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tavares, edmundo

O estudo da arquitetura do século XX na Madeira passa por uma análise à obra de Edmundo Tavares, dada a relevância do contributo deste professor e arquiteto na introdução e desenvolvimento da arquitetura moderna no Funchal. O seu percurso no arquipélago revela hesitações estilísticas que refletem os avanços e recuos da arquitetura moderna em Portugal pois, tendo assinado alguns exemplares dentro do gosto português suave, aplicou uma linguagem mais historicista no edifício da agência do Banco de Portugal, implantado na Avenida Zarco, para logo arriscar uma linguagem mais modernista no Mercado dos Lavradores, talvez a sua obra mais marcante, e no Liceu Jaime Moniz. Nascido na freguesia e concelho de Oeiras, a 8 de novembro de 1892, estudou arquitetura civil na Escola de Belas Artes de Lisboa. Ali, foi discípulo do mestre José Luís Monteiro (1848-1942) entre 1903 e 1913. A partir de 1914, passou a arquiteto da câmara de Lisboa, sendo nomeado, em 1932, professor efetivo da Escola Industrial e Comercial de António Augusto Aguiar, no Funchal. A sua nomeação para um estabelecimento de ensino técnico-profissional no Funchal, onde fixou residência até 1939, relaciona-se com a criação nesse ano, por parte do ministro das obras públicas, Duarte Pacheco, de delegações nas diversas regiões do país para cuidarem da introdução do novo figurino oficial do já Estado Novo. Por outro lado, eram necessários docentes qualificados na área dos cursos artísticos e técnicos lecionados naquele estabelecimento de ensino insular, que melhor preparassem os futuros desenhadores e mestres-de-obra com uma maior atenção aos novos modos de olhar a arquitetura. A obra de Edmundo Tavares desenvolveu-se numa linha de renovação da linguagem arquitetónica. No âmbito da arquitetura doméstica de cunho regionalista, Edmundo Tavares, seguidor de Raul Lino (1879-1974), desenvolveu vários estudos de habitação com feição tradicional modernizada, designação que o mestre aplicava aos seus projetos. Do conjunto de moradias que projetou pode aferir-se que riscou para uma classe mais abastada da sociedade madeirense, cujas habitações se implantaram nas freguesias da periferia da cidade, confirmando a expansão do perímetro urbano funchalense ocorrida nos anos 30 do século XX. A sua primeira obra no Funchal, enquanto residente, remonta a 1932. Trata-se de uma habitação unifamiliar entretanto demolida e então projetada para José de Freitas, que se iria localizar entre a Travessa do Lazareto e a Estrada ao Sítio dos Louros, em zona de cota mais elevada. Este exemplar de linha eclética, ligado à casa à antiga portuguesa, associa-se esteticamente à formação académica do arquiteto. No mesmo gosto estético o arquiteto desenhou, em 1934, a Vila Santos, uma moradia localizada no Caminho de Santo António, área de expansão de novos casarios para a elite madeirense. No âmbito das habitações mais centrais e para outra classe social, destaca-se a Vivenda Fátima, na Avenida Infante, uma das novas artérias de expansão da cidade para Oeste, desenhada, em 1915, no Plano de Miguel Ventura Terra. Para esta habitação, tipo palacete burguês, cujo estudo data de 1934, o arquiteto privilegiou a utilização de elementos do vocabulário arquitetónico madeirense. Os terraços com varandas de balaustrada, os pitorescos alpendres floridos, as múltiplas floreiras e ainda o corpo torreado que se destaca do conjunto, lembrando as torres de ver o mar, são elementos que emprestam a este projeto um cunho regionalista e tradicional preconizado por Raul Lino na sua casa portuguesa. A partir de 1935, ano de entrada do dinâmico autarca Fernão Ornelas (1908-1978) na presidência da câmara do Funchal, Edmundo Tavares tem uma participação mais intensa na arquitetura da cidade, podendo afirmar-se que assumiu o papel de arquiteto da edilidade funchalense. A partir desta data é evidente também uma mudança de orientação estética na sua obra, tomando as suas moradias um gosto entre a art deco e o cariz popular regionalista da sua época. Dentro deste gosto estão as habitações para o Beco do Viveiro, ambas de 1936, e a moradia no Pico de São João, entretanto demolida, como também a moradia desenhada em 1937 para a Levada de Santa Luzia, cujo primeiro proprietário, Herculano Ramos, era então diretor dos serviços municipalizados da câmara do Funchal. No âmbito dos equipamentos escolares destaca-se, essencialmente, o projeto para o Liceu Jaime Moniz. Sendo o primeiro estudo, idealizado em 1934, de cariz bem mais modernista e numa linha art deco depurada, perdeu progressivamente para a versão depois edificada, mais ao gosto do português suave e já brutalista, quase de inspiração italiana, linguagem estilística defendida pelo Estado Novo e que marcou o lançamento dos concursos públicos para este tipo de equipamentos. Na mesma linha estilística, Tavares projetou o Preventório de Santa Isabel implantado numa zona alta da cidade. Trata-se de um exemplar com volumetria deco depurada, composto por um único volume de grandes dimensões e de fachadas simétricas. Numa linha mais revivalista, e no âmbito dos equipamentos, encontramos o Banco de Portugal, projetado também por Edmundo Tavares, inaugurado em 1940 e inscrito na nova avenida surgida do prolongamento da Avenida Zarco. Um corpo torreado destaca-se do conjunto, com um portal onde desfilam alguns elementos escultóricos ao gosto neobarroco, elaborados em mármore branco do continente, nomeadamente as cariátides, com cornucópias laterais e as armas nacionais. Lateralmente dois nichos esculpidos, onde se encaixam floreiras em cantaria cinzenta esculpidas por Agostinho Rodrigues. A sua composição, mais barroquizante, terá certamente beneficiado das recolhas do reportório formal associado aos solares madeirenses, que incluiu no livro Casas Madeirenses. Na mesma linha revivalista e de gosto neobarroco o arquiteto projetou, em 1936, a Capela de Nossa Senhora da Conceição, na Estalagem Quinta do Monte, exemplar que reflete a persistência de revivalismos arquitetónicos na Madeira. Trata-se de um exemplar de arquitetura religiosa particular, traçado a pedido de João José de Freitas Belmonte com o objetivo de perpetuar a memória da sua única filha, falecida com apenas 31 anos. Um excecional conjunto de painéis de azulejos monocromos a azul sobre esmalte branco, desenhados pelo pintor Américo Tavares de Oliveira e Silva e pintados pelo sobrinho e afilhado do arquiteto Ventura Terra, Gilberto Renda (1884-1971), percorrem o interior e exterior do edifício. Esta capela possui também um rico conjunto de vitrais da conceituada fábrica de Ricardo Leone (c. 1890-1971). Em 1938, por encomenda da câmara municipal do Funchal de Fernão Ornelas, Edmundo Tavares projeta uma das suas maiores obras para a Ilha, o Mercado dos Lavradores. Edifício de forte influência art deco, ocupa todo um quarteirão, com uma praça retangular no espaço interior e amplos espaços de circulação. Depois dos estudos a que se procedeu para a escolha do local do novo mercado, foi necessário proceder a diversas expropriações que decorreram de forma amigável. Foi o desenhador da repartição técnica da Câmara, João Ferraz Júnior, que se empenhou de forma perfeita nesta missão, conseguindo alcançar o entendimento com todos os intervenientes, facto que lhe valeu um voto de louvor em reunião camarária pelo zelo e competência demonstrados. O Mercado dos Lavradores seria considerado a obra de maior valor orçamental da sua época, tendo sido entregue ao empreiteiro Manuel Alberto Gomes que, em carta fechada, apresentou a proposta mais baixa entre 12 candidatos, que foi adjudicada por 2605 contos. Esta obra seria inaugurada em 24 de novembro de 1940, juntamente com o Matadouro Municipal, também da autoria de Edmundo Tavares, construído na margem direita da Ribeira de João Gomes e inserido num vasto conjunto de obras associadas ao auspicioso programa das Comemorações, em 1940, do Duplo Centenário da Independência (1140) e da Restauração (1640). As obras de Edmundo Tavares no Funchal surgiram no âmbito de um programa de modernização e de renovação dos edifícios públicos da cidade liderado pelo autarca Fernão de Ornelas. Nele estiveram também incluídos, entre outros, vários edifícios destinados a escolas primárias de onde se destaca a escola primária de São João, projetada em 1936 para uma zona nova da cidade, que se edificou junto à Capela de São João, sob o Pico de São João e a Escola Salazar, na rua dos Ilhéus, também de 1936, onde posteriormente funcionariam os Julgados de Paz do Funchal. Há também os edifícios dos Bairros Económicos e o Sanatório Dr. João de Almada, este último edificado na antiga quinta de Santa Ana no Monte. Foi também a oportunidade para alargamento da rede de água potável, com a construção de fontenários nas freguesias suburbanas, cujo modelo seguiu o projeto-tipo do atelier de Carlos João Chambers Ramos (1897-1969), enviado à edilidade funchalense e posteriormente redesenhados por Edmundo Tavares, e de que subsistiriam algumas dezenas de exemplares. Este conjunto de obras destaca-se de entre as muitas iniciativas levadas a cabo por toda a Ilha como forma de mostrar que o Estado Novo respondia às reivindicações da população, tendo sido disponibilizados todos os recursos materiais e humanos disponíveis para a sua efetivação. No conjunto de obras não realizadas, merece destaque o estudo para um Casino, de 1939, cuja área de intervenção incluía as três quintas do Estado; Quinta Vigia, Quinta Bianchi e Quinta Pavão, tendo-se privilegiando a centralidade desta última para a implementação do Casino. O edifício apresenta um traçado modernista, pela utilização de grandes aberturas, pela depuração geométrica de alguns elementos arquitetónicos e pelas coberturas planas; no entanto, exibe ainda elementos tradicionalistas, visíveis nas coberturas em telha, na estruturação da planta e na introdução de colunatas. Não deixa de ser curioso que, tendo este projeto sido solicitado num período de guerra e encontrando-se o Casino de então fechado, a Delegação de Turismo tenha incluído nas novas condições de concessão a possibilidade de o concessionário explorar dois casinos, implantando-se o segundo junto ao cais da entrada da cidade, fazendo lembrar a proposta de localização do casino de Ventura Terra. Do grupo de projetos de Edmundo Tavares não levados à prática evidencia-se ainda o estudo, ao gosto art-deco, para a Igreja Central no Funchal. Trata-se de um estudo não datado para a Igreja Presbiteriana, situada junto ao Jardim Municipal. No âmbito cultural, o arquiteto Edmundo Tavares publicou vários livros de carácter técnico-construtivo e outros sobre temas da arquitetura portuguesa, dos quais se destaca a sua participação em Casas Madeirenses, de Reis Gomes (1896-1950), de 1937 (reedição de 1968), com ilustrações de modelos de habitações. Trata-se de uma publicação que coloca em debate a problemática da existência de uma arquitetura madeirense, através da apresentação de elementos típicos regionais recolhidos a partir da observação de edifícios existentes na cidade do Funchal. O arquiteto deixou também as suas impressões sobre a Ilha no artigo, “Quadros, Presépios e Lapinhas”, de 1948. A obra de Edmundo Tavares no Funchal pautou-se pela pluralidade de opções estilísticas que caracterizou a sua geração, onde a flexibilidade de linguagem esteve sempre presente, deixando no Funchal uma obra que se destaca pela introdução da modernidade arquitetónica portuguesa na especificidade da cultura insular. O arquiteto será transferido para Coimbra em 1939, tendo sido posteriormente nomeado diretor da Escola Industrial e Comercial Tomaz Bordalo Pinheiro, mas manteve nos anos seguintes contato com a Madeira. Obras de Edmundo Tavares: “Quadros, Presépios e Lapinhas” (1948).     Teresa Vasconcelos (atualizado a 30.01.2017)

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terra, miguel ventura

Desde meados de Oitocentos que a cidade do Funchal se afirmou como importante local de turismo, procurado sobretudo para fins terapêuticos. Com efeito, o clima ameno da Madeira cedo atraiu muitos visitantes. A Ilha era então uma referência para as viagens de lazer e uma estância especialmente acreditada e recomendada para a cura das moléstias do foro pulmonar. Por esse e outros motivos, ao longo daquela centúria, passaram pelo Funchal importantes membros da realeza europeia, como a arquiduquesa da Áustria, D. Leopoldina, que viria a tornar-se imperatriz do Brasil, a rainha Adelaide, de Inglaterra, ou o príncipe Maximiliano, duque de Leuchetenberg. A Imperatriz D. Maria Amélia de Beauharnais, viúva de D. Pedro IV, também para aí se dirigiu, em 1852, trazendo por companhia a sua filha, a jovem, mas debilitada, princesa D. Maria Amélia, que, não obstante algumas melhorias iniciais, ali veio a sucumbir em fevereiro de 1853. Também pela Madeira passou, no inverno de 1860 e em finais do séc. XIX, a imperatriz Elizabeth, mais conhecida por Sissi da Aústria. Hospedados em antigas quintas madeirenses, como a Quinta Vigia e a Quinta das Angústias, outros visitantes menos ilustres beneficiaram da estadia em infraestruturas de apoio ao turismo na periferia da cidade, como a família Waxel e Faria e Castro, que por aí passaram no séc. XIX.   As transformações que paulatinamente ocorriam no Funchal ofereciam melhores condições a uma cidade já muito visitada por estrangeiros. O Conselheiro Dr. José Silvestre Ribeiro (1807-1891), enquanto governador civil, e face à animação turística da baixa do Funchal, implementou a iluminação pública na cidade. Em finais daquela centúria surgiu a construção do elevador do Monte, que permitia o transporte de visitantes e gentes locais, desde a Estação do Pombal à pitoresca freguesia de Nossa Senhora do Monte. Por outro lado, a edificação do Teatro Municipal, concluído em 1887 e na época batizado de D. Maria Pia, e a construção do Hospício Princesa D. Maria Amélia eram exemplos pontuais de modernização da paisagem urbana funchalense. Com a implementação da República, os novos poderes locais contactaram um dos mais prestigiados arquitetos portugueses da época, Miguel Ventura Terra (1866-1919), para elaborar um projeto de urbanização que dotasse a cidade com as melhores condições para que pudesse responder aos desafios do novo século. Com efeito, a total reformulação da cidade do Funchal fazia parte das intenções dos recém-eleitos deputados pela Madeira, o Dr. Manuel de Arriaga (1840-1917), o Dr. Francisco Correia Herédia (1852-1918), ex-visconde da Ribeira Brava, pois abdicara do título em 1910, sendo mais conhecido entre os deputados como senhor Ribeira Brava, o Dr. Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969) e o Dr. Carlos Olavo Correia de Azevedo (1881-1958). Em agosto de 1911, Manuel de Arriaga foi eleito primeiro presidente da República e certamente terá mantido estreita relação com os deputados madeirenses e com o Arq. Ventura Terra. Este último fora eleito em 1908 para a primeira vereação totalmente republicana da Câmara de Lisboa, cargo que manteve até 1913. Podemos constatar essa convivialidade política numa tela de 1913, do pintor e amigo do Arq. José Maria Veloso Salgado, intitulada O Sufrágio, onde nos surge, num primeiro plano, Manuel de Arriaga a colocar o seu voto à boca da urna e, num plano mais recuado, o arquiteto usando um chapéu de palha. Por outro lado, sabemos que o ex-visconde da Ribeira Brava, Francisco Correia Herédia, viveu largo tempo em Paris, onde possivelmente terá desenvolvido laços de amizade com o então estudante de arquitetura Miguel Ventura Terra. A amizade e os contactos terão certamente ficado fortalecidos agora que ambos frequentavam e se cruzavam em Lisboa. Assim, a nova comissão administrativa da Câmara Municipal do Funchal, na sua sessão de 19 de setembro de 1912, encarregou o deputado madeirense, senhor Ribeira Brava, de contactar aquele arquiteto, que à época apelidavam de “engenheiro” Ventura Terra, perguntando-lhe se aceitaria a missão de vir ao Funchal elaborar um Plano Geral de embelezamento da cidade. Para custear a sua vinda, a Câmara contou com um subsídio concedido pela Junta Agrícola, organismo criado em 1911 para incremento das obras públicas, sendo então presidido pelo ex-visconde da Ribeira Brava, Dr. Francisco Correia Herédia. Acedendo ao convite das entidades funchalenses, o arquiteto desembarcou no Funchal a 10 de fevereiro de 1913. Viera pelo vapor inglês Ambroze sendo acompanhado pelo seu irmão, António Joaquim Terra, como veio a noticiar o Heraldo da Madeira. Sabe-se que no dia seguinte visitou o Terreiro da Luta, tendo-se “demorado longamente na varanda do Restaurante Esplanada, extasiado ante o espetáculo do pôr do sol” (“Architeto Ventura Terra”, Heraldo da Madeira, 13 fev. 1913, 1). A comissão municipal encarregou o seu vice-presidente, o ex-visconde da Ribeira Brava, também deputado na Assembleia da República e velho amigo dos tempos de estudo em Paris, de ultimar com Ventura Terra a execução do Plano Geral de Melhoramentos para a cidade. Ventura Terra nasceu em Seixas, no Minho, a 14 de julho de 1866, no seio de uma família bastante humilde e numerosa. Terra foi o décimo terceiro e último filho de João Bento Terra e de Maria Victória Affonso Lindo. Os seus pais possuíam uma casa no Lugar do Sobral, em Caminha, onde iniciou os estudos primários. Ingressou, mais tarde, na Academia Portuense de Belas Artes, onde frequentou o curso de Arquitetura, entre 1881 e 1886. Completou os seus estudos na École Nationale et Speciale des Beaux-Arts, em Paris, como bolseiro do governo português, tendo frequentado o atelier dos Arqs. Jules André e Victor Laloux. Alcançou o estatuto de arquiteto de primeira classe diplomado pelo Governo francês, em 1894, tendo regressado definitivamente a Portugal em 1896, após conquistar o concurso internacional para a reconversão do edifício das Cortes na Câmara dos Deputados em Lisboa, atual Palácio de São Bento, sede da Assembleia da República, inaugurado em 1903. Neste mesmo ano, o arquiteto formou a Sociedade dos Arquitetos Portugueses, sendo o seu primeiro presidente. Em entrevista ao Heraldo da Madeira, aquando da sua passagem pelo Funchal, em fevereiro de 1913, explicou que a sua viagem se destinava a contactar com a Madeira, quer com a sua beleza, quer com os seus problemas. Quanto à cidade, comentou ser bastante confusa, com ruas horrivelmente calcetadas, muito irregulares e acidentadas, pelo que a considerava completamente “destituída dos requisitos que faziam a formusura e a comodidade dos sistemas de viação das cidades modernas”(“Melhoramentos Locais...”, Heraldo da Madeira, 21 maio 1913, 1). Lamentou, ainda, que, sendo a Madeira uma das “mais belas regiões do mundo”, a sua cidade não aproveitasse os esplêndidos pontos de observação de que poderia tirar partido. Durante esta visita à Madeira, Ventura Terra terá obtido conhecimento dos trabalhos desenvolvidos para a zona marítima da cidade realizados pelo Eng. Adriano Augusto Trigo (1862-1926), através do seu irmão, Eng. Aníbal Augusto Trigo (1865-1944), que era o diretor da Repartição Técnica da Câmara Municipal do Funchal. Com efeito, o Anteprojeto de Março de 1905, para o Prolongamento da Estrada da Pontinha à Alfândega e Construção de uma Avenida Marginal entre o Cais e o Forte de S. Tiago, da autoria do Eng.º Adriano Augusto Trigo, propõe algumas soluções que foram retomadas por Ventura Terra, nomeadamente a solução de avançar com a marginal sobre o mar. No entanto, o arquiteto vai mais além, propondo uma avenida que teria uma largura de 50 m e abrangeria toda a frente mar em contacto com a baixa da cidade, ou seja, desde as imediações do sítio das Angústias até ao Forte de S. Tiago, normalizando a irregularidade da costa. O Plano Geral de Melhoramentos Para o Funchal, de 1915, elaborado por Ventura Terra, surgiu da necessidade de reformular a cidade com modernos equipamentos urbanos e novas infraestruturas para o desenvolvimento da recente base económica do arquipélago da Madeira, o turismo internacional. Em linhas gerais, o projeto concretizou-se ao longo do séc. XX. O documento, constituído por duas enormes plantas de cinco por dois metros, é fundamental para um melhor entendimento das alterações urbanísticas que se operaram no Funchal ao longo daquela centúria, com maior incidência ao tempo do dinâmico autarca Fernão Ornelas Gonçalves (1908-1978) à frente da Câmara do Funchal. O Arqt. Ventura Terra, consciente das dificuldades de execução do seu “luxuoso” Plano Geral de Melhoramentos para a Cidade do Funchal, faseou a sua implementação a longo prazo tendo afirmado, em entrevista ao Heraldo, que o dividiria em três estudos. Ao primeiro traçado, Ventura faria corresponder aquilo que a atualidade de então permitia, privilegiando, para o segundo estudo, a construção de novas e largas avenidas de modo a arejar a cidade, como referiu na Memória Descritiva. À edilidade funchalense terão sido enviados planos parcelares, pois, em sessão camarária de 25 de setembro de 1913, o presidente da comissão administrativa daquele órgão de poder local afirmou ter recebido o projeto final de alargamento da R. da Carreira e a planta da Av. de Oeste, tendo em vista o desenvolvimento das obras em conformidade com o Plano de Melhoramentos. O segundo traçado contaria já com avenidas e ruas largas representando uma transição entre a condição inicial e a cidade que se pretendia obter. Por último, o terceiro traçado avançaria com propostas para um Funchal “definitivo, como o poderia ser daqui a uns cinquenta ou cem anos” (“Melhoramentos Locais...”, Heraldo da Madeira, 1). Atuando deste modo, o arquiteto afirmava entregar à Câmara do Funchal um Plano que a habilitaria a proceder metodicamente no seu crescimento urbanístico, o que colocaria o Funchal à frente de Lisboa. Em março de 1914, em vésperas da Primeira Grande Guerra, Ventura Terra oficiou à Câmara do Funchal a conclusão da sua obra, pedindo a esta entidade o pagamento dos seus honorários. O Projeto pretendia, principalmente, dotar a cidade do Funchal “dos requisitos que faziam a formusura e a comodidade dos sistemas de viação das cidades modernas mais adiantadas da época” (DRAC, 1915, 1), propondo uma nova forma de organizar a cidade com base na definição de largos eixos viários que confluíam em amplas praças ou rotundas para uma melhor redistribuição do tráfego. A nova estrutura viária equacionada por Ventura Terra propunha a abertura de uma ampla Av. Marginal que garantia o atravessamento da cidade no seu sentido longitudinal. A mesma estendia-se desde o Forte de S. Tiago até a Ribeira de S. João, prolongava-se depois por uma rua litoral, até ao Lg. António Nobre, naquilo que é, em parte, a Av. do Mar e das Comunidades Madeirenses. Em toda a sua largura estariam inscritas três faixas de rodagem, separadas por placas centrais arborizadas e com amplos passeios laterais. Paralelamente a esta avenida, Ventura Terra desenhou a Av. de Oeste. Esta resultava do prolongamento para oeste da Av. Arriaga e subia as Angústias até a Est. Monumental, naquilo a que mais tarde se designou por Av. Infante. No seu percurso para leste ia até ao Lazareto, percorrendo com a sua ampla largura o coração da cidade. Atravessava ainda uma ampla praça sobre a Ribeira de Santa Luzia e passava próximo do Campo da Barca. Do seu traçado destacou-se, na época, apenas a construção da parte compreendida entre a Sé e o Jardim Pequeno, troço que corresponde em parte à posterior Av. Arriaga, até a R. de S. Francisco, que, sendo iniciada na primavera de 1914, se concluiu em maio de 1916. Mantendo um traçado sensivelmente paralelo à linha da costa, Ventura Terra indicou no seu Plano outra via a resultar do alargamento da R. da Carreira e da R. do Bom Jesus, estabelecendo a conexão entre as duas através do alargamento da Praça do Município, o qual contribuiria para a valorização do edifício onde se encontrava instalada a Câmara do Funchal. Um conjunto de outras avenidas, sensivelmente perpendiculares à linha da costa, são indicadas para fazer a ligação da frente mar com o interior da cidade. A grande Av. de Santa Luzia, com 30 metros de largo, resultaria da cobertura da Ribeira de Santa Luzia por meio de uma abóbada de berço contínuo em betão armado, apresentada como a solução para o problema higiénico e estético que este curso de água constituía. As ruas que ladeavam esta ribeira, ruas da Princesa e do Príncipe, posteriormente designadas de R. 5 de Outubro e R. 31 de Janeiro, funcionariam como amplos passeios laterais que se estenderiam desde a Av. Marginal até uma praça ou rotunda a instalar próximo da estação do caminho-de-ferro do Monte, mais conhecida por Estação do Pombal. Deste modo, Ventura Terra orientava os viajantes para os pontos turísticos de maior interesse no Funchal. São indicadas outras avenidas que se apresentam perpendiculares à linha da costa e paralelas entre si: a que passa em frente à Sé do Funchal e desemboca no Lg. do Colégio, a que se estende desde a Calç. do Palácio de São Lourenço até à R. da Carreira e ainda a que se inicia no cais e sobe até à Av. Arriaga. Em todos os arruamentos o arquiteto propõe uma configuração abaulada dos perfis de modo a obter uma inclinação suave destinada à drenagem das águas pluviais. No encontro dos grandes eixos de circulação viária seriam edificadas praças que, a par com as largas ruas e avenidas, contribuiriam para um maior arejamento da cidade, funcionando também como excelentes pontos de vista e ótimos locais para colocação de monumentos, um aspeto primordial no embelezamento urbano. Para o coração da cidade, o arquiteto contemplou um grande quarteirão para a instalação do Palácio das Repartições Públicas. Este ocuparia o edifício onde então se localizava o Hospital da Misericórdia do Funchal e implantar-se-ia na área definida pelas ruas de S. Francisco, parte da R. da Carreira, R. de João Tavira e Av. Arriaga, dando seguimento a indicações anteriores que remetiam para a zona do Monte as instituições de saúde, nomeadamente a construção de sanatórios para tratamento da tuberculose. Nos inícios de Novecentos, uma comitiva da Companhia dos Sanatórios da Madeira passou pelo Funchal a fim de proceder ao levantamento dos locais mais adequados à construção dos Sanatórios da Madeira, tendo sido a zona do Monte indicada como um dos lugares apropriados para a construção de sanatórios para tuberculosos. Iniciou-se, em 1905, a construção do edifício dos Marmeleiros destinado a sanatório para pobres. No entanto, vários contratempos impediam o seu funcionamento, situação que se mantinha à altura da passagem de Ventura Terra pelo Funchal. Em meados dos anos vinte daquela centúria, será leiloado todo o mobiliário, ficando aquele estabelecimento hospitalar completamente desocupado apenas em 1926, sendo posteriormente cedido à Irmandade da Misericórdia do Funchal, tendo para aí sido transferido, em 1930, o Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Este Plano previa também a construção de dois bairros na periferia da cidade. O Bairro Oriental estava destinado essencialmente às construções económicas das classes populares e operárias, disponibilizando-lhes bons terrenos e boas condições de habitabilidade, sem descurar a pronta acessibilidade aos locais de trabalho. O Bairro Ocidental estava “destinado às edificações luxuosas e artísticas das classes ricas e abastadas” (DRAC, 1915, 5). Esta previsão concretizar-se-á, passadas duas décadas, com a edificação, nas margens da Av. Infante, de habitações luxuosas próprias de uma cidade cosmopolita, embora de pequena dimensão, com risco de grandes nomes da arquitetura portuguesa, como Raul Lino (1879-1974), Carlos Ramos (1897-1969) e Edmundo Tavares (1892-1983). Nos anos 30 do séc. XX, o arquiteto modernista Carlos Chambers Ramos, a convite da Câmara e da Junta Geral do Funchal, desenvolveu o Plano de Urbanização para o Funchal de 1931-33, onde retomou algumas das propostas de Ventura Terra, com quem trabalhara. Na sequência do mesmo, a edilidade funchalense deliberou que, para a Av. Infante, apenas permitiria a construção de chalets e habitações dentro das normas que a vereação então estabelecia. Demonstrando preocupações de caráter paisagístico e ambiental, Ventura Terra projetou, ainda, junto de cada um dos novos bairros, parques ajardinados e arborizados de onde se poderia vislumbrar os bonitos panoramas da Ilha. Destinavam-se a desempenhar um papel importante e notável na vida da cidade, sob o ponto de vista da salubridade, recreio da população, conforto e receção de turistas. No Plano de Ventura Terra, o desenho destes espaços verdes urbanos aparecem apenas delineados de forma geométrica com a indicação dos percursos e das diferentes áreas. Para o cais de entrada da cidade do Funchal, o arquiteto propôs uma praça para a receção dos turistas. Sobre o cais seria edificado um espaço de entretenimento, o Casino Municipal. A construir num plano mais elevado, estaria especialmente destinado à multidão de visitantes que chegavam à Ilha pela navegação transatlântica. O cais seria desviado para nascente de modo a localizar-se em frente à Alfândega. Ventura Terra chamou a atenção da Câmara do Funchal para que contratasse profissionais devidamente qualificados para implementar o seu Plano. Apelou mesmo à formação de uma corporação especial, composta por entidades competentes e detentora de poderes para aprovar ou rejeitar os projetos públicos ou privados, à qual caberia ditar e fiscalizar a aplicação das leis ou normas a que deveriam obedecer as novas construções. Deste modo o arquiteto manifestava a sua preocupação com o controlo urbanístico que, até aí, apenas existira pontualmente na espontaneidade urbanística da cidade do Funchal. Algumas das propostas de Miguel Ventura Terra, falecido em Lisboa a 30 de abril de 1919, colidiram com as forças vivas da cidade do Funchal. A implementação integral do seu Projeto implicava a demolição de imóveis com forte valor histórico e patrimonial, como os baluartes da Fortaleza de São Lourenço ou a torre e o transepto da Sé. Ventura Terra considerava o património como herança a preservar, mas não como elemento limitativo do desenvolvimento urbano. Foi, sobretudo, a instabilidade política da época, com sucessivas quedas de governo, e a entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra que fizeram agravar as dificuldades já sentidas no arquipélago madeirense. Desta forma, este Plano revelou-se demasiado "luxuoso" para a época, mas serviu de modelo à atual morfologia urbana do Funchal, sendo por isso merecedor de destaque, tanto mais porque se completou, em maio de 2015, o primeiro centenário do seu risco.   Teresa Vasconcelos (atualizado a 31.12.2016)

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