores. Sua mãe era filha do morgado Bartolomeu de França Dória da Conceição, proprietário do morgado da Conceição, no Estreito da Calheta, que o neto haveria de herdar. O conde nasceu a 29 de agosto de 1812, na freguesia de Santa Luzia, no Funchal, e casou-se na Sé, a 14 de maio de 1831, com sua prima Carlota Augusta de Freitas Albuquerque (1817-?). Esta era filha do Cor. de milícias João Agostinho de Brito Figueiroa de Freitas Albuquerque (1793-1862), que também usava o nome de João Agostinho de Figueiroa Albuquerque e Freitas – nome segundo o qual se mandou pintar por volta de 1822, “em uniforme rigoroso” (SAINZ-TRUEVA, 1999, 62), por João José do Nascimento (1784-c. 1850) – e de sua mulher, Carlota Amália de Ornelas e Vasconcelos, irmã do futuro barão de S. Pedro, Daniel de Ornelas e Vasconcelos (1800-1878) (S. Pedro, barão de). A entrada de Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa para a vida política deve ter sido feita pelo tio de sua mulher, o advogado e futuro barão de S. Pedro, senador pela Madeira na legislatura de 1838 a 1840, lugar para que foi eleito numa vaga, em abril de 1839, e depois par do reino, etc. (Eleições). Na sua residência do Funchal, na rua dos Ferreiros, onde se instalou depois a Direção Regional dos Assuntos Culturais, faziam-se reuniões de carácter político, pois Daniel de Ornelas passava então mais tempo em Lisboa que no Funchal. As primeiras informações recolhidas sobre o mesmo são sobre a sua presença no concelho do distrito em junho de 1851, quando com os membros do senado camarário assina uma petição, solicitando a D. Maria II (1819-1853) a manutenção como governador do conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891) (Ribeiro, José Silvestre). Não se lhe conhece especial filiação partidária, embora nas eleições de maio de 1870 pareça ter apoiado o morgado Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901) (Ornelas e Vasconcelos, Agostinho de); este era membro destacado do então Partido Popular, que se opunha ao Fusionista (Partidos políticos). Nas contas dessas eleições, há documentos que comprovam pagamentos de despesas feitas por Diogo de Ornelas, documentos que se encontram nos arquivos da família Ornelas e Vasconcelos. Não terá sido assim por acaso que, por decreto de 17 de janeiro e carta de 25 de fevereiro de 1871, foi agraciado com o título de visconde da Calçada, em homenagem à casa secular em que vivia na calçada de Santa Clara, onde depois se instalou a casa-museu Dr. Frederico de Freitas (Freitas, Dr. Frederico de, e Museus). Por essa altura, em 5 de março de 1871, o deputado Agostinho de Ornelas refere numa carta enviada ao irmão, D. Aires de Ornelas (1837-1880), bispo do Funchal em maio desse ano, mas já administrador apostólico (Ornelas e Vasconcelos, D. Aires de), estar em Lisboa a tratar de um título para o morgado Diogo Berenguer de Freitas Neto (1812-1875), depois visconde de S. João (S. João, visconde de). O visconde da Calçada foi agraciado com o título de conde a 4 de outubro desse ano, data em que também foi oficialmente nomeado governador civil substituto, situação não muito comum. Tomou posse desse lugar a 10 do mesmo mês. Era governador civil substituto na altura das célebres eleições suplementares de 1882. Nestas eleições concorreram o advogado açoriano e republicano Manuel de Arriaga (1840-1917) (Arriaga, Dr. Manuel de), que se apresentou na Madeira, e, por indicação do líder do Partido Regenerador e presidente do conselho de ministros, António Maria de Fontes Pereira de Melo (1819-1887), o líder da oposição, o conselheiro Anselmo José Braamcamp (1819-1885), à frente do Partido Progressista, depois de já ter sido líder do Partido Histórico. A estranha imposição das cúpulas partidárias continentais levou a que a maior parte dos eleitores madeirenses, inclusivamente monárquicos e ligados ao Partido Regenerador, colocasse abertamente a hipótese de apoiar o candidato republicano. Efetivamente, estava em causa o funcionamento do sistema parlamentar e o conselheiro Braamcamp havia perdido as eleições pelo seu círculo, sendo importante para o parlamento a sua presença no mesmo como deputado; mas tal era um problema de Lisboa, e não da Madeira. Na primeira volta adivinhava-se já o desastre e o Diário de Notícias, que indiciava o visconde da Calçada como apoiante da situação, escreveu o seguinte: “Os regedores de paróquia que trabalham ostensiva e declaradamente contra a monarquia e pelo candidato republicano ainda não foram demitidos. Parece que o sr. administrador do concelho ficou muito satisfeito com este serviço e que o sr. governador civil substituto também ficou muito contente” (DN, 8 nov. 1882). Os resultados dessa primeira volta foram comunicados a Lisboa a 13 de novembro pelo governador substituto, que continua a assinar visconde da Calçada, do que se pode pensar que a informação da atribuição do título de conde só foi conhecida depois, embora Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa continuasse a utilizar, mesmo nos anos seguintes, somente o título de visconde. O governo de Lisboa enviou ao Funchal o governador efetivo, o juiz conselheiro António de Gouveia Osório (1825-1915), visconde de Vila Mendo (Vila Mendo, visconde de), que voltou a tomar posse do lugar temporariamente; o que não impediu a vitória final de Manuel de Arriaga, retirando-se de novo o governador civil para Lisboa, onde então era conselheiro do Tribunal de Contas, e entregando outra vez o governo ao visconde da Calçada. Foi este que depois suspendeu os direitos dos cereais importados, assunto que atravessou a política dos anos 1883 e 1884. O visconde continuaria a ocupar o lugar na vigência do governador, uma vez que o juiz conselheiro Tomás Nunes de Serra e Moura (c. 1840-1917) (Moura, Dr. Tomás Nunes de Serra e), nomeado em finais de dezembro de 1883 e que tomou posse nos primeiros dias de janeiro seguinte, após ter organizado a coligação monárquica que fez frente aos candidatos republicanos nas eleições desse ano, também se retirou para o continente. Foi, por isso, o visconde da Calçada, já velho, a ver-se na contingência de ter de requisitar o vapor de fiscalização da Alfândega, em agosto de 1884, para transportar para a Ribeira Brava uma força de 20 praças que tinha como objetivo reforçar o destacamento militar local face ao tumulto ali ocorrido e que tivera como resultado 7 mortos. Nos anos seguintes a política madeirense foi varrida pela figura contundente e truculenta do visconde do Canavial (1829-1902) (Canavial, conde e visconde do), que levou ao levantamento popular da Parreca; talvez o mais importante levantamento ocorrido no séc. XIX. Perante a contestação geral, o visconde do Canavial veio a apresentar a sua demissão a 26 de março de 1888, tendo o governo sido entregue, uma vez mais, ao visconde da Calçada, pois o governador civil seguinte, João de Alarcão (c. 1850-1917), embora nomeado a 5 de abril, só tomaria posse a 8 de maio seguinte. Nos anos seguintes pouco sabemos da atuação política do conde da Calçada, que parece ter-se retirado para a sua residência, de onde pouco teria saído. Na visita régia de 1901 (Visita régia), por exemplo, não é mencionado. O interessante edifício da calçada de Santa Clara teve obras em 1851, conforme consta no empedrado da entrada, logo a seguir ao portão gradeado com as suas armas de conde, que usam brasão esquartelado de Ornelas (moderno), Carvalhal (Benfeito), Frazão e Franqui (por França?), com timbre de Ornelas, tendo-se escrito ser de uso muito antigo nesta família, mas ignorando-se a quem foi concedido (CLODE, 1983, 87). Pensa-se que o projeto de reforma da casa foi do arquiteto e egiptólogo George Somers Clarke (1841-1926), que trabalhava em parceria com John Thomas Micklethwaite (1843-1906), e que passou pela Madeira em 1890. Os trabalhos deste arquiteto seguiam os modelos revivalistas em uso na época, mas com abundante utilização de estruturas de ferro fundido e pintado, tendo sido da sua autoria a reformulação e ampliação do Reid’s Palace Hotel e da nova residência da quinta do Palheiro Ferreiro, já então propriedade da família Blandy, atribuindo-se-lhe também a antiga residência do Santo da Serra, depois Estalagem Serra Golf. O conde da Calçada faleceria na sua residência, a 18 de setembro de 1906, não tendo o título, dado que concedido em sua vida, sido revalidado. Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)
berredo, antónio pereira de
O governador António Pereira de Berredo ficou cativo em Alcácer Quibir e participou depois na Invencível Armada, onde foi cabo de 10 galeras. No entanto, embora fosse um militar experiente, teve grandes problemas com o pessoal do presídio do Funchal, sobretudo devido às dificuldades de pagamento, a que se acrescentam vários pequenos problemas com corsários ingleses e franceses. Os problemas do presídio de S. Lourenço ficaram patentes na visitação do Santo Ofício, a primeira que ocorreu na Madeira e que o governador acompanhou de perto, mas de que não resultaram especiais processos. Data da sua vigência como governador a instalação da fundição em S. Lourenço. Palavras-chave: corso; governo filipino; Invencível Armada; organização militar; Santo Ofício. O reinado de Filipe II (1527-1598) foi marcado, na sua última fase, pelo desastre da Invencível Armada, funesto acontecimento que deixou profundas marcas na Península Ibérica e comprometeu ainda mais a manutenção e a defesa do Império português, então em franco declínio. O Rei, ainda príncipe, tinha-se casado em 1553 em Inglaterra, mas, com o falecimento da Rainha Maria Túdor (1516-1558), não foi possível juntar as duas Coroas. A situação religiosa da Inglaterra era uma profunda afronta ao catolicismo hermético da Península Ibérica, pelo que Filipe II queria, a todo o custo, representar a voz e o poder capazes de abater o foco protestante que ali se instalara e pretendia difundir-se. Essas razões, bem como a atuação dos corsários ingleses, principalmente de Francis Drake (1540-1596) e de John Hawkins (1532-1595), que constantemente atacavam a navegação portuguesa e espanhola no Atlântico e ambas as faixas costeiras do mesmo oceano, levavam a que a Inglaterra fosse uma das preocupações da Coroa filipina. Aumentava o poderio naval inglês e o refúgio de D. António, prior do Crato (1531-1595) (Crise sucessória de 1580), em Inglaterra, a partir de 1585, que ainda aumentavam mais os receios da Coroa filipina. Por outro lado, o suplício infligido à Rainha católica Maria Stuart da Escócia (1542-1587), que a Rainha Isabel (1558-1603) mandou executar a 8 de fevereiro de 1587, deu ao Monarca ibérico o pretexto final para uma intervenção alargada contra o poderio britânico. Neste quadro, o Rei organizou a mais poderosa Armada do séc. XVI, crendo-a invencível, mas à qual o destino, e não só, reservou um estrondoso fracasso. Em maio de 1588, concentrou-se em Lisboa uma Armada que possuía 130 naus, cujo comando foi entregue ao duque de Medina-Sidónia (1550-1615), que não tinha grande experiência marítima, encontrando-se nos restantes postos de comando nobres sem quaisquer conhecimentos de guerra naval. A Armada largou a 27 de maio de 1588, com nevoeiro e mau tempo, para o canal da Mancha, onde defrontou uma Armada inglesa mais ligeira e com navios muito mais manobráveis. Na noite de 6 para 7 de agosto, após uma semana de desgaste, os ingleses, aproveitando ventos fortes e desfavoráveis para os grandes galeões ibéricos, lançaram uma série de pequenas embarcações carregadas de combustível inflamado. Esta ação obrigou os principais navios da Armada ibérica a dispersar e provocou incêndios noutros, fracionando todo o conjunto. Aproveitando a situação, os pequenos e rápidos navios ingleses infligiram uma memorável derrota à dita Invencível Armada. O cronista Pero Roiz Soares, em Lisboa, refere que “desta maneira se perdeu tão grande máquina, sem se salvar quase nada, nem dela tornar galeão, nau, nem navio, nem coisa que prestasse” (SERRÃO, 1979, 36-37). A Madeira concorreu com pessoal para esta aventura, embora não haja na documentação madeirense coeva dados sobre a mesma participação. Em Ensaios Históricos da Minha Terra: Ilha da Madeira, escreveu Artur Alberto Sarmento (1878-1953) que D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), descendente de Zarco (Melo, D. Francisco Manuel de), nas suas Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa (1660), refere a participação do galeão S. Filipe, com 28 peças de artilharia, nesta Armada, sob o comandado de Manuel Dias de Andrade (1580-1638), que foi depois mestre-de-campo, aditando que a guarnição era composta por grande número de madeirenses. Referia ainda este autor que muitos nobres da Ilha embarcaram na Armada, como António Gonçalves da Câmara, filho de João Fogaça de Eça (c. 1550-c. 1620) (Eça, João Fogaça de), que fora governador da Madeira, mas que não tinha os seus nomes tão presentes como desejava (SARMENTO, 1946, 177). No entanto, a ação do S. Filipe e de Manuel Dias de Andrade refere-se ao desastre da Armada portuguesa de D. Manuel de Meneses (c. 1540-1628), relatado na “Epanáfora Trágica” de 1627 (MELO, 1660, 153-272). Não conhecemos diretamente as implicações deste desastre na Madeira. No entanto, uma informação dos livros do cabido da Sé atesta o facto de se ter passado por um mau momento na Ilha. Assim, em 1589, ordenou o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) a transferência “desta cidade para a serra, de toda a prata e demais ornamentos da Sé, por esperar a chegada dos ingleses que tinham ido a Lisboa. E foi a prata para Nossa Senhora do Monte e por não parecer estar segura, a tornaram a trazer aqui e foi para o Estreito de Câmara de Lobos com os ditos ornamentos. E depois para a vila da Calheta em seis arcas encoiradas e dali se tornou a trazer. E se despendeu em tudo com as bestas, carretos, fretes e outras despesas com a ida e a vinda e conserto das arcas ao todo” 3$495 reis (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fl. 178v.). Desta Armada de triste memória, foi para a Madeira o novo Gov. António Pereira de Berredo (c. 1550-c. 1614), que tinha ficado cativo em Alcácer Quibir e participara depois na “armada da perdição, onde fora cabo de dez galeras” (NORONHA, 1996, 49). Este experiente militar tinha prestado serviço como fronteiro em Tânger, onde estava em 1573, quando ali perdeu a vida o Cap. Rui de Sousa de Carvalho e ele uma vista, sendo depois comendador de Arganil e da Castanheira, na Ordem de Cristo. Era filho de António Lopes Homem e de Maria Pereira, sua mulher, sendo o pai figura próxima do secretário Miguel de Moura (1538-1600), que viria depois a integrar o Conselho de Regência (1593-1598) e que sucedeu ao cardeal e arquiduque Alberto de Áustria (1559-1621) quando este saiu para se tornar governador dos Países Baixos. Não descortinámos, no entanto, os ascendentes familiares aos quais foi buscar o apelido Berredo. António Pereira de Berredo assumiu Governo da ilha da Madeira por patente de 30 de dezembro de 1590, tomando posse a 21 de agosto do seguinte ano de 1591. A carta vem transcrita com a data de posse na Câmara Municipal do Funchal, como “Carta de El-Rei Nosso Senhor a Esta Camara sobre o Geral Antonio Pereira”, informando: “Eu mando ora Antonio Pereira do meu concelho para ora me servir de geral dessa Ilha e superintendente das coisas da guerra dela” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 3, fl. 183v.), sendo o registo da provisão do capitão geral na Provedoria da Fazenda da mesma data. As coisas não lhe correriam muito bem no Funchal, como largamente se haveria de queixar para Lisboa a 29 de abril de 1592. Primeiro, todos os seus haveres tinham sido tomados por corsários, daí que os 2000 cruzados com que fora dotado para o Governo não lhe tenham chegado para as despesas. Depois, chegado à fortaleza, descobriu que os soldados do presídio não eram pagos há mais de um ano, acabando por fazer face às suas necessidades com roubos à população, pelo que pouco lhe obedeciam. Nesse aspeto, acabavam por ter a cobertura do Cap. João Carrião Pardo, situação a que a frouxidão do desembargador António de Melo, que tomara posse a 17 de agosto de 1591 e que desempenhava igualmente as funções de provedor da Fazenda, não ajudava. O governador, que já então não gozava de muito boa saúde, o que também se passava com sua mulher, Mariana de Portugal, queixava-se amargamente para Lisboa da situação do presídio, dos capitães castelhanos e portugueses. Refere numa carta que, em todo o tempo que fora militar, “não houve algum que me perdesse o respeito e que hoje, sem fundamento, me têm assim maltratado” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 104), e que se sentia tão desconsiderado, que temia francamente o futuro. Cita então um fidalgo recentemente chegado ao Funchal, Simão de Atouguia (1552-?), neto de João Fernandes de Amil e sobrinho de Manuel de Amil, tesoureiro das fortificações e depois escrivão de guerra, com quem já teria tido problemas em Tânger, e o próprio capitão castelhano João Carrião. Deste capitão, diz o governador que tinha sofrido “alguns desatinados termos e muitas desordens, a que se com brevidade não acudira, seriam causa de muitos males”. E acrescenta: “Este capitão não entrou nesta fortaleza, nem tratou de mim em coisa alguma e confesso a Vossa Majestade, que me receio dele pela grande natureza que tem de fazer conluios e folgar com novidades” (Ibid.). Por outro lado, dava as melhores referências do tenente do presídio, Luís de Benevides, embora com a situação vigente dos pagamentos pouco o pudesse ajudar. Em face da situação, o governador propõe nesta carta “que destas duas companhias se fizesse uma só, e sendo assim, nesta fortaleza se podiam alojar, e seria menos gasto, e os donos das casas que ora servem de quartel receberiam nisso grande esmola e mercê” (Ibid.). Nesta carta, o governador conta também o sucedido com a Armada que se deslocava para a Índia e que incluía o célebre galeão S. Pantaleão. Os navios tinham passado na Madeira um pouco dispersos, o que levou a que uma urca fosse tomada por três navios ingleses. Na urca, seguia Gaspar de Figueiredo, ouvidor-geral da Índia, que os corsários colocaram em terra, na ilha do Porto Santo. Os corsários tinham tentado negociar com o governador da Madeira a vida do ouvidor e do mestre dessa urca, tal como as mercadorias e a restante gente que seguia no navio, ameaçando levar tudo para o Norte de África (Berberia, como se cita) se não acedessem aos seus pedidos. O governador recusou-se a negociar, com base na gente do Porto Santo, que se encontrava em armas, pronta a defender a ilha, e por ter sido informado de que essas naus inglesas deveriam fazer parte dos navios de Francis Drake e do conde de Cumberland (1558-1605), que em 1589 saqueara a vila Horta nos Açores e que António Pereira conhecia da Invencível Armada. A carta termina por, mais uma vez, solicitar a “mercê de licença para me poder ir a minha casa” (Ibid.), no que não foi atendido. A 5 de setembro do mesmo ano de 1592, o governador voltou a escrever para Lisboa, dando conta da maneira como se resolvera o assunto dos corsários ingleses no Porto Santo e das aquisições de pólvora e de mosquetes. A pólvora destinava-se aos exercícios de barreira efetuados todos os domingos e controlados pelo governador, sargento-mor e capitães entertenidos, ou seja, sem comando de companhia (Comando militar). Nesta carta, descreve alguns incidentes ocorridos na Madalena do Mar, onde se fizera um exercício de fogo de barreira no dia 28 de agosto. O governador tinha ido acompanhado de Lisboa pelo Cap. Pero de Faria, adjunto para assuntos militares que, na Madalena, tinha tentado prender os vários negligentes do serviço de vigias e alardos. Os populares tinham então apedrejado o Cap. Pero de Faria e um dos seus criados, o qual “feriram muito mal, de cima dumas rochas, onde se fizeram fortes” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 105). Esta carta dá ainda parte do movimento de navios no mar da Madeira, com a passagem de vários navios do porto de Marselha, que tinham ido comerciar açúcar em Cabo de Gué (Marrocos) e que haviam informado da presença de cerca de 12 navios ingleses também nesse comércio. O governador tinha apresado, a 23 de agosto, um desses navios de Marselha, uma setia, barco comprido, afilado de boca aberta, de velas e remos, extremamente rápido. Para que não pudesse sair do porto, apreendera-lhe as três velas grandes, pensando que assim não se poderia fazer ao mar. Apesar dos pedidos, Lisboa manteve o governador e as duas companhias do presídio. Assim, D. António Pereira, como começa a ser referido, teve de reformular a Junta Militar criada pelo conde de Lançarote, D. Agustín de Herrera y Rojas (1537-1598) (Lançarote, conde de), também chamada sala de Governo, dividindo-a ao meio e só reunindo com dois capitães de cada vez. Este órgão era formado pelos quatro capitães das ordenanças, para além do comandante da guarnição da fortaleza, nessa altura o Cap. Luís de Benevides, dada a saída em finais de 1588, ou princípios de 1589, do Cap. Juan de Aranda. Este órgão não tinha sido muito desenvolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da), se é que este alguma vez o reuniu. Efetivamente, parece que teria tido razões para isso, pois com o novo governador estes elementos acabaram por se envolver em intrigas várias, que incluíram o próprio D. António Pereira e que levaram a uma alçada do licenciado Pero de Alfaro, e depois a outra, presente no Funchal a 29 de agosto de 1594, presidida por Miguel de La Plaza. A primeira alçada derivou de queixas e arbitrariedades dos capitães castelhanos com os pagamentos recebidos pela Fazenda, mas a segunda deve ter-se deslocado à Ilha também motivada pelo escândalo causado pela visitação de 1592, que envolvera alguns dos militares da guarnição castelhana, embora por razões que posteriormente seriam consideradas ridículas. O Funchal foi visitado pela primeira vez por um oficial do Santo Ofício, Jerónimo Teixeira Cabral (c. 1540-1614), depois bispo de Angra e, sucessivamente, de Miranda e de Lamego, visitação que ocorreu em 1591. A visitação envolveu um prolongado processo contra os cristãos-novos e acabou por envolver também um quantitativo populacional importante, principalmente do Funchal. Assim, acabaram por se ver envolvidos com a Inquisição muitos dos militares do presídio castelhano estacionado na fortaleza de S. Lourenço, inclusivamente alguns dos oficiais superiores, como o Ten. Alonso de Segura, natural de Castelo Branco, da companhia do Cap. Luís de Benevides, e o próprio Cap. João Carrião Pardo, da outra companhia. Nesta visitação, foram ainda envolvidos os soldados Alonso de Vila Real, natural de Castro Monte; Belchior Simões; Francisco de Velasco; Garcia Sanches, das Astúrias; Jerónimo Lopes; João Carrilho, de Aguilar de Campo; João de Gambôa, natural de Escoitia, no reino de Biscaia, Guipúscua; João Rodrigues, de Badajoz; e Pedro Sans, todos da companhia de Luís de Benevides. Da companhia do Cap. João Carrião Pardo, foram envolvidos os soldados Afonso Gomes de Segóvia; Francisco Ortiz; Miguel Fernandes; Diogo Lopez, mosqueteiro, natural de Valladolid, e Roque de Penafiel, também de Valhadolid. No entanto, tratou-se tudo de pequenos delitos incluídos nas preposições, geralmente denunciados por camaradas da mesma companhia, que alguns – como Belchior Simões – nem confessaram, acabando todos por ver os seus processos despachados no Funchal. Passando em revista estes processos, ressalta, essencialmente, o isolamento então vivido por esses soldados do presídio castelhano e até uma certa má vontade contra os mesmos por parte da população civil. O principal processo envolve o soldado Pedro Sans, já citado, e uma série de companheiros. Em linhas gerais, estando alguns soldados na igreja do Colégio, no Funchal, a assistir a uma prédica do P.e Lopo de Castanheta, aliás escrivão da visitação, estes murmuraram ao ouvir o pregador referir que os soldados eram maus porque haviam feito mal a Jesus. Teriam então murmurado os soldados que maus eram os soldados romanos, pois eles, castelhanos, eram cristãos e bons, e nunca fariam mal a Jesus. Tal bastou para de imediato serem presos no aljube da Sé. No complicado processo que se seguiu, foram chamadas, ou apareceram a depor, as mais diversas pessoas, algumas das quais, para além de se identificarem, quase não disseram mais nada. Depuseram alguns dos assistentes à cerimónia, como os ourives de ouro Pedro Gonçalves de Negro, cristão-novo, e Manuel Fernandes, cristão velho, o ourives de prata Salvador Rodriguez, de 33 anos, e o alfaiate Simão Gonçalves, entre outros. O processo acabou por ser despachado no Funchal e por não levar a especiais penas. Outro processo, praticamente só envolvendo soldados do presídio, roda à volta de uma partida de dados, jogada na casa da guarda da fortaleza Velha (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), em meados de 1591. O soldado Francisco Velasco, cansado de não ter sorte aos dados, disse num determinado momento, na febre do jogo, que renegaria a sua fé se não tivesse sorte na jogada seguinte. Não teve. Isso bastou para ser acusado do crime de proposição herética, ou seja, renegação da fé, pelos seus camaradas de jogo e para dar origem a mais uma série de processos. A notícia da partida do inquisidor foi dada pelo governador em carta de 29 de abril de 1592. O visitador Jerónimo Teixeira partira a 18 desse mês numa nau escocesa, viagem “bem negociada, da qual o capitão ficou aqui em terra, e é homem conhecido, segundo me dizem, e o preço foi muito moderado porque foi de caminho fazer sua viagem” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 106). Com os pedidos do governador e os casos da Inquisição, que não devem ter deixado de pesar nas preocupações de Lisboa e Madrid, ou com as alçadas que se deslocaram nesses anos à Madeira, voltou-se a tentar colocar em ordem os pagamentos das companhias do presídio do Funchal. Aparecem a receber os quantitativos, em Lisboa, a condessa da Calheta, Maria de Alencastre, na menoridade do filho, Fernando Martins Mascarenhas, mas que não seria o então bispo do Algarve (1548-1628) – que não era menor –, e Rui Dias da Câmara (c. 1542-c. 1600), seu primo por afinidade. As letras de câmbio foram passadas por João de Valdavesso Aldamar para Jerónimo de Aranda, pagador do exército. No ano seguinte, 1593, há mandados do Cap.-Gen. João da Silva (1528-1601), 4.º conde de Portalegre, para Jerónimo de Aranda fazer diversos pagamentos, nomeadamente ao Sarg.-mor Pedro Borges de Sousa e a António Bocarro. Nestes anos, há igualmente registo de pagamentos pontuais a diversos soldados que devem ter acabado o seu serviço na Madeira. Encontrámos elementos sobre Diogo de Naba, Garcia de Gusmão, que, porque culpado duma morte, não teve direito a soldo algum, e Fernando de Torres. Um dos pagamentos mais interessantes foi o que se fez a António Bocarro, de 1.600$000, recebido por Manuel Bocarro a 8 de janeiro de 1592 e sancionado por mandado do Cap.-Gen. João da Silva. Ora o quantitativo é francamente elevado para ser um simples soldo, devendo tratar-se de uma obra de empreitada e envolver mesmo aquisições importantes de material. A família Bocarro foi uma das principais famílias de fundidores portugueses, tendo tido o seu expoente máximo em Manuel Tavares Bocarro (at. 1625-1652), na fundição de Macau. Descendente de várias gerações de fundidores, o seu avô materno, o fundidor Francisco Dias, era irmão de João Dias e tio de Baltazar Gomes e António Gomes Feo, todos fundidores de artilharia nos inícios e meados do séc. XVI. Este António Bocarro, a ser membro da mesma família, em princípio ter-se-ia deslocado ao Funchal em finais do 1591 para preparar a fundição de S. Lourenço, que sabemos a laborar alguns anos depois, embora, tanto quanto temos conhecimento, esta não tenha chegado a fundir bocas de fogo. O Gov. D. António Lopes Pereira de Berredo, como também depois aparece referido, entregou o Governo a 20 de abril de 1595, data em que tomou posse o novo Gov. Diogo de Azambuja de Melo (c. 1530-1599) (Melo, Diogo de Azambuja de). António Pereira, que, em 1592, no Funchal, se queixava de falta de saúde e desejava voltar para a sua casa no continente, ainda assumiria o lugar de capitão de Tânger, em agosto de 1599, substituindo Aires de Saldanha (1542-1605), que foi nomeado vice-rei da Índia, lugar que ocupou até setembro de 1605, quando foi substituído por Nuno de Mendonça (c. 1560-c. 1633). Em 1613, foi também enviado a Marrocos como inspetor das fortificações e com instruções para reformar parte das mesmas, intento localmente muito pouco aceite. Teria ainda sido nomeado para a Índia com o governo da parte do Sul, a primeira sucessão do Estado e outras mercês, mas nada aceitou, dada a avançada idade. Deve ter falecido em 1614. Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)