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indústrias do turismo

O alerta oficial para o turismo e todas as futuras indústrias relacionadas com o mesmo ficou a dever-se ao Gov. José Silvestre Ribeiro (1807-1891), que, a partir de 1847, desenvolveu uma intensa pressão sobre toda a sociedade insular nesse sentido. O governador implantou, inclusivamente, a iluminação pública no centro da cidade, no que envolveu a Câmara Municipal e os comerciantes, tentou criar normas de relação cívica “com os inúmeros estrangeiros que nos visitam”, propôs a edição de “memórias históricas” (MENESES, 1849, I, 607-608), no âmbito dos anais municipais e chegou mesmo a propor a sua publicação em várias línguas, e, no palácio de S. Lourenço, em 1850, realizou uma exposição industrial que foi a base da representação madeirense na célebre Exposição Universal de Londres do ano seguinte. Datam dessa época o desenvolvimento dos serviços de instalação e transporte dos forasteiros, que deixam de alugar prioritariamente as antigas quintas madeirenses para optarem por instalações hoteleiras, e dos transportes locais, como os carros de cesto do Monte e os carros de bois, e o lançamento das indústrias de artesanato, como bordados, vimes e embutidos, que atingiram depois padrões de certa qualidade na Madeira, dada a sua ligação à indústria geral do turismo. Com profundas raízes na cultura e nas tradições locais, o seu aproveitamento económico, com o aumento dos índices de turismo na Ilha, apresentou aspetos totalmente novos e até inesperados, como é o caso dos bordados, cujo peso económico chegou, pontualmente, a ultrapassar o dos vinhos. A indústria dos bordados na Madeira, enquanto indústria, foi introduzida pelos Ingleses; não que não houvesse já trabalhos de bordado, mas foi com os comerciantes ingleses que este trabalho se adaptou progressivamente aos vários mercados internacionais. As primeiras referências que temos na Ilha à sua existência datam de 1849, quando o futuro conselheiro José Silvestre Ribeiro os refere como “produtos e artefactos de algum merecimento”, numa nota exarada do Governo Civil do Funchal em 23 de novembro desse ano, depois transcrita num periódico continental (Revista Univesal Lisbonense, 1849, 133-134). Com a crise de 1847, o célebre “ano da fome”, o Gov. José Silvestre Ribeiro reativara a anterior “Comissão Central de Auxílio”, que funcionara entre 1843 e 1844. A ideia foi lançada na “Assembleia-geral” realizada a 4 de fevereiro desse ano de 1847, no palácio de S. Lourenço, reunindo os elementos do Conselho do Distrito, e então alargada a outras autoridades. Foi nessa assembleia que se propôs a reativação da antiga “Comissão de Auxílio”, o que se efetivou no dia 6 seguinte, com o título de “Comissão de Socorros Públicos”, e que se constituiu ainda comissões concelhias. A comissão central foi constituída pelo prelado D. José Xavier Cerveira e Sousa (1810-1862), como presidente, Pedro Agostinho Teixeira de Vasconcelos, John H. Holloway, William Grant e João Francisco Florença, como vogais, e, como secretário, Joseph Selby, então vice-cônsul inglês no Funchal e depois também cônsul da Dinamarca (VIEIRA e RIBEIRO, 1989, 39). Os fundos recolhidos por esta comissão haveriam de ser investidos em obras públicas e, também, no artesanato dos bordados, reconhecendo o trabalho já efetuado por algumas mulheres madeirenses e que as mesmas, através do seu trabalho, poderiam contribuir para o sustento dos seus agregados familiares. Em 1850, na exposição industrial de S. Lourenço, já há referências à presença de panos e de bordados e, para a célebre Exposição Universal de Londres, na representação madeirense dos objetos manufaturados, seguiram igualmente panos de linho, guardanapos, rendas de linho, xaile de meia e obras de croché, demonstrando a visibilidade dessa nova atividade. No entanto, na exposição seguinte, de 1853, descrita, embora sumariamente, por Isabella de França, que a visitou a 29 de abril, a atenta escritora não refere a presença de bordados, limitando-se à descrição das giestas em flor que decoravam os currais, de fetos muito bonitos, etc. A sua apresentação como produto para venda aparece na exposição industrial do Funchal de 1850, e, no ano seguinte, alguns bordados eram expostos em Londres, na Exposição Universal, embora a sua divulgação só ocorra a partir de 1854 e 1856, com as “meninas” Phelps, filhas de Joseph Phelps (1791-1876), antigo presidente da Associação de Comerciantes do Funchal, e de Elisabeth Dickinson (1796-1876). Na correspondência e nos diários das irmãs Mary Phelps (1822-1893) e Bella Phelps (1820-1893) não existe, no entanto, qualquer referência a esse respeito, nem ao ensino de bordados, nem à sua comercialização, como a tradição inglesa tem transmitido. O comércio de bordados seria seguido pelos irmãos Robert e Franck Wilkinson, também Ingleses, estabelecidos na Madeira a partir de 1862 – nesse ano, segundo a “Estatística Industrial do Distrito do Funchal”, de Francisco de Paula de Campos e Oliveira, existiriam mais de 1000 bordadeiras na Madeira, rendendo a venda anual de bordados cerca de 100 contos de réis (SILVA e MENESES, 1998, I, 162). Ao mesmo tempo, diariamente consumiam-se em bordados cerca de 15 kg de linhas. No entanto, a exportação registada pela Alfândega era somente de 6 a 7 contos de réis, pelo que a sua saída se dava, essencialmente, por meio dos turistas, que os transportavam na bagagem, o que justifica que este assunto se torne, depois, um cavalo de batalha da Associação Comercial do Funchal. Elizabeth e Joseph Phepls. 1875. Arquivo Rui Carita. Na Madeira, o bordado para exportação começou por ser executado em tiras de pano, e estimava-se que uma bordadeira trabalhava um dia inteiro para produzir 0,5 m de bordado. Estas tiras destinavam-se a ser aplicadas em roupa branca, confecionadas nos sítios de destino, quer nas casas da cidade do Funchal, quer no estrangeiro. Esta época representou na Europa um novo interesse pela indumentária, especialmente feminina, mesmo íntima, que dominou os hábitos de vestir das classes mais favorecidas e que se estendeu à restante roupa, como a de cama, com lençóis e almofadas, cortinados, etc. Esta fase correspondeu a criações ingénuas e rudimentares, da responsabilidade da própria bordadeira, que, inspirada em temas antigos e tradicionais, utilizava riscos próprios. Mais tarde, as bordadeiras passaram a criar outros modelos a partir de pequenos carimbos ou rodízios feitos em madeira de buxo, muitos fornecidos pelas casas comerciais do Funchal, com os quais imprimiam o desenho sobre o pano, utilizando como material de impressão papel químico ou as antigas almofadas de carimbo embebidas em tinta azul. Vestido de manhã. 1887 O bordado da Madeira sofreu uma certa concorrência na déc. de 80, especialmente do bordado suíço, parcialmente mecanizado e com uma outra qualidade de execução, de acordo com os padrões internacionais. O bordado madeirense, entretanto, mantinha-se perfeitamente artesanal, sem qualquer inovação nos desenhos e nos padrões apresentados. Embora a sua execução continuasse dentro de bons padrões de qualidade, como atesta Helen Taylor, cidadã inglesa que residiu na Madeira durante algum tempo e que, em 1882, referia que “muito bom bordado” era vendido de porta em porta (TAYLOR, 1882, 27), o produto não atingia, ainda, um patamar que lhe permitisse ser internacionalmente apresentado nas grandes lojas de moda. Mesmo assim, os níveis de exportação conseguiram manter-se, somente com alguma quebra, embora não em valores exponenciais, como até então, e nos quais não é possível contabilizar, acrescente-se, nem o bordado vendido de porta em porta, nem o vendido nos navios que estacionavam na baía do Funchal. Datam do final do séc. XIX, por volta de 1890, as primeiras casas alemãs exportadoras de bordados e as principais responsáveis pela divulgação, na Europa Central e na América, deste produto. O mercado inglês, por razões várias, tinha deixado de se mostrar interessado nos bordados da Madeira, mas estes passaram a encontrar uma boa recetividade nos mercados centrais europeus e americanos. Dos finais do séc. XIX data também a fixação no Funchal de uma importante comunidade de sírio-americanos, que igualmente iriam apostar fortemente na exportação dos bordados, principalmente para a América do Norte. Este aumento tem por base as alterações introduzidas no mercado internacional pela Alemanha, que passa a apoiar, sob o ponto de vista fiscal, num sistema aduaneiro denominado drawback, os tecidos que, exportados da Alemanha, eram reimportados estando valorizados com elementos vários, como seja o bordado, sendo então novamente reexportados, preferencialmente para o mercado americano. Nesse quadro, entre 1893 e 1910, e.g., as casas de exportação de bordados no Funchal quase triplicaram, alterando profundamente o seu esquema de distribuição e produção anteriores. As casas de bordados passaram a elaborar os desenhos que pretendiam, distribuindo assim às bordadeiras do campo o tecido já estampado através de maquinaria própria, que era depois recolhido semanalmente pelos seus agentes. As casas de bordados passaram ainda a possuir serviços especiais para executarem os desenhos e a estampagem, assim como depois para alguns acabamentos finais, que incluíam as lavagens que apagavam os vestígios dos desenhos, o engomar e o empacotar do produto final. De um global de exportação de pouco mais de 200 contos de réis, nos inícios do séc. XX, passava-se, em 1919, para mais de 600 contos. Por esta altura, no Funchal, existiriam cerca de 34 casas exportadoras de bordados, parte das quais na mão de firmas norte-americanas, orientadas no Funchal por elementos de origem síria. A questão da sobrevivência do bordado da Madeira apaixonou alguns historiadores, não sendo fácil explicar a sua capacidade de sobrevivência perante a crescente industrialização de outros centros de produção. A defesa da sua qualidade com base no pressuposto de que, por ser manual, era superior ao mecânico, não resiste à mínima análise, pois os bordados mecânicos revelavam-se idênticos, não sendo facilmente destrinçáveis dos manuais, salvo um ponto mais encorpado no “bordado Madeira”, o que não deixa de ser um pormenor. Acresce ainda que muito do bordado manual apresenta imperfeições de execução. Também o mito da sua originalidade não resiste à análise, pois a maior parte dos desenhos eram enviados pelos importadores e os pontos utilizados são comuns a muitos outros bordados, como o “Richelieu”, “garanitos”, “estrelas abertas” ou “fechadas”, “caseado”, “pesponto”, “cavacas”, “ilhós”, etc., pouco ou nada se tendo inovado nesse campo, com base na alardeada “tradição do bordado Madeira”. A questão assenta assim, essencialmente, no preço da mão de obra, excecionalmente barata (CÂMARA, 2002, 203-221). Bomboto de vimes e bordado. 1936. Arquivo Rui Carita No mesmo caminho se encontram os trabalhos de vime, essencialmente efetuados na área da freguesia da Camacha, mas cujos valores económicos nunca se aproximaram dos do bordado, até porque este se chegou a estender por quase toda a Ilha, enquanto o vime foi pouco mais longe que a Camacha. Estes trabalhos eram construídos a partir dos ramos do vimeiro, salis fragilis, arbusto que se cultiva até uma altitude de cerca de 800 m, em locais húmidos e com abundância de água, quase sempre perto de ribeiras. As tarefas de preparação da planta, embora complexas e utilizando alguma mão de obra, eram compensadas pelo baixo preço da mesma nas freguesias rurais, como era a da Camacha. O tratamento exigia mergulhar as pontas das hastes do vimeiro nas ribeiras, ou em tanques, onde ficava cerca de três meses, para rebentar ou refilar o caule, após o que podia ser descascado. Esta operação era da responsabilidade dos produtores, muitos dos quais estavam na costa norte da Ilha, que assim o vendiam quase sempre já descascado. Após esta operação, o vime era seco ao sol durante cerca de dois meses, após o que era novamente humedecido para poder ser trabalhado. O trabalho de verga é comum em toda a Europa e noutros locais do mundo, como no Oriente, já sendo mencionado na Madeira, nos meados do séc. XVI, por Gaspar Frutuoso. Refere assim o cronista, por interposta pessoa, pois nunca foi à Madeira, que, “nas faldas da serra da banda do Sul”, existia muita giesta, “que é mato baixo, como urzes”, e que dá flor amarela. Era gasto nos fornos e dele se colhia “a verga que esbulham como vime”, de que se fazem “os cestos brancos muito galantes e frescos para servir de mesa, e oferta de batismo, e outras coisas, por serem muito alvos, e limpos”. Por isso se vendiam então para fora da Ilha e do reino de Portugal, porque se faziam “muitas invenções de cestos muito polidos e custosos, armando-se às vezes sobre um dez, e doze diversos, ficando todos” como uma “peça só”. Acrescenta ainda que “para se fazerem mais alvos do que a verga é de sua natureza, ainda que é muito branca, os defumam com enxofre” (FRUTUOSO, 1968, 138). Seriam obras deste género as enviadas para a já mencionada Exposição Universal de Londres de 1852 por José Silvestre Ribeiro, citando-se então “cestos de verga de giestas”. Bomboto de vimes. 1950. Arquivo Rui Carita.   Bomboto de vimes. 1936. Arquivo Rui Carita Refere o Elucidário Madeirense, por certo Carlos Azevedo de Meneses, que se debruçou mais especialmente sobre esta área, que o desenvolvimento e a industrialização deste tipo de trabalhos se ficou a dever a William Hinton (1817-1904), que incentivou alguns trabalhadores a executá-lo, aproveitando as especiais e húmidas condições climáticas do local. Um dos primeiros artífices teria sido António Caldeira, o qual, desmanchando uma cesta importada pela família Hinton, a utilizou como modelo para fazer outra idêntica em vime. No entanto, parece que na freguesia da Camacha já se executavam trabalhos semelhantes em vime por volta de 1812, por certo mais rudes e sem o vime descascado, como a cestaria que se utiliza ainda hoje nas vindimas e para obras várias de construção civil, sobretudo para transporte de pedras e madeiras. As obras de vime tiveram larga utilização na Madeira, fornecendo um género de mobiliário adaptado ao clima um tanto húmido da Madeira, vulgarizando-se nos lugares ao ar livre. Foram ainda o mobiliário de eleição para os visitantes temporários do Funchal, especialmente no inverno, que deste modo mobilavam as suas casas por preços módicos e em conformidade com um certo exotismo apreciado em meados e finais do séc. XIX. O seu fabrico disparou na déc. de 80, com o exponencial aumento da navegação atlântica, sendo vendido por bomboto e acumulando-se nos decks dos grandes paquetes, como é patente em inúmeros registos fotográficos da época, servindo, inclusivamente, de mobiliário de bordo, leve e facilmente transportável. Miss Henriette Wilhelmina Montgomery Cadogan na Quinta da Saudade. 1888. Arquivo Rui Carita. A procura motivada pelo fluxo turístico fez crescer a produção, assim como a população da freguesia da Camacha que se dedicava a este artesanato, mas não criou novas relações de produção, como nos bordados, que melhorassem e favorecessem a atividade com algumas inovações mecânicas. O aparecimento, em 1902, no Funchal, de uma oficina da firma britânica Raleigh C. Payne & C.ª, que chegou a mecanizar alguns segmentos da produção, não teve grande seguimento, sendo o grosso da produção efetuado na Camacha e de modo totalmente manual. A produção envolvia quase toda a população daquela freguesia, incluindo mulheres e crianças, cabendo mesmo a algumas mulheres, as cesteiras, transportar parte da produção à cabeça para o Funchal. Salvo a já referida Raleigh C. Payne & C.ª, as restantes firmas eram essencialmente constituídas por capitais locais, com as oficinas na Camacha e um ou outro escritório no Funchal. A produção ficou assim entregue, até aos meados do séc. XX, aos camponeses camachenses, não tendo havido qualquer intervenção mais especializada que lhes melhorasse a qualidade visual e lhes organizasse a produção. Consultando um catálogo dos inícios do século, dos poucos que foram produzidos nesta área, da firma A. F. Nóbrega & Filho, com escritório no Funchal e “com fábrica na origem, na pitoresca freguesia da Camacha”, constata-se que, embora apresentando uma espantosa coleção de mais de 420 obras de vimes (RODRIGUES, 2000, 3-4), não passam os seus modelos do pitoresco e do engenhoso. As obras de marcenaria na Madeira foram quase contemporâneas do povoamento, tendo tido por base o excecional parque arbóreo encontrado na Ilha. Em 1506, e.g., Valentim Fernandes descrevia a utilização das madeiras da Ilha, fazendo uso, por certo, de informações referentes ao século anterior. Assim, refere que se explorava a madeira de cedro, sendo então possível obter tabuado de sete palmos de largo, ou seja, cerca de 1,5 m, referindo que quase parecia madeira para mastros de navios (Arsenal de S. Tiago). Desta madeira fabricavam-se caixas para casa, mesas e cadeiras, conforme também acrescenta. Os trabalhos de preparação das madeiras são igualmente descritos por Gaspar Frutuoso mais de 70 anos depois, com um muito interessante apontamento sobre o trabalho da serra de água do Faial, também referindo que se exportavam móveis e bufetes. Nos meados do séc. XVII, existem inclusivamente cartas de examinação do mestre das obras reais Bartolomeu João (c. 1590-1658), de 28 de setembro de 1656, registada na Câmara do Funchal, certificando que Filipe Correia fora examinado como mestre de ofício de “marceneiro e ensamblador”, e que o mestre das obras “o achara muito destro e hábil em fazer escrivaninhas e bufetes ao mosaico, guarda-roupas marchetados de ébano”, tal como mosquetes (PEREIRA, 1968, II, 788). Estes trabalhos tiveram assim continuidade nos sécs. XVII e XVIII, então utilizando-se madeiras de outras proveniências, como do Brasil, de que os mais importantes exemplos deverão ser o para-vento e os púlpitos, assim como os vários móveis de parede da sacristia da igreja do Colégio dos Jesuítas do Funchal, trabalho efetuado pela mesma data, como consta no para-vento: 1725. Na continuidade desse trabalho, na listagem dos produtos enviados para a Exposição Universal de Londres por José Silvestre Ribeiro, nas “Obras de marcenaria”, figuram mesas, caixas, tabuleiros de xadrez, estantes e facas para cortar papel (FREITAS, 1852, 404-407), não sendo fácil identificar os trabalhos e os artesãos. É provável que uma das peças enviadas a Londres tenha sido a garrafeira de José António de Sousa, que assinava também como “artista madeirense”, a qual se encontra na coleção do Museu Quinta das Cruzes, e que esteve na exposição de 1850 realizada no palácio de S. Lourenço, onde o ensamblador premiado foi António José de Abreu. Outros nomes de embutidores ou ensambladores madeirenses aparecem mais tarde, já perto dos finais do século, com a integração destes mestres no ensino profissional, oficialmente por volta de 1893, na então Escola de Desenho Industrial, na R. de Santa Maria, cujo edifício subsiste, com a sua alta torre. O primeiro elemento de certa notoriedade teria sido Manuel Rodrigues Gaspar, com oficina própria junto ao eremitério da Penha de França, mestre da oficina daquela escola. Já então se distinguiam outros mestres embutidores, entre os quais João de Sousa, José Gregório de Sousa e Eduardo Pereira (c. 1860-1940), que se tornaram notórios a partir dessa data. O último criou uma mesa decorada com os monogramas reais, que foi oferecida ao casal real D. Carlos e D. Amélia na visita que fizeram às ilhas em 1901, e depois depositada na Fundação D. Manuel II, em Lisboa. Os temas dos trabalhos de embutidos, tal como acontecia nos bordados, eram essencialmente vocacionados para os visitantes estrangeiros, repetindo até à exaustão pares de vilões a dançar, carrinhos de bois e cestos do Monte, mais ou menos envolvidos por flores e monótonas cercaduras, como refere, por volta de 1906, Vitorino José dos Santos. Refere o mesmo que havia então na Madeira alguns operários e embutidores “por ensino técnico”, dispondo de “talento para a composição artística, que produzem trabalhos de reconhecido merecimento, procurados e apreciados por pessoas entendidas”. Não deixa, no entanto, de mencionar que, em geral, aos “operários madeirenses falta cultura intelectual e gosto artístico”, o que os desinteressa da ideia de “progredir, variando e melhorando a composição dos seus trabalhos”, e, por isso, a maioria dos embutidos continua “rotineiramente a apresentar-se segundo os mesmos modelos”, quase sempre figurando os tradicionais “vilões madeirenses”, os carros de bois, redes e “carrinhos do Monte”, guarnecidos de “cercaduras de desenhos simétricos e pouco variados” (SANTOS, 1907). Mesa com cabeças de vilºoes. 1930 Miguéis e Franco. Arquivo Rui Carita. O diploma de 4 de setembro de 1916 determinou a oficialização da marcenaria na então Escola Industrial e Comercial do Funchal, através da constituição de uma oficina de “incrustação e embutidos”, que só viria a funcionar em outubro de 1919, sendo seu primeiro regente o ensamblador Manuel dos Passos Aguiar, depois medalha de ouro da grande Exposição Industrial Portuguesa de 1939 (PEREIRA, 1968, II, 789). Com este regente, aparecem a trabalhar o já citado Eduardo Pereira, o marceneiro Francisco Franco (pai), cujo diploma se encontra no espólio do Museu Henrique e Francisco Franco, os pintores Henrique Franco (1883-1961) e Alfredo Miguéis (1883-1943), assim como, provavelmente, também o escultor Francisco Franco (1888-1955). Devem datar dessa época os desenhos “arte nova” com cabeças de menino com barrete de vilão, bem ao gosto de Henrique Franco, ou algumas mesas com cabeças de senhoras, indubitavelmente da autoria de Alfredo Miguéis. A saída dos irmãos Franco para Lisboa nos anos 30 e o falecimento de Alfredo Miguéis em 1943 levaram à estagnação criativa desta atividade. A indústria dos embutidos manter-se-ia nas primeiras décadas do séc. XX, mas acusaria algum cansaço nos meados do século. Apesar da introdução do pintor Américo Tavares de Oliveira e Silva, a lecionar na Escola Industrial entre 1945 e 1950, a situação de impasse manteve-se, como é patente pela tentativa de revitalização da então Delegação de Turismo, de 20 de abril de 1948, no sentido de “difundir o gosto pelas artes, ofícios e curiosidades de produção local, reintegrando-os no seu pitoresco e na pureza das suas características” (Id., Ibid., 170), cujos termos enunciados são já de perfeita morte anunciada. Passeio de rede. Pico dos Barcelos. Fotografia sem data. Os meados do séc. XIX assistiram ao nascimento da fotografia, inicialmente tímido, a qual, porém, a partir dos inícios da segunda metade desse século, iniciou a sua progressiva internacionalização e democratização, o que, de certa forma, alteraria e condicionaria, a partir de então, toda a forma de estar das sociedades urbanas. O séc. XIX foi um século ávido da fixação da imagem, primeiro através da litografia, mais ou menos animada a aguarela (Andrew Picken, Frank Dillon, Pitt Springet e Lady Susan Vernon Harcourt), e, depois, da fotografia, também essa muitas vezes igualmente animada, e que fornecia o que se entendia ser a inteira verdade da realidade captada, tão cara ao positivismo. Se, numa primeira fase, os viajantes internacionais adquiriram nos fotógrafos locais as principais imagens da Ilha, como fez o médico Carl Passavant (1854-1887), em 1883, muito provavelmente no estúdio de Augusto Maria Camacho (1838-1927), e, em 1887, o marquês de Albizzi, para depois as passar a gravura e ilustrar os seus “Six mois à Madère”, publicados em Paris em 1888, em breve muitos chegavam à Ilha como fotógrafos amadores, tirando as suas próprias fotografias, como, inclusivamente, o Rei D. Carlos, na visita régia de junho de 1901. Nessa altura, já se encontravam estabelecidos no Funchal os fotógrafos Vicente Gomes da Silva (1827-1906) e já saíra para Lisboa João Francisco Camacho (1833-1898), que passara o atelier ao irmão Augusto Maria Camacho, estúdio onde se viria a instalar, depois, Joaquim Augusto de Sousa (1853-1905), embora sempre se dando como amador, e, ainda, Manuel de Olim Perestrelo (1854-1929), a que se seguiram os filhos, netos, bisnetos e trisnetos. Sé do Funchal. Georges Balat. 1901. Arquivo Rui Carita. A fotografia desempenhou e desempenha um muito especial papel num destino turístico como a Madeira. Primeiro, com a possibilidade de registar a passagem pela Ilha dos inúmeros doentes, dos quais, por vezes, só regressavam a casa as fotografias, mas também as paisagens, de que avidamente os muitos visitantes levavam fotografias, quer como prova de ali terem estado quer como recordação do que ali tinham visto, ou que gostariam de ter visto. A instalação dos estúdios fotográficos e a posterior divulgação das máquinas fotográficas, assim como da indústria das reproduções, associada ainda à divulgação dos correios, criará igualmente uma outra indústria totalmente nova, a do bilhete-postal, que se tornará uma novidade que promoverá a imagem da Madeira um pouco por todo o mundo e dará origem a uma moda de colecionismo romântico excecionalmente importante, que entrará pelos meados do séc. XX; e, no séc. XXI, pela divulgação do digital, aparecem quase todos os dias nos diversos fóruns destas áreas novas fotografias tiradas na ilha da Madeira.   Rui Carita (atualizado a 18.12.2017)

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guanches

Guanches é a designação que mais se vulgarizou para os indígenas das Canárias, mas, na documentação camarária, são conhecidos como escravos «canarios». Na Madeira, estes aborígenes estão testemunhados, pelo menos, como escravos provenientes das ilhas Tenerife, La Palma, La Gomera e Gran Canária. Palavras-chave: Canárias; Escravos; Guanches.   Nas Canárias, os guanches são entendidos como os habitantes oriundos da ilha de Tenerife, mas tal designação foi a que mais se vulgarizou para os indígenas das Canárias, sendo também testemunhada por Gaspar Frutuoso quando se refere à população daquelas ilhas de uma forma global. Mas, na documentação camarária do Funchal, são conhecidos como escravos canarios. Também preferimos esta designação à de canários, por forma a não se confundir com o pássaro do mesmo nome. Na Madeira, a presença destes aborígenes das ilhas Canárias está testemunhada, pelo menos, como escravos provenientes das ilhas Tenerife, La Palma, La Gomera e Gran Canária. A informação que sobre estes é possível reunir na documentação é escassa e muito esparsa. A presença dos guanches na Madeira, na condição de escravos, é um dos principais resultados da intromissão dos madeirenses na pretensão portuguesa de conquistar as Canárias. Decorridos apenas 26 anos desde o início do povoamento da Madeira, os madeirenses embrenharam-se na complexa disputa pela posse das Canárias, ao serviço do infante D. Henrique. Desta forma, já na primeira metade do séc. XV, surgiram algumas incursões com partida da Madeira, existindo notícia de três (1425, 1427, 1434), das quais resultou o aprisionamento de escravos. Com a expedição à costa africana de 1445, o madeirense Álvaro de Ornelas fez um desvio à ilha de La Palma, onde tomou alguns indígenas que conduziu à Madeira. Nas inúmeras viagens organizadas por Portugueses, entre 1424 e 1446, surgem escravos como mercadoria que, depois, era vendida na Madeira ou em Lagos. Nos anos de 1445 e 1446, estão também documentadas diversas expedições às Canárias, que contribuíram para o aumento da presa de escravos no arquipélago na Madeira. Em 1445, os dois capitães da ilha – Tristão Vaz e Gonçalves Zarco – enviaram caravelas de reconhecimento à costa africana, mas o fracasso da viagem levou-os, no retorno a procurar presa em La Gomera. Álvaro Fernandes fez dois assaltos em La Gomera e, em 1446, foi enviado por João Gonçalves Zarco, segundo Zurara, com a intenção de realizar alguma presa. É a partir daqui que devemos situar a importância que assumiram os escravos das Canárias na sociedade madeirense. A partir de meados do séc. XV, são assíduas as referências a tais servos na ilha da Madeira, identificados como pastores e mestres de engenho. Estranhamente, nos testamentos do séc. XV, não encontramos nenhuma indicação que abone a sua presença. Para além dos dois que possuía o capitão Simão Gonçalves da Câmara, sabe-se que João Esmeraldo, na Lombada da Ponta do Sol, era também detentor de escravos daquela origem, sem ser referido o número. Cadamosto, na primeira passagem pelo Funchal em 1455, fala-nos de um guanche cristão que se dedicava a fazer apostas sobre o arremesso de pedras. O principal estigma da sociedade madeirense para com este grupo estava relacionado com os fugitivos, que são apresentados como violentos e ladrões. E mesmo entre os demais, as relações não deveriam ser muito boas, uma vez que o senhorio da Madeira determinou, em 1483, uma devassa, seguida de ordem de expulsão, em 1490. De acordo com este último documento, todos os escravos canarios, oriundos de Tenerife, La Palma, La Gomera e Gran Canaria, excetuando-se os mestres de açúcar, as mulheres e as crianças, deveriam ser expulsos do arquipélago. Mas, neste caso, o infante apenas considerou os escravos forros. A 4 de dezembro de 1491, houve uma reunião extraordinária da Câmara para deliberar sobre o assunto. A ela assistiram o capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, os oficiais concelhios e os homens bons. Ao todo eram 25, e destes, 11 votaram a favor da saída de todos, 9 votaram apenas pela saída dos escravos forros, e 4, pela sua continuidade na Ilha. Dos primeiros, registe-se a opinião de João de Freitas e Martim Lopes, que justificam a sua opção afirmando que todos os guanches, livres ou escravos eram ladrões. Para Mendo Afonso, não era assim que se castigava tais atropelos, pois existia a forca como solução. Em 1503, o problema ainda persistia, ordenando o Rei que todos eles fossem expulsos num prazo de 10 meses. Posteriormente, a Coroa retrocedeu, abrindo uma exceção para aqueles que eram mestres de açúcar e para dois escravos do capitão – Bastiam Rodrigues e Catarina –, por nunca terem sido pastores. As evidências da documentação, complementadas pelos usos e costumes, técnicas de construção e produção e, ainda, pela toponímia, são a expressão de uma relação histórica que abraçou ambos os arquipélagos. De facto, na Madeira, da presença dos canarios, muitas vezes identificados como mouros e índios, ficaram rastos evidentes na documentação, toponímia e tradição oral. No caso da toponímia, que identifica acidentes geográficos e grutas, é de salientar a sua localização no interior da Ilha, o que os relaciona com os fugitivos ou pastores, maioritariamente guanches. Assim, temos alguns vestígios de guanchismo em nomes como pico do Canario, Garachico, Massapez, ilhéu do Guincho; o primeiro parece associar-se à população em causa, e os outros são palavras com origem no dialeto dos guanches. Deste modo, associa-se-lhes a tradição relacionada com a construção de furnas para habitação no concelho da Ribeira Brava e também certos locais de culto religioso, como sucede com a capela cristã do séc. XVII na freguesia de S. Roque do Faial, que teria sido construída no local de um templo associado a estes, ditos mouros. Não é certo se o pico Canário (Santana) e o lugar do Canário (Ponta de Sol) se referem ao escravo ou ao pássaro, comum nestes arquipélagos. Note-se que, em abono do último caso, temos a referência de que João Esmeraldo era possuidor de escravos desta origem na sua Lombada que, não obstante estar perto da vila, pertencia à jurisdição do município do Funchal. Estão referenciadas grutas nos seguintes locais: cais do Campanário, Calhau da Pesqueira (Ponta do Pargo), Furna do Negro (Ribeira Seca), Ribeira da Tabua, Lapa do Castelhano (Paul da Serra), Eira da Moira (Serra de Água), Furna da Moira (Lugar da Serra). Todas as grutas do litoral e do interior denotam uma atualização recente, tornando-se difícil saber a autoria e o início do seu funcionamento. Nos casos das do Campanário e Ponta do Pargo, ligam-se à atividade do mar, enquanto as do interior, se estiverem próximas de terrenos agrícolas, são consideradas armazéns de guarda dos utensílios agrícolas e palheiros para o gado; por seu lado, as da zona de floresta denotam utilização por carvoeiros, pastores e viajantes. Estas estruturas são associadas a túmulos, identificados como originários de mouros, seguindo uma tradição peninsular em que tudo o que não é cristão é merecedor deste epíteto. A par disso, existem no interior da Ilha, nomeadamente na zona do Paul da Serra, diversas estruturas escavadas na rocha que poderão estar associadas à presença destes ou doutros grupos. A influência dos guanches, na condição ou não de escravos, não se fica pelos lugares recônditos da Ilha, pois também chegou ao meio social madeirense. Há ainda outras situações que testemunham esta mútua influência cultural, nomeadamente a generalização do consumo do gofio, que assumiu um papel fundamental na dieta das populações do Porto Santo, com a designação de “gofé”, mas que também surge na Madeira, e.g. na Camacha. Outra aportação desde as Canárias para a Madeira deverá estar nas técnicas ligadas aos meios de transporte do vinho. Assim, o uso de odres – os borrachos na nomenclatura madeirense – para transportar o vinho deverá estar relacionado com esta influência berbere, não obstante o seu uso peninsular, sendo referenciado em Lisboa para o transporte de mel e azeite. Em relação a esta influência canária, na generalização deste meio de transporte do vinho tenha-se em consideração a tradição dos guanches no tratamento dos couros, nomeadamente do gado caprino, que usavam como vestuário ou bota para transporte de líquidos (leite, vinho). O povoamento cinegético das ilhas Desertas com cabras das Canárias, por determinação da Câmara do Funchal de 28 de julho de 1481, poderá ser mais um elemento a corroborar esta situação, tendo em conta o uso preferencial, nos dois espaços, da pele de cabra com a mesma finalidade. Finalmente, tenha-se em conta que, quer os guanches (em Mesquer, na ilha de Fuerteventura) quer os berberes em Marrocos (em Marrakech), tinham instalações para o curtume de peles, cujas estruturas se apresentam semelhantes às que conhecemos na Serra de Água e Tabua, na ilha da Madeira. A situação destas estruturas da Ribeira da Serra da Água e Ribeira da Tabua, em pleno leito da ribeira, indicia, em hipótese, a sua relação com uma indústria de curtumes que deverá ter existido e a que não deverá ser alheia a presença de escravos canarios e mouriscos.   Alberto Vieira (atualizado a 13.12.2017)

Antropologia e Cultura Material Madeira Global

teixeira, virgílio

Homenagem ao ator Virgílio Teixeira Galã do cinema dos anos 40, 50 e 60 do século XX, Virgílio Gomes Delgado Teixeira nasceu no Funchal a 26 de outubro de 1917. Desportista, fluente em inglês e de boa figura, Virgílio Teixeira, filho de Gastão Teixeira, comerciante e ex-emigrante em Demerara, começou por ser guarda-redes de futebol – alinhou pelo Sporting da Madeira e pelo Marítimo – e era bom em saltos acrobáticos e ténis. O seu primeiro contacto com a indústria do cinema – além dos filmes que ia ver – aconteceu numa partida de ténis com o realizador inglês Thorton Freeland, que passava férias na Madeira. Para não humilhar o adversário, Virgílio Teixeira deixou-o ganhar. O realizador não terá gostado mas, mesmo assim, disse ao madeirense para fazer as malas e o acompanhar até Londres, onde teria a porta aberta para uma carreira no cinema. Assim teria sido, se a situação política e a aproximação da Segunda Guerra Mundial não tivessem dificultado o seu percurso, pelo que o futuro ator regressou a casa. Em 1941, mudou-se para Lisboa e, por falar bem inglês, arranjou emprego na American Export Line, a única empresa que, na altura, fazia a ligação marítima entre a América e a Europa. Pouco tempo depois, mudou-se para uma companhia aérea, mas acabou por ser despedido por causa das noitadas. Vendo-se sem trabalho, penhorou os fatos e os sapatos numa tentativa de se manter pela capital; em desespero, pediu dinheiro ao pai que, em vez de um cheque, lhe mandou uma passagem para o Funchal. Virgílio Teixeira recusou e a decisão de ficar em Lisboa acabou por lhe abrir as portas do mundo do cinema. O convite para entrar em Ave de Arribação (1943) aconteceu pouco tempo depois, mas a fama só chegaria com Zé do Telhado (1945), a versão portuguesa do ladrão que rouba aos ricos para dar aos pobres. Este papel valeu-lhe o prémio de melhor ator do ano de 1945 e a sua vida no cinema estava apenas no começo; sem nunca ter estudado representação, o rapaz da Madeira iniciava uma carreira onde iria somar 92 participações em filmes, uma telenovela, séries televisivas e 2 papéis no teatro, ao lado de Carmen Dolores e de Eunice Muñoz. Antes de se mudar para Espanha - no fim dos anos 40 –, Virgílio Teixeira selou o seu estatuto de galã ao contracenar com Amália Rodrigues no filme Fado, História de Uma Cantadeira; a cena onde Júlio Guitarrista ensina a fadista Ana Maria é das mais célebres do cinema português. Viveu 12 anos em Espanha, e fez tantos filmes que chegaram a pensar que era espanhol; com efeito, o Sindicato Nacional do Espetáculo do país vizinho considerou-o, em 1955, um ator genuinamente espanhol. A conjuntura – o facto de os filmes rodados em Espanha ficarem mais baratos à indústria americana – permitiu-lhe contactar com atores, atrizes e realizadores de nome internacional, sobretudo americanos, abrindo-lhe portas em Hollywood. Virgílio Teixeira fez de Ptolomeu em Alexandre, o Grande (1956) e de general russo em Dr Jivago (1965) – e estes são apenas dois dos filmes em que participou. Virgílio Teixeira privou com atores como Ava Gardner, Lana Turner, Sofia Loren, Richard Burton, Tyrone Powell e Rita Hayworth. Nos cartazes dos filmes, o seu nome aparecia como Virgilio Texera ou John Texera. Em 1966, regressou à Madeira afirmando “Eu vim embora de Hollywood porque estava a sentir que aquilo ali começava a ser uma autêntica selva”. (SILVA, 2006, 60), mas, ao longo dos anos, continuou a participar em filmes, nomeadamente A Mulher do Próximo (1988), de José Fonseca e Costa Em 1984-85, entrou na telenovela Chuva na Areia, onde fazia o papel de homem rico mas, pesar de ter representado em mais alguns papéis, esta já não era a sua principal atividade, pois vivia dos negócios; foi também agente da Ibéria, delegado das Páginas Amarelas, da Rádio Televisão Comercial e da Sociedade Portuguesa de Autores. Teve uma curta passagem pela política, como vereador do PSD na Câmara Municipal do Funchal no início dos anos 80. Foi homenageado pela TVE e pelo Governo Regional da Madeira, sendo condecorado pelo Presidente da República com a comenda de oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Morreu no Funchal, com 93 anos, a 5 de dezembro de 2010.   Marta Caires (atualizado a 08.12.2017)

Cinema, Vídeo e Multimédia

formas de tratamento

O Sistema das Formas de Tratamento (SFT) em Português Europeu (PE), como referido por vários investigadores, entre outros, Lindley Cintra CINTRA, 1972), Gunther Hammermüller (HAMMERMULLER, 1993), Maria Helena Araújo Carreira (CARREIRA, 1997, 2001, 2002, 2008, 2009) e Isabel Margarida Duarte (DUARTE, 2010, 2011), é muito complexo. A sua complexidade, essencialmente de natureza pragmática, reside no facto de nem sempre o falante saber selecionar a forma que mais se adequa ao seu interlocutor. Este saber pragmático implica também uma competência de natureza sociolinguística e o conhecimento de várias formas para nos dirigirmos a outra pessoa, como ilustrado nos enunciados fornecidos em baixo: a. A senhora gosta de café ou prefere chá? Ø Gosta de café ou prefere chá? Ø Gostas de café ou preferes chá? A senhora Maria gosta de café ou prefere chá? A Maria gosta de café ou prefere chá? A dona Maria gosta de café ou prefere chá? A senhora dona Maria gosta de café ou prefere chá? Você gosta de café ou prefere chá? Tu gostas de café ou preferes chá?   A escolha de “tu”, “você”, “o/a senhor/a” ou “ø”, cujo conhecimento se relaciona com o domínio léxico-morfológico, é motivada pela maior ou menor familiaridade vs. distanciamento social, para além de fatores como a idade, o sexo/género, o nível de escolaridade e a posição social, existentes entre os interlocutores. No processo de adequação à situação discursiva, o falante terá “de possuir, no seu acervo lexical, um conjunto rico e variado de alternativas pelas quais possa optar, depois de avaliar devidamente a situação enunciativa, o estatuto e a relação entre os interlocutores entre os quais decorre a troca comunicativa” (DUARTE, 2011, 85). A 3.ª pessoa gramatical, a forma de tratamento mais frequente em português, contrariamente ao que ocorre, e.g., em espanhol, onde a forma “tu” é a mais usada, combina-se, no discurso: (i) com as diferentes formas nominais de nos dirigirmos ao outro (em 1a., 1d., 1e., 1f., 1g.); (ii) com o pronome “você” (em 1h.); (iii) e, sobretudo, com o sujeito nulo Ø (em 1b.), uma opção que permite evitar os mal-entendidos decorrentes de um uso inapropriado de “você”. Com efeito, o pronome “você”, quase generalizado no Português do Brasil (PB), coloca muitos problemas nas variedades do PE, sendo aceitável apenas em certas regiões e em certas variedades diastráticas, enquanto o seu uso na variedade-padrão se encontra muito condicionado a situações nas quais se está em presença de relações simétricas e de uma certa proximidade, de igual para igual, verificando-se como inaceitável na maior parte dos casos em que exista uma dissimetria social ou de idade entre os interlocutores. No Norte do país, que normalmente mantém os traços arcaizantes na língua, o uso de “você” é considerado uma enorme falta de educação. No entanto, nem sempre o uso de “você” pode ser depreciativo. Em certas situações, é até considerado apropriado, o que já não acontece com a variante “vossemecê”, que deve ser evitada em situações formais. Paiva Boléo (BOLÉO, 1946) confirma este uso, entre senhoras e senhores da chamada boa sociedade, se entre eles existir familiaridade. Refere também o facto de o uso de “você” ser mais urbano, em conversas informais entre jovens, embora seja mal considerado, ou mesmo visto como insultuoso, se for usado num ambiente rural. Por sua vez, Maria Helena Araújo Carreira (CARREIRA, 1997) defende que a estigmatização de “você” em PE é diferenciada em todas as regiões de Portugal e que as suas regras de uso dependem das classes sociais, das regiões, da idade e do género. Para Gunther Hammermüller (HAMMERMÜLLER, 1993), com base nos resultados de dois tipos de questionários realizados no Norte de Portugal, existiriam sete tipos de “você”: o “você” de respeito; o “você” de igualdade; o “você” de inferioridade; o “você” que elimina a ambiguidade (nas situações ambíguas onde não queremos ser informais, tratando a pessoa por “tu”, ou ser muito formais, tratando alguém por “o/a senhor/a”); o “você” afetuoso, com pessoas conhecidas dentro da família; o “você” de distanciamento, quando o locutor quer manter a distância com a pessoa a quem se dirige; e, por fim, o “você” metalinguístico, ou seja, quando usado para referir um “você”, como em “Você é um pronome” ou “Você é o sujeito da frase”, sendo desprovido de significado. De referir, por fim, que este problema só se coloca quando se usa “você” no singular. Na 3.ª pessoa do plural (3PP), “vocês” é perfeitamente aceitável, quando o locutor se dirige a vários destinatários. Em contrapartida, o uso da variante com pronome de 2.ª pessoa do plural, “vós”, relativamente confinado, nos princípios do séc. XXI quer geograficamente, quer do ponto de vista do tipo de discurso, é uma forma perfeitamente aceitável, e.g., na situação discursiva em que um sacerdote se dirige aos fiéis. Classificações Do ponto de vista morfossintático, segundo Lindley Cintra (CINTRA, 1972), o SFT do PE divide-se em três categorias: (i) o tratamento pronominal (“tu”, “você”, “vocês”, “Vossa Excelência”, “Vossa Alteza”, “Vossa Majestade”, “Vossa Senhoria”); (ii) o tratamento nominal (“o senhor”, “a senhora”, “o doutor”, “a dona”, “a doutora”, “o senhor ministro”, “o professor”, “o pai”, “a mãe”, “o avô”, “o Carlos”, “a Joana”, “a minha amiga”, “o patrão”, “a menina”, etc.); e (iii) o tratamento verbal (em português, o uso da 3.ª ou da 2.ª pessoa do verbo no singular, como em (1b.) e (1c.), sem sujeito expresso). O tratamento nominal é sempre acompanhado pela 3.ª pessoa verbal e distingue-se dos outros dois tipos por fazer sempre referência a algo relacionado com a pessoa a quem nos dirigimos. Esses traços individuais podem ser, e.g., o sexo/género: “o senhor”/“a senhora”; a profissão ou a categoria social: “o senhor doutor”/“o senhor ministro”; o parentesco: “o pai”/“a mãe”; o nome próprio: “o Joaquim”/“a Maria”; o nome de relação especial: “a menina”/“a minha amiga”. Gunther Hammermüller (HAMMERMÜLLER, 1993 e 2004) classifica as formas de tratamento em nominais, pronominais e verbais, como Lindley Cintra (CINTRA, 1972), mas propõe também a integração no sistema de uma nova categoria, designada por tratamento de evitação, que corresponde ao emprego da 3.ª pessoa (“Ø Deseja açúcar?”), uma forma alternativa utilizada para evitar a escolha de formas pronominais ou nominais que se referem aos estatutos sociais dos interlocutores. A perspetiva semântico-pragmática permite observar como o SFT se relaciona com a hierarquização da sociedade portuguesa. Neste plano, Lindley Cintra (CINTRA, 1972) distingue, e.g., formas de tratamento como: “você”, adequada para relações interpessoais que se se caracterizam como sendo de igual para igual, ou de superior para inferior, e que não implicam intimidade; “tu”, enquanto forma própria de intimidade; ou ainda as formas de cortesia que implicam uma distância entre os interlocutores, e.g.: “o senhor”, “o senhor doutor”, “o Joaquim”, “a Maria”, “a senhora Maria”, “a dona Maria”, “a senhora dona Maria”, “Vossa Excelência”, etc. O PE apresenta um sistema ternário para o tratamento alocutivo, ou o destinatário do discurso (“tu”/“você”/“o senhor”). A sua escolha realiza-se em função dos vários graus de aproximação e de distanciamento social entre o locutor e o alocutário, sendo “tu” empregue para o grau mais elevado da familiaridade, “você” para um grau intermédio e o “senhor” para o grau mais elevado de cortesia. A variedade PB apresenta um sistema mais reduzido, marcado pelo binómio “você”/“o senhor” nas suas variedades-padrão. A Figura 1, a seguir, sintetiza os dois sistemas nestas duas variedades do português, atendendo ao fator “grau de distância/proximidade” entre os interlocutores. [table id=96 /] No que se refere ao tratamento nominal, o português apresenta uma grande variedade de formas (Fig. 2, em baixo), cujo uso depende de vários fatores que definem a situação comunicacional e o funcionamento das relações sociais. As formas nominais, ou nomes vocatórios, podem ser acompanhadas de determinantes definidos e/ou possessivos, de adjetivos e de uma partícula interjetiva. O determinante utilizado pode aumentar ou reduzir a relação de proximidade ou de afastamento entre as pessoas. Os enunciados “ele é o meu caro amigo” e “ele é um amigo” distinguem-se, porque a escolha do possessivo precedido de artigo definido, no primeiro exemplo, implica uma familiaridade entre os interlocutores, enquanto o uso de um artigo indefinido, no segundo exemplo, implica a ausência de proximidade. O fator “nível de escolaridade/educação/habilitações académicas” implica formas de tratamento distintas, consoante alguém possua o título de doutor ou não, e.g.: “O senhor doutor tem tempo para mim?”/“O senhor tem tempo para mim?”/“Ø tem tempo para mim?”. Fatores como a formalidade ou informalidade da situação são também relevantes. Numa situação formal, é necessário tratar as pessoas com o respeito apropriado (“Vossa Excelência”, “o senhor”/“a senhora”) e, numa situação informal, usa-se, em geral, o tratamento de “tu”. As relações de respeito e de cortesia implicam sempre o tratamento formal (“o senhor”/“a senhora”). Uma situação de protocolo exige o tratamento mais formal possível (“Vossa Excelência”, “Vossa Santidade”, “Excelentíssimo Senhor Professor”, “Magnífico Reitor”, etc.). Atendendo ao grau de parentesco, usa-se o tratamento por “tu”, na maioria dos casos, embora se observe também, em algumas famílias, o uso de um tratamento respeitoso (“o senhor”/“a senhora”) com membros mais idosos (pais, tios, avós). É de notar ainda, em PE, a distinção semântica entre o uso do nome precedido ou não por artigo definido, com 2.ª ou 3.ª pessoas do singular, em função da situação comunicacional: “Maria, queres sair hoje à noite?”/“A Maria quer sair hoje à noite?”. Tanto no PB como no PE, observa-se o uso de títulos académicos, quer seja para homens quer seja para mulheres, embora haja alguma assimetria nestes usos, quando considerado o fator “género”. Para as mulheres, está reservado o uso do primeiro nome após o título profissional (“senhora doutora Sílvia”) e, excecionalmente, seguido do apelido (“senhora doutora Sílvia Vieira”); já para os homens, é a utilização do apelido que predomina (“senhor doutor Vieira”). Outra assimetria ligada ao género ocorre também quando se usam as formas “senhor”/“senhora”, que não são equivalentes socialmente. A gradação da distância é feita para o homem pelo uso do primeiro nome e/ou do apelido (e.g.: “ó Senhor António”, “ó Senhor Fonseca”, “ó Senhor António Fonseca”), enquanto para as mulheres a gradação é feita com base na hierarquia social (“a senhora”, “a dona”, “a senhora dona Ana” e, por vezes, seguido do apelido). No que diz respeito ao tratamento verbal, nota-se que, na variedade-padrão do PB, o singular só se usa na 3.ª pessoa, independentemente do grau de cortesia (“você”/“o senhor”/“Ø fala português?”), ao passo que, em PE, a oposição entre a 2.ª e a 3.ª pessoas do singular marca a distinção entre um contexto informal e um contexto formal (“Ø falas”/“Ø fala português?”). No plural, emprega-se a 3.ª pessoa em ambas as variedades do português para referir o alocutário em contextos formais e informais (“os senhores”/“vocês”/“Ø falam português?”). A forma verbal na 3.ª pessoa sem sujeito expresso, ou com sujeito nulo, constitui, em PE, uma estratégia que neutraliza o grau de deferência ou, em outras palavras, a expressão linguística com “grau zero de deferência” (CARREIRA, 2002, 175). [table id=97 /] De acordo com Maria Helena Araújo Carreira (CARREIRA, 2001), do ponto de vista dos participantes na interação verbal, as formas de tratamento podem ser classificadas nas seguintes categorias: elocutivas – EU designo EU – (designação do locutor, em português “eu” e “nós”); alocutivas – EU designo TU – (designação do alocutário, em português “tu”, “você”, “o(a) senhor(a)”, “o(a) doutor(a)”, “o João”, “a Maria”, etc.); e delocutivas – EU designo ELE – (designação do delocutário, em português “ele(s)”, “ela(s)”, “o(s) senhor(es)”, “a(s) senhora(s)”, etc.). A autora, face aos condicionamentos de tipo social que interferem na escolha da forma de tratamento adequada à situação, introduz dois novos planos de análise: o plano do eixo vertical, que representa a hierarquização dos lugares – relações sociais/profissionais, familiares e etárias –, e o plano do eixo horizontal, que dá conta da regulação da distância social – relações de proximidade ou distância social. SFT: Aspectos diacrónicos O SFT constitui um domínio muito sensível à mudança linguística por estar muito dependentes de variáveis sociais, em plena evolução. Na história do SFT em PE, podem ser delimitados, segundo Lindley Cintra, três grandes períodos: O primeiro período (finais do séc. XIII  até o começo do séc. XV): privilegia o sistema de tratamento pronominal, com recurso a “tu” e “vós”, usados entre íntimos e próximos, sendo a segunda forma utilizada entre pessoas cuja relação não permitia o uso de “tu”, fosse ela o Rei, um arcebispo ou um rústico; O segundo período (desde o séc. XV até aos finais do séc. XVIII): para além das formas pronominais “tu” e “vós”, surgem as primeiras formas de tratamento nominais de elevada cortesia, e.g.: “vossa mercê”, “Vossa Senhoria”, “Vossa Excelência”, “Vossa Majestade”, “Vossa Alteza”; No terceiro período (a partir da segunda metade do séc. XVIII): assiste-se à profusão de novas formas nominais de cortesia. A forma “vós” como tratamento cortês da 2.ª pessoa, dirigida só a uma pessoa, desaparece. Ao mesmo tempo, aumenta a degradação de “vossa mercê”, com o correspondente alargamento no emprego de “você”. Ficava assim aberto o caminho para o uso e para a expansão de formas nominais típicas do português dos princípios do séc. XXI, que exigem o verbo na 3.ª pessoa, e.g.: “o senhor”, “o senhor doutor”, “a mãe”, “o meu amigo”, “o Joaquim”, “a Maria”, “a dona Maria”, “a senhora dona Maria”, etc. O estudo de Lindley Cintra (CINTRA, 1972) configura, no que se refere à evolução do SFT no PE, as seguintes tendências: (i) uma progressiva eliminação do tratamento por “Vossa Excelência”, principalmente na língua corrente, conservando-se no registo oral apenas em certas profissões (telefonistas, empregados de comércio, etc.) e contextos (diplomacia, academias, tribunais, etc.) e na variedade escrita; (ii) o alargamento do uso do pronome “tu” e da 2.ª pessoa do singular, com perda do traço “intimidade”, que o caracterizava até então; (iii) a ampliação e, ao mesmo tempo, a redução do emprego do pronome “você”, com perda do seu carácter depreciativo e aumento do seu uso afetuoso, como se regista no PB; (iv) a manutenção dos tratamentos nominais variados e também uma lenta, mas progressiva, eliminação de tratamentos assentes na diferenciação social, tal como a que diferenciava o tratamento “a senhora Maria” (condição social inferior) de “dona Maria” ou “senhora dona Maria” (condição social superior). Algumas destas tendências seriam confirmadas mais tarde por Carlos Gouveia (GOUVEIA, 2008), para quem a mudança no sistema ocorre em direção a um maior nivelamento e reciprocidade sociais entre interlocutores. Este autor observa a extensão do uso de “você” em Portugal, especialmente entre os jovens, socialmente de classe média e popular, o que provoca alguma tensão junto de falantes mais idosos ou de estratos sociais elevados. No entanto, a continuação do uso de “senhor/a Dr./Dr.ª” e “senhor/a doutor/a” no local de trabalho, a primeira para alguém que é licenciado e a segunda para se dirigir a alguém que possui o doutoramento e/ou um médico, compensa o nivelamento apontado anteriormente. Parecem existir, assim, em PE, duas forças opostas que podem ocorrer no mesmo falante: uma que vai no sentido de minimizar as hierarquias sociais e outra que expressa a vontade da sua manutenção, parecendo atingir o sistema triádico que o caracteriza. Um dos aspectos mais notáveis do sistema antigo é a total ausência de tratamentos nominais, o que significa que não havia ainda separação entre os planos da intimidade e da cortesia/distância social. “Tu” ocupava o sector de intimidade, quando havia um certo grau de confiança entre as pessoas, e “vós” tinha um duplo emprego: como um singular de cortesia, destinado a pessoas importantes e a desconhecidos, e como plural indiferente ou forma para alguém se dirigir a várias pessoas. A componente nominal tem as suas raízes no final do séc. XV. De acordo com Lindley Cintra (CINTRA, 1972), as formas nominais, e.g. “vossa mercê”, “Vossa Alteza”, “Vossa Alteza Real”, “Vossa Senhoria”, remontam ao português medieval, tendo sido já atestadas no séc. XIV, como é o caso da forma “vossa mercê”, cujo primeiro registo data de 1331, em textos pertencentes à Corte, com carácter honorífico. No entanto, seria só a partir da segunda metade do séc. XV, período em que se observou a tendência para uma maior hierarquização social, que viria a ocorrer a expansão das formas nominais de tratamento. Assim, “vossa mercê”, a forma que teria dado origem ao “você”, atestada já no séc. XVII (mas cujo início de processo de pronominalização remonta ao séc. XVIII e cuja efetiva gramaticalização aconteceu no início do séc. XIX), era, nos sécs. XIV e XV, a forma nominal apropriada para falar com o Rei, deixando de ser usada, nesta situação, a partir do final do séc. XV, em 1490, altura em que passou a ser empregue para se dirigir a alguém nobre, estendendo-se o seu uso, no séc. XVI, aos burgueses. Nenhuma forma de tratamento passou por tantas transformações lentas e graduais como “vossa mercê”. Esta foi, no fim do séc. XV, substituída por outras formas, como “Vossa Senhoria” (usada pela primeira vez numa carta dirigida ao Rei, em 1434), “Vossa Alteza” (atestada pela primeira vez, também em relação ao Rei, nas Cortes de 1455), “Vossa Excelência” e “Vossa Majestade”. O documento que melhor ilustra esta expansão de formas nominais é a carta dedicatória da Crónica da Guiné, dirigida, em 1453, por Zurara. O cronista empregou, para o Rei, os tratamentos de “Vossa Alteza”, “Vossa Senhoria”, “vossa mercê” e também “vós”, e misturou os tratamentos nominal e o pronominal num mesmo parágrafo, enganando-se igualmente na concordância gramatical, uma vez que usou as fórmulas que exigem a 3.ª pessoa do singular (3PS) com a 2.ª pessoa do plural (2PP): “Como melhor sabe Vossa Alteza que uma das propriedades do magnânimo é querer antes dar que receber [...] E, como quer que em vossos factos se pudessem achar coisas assaz dignas de grande honra, de que bem poderes mandar fazer volume, Vossa Senhoria, usando como verdadeiro magnânimo, a quis antes dar que receber. E tanto é vossa magnanimidade mais grande quanto a coisa dada é mais nobre e mais excelente. Pelo qual, estando Vossa Mercê o ano passado e nesta cidade, me dissestes quanto desejáveis ver postos em escrito os feitos do Senhor Infante dom Henrique vosso tio” (ZURARA, 1949, 9-10). Com as mudanças nas relações políticas, sociais e culturais que decorrem do fim do feudalismo, assiste-se também a uma degradação das formas de tratamento, sendo necessário regular o seu uso. Em 1597, o filho do imperador Carlos V, Filipe II, publicou as leis, conhecidas por “leis das cortesias”, que estabeleciam os limites do emprego de cada forma de tratamento. Fixavam, para o Rei e a Rainha, o tratamento de “Vossa Majestade”; para os príncipes e as princesas, para os infantes e as infantas, para os genros e os cunhados de reis e para as suas noras e as suas cunhadas, fixavam o tratamento de “Vossa Alteza”; para os filhos legítimos dos infantes e para o duque de Bragança, a forma “Vossa Excelência”; e para os bispos, arcebispos, duques, marqueses, condes, governadores, embaixadores e vice-reis, a fórmula “Vossa Senhoria”. Em 1739, o Rei D. João V registou uma nova lei que também ameaçava de castigo cada pessoa que empregasse os pronomes de tratamento para com outras entidades além das enumeradas. Nela, transformou e alargou o emprego de “Vossa Senhoria” e de “Vossa Excelência”. A maior revolução no SFT do português foi provocada, a partir do séc. XIX, pelo aparecimento da 3PS, aplicada à segunda pessoa do discurso. Este tipo de forma de tratamento, acompanhado pelo primeiro nome, apelido ou nome de parentesco do interlocutor, passou a usar-se com bastante frequência em PE, entre as pessoas da mesma idade e categoria social entre as quais existia uma certa proximidade, permitindo a substituição não só das formas “você”, “o senhor”, mas também de “tu”, por outras formas nominais, e.g.: “O tio quer café?”/“A Maria não vai sair?”/“O Rodrigues está a brincar comigo?!”. A forma sem o sujeito expresso também passou a ser frequentemente utilizada, sendo adequada a todas as situações que não se pautem pela intimidade entre os interlocutores, como já anteriormente referido: “Ø Quer café?”/“Ø Não vai sair?”/“Ø Está a brincar comigo?!”. Formas de tratamento regionais O estudo do SFT do português falado, na variedade madeirense, está ainda por realizar. O conhecimento que se tem sobre esta questão é muito parcelar. Relativamente às características regionais na aplicação do sistema em PE-padrão (“tu”, “você”, “o/a senhor/a” e “Ø”) e nas suas correlações sociais de grau de proximidade/familiaridade e respeito, há que assinalar o estudo realizado por Alcina Sousa (SOUSA, 2012), com base num inquérito, cujo questionário segue o modelo da Eurolinguistix, aplicado junto de informantes madeirenses. Este trabalho permite observar as seguintes tendências, no que se refere às formas de tratamento usadas por falantes madeirenses em três tipos de situações: (i) de filhos para pais, com relações de maior intimidade e proximidade: uso de “tu” (mais frequente), sendo referidas pelos inquiridos outras formas, tais como “o senhor”/“a senhora”, “você”, “o pai”/“a mãe”; (ii) de crianças para familiares, onde estão em causa relações de respeito, relacionadas com a dissimetria das idades e da proximidade: o uso de “você” (o mais frequente), seguido de “o Senhor”/“a Senhora”, “o avô”/“a avó”; (iii) de patrão para empregado, ou seja, de superior para inferior, com maior distância social: “você”, seguido de nome + forma verbal na 3PS. Esta diversidade de usos nas três situações contempladas mostra que o próprio SFT do PE, no qual se incluiria a variedade regional, está sujeito a uma grande pressão social e que uma mesma situação poderá dar origem a várias possibilidades interpretativas e à escolha de formas de tratamento diferenciadas, consoante as características sociais (género, idade, escolaridade) dos falantes. Para além do SFT em PE-padrão e das suas micro-variações, ilustradas pelos resultados do estudo de Alcina Sousa (SOUSA, 2012), a variedade regional contempla também expressões vocatórias, seguidas de interjeições, tais como “amecê”, “apaz” (rapaz)/“apariga” (rapariga), “home”. Todas estas formas, pela sua configuração elíptica, parecem enquadrar-se na categoria de nomes hipocarísticos, descrita por Leite de Vasconcelos (VASCONCELOS, 1928). Trata-se de nomes informais, muito usados na linguagem infantil, razão pela qual seriam marcados por um traço semântico-pragmático de afetividade, adequado a situações em que se observa proximidade entre os interlocutores. O processo de hipocorização envolve o apagamento, ou truncação, de uma parte da palavra de base, que pode situar-se no início ou no fim da palavra, e.g.: Marissol > Sol; António > Tó; José > Zé; Fernando > Nando. Este processo pode ainda envolver duas palavras, e.g.: Maria Antónia > Mitó; Maria de Lurdes > Milu. Das expressões em uso nas variedades do português falado no arquipélago da Madeira acima referidas, “amecê” é a única palavra que se encontra registada na obra Vocabulário Madeirense, de Fernandes Augusto da Silva (SILVA, 1950), tendo sido também apontada por Canuto Soares, no seu artigo “Subsídios para o cancioneiro do arquipélago da Madeira. Tradições populares e vocábulos do arquipélago da Madeira”, publicado na revista Lusitana (SOARES, 1914), como sendo equivalente a “vossemecê”, ambas variantes do antigo “vossa mercê”. Também se encontra referida por José Rosado como estando em uso na ilha do Porto Santo, fazendo parte do artigo “Linguagem popular portossantense”, publicado, em 2003, na revista Xarabanda (ROSADO, 2003). Já “apaz” (<rapaz)/e “apariga” (<rapariga), expressões com truncação do segmento fonético inicial, encontram-se referidas no site Madeirense Puro, de onde foram retirados igualmente os seguintes exemplos, que representam varintes gráficas: “Ahpaz, tá-te dande?; “Ahpazzz tu tem cuidado para não emborcares essa tigela no chão”; “Ahpazz! Na’ tires os casques do talho!!”; “Ahpaaazzz... Grupe!”. A palavra que se destaca nestes exemplos é também parte integrante do título do blogue madeirense Apaz! Vais à Vila?. Quanto a “home” (< homem), trata-se de uma forma antiga, já atestada em português arcaico e integrada no seu sistema pronominal como forma de 3PS. É usada, na variedade regional, como um alocutivo/vocativo, e.g.: “Ah hôme, na m’atentes!”. O romance Canga, de Horácio Bento Gouveia (GOUVEIA, 1975), faz referência a uma forma pronominal “si”, também já atestada no PA, inicialmente delocutiva, mas usada como alocutiva, conforme pode ser observado nos seguintes exemplos, retirados desta obra: (1) - Antão que lh’aconteceu daí p’ra cá? - Si o sabe! - […] - Mei não acredita nei minhas intenções? - Cuma acraditar se si tem tão má fama!” (p. 50) - Si na diz a verdade! - Digo, digo - Mas si nã me disse ainda o que me quer!” (p. 63) (3) - Já ia tarde. Nem vua à Chapoeirada, a casa de me padrinho. - Se lh’agrada vua mai si.” (p. 64) O pronome de tratamento “si” parece funcionar, tal como surge nos diálogos acima, como uma variante popular e de respeito, relacionada com outras variantes que se caracterizam por requererem uma forma verbal na 3PS (“você” ou “senhor”), consoante a maior ou menor proximidade existente entre os interlocutores da interação verbal. Tal como nos outros domínios da variedade do Português Falado na Madeira (Sintaxe; Regionalismos ;Fonética), os dados provenientes das formas de tratamento, no plano léxico-pragmático, apontam, assim, para a coocorrência de traços arcaizantes (uso de “senhor” nas relações filhos/pais e uso de vocativos “home” e “si”) e de traços inovadores (uso de vocativos “apaz”, “apariga”).   Aline Bazenga (atualizado a 07.12.2017)

Linguística

falar(es) na escrita

As duas faces de uma língua viva Constituída por uma vertente oral e outra escrita, uma língua é, por princípio, bifacial. Contudo, nem sempre os dois lados coexistem. Se for uma língua viva, a face oral, tem-na por inerência, mas pode não contemplar a escrita. Os crioulos cabo-verdianos constituirão um caso paradigmático disso mesmo, embora a situação se esteja a alterar com a tendência crescente para a fixação da fala do criouléu cabo-verdiano de Santiago, divergente, por exemplo, do de São Vicente. Se se tratar de uma língua morta, sucederá o inverso. É assim com a língua latina, que, grosso modo, subsiste apenas na escrita. Pela sua prolífera cisão, esta deu origem às línguas românicas, que, inicialmente, eram apenas faladas e que, por razões históricas, ganhando dimensão nacional ou regional, se tornaram, na sua maioria, escritas. A língua portuguesa, com 800 anos de história contados a partir do Testamento de D. Afonso II, datado de 1214, é exemplificativa de uma língua latina com escrita fixada, havendo percorrido um longo percurso para o efeito. Todavia, há línguas que estavam mortas e que voltaram a ganhar vida, ou seja, readquiriram uma vertente oral. Foi o que aconteceu com a hebraica, aquando da criação do Estado de Israel. É possível contar com outras línguas que nunca foram escritas e que desapareceram ad aeternum com a extinção da sua comunidade de falantes (cf., p. ex., DN, 7 fev. 2011, 49). Algumas mantêm-se vivas pontualmente, como os versos sânscritos recitados em exercícios de ioga. Neste conjunto de línguas, seria igualmente viável inserir o latim, já que a Santa Sé o usa ocasionalmente, sendo a sua língua oficial, embora o italiano a substitua em grande parte das ocasiões em que é indispensável recorrer a um registo linguístico de viva voz. Assim sendo, compreende-se que a dinâmica de um idioma é dada pelo facto de ele ser falado, usado na comunicação diária dos membros de uma comunidade. Esta evidência reencontra-se na relação dos termos “comum”, “comunidade” e “comunicação”, ao integrarem a mesma família. Entre línguas naturais mortas (desaparecidas ou conservadas), ressuscitadas e vivas, a relação entre as suas duas faces, os dois registos, é incontestável. Podem esses dois lados (ou apenas um deles) encontrar-se num estado latente/implícito (sem escrita ou sem oralidade) ou patente/explícito (com escrita e com oralidade). No geral, é à comunidade de falantes (os usuários das línguas numa ou nas duas facetas) que cabe decidir o que pretende fazer. Acontece que, nas trocas linguísticas quotidianas, a variedade da língua empregue raramente corresponde, com completude, à que está padronizada nos dicionários e nas gramáticas, nos compêndios e nos prontuários, já que os membros de uma comunidade vão recorrendo quer a diversos níveis da linguagem, consoante as situações de comunicação em que se encontram – das mais formais às mais informais –, quer a variedades sociais ou diatópicas com cunho específico. É preciso ter em conta que estas últimas recebem a influência da área geográfica onde os falantes nasceram e vivem ou onde passaram a residir, sem aí terem nascido. Assim, sucede que na Região Autónoma da Madeira (RAM) se fala de uma maneira que não é integralmente comum à do restante território nacional, embora também se recorra, nesta área geográfica insular, à variedade padrão, de modo mais premente na escrita documental e oficial. Compreende-se, consequentemente, a razão por que a variedade regional tem somente registo oral, não possuindo nenhum registo escrito oficial. É famosa a frase “O grade azougou e foi atupido na manta das tenerifas”, apresentada como um exemplo ilustrativo do falar regional usado pela população, sendo incompreensível a quem seja de fora, isto é, estranho à comunidade. Aliás, vão-se divulgando textos escritos “à madeirense” (incluindo do Porto Santo: cf., p. ex., ROSADO, 2003). É também esta a ideia que perpassa, por exemplo, no texto “Linguagem Popular da Madeira”, da obra homónima (SILVA, 2013, 23-27), e na crónica “Falares Ilhéus” (JARDIM, 1996, 23-24). No arquipélago, é frequente ouvir dizer, mesmo numa situação formal de comunicação, que determinada tarefa leva “horas de tempo” (“Esse trabalho leva duas horas de tempo”), mas a expressão não se deverá escrever, já que, no plano da escrita, vigorará a norma que aceita unicamente “horas” (“Esse trabalho leva duas horas”). Esta discrepância é fácil de entender, visto que as entidades que controlam o idioma, nomeadamente no que se refere ao ensino, para o manterem homogéneo, o mais uniformizado possível, optaram por uma grafia única, a da norma, um padrão imposto às restantes variedades. Assim, a qualidade bifacial do Português assume, do lado da escrita, à partida, a invariabilidade, mas reconhece, do lado da fala, a variabilidade. Infere-se, daí, que a norma é a única variedade com menos variação. Todavia, a este propósito, sublinhe-se que a definição de “norma” pode não ser unânime. Embora este conceito tenha uma base incontestável, quando a definição remete para “que serve de modelo, de padrão”, foi posto em causa, ultimamente, devido à população referencial que a consubstancia. A que falantes corresponde a norma? Reporta-se aos mais instruídos, sejam eles de que parte do país, e do mundo, forem? Tem origem, em exclusivo, nos falantes mais escolarizados (estrato social médio-alto) de uma área geográfica precisa (Lisboa ou Coimbra-Lisboa)? Para o Português Europeu, equivaleu à variedade usada pela classe alta do eixo Lisboa-Coimbra, e para o Português do Brasil, à das classes altas do Rio de Janeiro (CUNHA e CINTRA, 1995). Como já referido, este conceito de cariz social e geográfico tem sido alvo de alguma refutação, estando, claramente, a ser reequacionado (cf., p. ex., EMILIANO, 2009), o que é compreensível numa sociedade do séc.XXI que, pesem embora as enormes desigualdades sociais, tende para a existência de uma classe média mais forte, com diminuição dos extremos no que toca ao poder económico. Este é, pelo menos, o cenário generalizado na sociedade ocidental. Esquecendo, momentaneamente, a problemática colocada pelo conceito de “norma linguística” e centrando a temática na questão das variedades, sabe-se que, habitualmente, os falantes regionais dominam, pelo menos, duas variedades linguísticas: a exógena (a normativa) e a endógena (a nativa). Diz-se, então, que existe um fenómeno de diglossia, muito semelhante ao bilinguismo. Torna-se evidente, porém, que isso se aplica em exclusivo ao registo oral, uma vez que, na escrita, predominará a ortografia estabelecida para a língua oficial. Por exemplo, num bilhete para um familiar, um madeirense poderá escrever algo como “Vamos ir lalá lalém com Maria. Junta a mochilha!”, hesitando na grafia de “lalá”: “lá-lá”/“lá lá” e de “lalém”: “l’além”/“lá-além”/“lá além”. Todavia, se ele tivesse de transmitir esta mensagem a alguém que não fosse da mesma variedade diatópica, encontrando-se, além disso, numa situação de comunicação que requeresse adequação linguística, deveria alterá-la, adaptando-a com uma proposta como “Vamos dar um passeio acolá com a Maria. Apanha a mochila!”. Numa comparação geral destas duas possibilidades, observa-se que as divergências existentes entre o registo exógeno e o endógeno são substanciais e mereceriam a elaboração de um dicionário (Regionalismos Madeirenses) e de uma descrição gramatical (REBELO, 2014a). Esta deveria dar conta de todas as marcas linguísticas que individualizam a variedade regional a nível da Fonética, da Morfologia, da Sintaxe e da Semântica, incluindo os outros campos dos Estudos Linguísticos, o que os vários trabalhos existentes, de que fazem parte as dissertações académicas, tenderam a fazer de modo parcial. Fica claro que a norma de uma língua viva tem uma vertente oral e uma escrita, mas tal não sucede com as variedades diatópicas, uma vez que possuem unicamente, em termos oficiais, registo oral. Pontualmente, quando se vê escrita nas mais diversas situações de comunicação, nem sempre, por diversas razões, é evidente a variante a fixar (REBELO, 2014b). Aliás, as corruptelas, ou seja, “pronúncia ou escrita de palavra, expressão, etc. distanciada de uma linguagem com maior prestígio social” (HOUAISS, 2001), presentes nas entradas de vocabulários e glossários são prova disso mesmo. Com frequência, surgem na imprensa (cf. os jornais regionais publicados diária ou semanalmente na RAM) hesitações. É o caso de “persiana”, um vocábulo que não se usa no arquipélago e que é, sistematicamente, substituído pelo termo tido como regional “tapa-sol” ou “tapassol”, parecendo difícil escolher entre uma ou outra variante. Acontece de igual modo com muitos outros termos registados nos vocabulários existentes (cf. RIBEIRO, 1929; SILVA, 1950; SOUSA, 1950; PESTANA, 1970; e CALDEIRA, 1993, entre outros). Esta variação gráfica assinala-se, inclusive, nos estudos linguísticos, como os de Käte Brüdt (1938) e de Millet Rogers (1940, 1946 e 1948), que anotaram as palavras da forma como as ouviram pronunciadas pela população. A audição com apontamento foi a metodologia seguida por grande parte dos estudiosos da variedade insular madeirense. Aliás, estes dois investigadores, como quase todos os outros dos três primeiros quartéis do séc. XX, arranjaram uma transcrição sui generis para grafar a dinâmica da fala madeirense (REBELO, 2002b). Este método de registo do(s) falar(es) faz lembrar o da “pronúncia figurada” (REBELO e SANTOS, 2013, submetido), que se empregou extensivamente antes de haver alfabeto fonético internacional. Veja-se o seguinte exemplo para “vinho”, evidenciando a diferença entre a pronúncia figurada, como a expressa em “vâinho” (BRÜDT, 1937-1938), e uma transcrição fonética que se poderá considerar equivalente: ['vɐjɲu]. Sinteticamente, a expressão “pronúncia figurada” significa aquilo que os termos constituintes evidenciam, ou seja, é a representação escrita (figurada), através das letras do alfabeto latino e de determinados sinais adicionais, como acentos gráficos, usada para poder ser reproduzido por meio da leitura (articulação) um modo de dizer (pronúncia) de uma língua estrangeira ou de uma variedade geográfica. A única face visível da variedade diatópica madeirense A variedade insular madeirense, no seu todo, tem, consequentemente, patente a face oral, uma vez que é exteriorizada através da verbalização, e latente (invisível) a faceta escrita, dado que não possui gramática oficial, nem ortografia definida. O mesmo se verifica para as restantes variedades regionais portuguesas ou para as outras realidades não diatópicas lusófonas, como as africanas ou as asiáticas. Podem existir estudos que descrevam ou registem particularidades da oralidade das variedades, mas são restritos e pontuais. Aliás, a “transcrição alinhada” que acompanha as gravações dos CD’s Português Falado (BACELAR DO NASCIMENTO, 2001) normaliza consideravelmente a vitalidade da fala, distanciando-a bastante da grafia que surge a acompanhar o registo oral dos falantes gravados. Porém, esta situação tem vindo a ser alterada, dando-se visibilidade ao registo da variedade, como aconteceu para São Vicente (cf. FREITAS, 1994), embora não se tenha acesso às gravações realizadas pela pesquisadora. Quase todos os trabalhos, incluindo os académicos, curiosamente, facultam o registo escrito (transcrição), mas não dão o registo oral gravado que motivou a transcrição, sucedendo o mesmo com os trabalhos dos atlas linguísticos (REBELO e NUNES, 2009), em que apenas se publica a transcrição fonética dos termos cartografados. É assim desde o início das investigações, mas ressalva-se que, antigamente, os meios técnicos eram praticamente inexistentes. Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo e Lindley Cintra interessaram-se pelo estudo da variação diatópica portuguesa, procurando atestar (por escrito) estas realidades linguísticas ultradinâmicas. Quanto à existência de uma única variedade madeirense ou de muitas, uns preferem o singular (VASCONCELOS, 1901, 1970) e outros o plural (CINTRA, 1990, 2008). Escreveu Lindley Cintra que “[...] não parece certo afirmar sem hesitação que o grupo de dialetos madeirenses (como, aliás, os açorianos) pertence ao grupo dos dialetos meridionais do continente, como também será inexato associá-los sem reservas ao grupo dos setentrionais. Misturam-se neles características próprias de ambos os grupos, o que obriga a situá-los num grupo à parte – ‘insular’. Dentro desse grupo os dialetos madeirenses isolam-se dos restantes devido à existência, que procurei rapidamente apresentar, de fenómenos raros, ausentes dos dialetos de outras ilhas, do continente e por vezes até – podemos acrescentar – do resto daquilo a que chamamos România” (CINTRA, 2008, 104). No entanto, apesar de optar pelo plural, não os identifica, nem os localiza. Indicar, unicamente, diversas particularidades não parece suficiente para justificar a existência do plural “dialetos madeirenses”. Foi testado o reconhecimento auditivo da variação na variedade insular madeirense (REBELO, 2011) e comprovou-se que dificilmente os ouvintes conseguem identificar, simplesmente pelo falar, a origem regional dos falantes. Assim, por falta de provas e de estudos consistentes sobre este assunto, opta-se por referir a variedade no geral e, consequentemente, no singular. Aliás, a designação “madeirense” (até prova em contrário) serve perfeitamente para o efeito, fazendo equivaler a linguagem regional ao identificativo do habitante (língua e gentílico), como acontece com a maioria das línguas vivas (REBELO, 2014a). Antes de os estudos pós-saussurianos centrarem a análise linguística na parole (fala), em vez de se concentrarem na langue (língua), os filólogos debruçavam-se sobre os textos escritos, em especial os literários. Deles colhiam informações pertinentes para o estudo da langue, em particular da sua diacronia e história. Criando-se a Linguística como disciplina científica, o que passa a interessar não são os textos fixados em suportes deterioráveis como o papel, mas a riqueza sincrónica da fala multivariável, com um suporte físico “imaterial” (o ar). Este afastamento da escrita levou os especialistas da linguagem, sobretudo os dedicados à análise da fala, num plano sincrónico, a olvidarem totalmente os registos literários. Ora, para os linguistas que têm procurado estudar o português falado na RAM, através de transcrições e de gravações, é de todo conveniente observar, igualmente, os contributos dos escritores regionais. No séc. XX, sobremaneira na primeira metade, indo mesmo aproximadamente até à déc. de 70, as transcrições linguísticas presentes em dissertações de licenciatura, e noutros trabalhos académicos, como se referiu, não diferiam muito das propostas presentes em textos literários, nos diálogos de personagens tipicamente regionais, estando ambos (trabalhos académicos e textos literários) muito próximos do método da “pronúncia figurada”. A descrição da fala regional importa aos estudiosos da linguagem e a um número considerável de escritores, embora numa abordagem menos científica do que a que orienta um linguista. Logo, é a Literatura que vai permitir registar a escrita do modo regional de falar, mesmo se algumas produções literárias não têm seguido esta via, o que aconteceu na recolha de contos populares (FREITAS, 1996) ou de rimances (FERRÉ e BOTO, 2008). Não se almeja, no entanto, abordar a questão da “Literatura Madeirense” (cf., p. ex., HOMEM, 1999 e SANTOS, 2007, 2008), mas tão-somente valorizar, para o falar da variedade madeirense na escrita, o contributo de textos literários de alguns escritores, mais ou menos conhecidos, consagrados ou não, relevantes ou insignificantes quanto ao cânone literário (SANTOS, 2008). A escrita da variedade madeirense: a relevância do texto literário Em termos linguísticos, se o português falado na RAM é apenas unifacial por possuir exclusivamente a face oral, quando olhado sob o prisma literário, torna-se bifacial. Contudo, a dimensão escrita que adquire não é ortográfica, mas fonográfica ou grafofónica (REBELO, 2013 e 2014, no prelo). Estes dois últimos termos estabelecem uma íntima relação entre a dimensão “gráfica” (representação escrita) e a “fonia” (produção oral) para dar conta das características regionais ou locais de um modo de falar. Consistem, por assim dizer, no mesmo processo empregue no registo da “pronúncia figurada”. Posto isto, convém, todavia, clarificar que as representações escritas do registo oral regional vão variando consoante os escritores e a maneira como captaram as sonoridades insulares, não havendo, portanto, uma relação unívoca entre estas duas faces. As causas para este fenómeno serão múltiplas e não se equacionam de momento. A poligrafia literária faz lembrar o polimorfismo próprio do Português Arcaico (cf., por exemplo, VÁZQUEZ CUESTA e LUZ, 1988). Por exemplo, o Dicionário Houaiss apresenta a evolução histórica dos significantes e verifica-se que nem sempre um determinado vocábulo (ex.: “igreja”) se escreveu da mesma maneira, tendo tido, num mesmo período ou em mais, várias formas (ex.: “egreja” e “ygreja”, entre outras possibilidades). Em parte, isso verifica-se porque os diversos autores tidos como regionais foram fixando e dando corpo gráfico, visibilidade impressa, às sonoridades insulares, segundo a sua própria captação da fala. Este processo de materialização dos diversos níveis da variedade insular (como o social: calão, gíria, etc.) na escrita literária sucedeu no plano internacional (p. ex., em França, com Raymon Queneau, e em Moçambique, com Mia Couto) e nacional, com escritores como Lídia Jorge ou Aquilino Ribeiro. Aliás, é sabido que já Gil Vicente procurara conferir um estilo linguístico a determinados tipos de personagens, moldando a grafia segundo traços de pronúncia. Logo, esta especificidade não se observa unicamente na RAM, uma vez que é comum a outras variedades, registos ou línguas. Deste modo, não é uma estratégia exclusiva do espaço criativo madeirense. Contudo, é aqui que a interessa observar, esboçando-lhe os contornos para a configurar. São, sobretudo, as personagens representativas das camadas sociais mais baixas, tipicamente populares, que, nos textos literários, vão “falar à madeirense”. O valor científico da linguagem popular (BOLÉO, 1942) e a problemática da relação entre “popular” e “regional” (VERDELHO, 1982) são tópicos prementes para o estudo do registo escrito das variedades. A escrita ficcional tende a querer assumir traços de realismo linguístico (REBELO, 2008, 2013, 2014 no prelo). Portanto, as personagens, enquanto entidades literárias intratextuais, ganham pujança extratextual, representando um modo de falar de um povo de uma região. Têm entidade individual, muitas vezes com nome próprio, mas identificam o conjunto, a comunidade. O texto adquire, então, um colorido regional quando estas personagens populares, quer iletradas quer pouco ou nada instruídas, falam, sendo recriadas pelos autores. A grafia da fala representada passa a ser desviante porque é uma “transgressão ortográfica”, visto corresponder a uma transcrição gráfico-fónica. As letras do alfabeto latino são usadas para escrever a pronúncia regional que se afasta da representação ortográfica normativa (como no processo da “pronúncia figurada” e de modo distinto da transcrição alinhada, representação ortográfica que acompanha linha a linha a produção de um texto oral). São, assim, as sonoridades específicas da variedade diatópica madeirense que passam a ser escritas. É complexo saber quem terá sido o primeiro autor a procurar registar o falar regional madeirense na escrita, nomeadamente literária, uma vez que a tendência foi quase sempre a de normalizar a grafia. Sem considerar o registo pontual de Mariana Xavier da Silva (1884), Ricardo Jardim, que passou alguns anos em Inglaterra, apresenta-se, com Saias de Balão, como o percursor, até que se descubra outra referência. Este autor regista a fala na escrita de maneira muito incipiente e de forma esporádica. Esta acontece, essencialmente, quando os “criados” falam, como se verifica no seguinte excerto: “Menêina, nã vaia p’ra riba!... Menêina, vai-se pisar!... Menêina, aprante-se p’ra aí! Esteja quètinha!... Credo! Abrenúncio!” (JARDIM, 1946, 32). Desta deixa, sobressai, entre mais particularidades, a ditongação do <i> tónico (êi), considerada como tipicamente madeirense. Em contraponto com Ricardo Jardim, indubitavelmente, um dos autores que mais empregaram este processo da escrita do falar terá sido, por certo, Horácio Bento de Gouveia (SANTOS, 2007). Se não o fez em todos os contos, usou-o, pelo menos, sistematicamente nos seus romances (ALMEIDA, 2000). Apresenta-se um excerto da obra Torna-Viagem: o Romance do Emigrante (GOUVEIA, 1995, 56): - Q’ aconteceu? - O navoeiro matou mê filho! - Aonde? - Na beira da rocha. - Antão ’tá no fundo da ribeira. – E chamou, repentinamente, com toda a força da arca do peito: - Manel? Manel? - O quia, mê pai? - Vem cá. Neste breve diálogo, além de outros fenómenos, regista-se a ditongação com crase em “quia” (que é), sendo notória, no início do diálogo, a ausência do artigo definido antes do possessivo (Sintaxe) com a frequente monotongação deste (“mê filho”). Estes traços são correntes na variedade madeirense, embora, como se sabe pelos trabalhos de vários estudiosos e linguistas como, p. ex., Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo ou Lindley Cintra, comuns a outras variedades portuguesas. Entre estas duas tendências extremas (usar pouco – Ricardo Jardim – e empregar muitíssimo – Horácio Bento de Gouveia), diversos autores foram escrevendo a variedade diatópica madeirense. No entremeio, estará, p. ex., António Marques da Silva, com a “crónica romanceada” Minha Gente, obra póstuma, mas cuja finalização data de 1951. Dando voz às gentes da zona de São Jorge (Santana), reproduz o autor o falar do povo local, como evidencia a citação que se transcreve (SILVA, 1985, 13): – O mê digosto é nã poder botar-me desta terra pá rua. Ainda cum queira mercar um casaco pá missa, nã se pode. Anda-se atolado em lameiro todo loi dias e o que se ganha mal dá pá barreiga... – E si que dê graças a Deus em ter uma buxada para meter na boca... – acrescentou o outro, no mesmo tom melancólico. – Si amode canda reinando ca vida, Man’leinho? – soltou de lá um mais folgazão. – Ora! Cadmiração! Por aquei é com ’um porco que tá dentro do chequeiro. No há com’as outras terras! O Rodrigues, porém, insistia: – Poi sim... Mas si que veja o prove do João Perfeiro, do Farrobo, um homem como um teil, que veio arrebentado daquelas terras do fasteio!... Destaca-se também nesta amostra da escrita da fala a ditongação de <i> tónico (“Man’leinho” – Manuelinho, “barreiga” – barriga, “aquei” – aqui, “teil” – til, “fasteio” – fastio). Este ditongo, com semivogal divergente da palatal ou da velar normativas, reencontra-se, p. ex., no estudo acústico sobre o falar do Porto Santo (REBELO, 2005). Sobressai o uso da forma de tratamento com “si”, entre vocabulário típico (“mercar”, “um lameiro” ou “reinando”) e diversos fenómenos fonéticos, como mudanças de timbres, supressões, etc. Realça-se a forma do artigo definido masculino plural “loi” e a monotongação do possessivo “mê” (meu), mas, aqui, antecedido do artigo (“o mê”). Como se verifica, a exploração das particularidades linguísticas registadas deveria ser alvo de uma investigação aprofundada, podendo, crê-se, ter um considerável interesse para o linguista. A reaproximação da Linguística à Literatura merece, assim, para o estudo da variedade insular, uma atenção especial. Além destes três autores mencionados, apontam-se outros por serem, porventura, os que mais ilustram esta estratégia linguístico-literária, recorrendo a uma transcrição linguística reconstruída (ficcionada) que aproxima a grafia da fonia. Decerto, os autores que viveram o período da Revolução dos Cravos, em meados da déc. de 70 do séc. XX, experimentaram uma revalorização de tudo o que se relacionava com o povo. Textos publicados nesse período tenderam, por isso, a sobrevalorizar o falar regional, na sua vertente popular e regional. É o que acontece com Pernas Ceifadas, de Maurício Melim Teixeira, com prefácio de Horácio Bento de Gouveia. Nesta obra, o autor, conferindo-lhe um cunho de realismo, afirma que “[...] a história apresentada se baseia em factos reais [...]. À parte algumas criações minhas, outros arranjos e outra disposição, ela sustenta-se num (entre tantos) caso real, bem funesto da sociedade madeirense” (TEIXEIRA, 1975, 9-10). O pendor realista é ainda salientado por Horácio Bento de Gouveia no prefácio da obra: “A prova evidentíssima reside no conteúdo da novela, no realismo das cenas, no aspecto fónico do linguajar das personagens”. Acrescenta Gouveia, a propósito: “Nota-se uma natural preocupação de gosto pelo termo raro, muitas vezes forçado. Infere-se, da sintaxe, muita leitura, bem que não completamente escoimada dos prejuízos inerentes à busca da verdade linguística” (Ibid., 12-13). Reencontra-se esta tendência nos diálogos que dão conta de um falar divergente do registo normativo (Ibid., 153-154): – Olhe nã repare nesta desarrumação qu’ at’ ia ûa vergonha! ’Tava [sic] acabande d’almoçar, sabe cuma ia... Mas antão o qu’ ia qu’ a trai pro cá? Precisa dalgûa coisa, ia? S’ iu puder ajudar ia só dezer, faça-se de casa, nã faça cirmónia! [...] – Eu gostava de tilfonar... Hesitava. – Pôs ia tilfonar... ora venha daí... largue lá esses acanhamentes... por ’quei, por ’quei... – e balançava-se, afanada. – Sabe qu’ o nosso... quer dizer... o mê pai trancou o tilfone e iu preciso muito tilfonar... desculpe vir incomodar... – Ora essa! Ora essa! Incomodar, proquia? Nã incomoda nada, nem um belisque... Ah, mas o sê pai trancua? Ora essa! – repetia – Mas antão proquia? – [...] – Tudo por causa do mê namorado... O qui é que quer? Ele é assim! Embirrou e agora? É teimoso que nem um jerico! Vá lá entender-se isto! O diabo do homem pendeu prá ‘li e tirem-lho da carcaça! – Ah, e iu a pensá qu’o sinhô Francisque era um home compreensive, honeste! Olhe que nem parece ser o qu’ ia! – estava despeitada – Sabe o qu’ ia: a gente vê, fala, mei nunca ia cuma se vivesse cum ele, nã se lhe conhece ei manhas. Aparências... Olhe menina: nem tude o que luz ia oure! Ora, são todes bons! Homes! Todes iguais, nem um só s’ escapa! Ia tude ûa súcia de bandides, ûa canhalha! Concluía por fim: – Mei vá lá, vá lá, nã demore mais aquei, qu’a meinha c’riosidade já lhe tirua munte tempe. Ia aquei, ia aquei! Pegue, ‘teija à vontade! Neste diálogo, assinala-se, de novo, a ditongação de <i> acentuado (“aquei”, “meinha”), que, porém, nem sempre ocorre (“compreensive”, “bandides”), assim como a de “é” (“ia”), entre múltiplas outras especificidades, como a mudança de timbre de <o> em posição final absoluta ou não (“todes”, “tempe”). Certos traços ocorrem igualmente no conto de Jorge Sumares “Mai Maiores qu’ essei Serras”, que data também do mesmo período de mudança política, assim como de paradigma estético-literário e linguístico, já que foi escrito em finais da déc. de 60 e publicado, parcialmente, em 1974, no Diário de Notícias da Madeira. Não sendo escritor de profissão, Sumares redigiu este texto aproximando os grafemas dos fonemas, ou melhor, as letras dos fones, como se constata da leitura do passo que se recortou da integralidade textual (um diálogo em que se “ouve” apenas uma das duas vozes, um dos dois interlocutores, o idoso popular, marcadamente regional): “Filhos? Tive nove. Seis homes e três melheres. Tudo se criua à conta de Deus. Inté a nossa Rosaira já tava criada cando Deus a chamua à sua devina presença. Já andava nui vinte. Veio-le um bicho no estâmego – lá foi” (SUMARES, 2005, 177). Curiosamente, a ditongação de <i> tónico não se verifica neste excerto, mas ocorre no decorrer do conto (REBELO, 2013). Porém, o fenómeno da ditongação sucede, p. ex., com o fonema [o] (<ou>) em “criua” (criou), “chamua” (chamou). Também sobressai a mudança de timbre vocálico por, na maioria dos casos, assimilação ou dissimilação, o que é evidente em “melheres” (mulheres), “devina” (divina) e “estâmego” (estômago). Dá-se ainda, e apenas, relevo ao plural “nui” (nos), assinalando um traço que é identificado como madeirense, isto é, o plural em <i>. Este fenómeno gerou controvérsia quanto à sua explicação, nomeadamente entre Millet Rogers e Eduardo Antonino Pestana (PESTANA, 1970) (Sintaxe). É indispensável referir que, antes destes autores, Ernesto Leal, no conto com o título homónimo da obra O Homem que Comia Névoa, de 1964, experimentara este exercício, mesmo se, como Ricardo Jardim, não lhe conferiu grande relevo na sua obra. No entanto, não se pode deixar de mencionar, ilustrando esta escrita fónica com um breve trecho (LEAL, 1964, 68-69): Na Portela das Mantas, à hora da névoa da manhã, o vilão grita assim e os sons ficam no ar, a baloiçarem-se: – Ó Maruia!... […] E a viloa responde: – Qu’é? […] – Onde estás, que não te vejo, ca névoa? […] – Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro. Mais uma vez, o <i> tónico surge ditongado (“Maruia” – Maria, “ruiba” – riba) e sobressai enquanto marca madeirense perante fenómenos populares geograficamente mais amplos, como a elisão em “Qu’é?” ou a aglutinação presente em “ca”. Estranhamente, as formas verbais “estás” e “Estou” mantêm-se intactas, quando correntemente se reduzem a “tás” e “Tou”. O mesmo acontece com o ditongo de “não”, que tende a monotongar na oralidade (“nã”). O vocábulo “couves” é, popularmente, por certo, mais empregue com a variante do ditongo “oi”, mas, neste excerto, mantém-se inalterado. Esta observação, aplicada a outros fenómenos e vocábulos, é válida para os restantes autores que seguem o processo de escrever o falar, já que, por vezes, não assinalam traços que se sabe serem comuns no registo da fala. Aliás, isso é notório em Francisco de Freitas Branco, que, embora não tenha escrito textos literários, seguiu esta estratégia em crónicas com alguma literariedade. Orientou-se este autor por uma transcrição alfabética do falar madeirense (da Madeira e do Porto Santo) inconstante e cambiante, muito versátil, como o comprovam a leitura das crónicas “Sobre Habitantes da Ilha: Apontamento Linguístico”, “Ê Tenho esta Ideia Comeio (Crónica Literária)” e “Ainda nam Teinha Trêzianes, Comecei Cêde: Tentativa para Reprodução Escrita da Fala Viva” (REBELO, 2002a, 2004, 2008, 2013, 2014 no prelo). O processo terá desagradado aos falantes que se sentiram desvalorizados por considerarem que aquela escrita estava repleta de “erros”. Ora, o facto de as transcrições de Freitas Branco se reportarem a pessoas (reais – entidades extratextuais) e não a personagens (de papel e palavras – entidades intratextuais) terá criado equívocos difíceis de resolver, já que estas transcrições queriam sublinhar a riqueza da dinâmica da fala. Parece, então, que, se se sair do plano ficcional, a variedade diatópica continua a ser unifacial. Caberá aos linguistas ultrapassar esta dificuldade, se se pretender que a variedade endógena seja bifacial fora dos limites da Literatura, que, porém, tem continuado a alimentar o processo de transcrição da fala. Mais recentemente, um dos últimos autores que procuraram passar para a escrita o falar dos ilhéus do arquipélago terá sido Lídio Araújo, que recorre, abundantemente, ao processo em Filhos do Mar. A leitura deste livro é animada pelos diálogos recriados, que, além de serem muito enfáticos, como à partida o são os reais, transmitem um colorido local. As marcas do nível popular preenchem o discurso dialógico, como o seguinte excerto o evidencia (ARAÚJO, 2002, 83-84): – Pedro, acorda! Al’vãta-te O [sic: sem ponto] pae leiva-t’ô maar! [...] – O qu’ia pae, ô maar? – Seim! Êu t’prom’tei, um deia. Hôje vaes c’agênte! [...] – Ia ve’dade, pae? – interrogou, incrédulo, arregalando os olhos. – Ia seim! – E a mãe já saabe? – Já! D’spacha-te! Ao ler-se estas deixas das personagens, é como se se ouvisse as pessoas a expressarem-se nos seus modos de falar marcadamente sincopados e com múltiplos fenómenos estudados pela fonética combinatória (Fonética). A supressão de fonemas é assinalada pelo apóstrofo, como em “Al’vãta-te” (Levanta-te) e “t’prom’tei” (te prometi/prometi-te). A duplicação vocálica poderá indiciar vogais longas e/ou com um grau de abertura considerável, representando para o leitor a necessidade de as “dizer” duas vezes (“maar” – mar, “saabe” – sabe), como se houvesse duas vogais/duas sílabas. Este último fenómeno confere melodia ao falar, alongando os vocábulos por parecerem ganhar uma sílaba. Como para os autores já mencionados, além de o nível popular se destacar, surgem também nesta obra de Lídio Araújo particularidades regionais, como a ditongação de <i>, quer oral – “deia” (dia) –, quer nasal – “seim” (sim). Regista-se ainda a da vogal anterior semiaberta, que se encontra, p. ex., em “qu’ia” (que é) e em “leiva” (leva). Poderia alargar-se a exemplificação, mas esta parece ser suficiente para comprovar o valor deste livro, que, através da recriação do autor, reproduz o falar das gentes do mar madeirense de Câmara de Lobos. Nesta síntese, fica claro ser inviável referenciar todas as obras de cunho madeirense (que começam a ser em número considerável) em que o recurso da escrita da fala ocorre. Pelo traço característico que as permite reagrupar aqui, os escritores mencionados e as obras citadas, além de todos os restantes não referidos, aguardam um estudo linguístico aprofundado. Seguindo as pegadas dos filólogos do passado, o linguista do presente, dedicado à variação regional, terá todo o interesse em analisar as diversas transcrições literárias para a representação gráfica do falar insular, que revelam constituir um rico património (REBELO e GOMES, 2014). Muitas vezes, são dados impressionistas (REBELO, 2003, 2011) e intuitivos, já que, p. ex., a palatalização da lateral antecedida de [i] nem é comum (ANDRADE, 1994) nos textos transcritos. No entanto, não se distanciam substancialmente dos que as dissertações de licenciatura apresentaram (MACEDO, 1939; ROGERS, 1940, 1946, 1948; MONTEIRO, 1945, 1950; PEREIRA, 1952; PESTANA, 1954; NUNES, 1965). A título meramente exemplificativo, veja-se, em baixo, a Tabela 1, com algumas representações literárias da autoria de Ricardo Jardim, Ernesto Leal, Jorge Sumares e Francisco de Freitas Branco. A variação no modo de grafar a vogal indica uma pronúncia particular que cada autor escreve à sua maneira, como a ouve. A tabela foi elaborada a partir de um levantamento de dados anteriormente realizado (REBELO, 2008) e nela facultam-se exemplos, destacando-se a negrito os segmentos a considerar. [table id=95 /] Assim, constata-se que há todo um trabalho de sistematização linguístico-literário a realizar para dar visibilidade à face escondida (a escrita da fala) da variedade insular madeirense, que, todavia, figura em vários textos literários, segundo os critérios individuais dos seus autores. É urgente compará-los para compreender em que pontos são credíveis, ou não, as suas propostas de escrita da fala da variedade diatópica madeirense. Enquanto isso não suceder e não houver interesse em escrever o falar madeirense (os falares madeirenses?), a variedade insular continuará a ser apenas unifacial, sobrevivendo no registo oral, até a comunidade regional assim o desejar.   Helena Rebelo (atualizado a 07.12.2017)  

Linguística Literatura

aragão, antónio

António Aragão Natural de São Vicente, na ilha da Madeira, António Aragão foi uma figura cultural multifacetada do séc. xx. A poesia terá sido a sua área de eleição, mas fez igualmente experiências no âmbito da narrativa e do texto dramático. Também se dedicou a outros planos de intervenção e de estudo, e.g.: a formação do Cine Clube do Funchal para a visualização de cinema cultural. Dirigiu duas instituições madeirenses de relevo: o Museu da Quinta das Cruzes e o Arquivo Distrital da Madeira. Palavras-chave: António Aragão; historiador; promotor cultural; artista; escritor; escrita experimental. Existem algumas fotografias a preto e branco de António Aragão, no n.º 28 da revista Margem, que lhe é dedicado. Nelas, sobressai uma figura de pequena estatura e de porte cuidado, vestida com um casaco de fazenda e tendo a cabeça coberta com uma boina ou boné de cor preta. Na cara barbeada repousam uns óculos de vista (ou de sol) de aros escuros e grossos, não muito grandes, que estavam bastante em moda na déc. de 60 do séc. XX. Aqueles recobrem-lhe o pequeno rosto e possibilitam o seu reconhecimento: dão-lhe a marca da intelectualidade que o diferenciou. Praticamente todas as fotografias se reportam à fase de maturidade da sua vida, englobando, sensivelmente, o período da déc. de 60 à de 90 do séc. XX. Este retrato caricatural não permite adivinhar a sua genialidade criativa, revelada nas múltiplas classificações que lhe foram atribuídas. Através do índice da revista Margem referida, fica sem se saber se foi promotor patrimonial da comunidade local (ou melhor, regional), historiador, arqueólogo, poeta, ficcionista, dramaturgo, criador experimentalista, pintor, escultor, desenhista, cinéfilo, ou, simplesmente, um intelectual interessado em preservar o passado aberto à novidade do futuro, na vivência do seu tempo presente. Além de possuir outros epítetos, não se resumirá a nenhum deles, porque será a soma de todos. A personalidade de António Aragão recorda os artistas renascentistas, devido à sua insaciedade de saber e de inventar; era uma pessoa curiosa, nutrindo vários interesses. O acervo que foi constituindo, e que algumas entidades públicas, além de outras privadas, tentam adquirir, revela esta pluralidade de interesses e a sua curiosidade pela diversidade cultural. As balizas temporais, medidas entre o nascimento a 22 de setembro de 1921, em São Vicente, na ilha da Madeira, e o falecimento a 11 de agosto de 2008, no Funchal, indicam que António Manuel de Sousa Aragão Mendes Correia viveu quase 87 anos; fá-los-ia no mês seguinte à sua morte, depois de uma fase de doença prolongada. Embora haja uma biografia divulgada e reiterada, seria preciso observar muitos detalhes para compreender inteiramente este homem do séc. XX, amante do passado e do futuro, e para evidenciar a sua faceta artística: foi escritor, poeta, pintor, escultor e também historiador e investigador. De facto, António Aragão destacou-se como um importante vulto da cultura portuguesa, não só pela sua vasta formação académica como pela sua criatividade na cultura e na arte, o que lhe permitiu vencer as barreiras da insularidade e afirmar-se nos meios académicos e culturais nacionais e europeus. O seu carácter irrequieto e polémico afastou-o do conformismo criativo. Era assim na investigação histórica, na etnografia, na pintura, na escultura e na arte da palavra. Além de todas as suas potencialidades e capacidades, também possuía uma grande paixão pelo cinema. Aliás, em 1955, contribuiu para a formação do Cine Clube do Funchal, a fim de possibilitar a visualização de obras de cinema alternativas às classificadas como comerciais. Da sua vida pessoal, poucas informações são divulgadas nas biografias existentes. Provavelmente por vontade própria, intentou separar a sua vida privada da sua vida pública. É sabido que se casou, em Roma, com Estela Teixeira da Fonte, de quem teve um filho, Marcos Aragão Correia, advogado de profissão. Sua irmã, Ruth Aragão de Carvalho, formada em ballet na capital portuguesa, casou-se com o ator Ruy de Carvalho. A nível de formação académica, a vida desafogada dos pais permitiu-lhe ir estudar no Liceu Jaime Moniz, o que poucos jovens ilhéus, sobretudo os nortenhos, podiam almejar. Posteriormente, como acontecia com os setimanistas madeirenses, seguiu para o continente e frequentou a Universidade de Lisboa, instituição onde se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas, fazendo depois uma especialização em Biblioteconomia e Arquivística na Universidade de Coimbra. Estudou ainda etnografia e museologia em Paris, sob a orientação do diretor do Conselho Internacional de Museus da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Finalmente, dedicou-se ao estudo do Restauro de Arte, em Itália, mais precisamente no Instituto Central de Restauro de Roma, tendo usufruindo de um estágio no Laboratório do Vaticano. Tanto em Paris como em Roma, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG). No âmbito do seu percurso profissional, fruto da diversificada e rica formação que tinha adquirido, desempenhou, no plano regional, alguns cargos importantes, tendo dirigido o Arquivo Distrital da Madeira e o Museu Quinta das Cruzes, e sido delegado dos Museus e Monumentos Nacionais na Madeira, associado à Comissão de Arte e Arqueologia da Câmara Municipal do Funchal. Os lugares por onde passou, no domínio laboral, coadunavam-se perfeitamente com os interesses que nutria, quer quanto à museologia, quer quanto à arquivística e à dimensão histórica da sua formação inicial. Notável é a sua atividade enquanto investigador e arqueólogo, da qual derivou vasta e conhecida obra: Os Pelourinhos da Madeira (o seu primeiro livro, de 1959); O Museu da Quinta das Cruzes (1970); Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória (1979); A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700 (1981); As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História (1984); O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal (1992). A partir das escavações arqueológicas por si dirigidas no lugar do aeroporto, onde se situava o Convento quinhentista de N.ª Sr.ª da Piedade (Santa Cruz), foi possível proceder ao levantamento da planta geral do Convento franciscano, ao estudo das suas características tipológicas e à exumação de variado espólio, onde se inclui uma vasta diversidade de padrões de azulejaria hispano-mourisca ou mudéjar, proveniente do Sul de Espanha, bem como múltiplos exemplares de azulejaria portuguesa seiscentista e setecentista, e de elementos primitivos em cantaria lavrada: portais do Convento, janelas, arco triunfal da igreja, condutas de águas, lajes tumulares e pavimentos, que passaram a constar nos jardins da Q.ta do Revoredo, Casa da Cultura de Santa Cruz. É de destacar que todos os trabalhos por ele efetuados se encontram devidamente catalogados e documentados com plantas rigorosas, desenhos e fotografias. Também se deve realçar a ação da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, que era então o poder executivo do arquipélago, que encomendou e incentivou este trabalho e que, depois de entregue pelo autor, o depositou em grande parte no Museu Quinta das Cruzes. A par da profissão oficial, foi dando realce à sua faceta de artista, como comprovam as suas ilustrações do livro Canhenhos da Ilha de Horácio Bento de Gouveia. Outro exemplo é a sua poesia espacial OVO/POVO, apresentada, em 1977, na XIV Bienal de São Paulo, tendo tido uma exposição em Lisboa, no ano seguinte, e outra em Coimbra, no decorrer de 1980. Outro exemplo ainda foi a exposição PO.EX. 80, que esteve na Galeria Nacional de Arte Moderna, na capital portuguesa, em 1980 e em 1981. A sua vertente artística culminou em 2007, com uma exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, tendo, porém, exposto também na Madeira. Pese embora estas facetas, será sempre lembrado e reconhecido pela sua intervenção na literatura de cariz experimental, nomeadamente pela sua colaboração na organização dos dois números da revista Poesia Experimental (1964, 1966). A este propósito, como afirma Rui Nepomuceno: “Em Portugal, o experimentalismo poético e literário ocorreu em Lisboa nos meados dos anos 60, mais precisamente em 1964, com a publicação da ‘Revista Experimental 1’; muito embora desde os finais de 50 já tivesse começado a germinar, como até podemos verificar ao cotejar os trabalhos literários de António Aragão organizados e divulgados naquele decénio, na Madeira” (NEPOMUCENO, 22 fev. 2010). É curioso verificar que a linguística teve um papel preponderante neste movimento e, consequentemente, em António Aragão, algo que Rui Nepomuceno também sugere: “Deste modo, na teorização deste movimento, passaram a assumir grande importância e estatuto determinante os diversos fatores relacionados com a ‘Linguística Moderna’, a ‘Semiótica’, o ‘Estruturalismo’, e, obviamente, os diversos aspetos da ‘Teoria da Forma e da Informação’, de que foram principais intérpretes e seguidores no estrangeiro Abraham Moles, Saussure, Jakobson e, sobretudo, o muito citado Lévi-Strauss” (NEPOMUCENO, 22 fev. 2010); e esta influência tem reflexos em toda a sua criação literária (com particular incidência na linguagem verbal). Por conseguinte, foi pela dimensão literária e artística que António Aragão ganhou renome. Esta ligação com a linguagem manifestou-se em muitas das peças artísticas de António Aragão numa fase de maturidade da vida artística, já que teve um percurso marcado por diversos períodos. As artes plásticas associaram-se, de certo modo, à sua poesia, que usou a linguagem verbal como matéria de jogo em quadros ou em textos e não com o valor que tinha para os linguistas, algo que era próprio da poesia experimental. É preciso lembrar que, além de artista, foi curador de arte contemporânea e promoveu diversas exposições, inclusive na galeria associada à editora Vala Comum, que possuía em Lisboa. Ele próprio contribuiu muitíssimo para a produção de obras de arte de diversas tipologias. O fascínio pela impressão e pelos recortes, com colagens e montagens originalíssimas, acentuou esta veia artística, mais inovadora, se assim se pode dizer, do que a que concebeu em suportes como tela ou pedra. A sua obra vivenciou diversas fases, algo que foi mais notório na pintura. De um período figurativo inicial, com tendência naturalista, passou para uma vertente expressionista com opção pela abstração, por via de uma geometrização e autonomia do traço. Produziu, além de óleos, algumas aguarelas e, em determinada altura, recorreu à laca como material. Na última fase, concebeu composições a partir de colagens, construindo as suas pinturas essencialmente pela destruição do material-base (e.g., jornais). Os quadros, as gravuras, as esculturas e as outras peças concebidas por António Aragão, enquanto desenhista, pintor e escultor, têm merecido um estudo cuidado por parte de peritos. É o caso de Isabel Santa Clara, que releva três obras emblemáticas do artista: “Da obra pública de António Aragão, na qual o autor opta por uma figuração abstratizante, destacam-se, em 1960, o monumento comemorativo do quinto centenário da morte do infante D. Henrique, paralelepípedo com desenho inciso, no Porto Santo; os relevos da fachada da Escola Industrial, depois Escola Secundária de Francisco Franco; e um painel cerâmico no mercado de Santa Cruz, de 1962” (SANTA CLARA, “Artes plásticas”). Todas as obras foram fortemente marcadas pela época em que foram criadas. Assim, das peças mais conhecidas, destacam-se, primeiro, os painéis de cerâmica da Escola Secundária Francisco Franco, no Funchal, onde sobressaem vultos que laboram. Depois, o colorido painel de cerâmica do mercado da localidade madeirense de Santa Cruz, que comunga da representação das ilustrações que António Aragão fez para o já referido livro Canhenhos de Horácio Bento de Gouveia. A terceira referência escultórica, que ficou localizada no Porto Santo, é designada popularmente por “pau de sabão”, pela analogia da forma que possui o bloco de pedra com uma medida de sabão azul. A rigidez do padrão comemorativo ficará para a eternidade a evocar o momento celebrativo e a criatividade de António Aragão. O padrão diferencia-se bastante dos painéis porque contém detalhes regionais, onde se observam trabalhadores, essencialmente agrícolas, mas também pescadores, quase todos sem rosto, que surgem a desempenhar tarefas do quotidiano, reportando uma vida de trabalho árduo. É de realçar igualmente a imagem de S.ta Ana, em cantaria rija, na Câmara Municipal de Santana, 1959. Desenho de António Aragão. 1944. Foto de Rui A Camacho   Óleo de António Aragão datado de 23 de Julho de 1946. Foto Rui A Camacho Na pintura, desde a déc. de 40 do séc. XX, evidenciou-se em diversas temáticas abordadas e na exploração de técnicas diferenciadas. Realizou exposições em Portugal (Galeria Divulgação, Quadrante, Galeria III, Galeria Diferença, FCG – II Exposição de Pintura Portuguesa) e no estrangeiro, nomeadamente em Espanha (Madrid, Sevilha, Barcelona), México, França (Paris) e Itália (Roma e Turim), encontrando-se representado em coleções particulares e oficiais em vários países, nomeadamente na Fundação Serralves, em Portugal. António Aragão concretizou um projeto artístico contemporâneo baseado em novas tecnologias numa casa que lhe pertenceu, situada na Lapa, em Lisboa. O projeto enquadrava uma associação de educação popular com uma galeria de arte vanguardista, ao qual foi atribuído mecenato pela Secretaria de Estado da Cultura. Antes da doença prolongada de que padeceu até à sua morte, António Aragão, de volta ao Funchal, pintou os seus últimos quadros, que constituíram uma série que intitulou Os Monstros e consistiram numa crítica corrosiva ao que considerava ser a hipocrisia dominante na sociedade. As últimas exposições individuais em vida de António Aragão foram realizadas na Madeira e comissariadas por António Rodrigues. A antepenúltima teve lugar em abril de 1996, na Casa da Cultura de Santa Cruz, e integrou 16 dos seus últimos quadros, bem como uma seleção retrospetiva de 13 trabalhos, em diferentes técnicas, realizados nas décs. de 50 e 60 do séc. XX. A penúltima, Exposição Retrospetiva, teve lugar na Casa da Luz, no Funchal. A última exposição de António Aragão antes da sua morte ocorreu no Museu de Arte Contemporânea da Madeira (Forte de S. Tiago, Funchal). Verifica-se que, por um lado, numa dimensão quase de intervenção social, se interessou por representar o povo, as pessoas, que não valem por si próprias porque não se identificam individualmente, mas configuram grupos profissionais; por outro lado, criou pinturas de paisagens, habitadas ou não, e exemplares de natureza morta. Estas últimas reportam-se, sobretudo, ao período inicial da produção artística, que foi mudando e se foi adaptando aos gostos e às vivências inspiradoras do criador. Em síntese, Isabel Santa Clara descreveu muito bem a versatilidade de António Aragão: “Uma vertente experimentalista sacudiu o panorama artístico de forma peculiar nas décadas de 70 e 80. No centro desta atividade está a multifacetada figura de António Aragão, de inesgotável disponibilidade para com os novos talentos, cujas inquietações e inconformismos lograva canalizar para uma profícua experimentação artística. Ganharam força as práticas de poesia visual e de mail art, potenciadas pelas capacidades técnicas, a acessibilidade, a rapidez e a liberdade de produção de múltiplos da eletrografia. Surgiu assim Filigrama, mail art zine editada entre 1981-1983, revista de folhas soltas, que ia sendo sucessivamente alterada na sua composição e enviada pessoalmente através dos circuitos internacionais da mail art, que passavam muito especialmente pelo Brasil” (SANTA CLARA, 2010, 186); tendo colaborado em diversas manifestações de mail art, divulgou os seus trabalhos em revistas da especialidade. Compreende-se a estreita interligação, assim sintetizada, entre a obra artística e a produção escrita do artista-escritor. António Aragão terá sido, na juventude, um dos poetas da Tertúlia Ritziana, e, em 1946, com cerca de 25 anos, viu o seu conto “Pressentimento” obter um prémio: o 2.º lugar nos Jogos Florais promovidos pelo Ateneu Comercial do Funchal. Em 1952, colaborou com Jorge de Freitas, com Florival dos Passos, com Rogério Correia e com Herberto Helder, entre outros, no caderno de poesia Arquipélago, e, em 1956, foi editor da revista literária Búzio, impressa e publicada a suas expensas, em que colaboraram, além do próprio, Edmundo Bettencourt, Herberto Helder, Eurico de Sousa, Jorge Sumares, José Escada, Esther de Lemos e David Mourão-Ferreira. A sua vasta obra foi publicada essencialmente no Funchal e em Lisboa, uma obra em que se encontram frequentemente textos criados em conjunto com outros autores. Dos seus trabalhos – livros inteiros, revistas ou composições singulares –, tanto de carácter científico como criativo, referenciamos, em seguida, alguns. São vários os seus textos na déc. de 60, designadamente no âmbito da ficção literária, incluindo a poesia e o teatro; participou em ações coletivas e antologias literárias. Em 1962, escreveu o Poema Primeiro; em 1964, o Romance de Iza Morfismo, e também, com Herberto Helder, Cadernos de hoje (uma antologia de poesia experimental); em 1965, colaborou no suplemento especial do Jornal do Fundão sobre poesia concreta com “Visopoemas” e “Ortofonias” (com Ernesto M. de Melo e Castro); em 1966, compôs Hidra I, Folhema 1 e Folhema 2; em 1967, Operação I; em 1968, Mais exactamente P(r)o(bl)emas; em 1969, “Hidra 2”. Na déc. de 70, publicou, para além da já mencionada monografia O Museu da Quinta das Cruzes, Poema Azul e Branco e o romance Um Buraco na Boca, em 1971; também neste ano, participou na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa. Em 1972, dirigiu a edição de Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal, e, em 1973, colaborou na Antologia da Poesia Concreta em Portugal. Em 1975, publicou Os Bancos antes da Nacionalização; em 1976, colaborou na Antologia da Poesia Visual Europeia; e, em 1979, produziu Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 e a já referida obra Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória. Nos anos 80, manteve o ritmo alucinante de escrita e de publicações. Assim, em 1981, apresentou não só o livro A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700, como também a peça de teatro Desastre Nu, que ganhou o 2.º prémio do Concurso de Peças de Teatro Inéditas promovido pela Secretaria de Estado da Cultura em 1980. Também neste ano, escreveu Metanemas e tornou-se um dos fundadores de Filigrama. Em 1982, publicou igualmente o opúsculo de carácter panfletário Pátria. Couves. Deus. Etc. e, ainda neste ano, Joyciana (com Alberto Pimenta, Ernesto M. de Melo e Castro e Ana Hatherly). Em 1983, compôs Líricas Portuguesas. Antologia e, no ano seguinte, iniciou as eletrografias: O Elogio da Loura do Ergasmo nu Atlânticu, Céu ou Cara Dente por Dente e Merdade My Son, realizadas em 1984, 1985 e 1987, sendo publicadas em 1990. Em 1984, com Alberto Pimenta, deu à estampa Os 3 Farros. Descida aos Infermos (uma curiosa troca de correspondência entre os dois autores), além de ter publicado As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História. Ainda em 1984, numa divulgação em dois discos LP, resultado de trabalhos de investigação no campo etnográfico, ganharam visibilidade as suas recolhas de música tradicional das ilhas da Madeira e do Porto Santo, empreendidas na década anterior com Jorge Valdemar Guerra e com o músico Artur Andrade. Em 1985, fez uma exposição itinerante com Poemografias e, em 1987, apareceu uma nova edição, revista e aumentada, de Para a História do Funchal. Já com mais de 70 anos, ainda manteve alguma produção, tendo sido publicados, em 1992, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal, anteriormente mencionado, e o livro de contos Textos do Abocalipse, que colocaram várias questões, nomeadamente políticas. Além destes títulos, em 1993, foi reeditado o romance Um Buraco na Boca, que recria de algum modo a linguagem verbal, desafiando as convenções da norma. Escreveu ainda para várias publicações: Comércio do Funchal; Línea Sud, Nápoles; Letras e Artes, Lisboa; Expresso; Colóquio-Artes, FCG, Lisboa; Diário de Notícias, Lisboa; Comércio do Porto; Espaço Arte, Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira; e Diário de Notícias da Madeira. A nível internacional realça-se a sua participação em vários fóruns de natureza cultural e artística: Sevilha, 1980; em 1982, Itália e Brasil; 1983, Cuenca; 1984, Comuna de Milão, Itália; 1984, São Francisco, EUA, e Barcelona; 1985, Israel e Nova Iorque; 1986, México e Sevilha; 1987, México e França; 1989, Itália e Paris; 1990, Siegen, Alemanha, México e Washington; e 1992, Madrid. Em suma, as décs. de 60, de 70 e de 80, destacando-se, decerto, o ano de 1981, foram um período muito fértil, marcando toda a sua carreira. Quando se observa detalhadamente a listagem dos títulos, para se quantificarem as publicações não literárias e as literárias, verifica-se que estas se sobrepõem àquelas. Portanto, foi, indubitavelmente, um escritor insaciável e incansável, sendo-o mais de poesia do que de ficção ou de teatro. Contudo, os seus trabalhos não literários, quase todos dedicados à Madeira e ao Funchal, são referências incontornáveis para quem se dedica às temáticas de que trataram. António Aragão faleceu no Funchal, a 11 de agosto de 2008. A sua família doou ao Arquivo Regional da Madeira, posteriormente Arquivo Regional e Biblioteca Pública Regional da Madeira, grande parte do seu espólio histórico. No entanto, o legado do seu acervo artístico ao país e, particularmente, à Madeira foi reconhecido ainda em vida pela Câmara Municipal do Funchal, que atribuiu o seu nome a uma via citadina. Obras de António Aragão: Os Pelourinhos da Madeira (1959); Poema Primeiro (1962); Romance de Iza Morfismo (1964); Visopoemas (1965); Ortofonias (1965); Hidra I (1966); Folhema 1 (1966); Folhema 2 (1966); Operação I (1967); Mais exactamente P(r)o(bl)emas (1968); Hidra 2 (1969); O Museu da Quinta das Cruzes (1970); Poema Azul e Branco (1971); Um Buraco na Boca (1971); Os Bancos antes da Nacionalização (1975); Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 (1979); Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória (1979); Desastre Nu (1981); A Madeira Vista por Estrangeiros (1981); Metanemas (1981); Joyciana (com Alberto Pimenta, Ernesto M. de Melo e Castro e Ana Hatherly) (1982); Pátria. Couves. Deus. Etc. (1982); Líricas Portuguesas. Antologia (1983); Os 3 Farros. Descida aos Infermos (1984); As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História (1984); O Elogio da Loura do Ergasmo Nu Atlânticu, Céu ou Cara Dente por Dente (1990); Merdade My Son (1990); O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal (1992); Textos do Abocalipse (1992).   Helena Rebelo Miguel Fonseca (atualizado a 14.07.2017)

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