Mais Recentes

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

Antropologia e Cultura Material Cultura e Tradições Populares Madeira Cultural

escultura

Para traçar uma panorâmica da história da escultura existente no arquipélago da Madeira apenas se pode recorrer a estudos dispersos e pontuais, já que um levantamento sistemático ainda está por realizar em 2015. O interesse pela recolha e preservação do património religioso que esteve na origem da criação do Museu de Arte Sacra do Funchal (MASF), levou à realização de exposições de escultura religiosa, sendo a de 1954 no convento de S.ta Clara do Funchal, organizada pelo P.e Pita Ferreira e por Luiz Peter Clode, pioneira e muito alargada. Propunham-se os seus mentores dar uma ideia da evolução do sector, sem pretensões de exaustividade e conscientes das limitações de documentação e de publicações que então se verificava. Lembremos algumas das principais iniciativas que se seguiram no MASF: em 1967, uma mostra sobre iconografia mariana (Exposição Mariana), tema retomado e ampliado em 1988 por ser ano mariano; em 1984, uma exposição de escultura religiosa da coleção Dr. Frederico de Freitas, com imaginária europeia e produção luso-oriental, que precedeu a abertura da casa-museu onde hoje é dado a ver o espólio deste colecionador; por ocasião do 8.º centenário do nascimento de Santo António, em 1996, uma exposição dedicada a este santo da qual, infelizmente, não foi publicado catálogo, reunia pintura e escultura dos sécs. XVI a XVIII, pondo em diálogo peças do próprio museu com outras da Diocese e de outros museus; A Madeira na Rota do Oriente, em 1999, retomada e ampliada, em 2005, com o título A Madeira nas Rotas do Oriente, reuniu peças significativas dos intercâmbios culturais decorrentes da Expansão; em 2002, Jesus Cristo Ontem, Hoje, Sempre, exposição integrada na pastoral do ano do grande Jubileu de 2000, agrupou em torno da temática cristológica; no ano seguinte, Futuro do Passado deu especial enfoque a problemas de conservação e restauro; Eucaristia, Mistério de Luz, organizada em 2005 para celebrar o ano da eucaristia; Obras de Referência dos Museus da Madeira, em 2008, no Funchal e, em versão mais vasta, no palácio nacional da Ajuda, em Lisboa, no ano seguinte; em 2014, a exposição comemorativa dos 500 anos da Diocese do Funchal: Madeira, do Atlântico aos Confins da Terra 1514-2014. Estas exposições temporárias do MASF foram ocasião para o restauro de peças e para efetuar investigação sobre elas, e é sobretudo nos seus catálogos que podemos encontrar informação acerca das obras mais relevantes do património ilhéu. Muito continua, no entanto, por estudar e valorizar e é uma lacuna a inexistência de um inventário exaustivo, até ao presente ano de 2015, feito com a colaboração de especialistas, com registo fotográfico cuidado, acessível a consulta, que seria um instrumento de trabalho precioso não só para investigadores, mas até para a indispensável salvaguarda do património. Salientamos, no entanto, as inestimáveis, ainda que inéditas, recolhas feitas pela escultora Luiza Clode ao longo da sua atividade de docente e de diretora do MASF. Cabe lembrar também a importância da participação de peças pertencentes ao património insular em destacadas exposições nacionais e internacionais, pelas oportunidades que abre à investigação e à divulgação, entre as quais: Europalia, em 1991, Antuérpia; Exposição Universal de Sevilha, em 1992; Brilho do Norte, em 1997, Lisboa. O remanescente da escultura de épocas mais recuadas consiste em peças de imaginária devocional que encontraram, apesar das alterações decorrentes de deterioração ou de mudanças de gosto, melhores condições de conservação. Algumas das imagens que chegaram até nós sofreram sucessivos repintes descaracterizadores, outras já estavam fora de culto e tinham sido enterradas, guardadas em armários ou debaixo de altares de igrejas. Recorria-se a esta prática, ou à queima, conforme estabelecem as Constituições Sinodais, para evitar a profanação. Do séc. XV, entre o gótico final e os alvores do renascimento, existem diversos exemplares em madeira estofada, mas salienta-se um S. Brás (MASF73) em mármore, vindo da matriz de Gaula, de cânone bastante curto e modelação sumária, com báculo, mitra e uma figura ajoelhada a seus pés, alusão à cura do rapaz com uma espinha na garganta, um dos seus milagres mais populares. Pertencente à Misericórdia da Calheta, uma Virgem com o Menino, em pedra, que estava grosseiramente repintada, foi alvo de restauro em 2015,  desvendando-se assim a volumetria original da imagem. É também interessante uma S.ta Catarina, da igreja do Campanário, de livro na mão e segurando o punho da espada com que foi decapitada na outra, que tem a seus pés a figura do vencido imperador Maximiliano, tal como uma sua congénere do Museu Nacional de Arte Antiga com o número de inventário 144 Esc. A par das importações flamengas vieram também peças de produção nacional, de que é excelente exemplo um S. Sebastião em pedra de ançã, de apurada modelação e harmoniosa proporção, com vestígios de policromia, de oficina coimbrã do início do séc. XVI, atribuído a Diogo Pires o Moço (MASF379). Encontra-se mutilado e estava enterrado na igreja de Câmara de Lobos. Também em pedra policromada e dourada é a Virgem com o Menino de oficina flamenga ou luso-flamenga que segura um tinteiro enquanto o Menino tem um livro na mão e uma pena para escrever, entretanto já desaparecida. Trata-se de uma iconografia não muito usual, que se encontra a partir do séc. XV nas regiões da Renânia e do Mosa. A escultura em pedra é uma presença mais rara, sendo a madeira policromada, estofada e dourada o material mais utilizado para a imaginária até ao séc. XIX. De um modo geral, nas obras dos sécs. XV e início do XVI, tal como acontece com a pintura, predomina o gosto flamengo, como podemos ver na coleção do MASF, objeto de análise no seu catálogo, publicado em 1997 (Arte Flamenga). Guarda este museu alguns exemplares de produção flamenga, de que se salienta uma Nossa Senhora da Conceição de madeira estofada, policromada e dourada, do início do séc. XVI, esculpida em meio vulto, proveniente da matriz de Machico e que terá pertencido a um primitivo retábulo (MASF18). Coroada, com o Menino ao colo segurando o rolo da Nova Lei, os seus traços fisionómicos e opções compositivas e de modelação apontam para oficina da zona de influência Malines-Bruxelas. Uma Nossa Senhora da Estrela (MASF354) vinda de oratório particular da Calheta, em que o Menino segura um cacho de uvas alusivo à sua futura Paixão, de oficina de Antuérpia ou de Malines. S.ta Luzia (MASF351), proveniente da antiga capela de S.ta Luzia, é uma obra de Malines, do início do séc. XVI, mutilada e com a carnação já desaparecida, mas conservando o douramento original; é de grande expressividade e notável desenvoltura e dinamismo na execução de panejamentos e cabelos. Cristo Crucificado (MASF319), em madeira de carvalho com vestígios de policromia, possivelmente proveniente do convento de S. Francisco, está estilisticamente próximo da escultura alemã, pelo alongamento e expressividade da figura. Apesar de lhe faltarem os braços, é notória a qualidade da modelação. S. Roque (MASF352), que seria originalmente do altar de S. Roque na Sé, santo de grande devoção enquanto intercessor contra a peste, é obra de uma oficina de Malines de finais do primeiro quartel do séc. xvi. Veste de peregrino e está acompanhado por um pequeno anjo. Falta-lhe a mão esquerda e apresenta vestígios das cutiladas de que foi alvo aquando do ataque dos corsários, em 1566. São muitas as figuras de desmembrados conjuntos representando o Calvário. Entre as quais, uma Virgem Dolorosa, um S. João e um Cristo Crucificado, encontradas, as duas primeiras, sob o altar da igreja de S. Roque, sendo o conjunto proveniente da capela do Calvário da Sé e de oficina arcaizante de Malines (MASF374). Mas também, uma Virgem Dolorosa e um S. João (MASF45/45A), provenientes do colégio dos Jesuítas do Funchal; uma Virgem Dolorosa e um S. João (MASF134/134A) de oficina flamenga ou luso-flamenga, possivelmente de Fernão Muñoz, provenientes da Sé. Nesta última imagem de S. João foram acrescentados olhos de vidro, retirados aquando do seu restauro. Esta prática inicia-se apenas no período barroco, pelo realismo e intensidade que conferia ao olhar, mas foi por vezes aplicada a esculturas já existentes. Guarda também o museu um conjunto de figuras de uma Deposição da Cruz de oficina de Malines, com a Virgem amparada por S. João e Maria de Cleofás, achadas sob o altar da igreja de S. Roque (MASF47/47A). Deste conjunto fariam parte outras figuras, entre as quais uma Maria Salomé encontrada numa arrecadação da Sé. De Malines vieram também pequenas imagens do Menino Jesus, decerto destinadas a oratórios particulares. De fatura flamenga existem, entre outras, ainda ao culto, uma Virgem com o Menino, dita Virgem do Rosário e uma Nossa Senhora da Luz, na matriz da Ponta do Sol; na da Ribeira Brava, subsiste uma Nossa Senhora do Rosário. De oficina portuguesa, em barro e de pequena dimensão, possui o convento de S.ta Clara duas peças com o tema da Piedade, a Virgem com o Cristo morto nos braços, e ainda um fragmentado S. Jerónimo de excelente modelação. Do séc. XVII, restam, nas igrejas de Machico, Santa Cruz, e Porto Santo, grupos de figuras de Cristo e os apóstolos na Última Ceia. Documentado como obra do imaginário Manuel Pereira (Manuel Pereira), em parceria com os douradores Baltasar Gomes e Manuel Duarte, é o conjunto do mesmo tema executado entre 1648 e 1652 para o camarim da Sé, depois colocado no MASF (MASF346), parte de um vasto e fragmentado conjunto, encomendado pela confraria do Santíssimo Sacramento. O grupo escultórico de Machico foi atribuído à oficina deste imaginário, o de Santa Cruz, a um seu seguidor. Na matriz da Calheta existem também figuras de um destes grupos escultóricos, bastantes degradadas, mas, a julgar pelas suas caraterísticas formais, mais antigas. A partir deste período, são muitas as imagens que, em 2015, ainda estão presentes ao culto. A recrudescência do culto dos santos que o ideário contrarreformista preconizava, as reformas em altares já antigos, a construção da igreja jesuítica de S. João Evangelista e o aumento de mão de obra local, documentada, como veremos adiante, potenciam as encomendas do clero, de confrarias e de oratórios particulares. Do demolido convento das Mercês ficou um Senhor da Paciência, também designado Senhor da Pedra, hoje no mosteiro de S.to António, das Clarissas, em madeira policromada, de proporções um tanto atarracadas, mas de modelação cuidada. É um tema do ciclo da Paixão que foi alvo grande devoção popular, divulgado através de gravuras de Dürer, uma da série da Pequena Paixão outra da Grande Paixão, onde o pintor retoma as convenções de representação da Melancolia, mesclando dor e resignação e salientando o dramatismo da cena. Dentro das figuras de maior devoção encontra-se a Virgem Maria, nas suas muitas invocações. Uma delas é a Nossa Senhora da Vida, de uma pequena capela da mesma invocação na Fajã do Mar, Calheta, estática e solene, de modelação um tanto sumária. De cunho mais erudito é a Nossa Senhora da Luz com o Menino ao colo e assente sobre nuvens e cabeças de querubins, onde se sente já uma certa quebra do hieratismo da figura na obliquidade do pregueado largo do manto (MASF197). Estava num altar colateral da igreja do colégio dos Jesuítas, onde era invocada como protetora dos estudantes. A Nossa Senhora do Pópulo, também da igreja jesuítica de S. João Evangelista (colégio), do altar do mesmo nome, é um exemplo paradigmático da solenidade que adquirem as imagens no contexto maneirista pós-tridentino. O estatismo é animado pela ondulação quase gráfica das pregas miúdas que, no entanto, não contrariam a solidez do bloco. Dentro da mesma linguagem, mas menos imponente, é a Nossa Senhora da Assunção do altar do mesmo nome do convento de S.ta Clara. Mais austera na sua modelação, mas de grande qualidade plástica e muito delicada nos gestos e na expressão é a S.ta Isabel (MASF310/A) que, em atitude de caminhar, segura o braçado de rosas alusivo ao milagre que operou. Um culto que foi particularmente impulsionado em Portugal, após a Restauração, foi o da Imaculada Conceição, incentivado sobretudo pelos Franciscanos e pelos Jesuítas. Do convento do Bom Jesus da Ribeira transitou para o MASF uma Senhora da Conceição, de grande hieratismo e simetria, mas de marcada juvenilidade (MASF412). A representação da Virgem sobre o crescente lunar é uma caraterística da Imaculada Conceição e fundamenta-se na descrição da mulher apocalíptica. No caso da Imaculada Conceição que figurou na exposição A Madeira nas Rotas do Oriente, o crescente está voltado para baixo e sob este, em grande evidência, está o globo do mundo no qual se enrosca a serpente do mal. Pedro (MASF198), proveniente da igreja de S.to António, com algumas mutilações, é de cânone curto mas solta movimentação na atitude e nas vestes. Da mesma igreja, mas podendo ter tido outra proveniência, veio um S.to Inácio de Loyola (MASF193), de expressão contemplativa, livro na mão e gesto pregador, tem no peito uma abertura para colocação de relíquia. O estofado do hábito é sóbrio, mas requintado. De sobriedade está carregado um ascético S. Bruno com uma caveira na mão da igreja de S. Pedro. São significativos da devoção aos santos os bustos-relicário, tal como podemos ver, neste ano de 2015, ainda in loco, um exemplar de retábulo de 1653, atribuído a Manuel Pereira, com 9 nichos com os bustos e 12 braços-relicário nos intercolúnios na capela das Onze Mil Virgens da igreja do colégio. Possui também o MASF alguns exemplares interessantes de bustos-relicário dos mártires de Marrocos, ainda que muito deteriorados, pois foram encontrados sob o soalho na igreja do colégio (MASF357). Os santos jesuítas, como o S.to Inácio acima referido, têm forte presença na igreja desta Companhia, veja-se os quatro santos em pedra nos nichos da fachada maneirista e os do retábulo do altar-mor, de 1660, um dos quais, S.to Inácio; este último foi incluído na exposição comemorativa dos 500 anos da Diocese do Funchal. Interessante também é a escultura integrada nos retábulos das capelas laterais (Talha), nomeadamente o S. Miguel Arcanjo pesando as almas e com um demónio vencido a seus pés. Na igreja da Ribeira Brava existe um grupo escultórico com o tema da Piedade em barro policromado, indiciando uma procura de pequenas obras para devoção privada. Também a igreja do Carmo possuía uma peça sobre o mesmo dramático tema. Um importante núcleo de imagens de roca dos sécs. XVII e XVIII, que estava arrecadado numa dependência da igreja do colégio, transitou para as reservas do MASF; algumas delas foram mostradas pela primeira vez na exposição O Futuro do Passado, em 2003. Trata-se de esculturas de vestir processionais, articuladas, com estrutura interna oca de ripas de madeira, para torná-las mais leves, em que apenas a cabeça e as mãos são esculpidas com acabamento mais apurado e com carnação. As vestes, olhos de vidro, cabeleiras e adornos conferiam realismo e fausto a estas figuras, contribuindo para o pathos do cerimonial. Os exageros no adorno das imagens refletem-se na redação da constituição quarta das Constituições Extravagantes de 1601, emanadas do sínodo de D. Luís Figueiredo de Lemos, relativa à decência e honestidade das pinturas e dos vestidos dos santos. Algumas das imagens de roca são facilmente identificáveis, como Cristo com Coroa de Espinhos (MASF385), outras têm uma inscrição no peito com o nome do santo, como S. Benedito (MASF393), S.ta Delfina (MASF392), ou S.to Henrique (MASF391). Os contactos com os territórios portuguesas de além-mar levaram para a Ilha numerosas peças, sobretudo de artes decorativas, mas também imaginária produzida por artífices orientais, de que os exemplos mais singulares serão as representações indo-portuguesas do Menino Jesus Bom Pastor em marfim (Casa-Museu Frederico de Freitas, n.os 20.036 e 20.037; Museu Quinta das Cruzes, MQC137). São frequentes as representações da Imaculada Conceição, da Virgem com o Menino, os crucifixos e diversos santos. São geralmente peças de pequenas dimensões, em marfim, destinadas a oratórios particulares e, para além da Índia, há também peças trazidas da China e do Ceilão, entre outros. A Dormição de S. Francisco Xavier (MASF337), de oficina portuguesa ou mesmo local, proveniente do antigo convento do Bom Jesus da Ribeira, é um baixo relevo que representa bem o prestígio adquirido pelos protagonistas da missionação do Oriente. Nos finais do séc. XVII, são frequentes os anjos candelários ou ceroferários, peças com forte presença no diálogo entre géneros artísticos próprio do bel composto barroco. Assim  são os anjos de madeira policromada e dourada de pose dinâmica e teatral e vestes esvoaçantes (MASF241 e MASF241/A). A igreja de S. Jorge conserva ainda um par de anjos desta tipologia, que se prolonga no século seguinte, como podemos constatar em exemplar congénere da igreja do colégio dos Jesuítas. Nos finais do séc. XVII e ao longo do séc. XVIII, a escultura ganha realismo e acentua-se a veemência da gestualidade e a dinâmica das pregas, criando volumetrias mais ousadas e é abundante a produção de peças, mantendo-se a preferência pela madeira estofada, policromada e dourada. Nossa Senhora dos Anjos com o Menino ao colo e assente sobre uma revoada de anjos (MASF358), proveniente da igreja do Carmo, apresenta um contraste entre a serenidade dos rostos e a agitada composição geral. A Senhora, o Menino e um dos anjos seguram um fruto vermelho na mão. É de particular qualidade a Nossa Senhora da Assunção que passou a integrar o retábulo da Sé, já na segunda metade do séc. XX, após a proclamação do dogma da assunção por Pio XII, em 1950, vinda então da igreja de S. Pedro. Justifica-se este facto pela tradição de dedicar as catedrais portuguesas a Nossa Senhora da Assunção. A Virgem é levada por um grupo de anjos e tudo se conjuga para criar uma forte ilusão de movimento ascensional: a direção do olhar, as oblíquas dos braços, das pernas e da fímbria esvoaçante do manto e a sinuosa agitação das pregas. Além disso o estofado da túnica é de muito cuidado desenho. O rosto sereno e as mãos cruzadas sobre o peito da Imaculada Conceição existente na capela do Espírito Santo (Lombada, Ponta do Sol) é realçado pela grande desenvoltura nos panejamentos com pedras incrustadas. É curiosa a solução da serpente esmagada a seus pés sobre o globo do mundo. Na igreja de S. Pedro, a expressão dolorosa da Nossa Senhora das Dores, de espada no peito, boca entreaberta e olhos lacrimosos a que não falta o brilho das lágrimas de vidro, contrasta com a elegância do gesto e das vestes. Outra peça relativa aos episódios trágicos da vida da Virgem é a Senhora da Piedade, em madeira policromada, da igreja dos Canhas, muito expressiva no confronto entre o corpo desfalecido de Cristo, de braços abertos como que ainda crucificado, e a tensão do abraço de sua Mãe. Testemunhos da devoção a S.ta Ana, existem duas imagens deste tema que apresentam semelhanças formais entre si: uma proveniente da igreja do Carmo (MASF455), com Maria ao colo e o livro na mão, na atitude de S.ta Ana mestra, de rosto um tanto anguloso, vestes agitadas e ampla volumetria; outra oriunda da igreja de Câmara de Lobos, apenas com o livro. Muitas outras devoções ficaram patentes na numerosa imaginária do séc. XVII. Lembremos ainda S. Francisco Xavier (MASF450), oriundo da igreja do Carmo, figura cujo movimento ascensional do olhar é sublinhado pela colocação diagonal do braço que segura a cruz; S. Francisco de Paula (MASF450), fundador da Ordem dos Mínimos, de longas barbas e hábito com capucho aponta para a divisa que tem no peito; S. João Batista menino, da capela da mesma invocação no Funchal, veste uma pele de cordeiro que se mescla indestrinçavelmente com o estofado ao gosto barroco; S.ta Rita de Cássia, da Sé, com o estigma na fronte, olhar de contido sofrimento, veste um hábito de monja cuja ondulação discreta se afasta das exuberâncias do barroco. De pequena dimensão, mas de grande qualidade no apuro das feições, mãos e pés, e na larga movimentação do panejamento, é o S. Paulo (MASF449), vindo da igreja do Carmo, que foi atribuído ao círculo de Machado de Castro, famoso escultor da Casa Real. Destaque também para uma Nossa Senhora dos Remédios e do Amparo (MASF261) procedente da demolida capela da Qt. de S. João. Também os arcanjos Rafael (MASF453), Miguel (MASF452) e Gabriel (MASF454), em maquineta da época em talha dourada, provindos da igreja do Carmo, são requintados exemplos de entalhe e de estofado. Abundam as figuras de presépio, sejam avulsas sejam em presépios de caixa, algumas de muito boa qualidade, pois foi grande a procura deste tipo de peças por particulares nos sécs. XVIII e XIX (Presépios). Em mármore policromado e dourado assinala-se um arcanjo S. Miguel vencendo o demónio (MASF185), vindo do colégio dos Jesuítas que assenta sobre um ornato de palmeta. A autoria das peças mencionadas nesta súmula e das muitas outras que não é possível aqui enumerar é ainda uma incógnita, devido à escassez de documentação específica acerca de contratos e pagamentos. Algumas desta peças, pela sua qualidade e caraterísticas estilísticas, sugerem proveniência de oficinas nacionais. Quanto à documentação acerca de imaginários a trabalhar na Ilha, são mais frequentes as menções encontradas em registos paroquiais, contratos de aforamentos e outras situações semelhantes do que referências à execução de peças em vulto, aos pagamentos de talha, douramentos e consertos diversos. A partir do início do séc. XVIII é mais comum a designação de entalhador para os executantes da talha, aparecendo também, para as mesmas funções, a designação de carpinteiro ou marceneiro (Talha). Na viragem para o séc. XVII, estão documentados, nas datas que seguidamente indicamos, os imaginários: Álvaro Luís, natural de Sintra, que também foi procurador de mesteres e morreu em 1630, havendo notícia dele desde o seu casamento, em 1596; João da Costa (1602-1604); Manuel Dias, que trabalhou no sepulcro da Sé (1639); Manuel Dias de Andrade (1696); Brás Fernandes, elogiado por Manuel Tomás na Insvlana como insigne escultor, com obra na igreja de S. João Evangelista (batizou um filho em 1641); Manuel Afonso (1641); Manuel de Lima, irmão da Confraria da Candelária de S. Pedro (1651-1698); Domingos Martins (1652, 1655); Pedro Nunes de Morim (1655, falecido em 1682); Manuel Martins, já falecido por volta de 1660; Francisco Fernandes (1669); Domingos Moniz, que trabalhou com Manuel Pereira no camarim da Sé (1651-1661); Filipe Correia (1664); Francisco Afonso, que acrescentou o retábulo do altar do Bom Jesus da Sé, em parceria com Manuel Pereira de Almeida, Inácio Ferreira, Manuel da Silva e João Rodrigues (1683); Francisco Afonso da Cunha (1686); Francisco Rodrigues (1672); Manuel Fernandes (1672, falecido em 1675); José Fernandes de Morim, que foi procurador dos mesteres e conselheiro de segunda condição da Misericórdia do Funchal (1627-1673); Manuel da Silva, mordomo de fora e da capela da Misericórdia do Funchal, que trabalhou em parceria, na talha do retábulo da capela do Bom Jesus da Sé, com Manuel Pereira de Almeida, Inácio Ferreira, Francisco Afonso e João Rodrigues (1683-1698); Luís Dias (1684); Manuel Coelho, conselheiro de segunda condição na Misericórdia do Funchal (1685); José Gonçalves (1691); Martinho de Bettencourt, que trabalhou no camarim da Sé com Manuel Pereira (1652-1654); Leandro João Caldeira (datas desconhecidas); Francisco da Silva, natural de Lisboa (1688-1689); Fr. António de Estremoz, do convento de S. Francisco, cujas imagens foram aprovadas como respeitadoras da ortodoxia durante a visita da Inquisição, em 1691; Inácio Ferreira, que integrou a parceria acima referida (1652, falecido em 1684); João Rodrigues de Almeida, por vezes mencionado apenas como João Rodrigues entalhador ou como imaginário, nascido por volta de 1650 e falecido em 1740, colaborador na mesma parceria. Ativos no séc. XVIII, encontramos em atividade, nas datas seguidamente indicadas: António da Silva Santiago (1700); Agostinho de Almeida, imaginário e entalhador (1697-1742); António José (1755-1756), que trabalhou em parceria com o pintor Villavicêncio e com o entalhador João Francisco Ferreira; Nicolau de Lira com o remate do retábulo da igreja da Graça de Câmara de Lobos e com trabalhos para a Sé (1720-1765); Luís Ferreira (1766-1767); António João (1758); António Rodrigues (1725-1734); P.e Marcelino da Silva, pago pelo feitio de um Cristo para a Sé mas também por diversas pinturas e consertos (1734); Francisco Martins (1753); Inácio Pereira (1710-1753); João da Silva (1758); Julião Francisco Ferreira (1727-1771), natural dos Açores, que trabalhou, entre outros, nos retábulos de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, São Jorge, capela-mor de S. Pedro, sacristia do colégio dos Jesuítas em parceria com o pintor Villavicêncio; Manuel Pestana, discípulo do mestre entalhador Julião Francisco Ferreira (1755-1758). No séc. XIX, no âmbito religioso, foi-se recorrendo paulatinamente a soluções mais viradas para uma produção em série, evidenciando-se o trabalho de santeiros, sediados sobretudo no norte do país. Escasseavam as encomendas a escultores, retomadas, já no séc. XX, com as obras de Francisco Franco e, mais tarde, António Duarte, Lagoa Henriques e Amândio de Sousa, entre outros. Em contrapartida, o espaço público começou a oferecer novas oportunidades. Do séc. XIX não se conhece notícia de inaugurações oficiais de bustos, estátuas ou grupos escultóricos de carácter secular. Contudo, note-se a existência de algumas peças de estatuária religiosa, nomeadamente escultura fúnebre. Para além destas pode ser referido um outro tipo de peças escultóricas, habitualmente não consideradas obra de escultor por serem peças anónimas, provenientes de fábricas, ou reproduções de modelos pré-existentes, tais como, os marcos comemorativos e os cruzeiros; ou pelo facto de estarem mais associadas a peças arquitetónicas, como é o caso dos fontenários. Das escassas recolhas sobre peças de carácter urbano utilitário e comemorativo feitas até 2015, refira-se o livro/inventário de José de Sainz-Trueva e Nelson Veríssimo, Esculturas da Região Autónoma da Madeira: Inventário, publicado no Funchal em 1996. Muitos dos cruzeiros distribuídos pelas principais vilas e cidades da Madeira, ainda de pé no segundo milénio, foram erguidos no séc. XIX. Na sua maioria de cantaria rija, têm formas austeras e pequenas dimensões, e encontram-se em largos, praças e cemitérios da Região. Um exemplo é o cruzeiro com motivos heráldicos, existente no largo da igreja de Santa Cruz, cujo material, menos habitual na Ilha, é o mármore. Datam também do séc. XIX muitos fontenários existentes na Madeira. É esse o caso daquele que ficou conhecido como Poço da Cidade, sito ao Lg. do Poço, nas imediações do mercado dos Lavradores, Funchal. Por sua vez, o fontenário do Torreão, também no Funchal, data de cerca de 1836 e possui azulejaria acrescentada já nos anos 30 do século seguinte. Um outro, situado no Lg. da Fonte (e ao qual o lugar deve o seu nome), na freguesia do Monte, foi erguido em finais do séc. XIX, e apresenta um claro gosto neoclássico. Contudo, são os chafarizes encimados por figuras alegóricas que mais se aproximam do conceito de escultura, por isso, destacamos o chafariz que ostenta figuras de inspiração clássica sob o tema da Leda e o Cisne, peça encomendada a uma oficina lisboeta e originalmente instalada no antigo mercado D. Pedro IV, por volta de 1880. Em 2015, é possível observá-la no átrio da Câmara Municipal do Funchal (CMF), para onde foi transferida em 1941. No primeiro quartel do séc. XX, assistiu-se em Portugal a um incremento de bustos escultóricos e estátuas de corpo inteiro que retratam diversas individualidades de vulto e que se enquadram na estética realista de Oitocentos. À Madeira chegaram ecos deste tipo de homenagem escultórica, encomendada pelo Estado ou por particulares. A primeira escultura inaugurada em local público, datada de 1906, foi um busto representando Luís da Câmara Pestana, médico madeirense. Localizado na casa de saúde Câmara Pestana, o busto foi encomendado por particulares a Josef Füller, escultor austríaco a residir em Portugal continental, onde foi professor de escultura. A nova Av. Manuel de Arriaga, aberta em finais do séc. XIX, no centro do Funchal, foi o palco privilegiado para a implantação das primeiras esculturas de porte considerável no espaço público exterior. Em 1922 foi descerrado um busto em homenagem ao conde de Canavial, médico e político, da autoria de Raul Xavier. A figura, de carácter naturalista, assenta num elaborado pedestal clássico e foi implantada numa redoma ajardinada no centro da cidade, orientada de frente para a Sé. Um outro busto, assinado por Costa Motta, seria inaugurado em 1925. Esta escultura retrata João Fernandes Vieira, o “libertador de Pernambuco”, personagem histórica do séc. XVII, nascida na Madeira. De claro gosto oitocentista, esta peça foi erguida no extremo oposto à de Raul Xavier, dando costas à Sé, no local onde se encontra o monumento a Gonçalves Zarco, de Francisco Franco. Em 1932, dois anos antes da inauguração desta última e célebre estátua, concluída em 1928, ambos os bustos foram retirados da avenida: o de Raul Xavier foi transferido para o Campo da Barca, e o de Costa Motta para o jardim municipal do Funchal, locais onde ainda se encontram, na segunda década do séc. XXI. O contraponto a este tipo de estatuária será dado, de facto, pelas obras modernistas do escultor madeirense Francisco Franco (Franco, Francisco). Como atesta a sua obra, desde primeiras peças, influenciadas pela sua estadia em Paris, até à paradigmática e já referida estátua de Gonçalves Zarco, Francisco Franco foi o único protagonista das novas tendências escultóricas internacionais a nível regional. Nos anos 10 e 20, este artista viu inauguradas algumas peças importantes no Funchal, influenciadas pelas várias estadias em Paris e de clara referência a escultores como Antoine Bourdelle e Auguste Rodin. Concluído em 1914, o torso de João Gonçalves Zarco, executado para o restaurante Esplanade, depois Casa de Chá do Terreiro da Luta, foi inaugurado com o patrocínio da extinta Monte Railway Company, em 1919. De grande simbolismo e arrojo expressivo é a escultura funerária Anjo Implorante, de 1916, assim como o torso alusivo aos mortos da Primeira Grande Guerra, de 1917, ambos inaugurados no cemitério das Angústias, Funchal. O busto do aviador, datado de 1920, em homenagem aos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, protagonistas do primeiro voo entre Lisboa e a Madeira, seria inaugurado no jardim municipal, em 1923. A escultura O Semeador, que foi exposta no Salão de Paris, em 1924, recebendo rasgados elogios da crítica francesa, foi inaugurada no Funchal em 1936, na Pç. de Tenerife. Ao longo do tempo, esta obra mudou de localização várias vezes e passou para um largo adjacente ao edifício da CMF. São também desta época várias peças de interior, como as cabeças em madeira e em barro, das quais se destacam a do velho, a da viloa e a do rapaz, entre outras, que podem ser vistas no Museu Henrique e Francisco Franco, para além de um vasto espólio de gravuras e esboços deste escultor. Por fim, data de 1924 o busto que homenageia o mecenas Henrique Augusto Vieira de Castro, e que foi inaugurado no hospital dos Marmeleiros apenas em 1943. Para além da profícua presença modernista das obras de Francisco Franco, outras esculturas de carácter mais convencional continuaram a ser encomendadas. São notáveis dois grandes monumentos de carácter religioso, ambos inaugurados em 1927. A estátua do Sagrado Coração de Jesus foi a primeira escultura levantada fora do concelho do Funchal, concretamente na Ponta do Garajau, e foi assinada pelo francês Pierre Lenoir, revelando uma simplificação timidamente modernista. Menos moderno é o monumento a Nossa Senhora da Paz, erguido no Terreiro da Luta no mesmo ano, da autoria do Arqt. Emanuel Ribeiro, e constituindo-se ao tempo, com os seus 10 m de altura, como o maior monumento da Região. Os anos 30 e 40 foram o tempo da renovação urbanística promovida pelo Eng.º Duarte Pacheco, ministro das Obras Públicas desde 1932, e que acabou por influenciar a arquitetura e escultura públicas em Portugal, nomeadamente em Lisboa, Porto e também no Funchal. Por estes anos, o Funchal cresceu para oeste e modernizou-se progressivamente ao sabor da estética do Estado Novo. Entre 1935 e 1946, durante o mandato de Fernão de Ornelas na CMF, iniciaram-se obras importantes, como a ampliação do porto do Funchal, a abertura da Av. do Mar e da rua que hoje tem o seu nome. Obras relevantes de arquitetos como Raul Lino e Edmundo Tavares foram acompanhadas, em alguns casos, por esculturas que as integraram e que foram projetadas para os novos espaços circundantes aos edifícios e arruamentos, tais como jardins, praças e átrios. De carácter mormente comemorativo, estas obras deixaram na Madeira trabalhos assinados por estatuários consagrados do regime, nomeadamente Leopoldo de Almeida, António Duarte, Delfim Maya e Barata Feyo. Após a grandiosa e adiada inauguração do monumento a Gonçalves Zarco, de Franco, em 1934, registaram-se algumas iniciativas de homenagem, contudo sem grande interesse artístico. Em 1939, foi inaugurado um busto em homenagem a Alexandre da Cunha Teles, escritor e advogado, encomendado ao madeirense Agostinho Rodrigues, em 1937, escultor que emigrou para os EUA nesse ano. Em 1941, foi a vez de um busto em homenagem ao poeta António Nobre, no largo que leva o seu nome. Trata-se de uma cópia do original existente em Coimbra, concebido pelo escultor Tomás Costa. Em 1940, a Junta Geral do Funchal adquiriu uma escultura alusiva a Cristóvão Colombo, executada por Henrique Moreira, discípulo de Teixeira Gomes. Esta figura sentada do navegador ficou arrecadada, ao longo de 28 anos, até ser inaugurada no Prq. de Santa Catarina do Funchal, em 1968. No mesmo ano, Leopoldo de Almeida assinou uma figura sentada do infante D. Henrique, anichada num esguio arco ogival de cantaria. Este conjunto escultórico foi inaugurado apenas em 1947, na entrada do Prq. de Santa Catarina, voltada para a rotunda que levou também o nome do infante. O projeto de recuperação do edifício dos paços do conselho, hoje CMF, ficou a cargo do Arqt. Raul Lino. O projeto previa obras de ampliação e a criação de um fontenário para a Pç. da Constituição, depois Pç. do Município, contígua ao mesmo. O fontenário, inaugurado em 1942, foi executado em cantaria rija e ostenta um obelisco com as armas da cidade, assim como uma esfera armilar encimada pela Cruz de Cristo. Integrado também neste projeto, o escultor António Duarte concebeu um baixo-relevo alusivo a S. Tiago, de figuração estilizada, datado de 1944, para uma das paredes exteriores da CMF. Este escultor seria chamado mais vezes ao Funchal para executar outras encomendas, assinando, em 1946, um fontenário de claro imaginário nacionalista, composto por uma esfera armilar rodeada de cavalos-marinhos, para a rotunda do infante D. Henrique (rotunda da responsabilidade do Arqt. Faria da Costa). Neste ambiente de nacionalismo retórico e monumental, o contraste é dado pela modesta produção local. Nos anos 50 popularizaram-se os trabalhos artesanais dos irmãos Roberto e Manuel Cunha. Foi sobretudo Roberto Cunha (1904-1966) quem mais se destacou pela criação de pequenas figuras de temática religiosa ou pitoresca, executadas em barro, marcadas pelo estilo realista e pela técnica apurada. A propósito da sua obra, o escultor Anjos Teixeira destacou: “Algumas das miniaturas de Roberto Cunha são autênticas estátuas de pequenas dimensões, abstraindo-nos dos poucos centímetros encontramos-lhes a monumentalidade que é uma das expressões do talento” (TEIXEIRA, 1968, 18). Outros escultores madeirenses, como Rebelo Júnior, foram respondendo às escassas encomendas oficiais. Deste artista apenas se conhecem dois bustos, um deles, um retrato convencional do historiador Fernando Augusto da Silva, inaugurado no Lrg. de Santo António em 1955. Ao que parece, partiu da Madeira por esses anos e não deixou especial notícia de si. Os anos 50 foram de continuidade, no que diz respeito à presença de escultores portugueses continentais. Um busto da autoria de Barata Feyo, retratando o escritor madeirense João dos Reis Gomes, é inaugurado em 1956 no jardim municipal, hoje instalado nos jardins do palácio de S. Lourenço. No ano seguinte, Delfim Maya executou a primeira escultura para o Porto Santo, no Pico do Castelo. Trata-se de um busto em homenagem a António Schiappa de Azevedo, iniciador da reflorestação daquela Ilha. António Duarte voltou ao Funchal, em finais dos anos 50, para trabalhar em conjunto com arquitetos conceituados. Em 1957, concebeu quatro apóstolos em cantaria, de contornos muito simplificados, destinados ao pórtico da nova igreja matriz do Porto da Cruz, um dos projetos modernistas do Arqt. Chorão Ramalho na Madeira. Outra parceria de António Duarte com um arquiteto aconteceu no edifício do palácio da justiça do Funchal, projeto de Januário Godinho, para o qual criou uma alegoria materializada numa figura austera, de braço erguido. A peça em bronze, inaugurada em 1962, está centrada na fachada e tem por baixo um fontenário. Outro grupo escultórico modernista também integrado na arquitetura, e de tendência monumental, teve como tema o comércio e indústria e foi assinado por I. V. Perdigão, em 1960. Trata-se de duas figuras alegóricas, a masculina simbolizando o comércio e a feminina a indústria, incrustadas numa esquina do edifício da Alfândega, da autoria do Arqt. Faria da Costa e inaugurado em 1962. A partir dos anos 60, a escultura renovou-se em Portugal, oferecendo uma alternativa à omnipresente estatuária oficial, continuadora do estilo instaurado por Francisco Franco. O paradigma de mudança introduziu o novo conceito de artes plásticas, ensaiado por escultores como Jorge Vieira, João Cutileiro, Fernando Conduto e Zulmiro de Carvalho, assim como o objetualismo de pintores, nomeadamente Lourdes Castro, René Bértholo e António Areal. Nesta década, a progressiva abertura oficial permitiu ao Funchal ter as suas primeiras obras escultóricas de recorte propriamente contemporâneo. Cabe aqui mencionar dois madeirenses, Amândio de Sousa e António Aragão, pelo contributo dado à renovação da escultura a nível local, introduzindo novas linguagens e uma progressiva simplificação formal que se traduziu, em alguns casos, numa clara opção pelo minimalismo e abstracionismo, inéditos na Ilha. Amândio de Sousa esculpiu, em 1963, um conjunto painéis de cimento com relevos vegetalistas estilizados para o átrio da clínica S.ta Catarina, assim como uma maternidade de linhas simplificadas que anunciava já o alongamento que caracteriza as figuras do escultor. Em 1969, concebeu uma escultura em bronze, comemorativa do primeiro jogo de futebol realizado em Portugal (em 1875), para a freguesia da Camacha. De estética assente no construtivismo abstrato, constituiu a primeira obra não figurativa inaugurada fora do Funchal. Ao longo das décadas seguintes, a colaboração de Amândio de Sousa com arquitetos, como Chorão Ramalho e Marcelo Costa, demonstrou a cumplicidade com estes e a sua manifesta “sensibilidade para com a escala e os materiais arquitetónicos” (SANTA CLARA, 2011, 142). António Aragão, intelectual e artista polifacetado, também fez incursões no campo da arte escultórica, e propôs uma pequena escultura de parede, representando uma S.ta Ana, para os paços do conselho de Santana, em 1959. Um ano depois, foi inaugurado o monumento ao infante D. Henrique, na ilha do Porto Santo. Este projeto urbanístico de Chorão Ramalho consiste numa alameda em cujo centro se situa um bloco de betão com 7 m de altura. Este bloco foi graficamente animado por Aragão com formas geometrizadas de cariz abstratizante, inscritas na cantaria, que evocam o imaginário histórico português. Aragão trabalhou nos anos 60 em outras encomendas, tais como os painéis de cerâmica policromada para o mercado de Santa Cruz, datados de 1962. Os painéis, cuja temática é a agricultura e a pesca, denotam uma composição em estilo decorativo que acusa influências do neorrealismo e do neocubismo. Um outro baixo-relevo em cantaria rija do mesmo autor, Artes e Ofícios, segue a linha temática do anterior e funciona como friso para a entrada principal da escola secundária Francisco Franco, no Funchal. Figuras simplificadas organizam-se geometricamente no espaço, jogando com as variações de um padrão figurativo que se repete, alterado pelas posições e gestos das figuras representadas. Ao mesmo tempo, e lado-a-lado com os monumentos ao gosto do Estado Novo e as tímidas incursões de vanguarda, a tendência oitocentista que privilegiava o naturalismo continuou presente na Madeira. Anjos Teixeira, professor de escultura na Academia de Música e Belas Artes da Madeira, executou algumas encomendas de estatuária naturalista, recorrendo a alegorias ou retratando personalidades, como é exemplo a escultura em homenagem ao político e intelectual Jaime Moniz, no largo que leva o seu nome, descerrada em 1961. Ao longo dos anos 70 e 80, Anjos Teixeira realizou um conjunto de obras que perpetuaram este estilo naturalista. Por sua vez, Ricardo Velosa, discípulo de Anjos Teixeira, será claramente influenciado pela técnica e estética do mestre, que procurará atualizar e será o escultor mais requisitado pelas encomendas de Estado ao longo dos anos 80 e 90. Para além de Velosa, um pequeno grupo de escultores madeirenses, ou residentes na Ilha, como Luiza Clode, Manuela Aranha, José Manuel Gomes, Celso Caires, Jacinto Rodrigues, Martim Velosa e Sílvio Cró, entre outros, marcaram, no final do séc. XX e inícios do XXI, o panorama da escultura na Região, alguns deles encetando uma ação mais abrangente no campo das artes plásticas, expandido que está este conceito a partir dos anos 60. Para concluir, refira-se um conjunto de realizações arquitetónicas, o hotel Casino Park, o edifício da Caixa de Previdência e o novo hospital distrital do Funchal, que permitiram trazer ao Funchal, na déc. de 70, obras de importantes escultores portugueses que então se afirmavam, nomeadamente Manuela Madureira, Lagoa Henriques, Jorge Vieira, José Joaquim Rodrigues e Fernando Conduto.   Isabel Santa Clara Carlos Valente (atualizado a 02.01.2017)

Artes e Design

azevedo, álvaro rodrigues de

Álvaro Rodrigues de Azevedo foi um advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador, que viveu na Madeira durante cerca de 26 anos e que contribuiu para a valorização do panorama literário e cultural da Ilha. É autor de uma bibliografia diversificada e, do seu legado, destaca-se a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), de Gaspar Frutuoso, que inclui 30 extensas notas da sua autoria, que complementam e esclarecem alguns pontos acerca da história da Madeira. Palavras-chave: Madeira; literatura; jornalismo; história; historiografia; cultura. Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de janeiro de 1898, dois meses antes de completar 73 anos. Apesar de ter nascido no continente, viveu na Madeira durante muitos anos e considerava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado de nome quando ingressou na universidade. Era filho de António Plácido de Azevedo, natural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de quem teve geração. Concluiu o curso de Direito, em 1849, na Universidade de Coimbra, e foi para Lisboa, onde residiu durante cerca de seis anos. Seguiu posteriormente para a ilha da Madeira, onde exerceu funções de professor, ocupando uma vaga através de concurso público. Anteriormente, tinha tentado um lugar na magistratura judicial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Litterário (1866), explicava a razão pela qual não tinha conseguido aquele emprego e se considerava injustiçado. No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a cadeira de Oratória, Poética e Literatura, que regeu durante 26 anos. Também no mesmo Liceu, foi professor de Português e Recitação e fez parte, como sócio e secretário, da Associação de Conferências, inaugurada a 9 de maio de 1856, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos princípios da educação popular e de elaborar uma discussão com vista à escolha dos melhores métodos de ensino. A Associação de Conferências era composta por professores do ensino público e particular da capital do distrito da Madeira. Em 1856, por ocasião da epidemia de cólera (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha, causando uma elevada taxa mortalidade, prestou relevantes serviços no desempenho do cargo de administrador do concelho do Funchal. A 24 de julho de 1856, escrevia no periódico A Discussão, revelando as medidas tomadas pela Câmara Municipal que, no sentido de tentar combater a epidemia, concedeu 150$000 reis mensais para que o administrador do concelho estabelecesse uma sopa económica, a ser distribuída, uma vez por dia, aos mais necessitados. Referia ainda que medidas idênticas tinham extinguido a cólera em algumas regiões continentais. Mencionando nomes de personalidades e respetivos donativos para a causa, reforçava a ideia da importância da alimentação no combate daquele flagelo e considerava que os mais afetados pela doença eram geralmente pobres, pois a principal causa do seu desenvolvimento era a fome e a miséria. Foi procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, tendo recusado, em 1870, o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Foi ainda membro do Partido Reformista, participando ativamente na política madeirense e revelando aspirações liberais, sobretudo num período agitado da vida local, iniciado em 1868. Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Azevedo colaborou na imprensa periódica madeirense, sendo redator nos jornais A Discussão, A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Funchal e Revista Judicial, e tendo redigido também alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira. Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madeira para os anos de 1867 e de 1868. Os artigos publicados na imprensa foram de natureza variada, desde folhetins e artigos de crítica literária até assuntos de interesse social, relacionados com a vida no arquipélago e com o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de 1856, no periódico A Discussão, inicia a publicação de um artigo de crítica literária, sob o título “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal, nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março de 1856. Em 1866, edita um estudo em volume, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosquejo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo), no qual menciona o seu primeiro artigo crítico à obra daquele autor. No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, um estudo histórico intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”, identificando e descrevendo a casa de Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodrigues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de temas diversos. Ainda na juventude, escreveu um drama sob o título Miguel de Vasconcelos, que não chegou a ser editado. No entanto, este texto originou uma polémica na imprensa, em 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Inocêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota bibliográfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Azevedo no referido Dicionário, Inocêncio Francisco da Silva afirma que terá confundido uma crítica desfavorável a outro texto com o mesmo título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro autor, que terá lido nas Memórias do Conservatório Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo conhecimento do texto escrito por Azevedo, que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título idêntico, mas apenas um foi publicado nas Memórias do Conservatório, tendo outro ficado em arquivo. Este equívoco terá desencadeando a referida controvérsia, suscitando uma troca de correspondência entre ambos, através da imprensa periódica. Nas suas produções literárias encontram-se, entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em um Acto (1859), uma crítica de costumes madeirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869), no qual pretende desenvolver competências de produção linguística. Como escritor e historiador, produziu importantes trabalhos sobre o arquipélago da Madeira. O seu legado mais importante para a historiografia madeirense foi a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues de Azevedo redigiu 30 notas que acrescentou ao manuscrito, na parte que diz respeito à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns pontos da história do arquipélago. O trabalho de investigação, de pesquisas e de consultas em livros, manuscritos ou outras fontes, que empreendeu para a elaboração das anotações presentes na edição de As Saudades da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvimento do seu gosto pelo estudo da história da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro Rodrigues de Azevedo “poderá ser considerado o pioneiro da historiografia hodierna na ilha. O seu trabalho publicado em anotação a As Saudades da Terra, em 1873, é modelar e surge como uma peça-chave para todos os que se debruçam sobre a história da ilha” (VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Azevedo confessou que teve muitas dificuldades na elaboração destas notas, que foi um processo moroso, fruto de muito trabalho de investigação, de dia, e de escrita, à noite, acumulado com a sua profissão. A obra, encetada em meados de 1870, demorou cerca de três anos a completar. Os trabalhos de investigação foram feitos nos arquivos da Ilha, nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câmara Militar e no cabido da Sé. Também foram relevantes os textos que reuniu de cronistas como Zurara, João de Barros e Damião de Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo Braga, seu amigo, com quem se correspondia, teve uma grande influência no seu pensamento e na sua escrita, sendo através deste que tomou contacto com a teoria da história positivista, em voga na época. Contou ainda com a colaboração de João Joaquim de Freitas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que o ajudou nos trabalhos de revisão textual. Apesar de todas as dificuldades que teve de ultrapassar, e da obra inédita que deu à estampa, em 1873, não obteve o devido valor e reconhecimento por parte dos seus coevos. Só muitos anos mais tarde é que o seu trabalho foi valorizado pelos eruditos madeirenses. Na verdade, esta obra pioneira na historiografia insular abriu caminho para que outros madeirenses começassem a interessar-se pelo estudo da sua história, do seu passado e das suas raízes. As suas anotações constituíram uma fonte importante para outros estudiosos, sobretudo para os intelectuais da primeira metade do séc. XX e para os homens da chamada Geração do Cenáculo, que recorreram com frequência às investigações do seu antecessor. Antes do trabalho feito nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, os estudos relativos à história do arquipélago eram muito vagos, circunscrevendo-se a breves notas e estudos. A sua obra teve, assim, um grande impacto em estudiosos como, entre outros, Alberto Artur Sarmento, Fernando Augusto da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto da Cruz, sendo mesmo uma base de referência para a elaboração de obras como o Elucidário Madeirense (1921). De facto, são muitas as referências aos apontamentos e ao nome de Álvaro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que compõem o Elucidário, tendo os seus autores confessado que “são as Saudades da Terra, e sobretudo as suas valiosas e abundantes notas, o mais rico, copioso e seguro repositório de elementos que possuímos para a história do nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, vol. II, 1998, 126). Neste sentido, também outros autores terão consultado e referenciado as notas a Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes de Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (1949-1953). Ainda relativamente à história da Madeira, Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de uma série de artigos, nomeadamente, “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário Universal Português Ilustrado, dirigido por Fernandes Costa. Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Romanceiro do Arquipélago da Madeira, um volume de 514 páginas, resultado das suas recolhas da tradição oral em diversas freguesias da Madeira e do Porto Santo, para o qual terão contribuído as influências de Teófilo Braga. As composições foram classificadas por géneros, a saber, “Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por sua vez, foram divididos em espécies. Nas “Histórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu as seguintes espécies: “Romances ao divino”; “Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: “Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Contos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlengas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”, contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos para a elaboração do cancioneiro, que, porém, não chegou a publicar. No ano seguinte à publicação do Romanceiro, em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido com a ingratidão dos madeirenses pelo seu trabalho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou residência até ao fim da sua vida. Deixou uma coleção de apontamentos avulsos sobre a história, o romanceiro e o cancioneiro da Madeira, que foi coligindo ao longo do tempo que ali passou, os quais foram adquiridos pela Biblioteca Nacional de Lisboa, após a sua morte. No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qualquer homenagem a este homem que se empenhou pelo progresso da Ilha. Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso proferido na Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em Que Se Expõe e Combate esta Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista. Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); Corografia do Arquipélago da Madeira (1873); “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880); Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma, Continuada e Editada por Ruy d'Azevedo (1926).   Sílvia Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Antropologia e Cultura Material História Económica e Social Literatura Personalidades

associação académica da universidade da madeira

A Associação Académica da Universidade da Madeira (AAUMa) foi criada a 10 de dezembro de 1991 com o intuito de responder às necessidades dos estudantes, sendo a estrutura representativa e comunitária dos estudantes da Universidade da Madeira (UMa). É uma instituição privada, sem fins lucrativos, que foi reconhecida em 2006 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior; está inscrita no Registo Nacional do Associativismo Jovem do Instituto Português do Desporto e Juventude e possui, desde 2010, o estatuto de instituição de utilidade pública. Os primeiros órgãos sociais – liderados por Jorge Carvalho como presidente da direção, por Deodato Rodrigues como presidente da mesa da assembleia geral e por António Cunha como presidente do conselho fiscal – foram eleitos por 416 estudantes, tomando posse a 9 de janeiro de 1992. Diversas atividades foram desenvolvidas no sentido de consolidar uma estrutura estudantil única na Madeira, que representasse os estudantes da UMa. O registo legal, a idealização do logotipo, a organização de festividades e de colóquios aquando do Dia Nacional do Estudante, a participação em provas desportivas regionais e nacionais são disso exemplo. Para fazer cumprir algumas das promessas eleitorais, foi necessário “adquirir uma máquina de encadernação, formar uma tuna, adquirir um computador, fomentar a participação dos estudantes no grupo de teatro, realizar um festival de tunas e participar nas competições desportivas interuniversitárias” (Livro de Actas da Direcção…, 16 jan. 1993, s.p.). A 14 de janeiro de 1994 foi eleita, para mais um mandato, a equipa liderada por Jorge Carvalho na direção, com Deodato Rodrigues na mesa da assembleia geral e Ricardo Félix no conselho fiscal, tomando posse a 2 de fevereiro do mesmo ano. O apoio ao estudante e a organização de colóquios, de conferências e de fóruns de discussão sobre assuntos relacionados com o ensino superior e com a UMa e a sua oferta formativa foram as principais preocupações da equipa. O segundo mandato da equipa liderada por Jorge Carvalho terminou com o I Encontro de Estudantes Madeirenses do Ensino Superior, no qual, durante dois dias, se discutiram questões sobre o ensino de qualidade e sobre a formação de profissionais de excelência em Portugal. A 19 de janeiro de 1996 tomavam posse os novos corpos sociais da AAUMa, liderados por Vítor Freitas como presidente da mesa da assembleia geral, por Orlando Oliveira como presidente do conselho fiscal e por Eduardo Marques como presidente da direção, cargo que manteve até 18 de dezembro do mesmo ano, data em que trocou de lugar com a vice-presidente, Natércia Silva. É com esta equipa que se institui, pela primeira vez, a Semana do Caruncho e o Corte das Fitas (até então, designados de Semana Académica e Queima das Fitas), o primeiro Código de Praxe e Comissão de Praxe, a primeira publicação do jornal (Parenthesis), a 14 de maio de 1996, e a aposta no desporto e na contratação de bandas nacionais e regionais para celebrar o adeus aos finalistas e a receção dos novos estudantes da UMa. A 6 de março de 1998 tomavam posse Sara André Serrado, como presidente da direção, Paulo Santos, como presidente da mesa da assembleia geral, e José Costa, como presidente do conselho fiscal. Uma das primeiras preocupações foi a alteração estatutária e a regulação da praxe na UMa, modificando para tal o Código de Praxe em vigor e criando a Comissão de Veteranos. Seria, contudo, na direção seguinte, liderada por Clara Freitas, que as questões da praxe ficariam desvinculadas da AAUMa, por deliberação da Reunião Geral de Alunos. Eleita por dois mandatos – a 19 de janeiro de 2001 e a 20 de fevereiro de 2003 –, Clara Freitas vê o último mandato terminar de forma abrupta. A direção acaba por ser exonerada, pois o pedido de demissão apresentado pela maioria dos membros dos órgãos sociais inviabiliza a continuidade da restante equipa na liderança da AAUMa. No entanto, e enquanto os corpos sociais desta direção estiveram ao serviço dos estudantes, as questões desportivas, as de ação social, as culturais e as recreativas foram as suas principais bandeiras. A 23 de abril de 2004 é eleita a equipa de Marcos Pestana, que encontra uma estrutura associativa com uma situação financeira instável, parca de recursos e com uma credibilidade reduzida, o que acabou por dificultar grande parte do trabalho a que se havia proposto. A aposta no desporto universitário e na tradição académica da UMa foi, contudo, concretizada. A 8 de março de 2006 aquela dá lugar à equipa de Luís Eduardo Nicolau, que viria a ser, pelo menos até 2016, o presidente com maior longevidade à frente dos destinos da AAUMa, com três mandatos (14 de março de 2006, 21 de abril de 2008 e 3 de novembro de 2010) e três equipas diferentes (lideradas por André Dória, Andreia Micaela Nascimento e Rúben Sousa como presidentes da mesa da Reunião Geral de Alunos e por Pedro Olim, Tiago Seixas e Gonçalo Camacho como presidentes do conselho fiscal). A implementação do processo de Bolonha e do regime de prescrições na UMa foi uma das primeiras preocupações desta equipa. Nestes anos são criados vários projetos, muitos dos quais se mantêm vários anos depois. Uma publicação mensal, a emissão de programas de rádio e de televisão, um projeto de solidariedade social, um grupo de fados de Coimbra, um centro de explicações para o ensino básico, secundário e superior, o acolhimento de estágios curriculares e pedagógicos diversos, as lojas Gaudeamus e os projetos de valorização e de preservação do património histórico regional são alguns exemplos. Deve ainda enfatizar-se a participação da AAUMa no primeiro conselho de leitores do Diário de Notícias da Madeira, no Conselho de Cultura da UMa e no Observatório do Emprego e Formação Profissional da UMa. É no último mandato de Luís Eduardo Nicolau que, por decisão dos estudantes presentes na assembleia geral de 4 de março de 2010, se decide laurear, com o título de associado honorário, D. António Carrilho, bispo da Diocese do Funchal, José Manuel Castanheira da Costa, então reitor, Jorge Carvalho, Marco Faria, Idalécio Antunes, Andreia Micaela Nascimento, Carlos Diogo Pereira e a Tuna Universitária da Madeira. Em outubro de 2012, João Francisco Baptista assume a presidência, formando equipa com Vitor Andrade, como presidente da mesa da Reunião Geral de Alunos, e com Nuno Rodrigues, como presidente do conselho fiscal; em outubro de 2014, é reeleito, tendo Ricardo Martins como presidente da mesa da Assembleia Geral de Alunos e Nuno Rodrigues como presidente do conselho fiscal. No decorrer dos seus mandatos, salientam-se a continuidade e o crescimento de alguns projetos já existentes, o início da Imprensa Académica, linha editorial da AAUMa, a criação de projetos de apoio social destinados aos estudantes da UMa (a bolsa de alimentação, a bolsa escolar e a bolsa LER), o apoio ao estudante, o ateliê de férias Doutorecos, a dinamização de projetos de interesse turístico e cultural e o reconhecimento, pela União Europeia, da AAUMa enquanto entidade de acolhimento e de envio de voluntários pelo Serviço Voluntário Europeu. A cultura, o desporto, o apoio ao estudante (presencial, telefónico e remoto), a tradição, a ciência, a investigação, a empregabilidade, a formação e a cidadania ativa e responsável voltam a ser as prioridades de uma estrutura que cresceu e que representa a UMa e todos os estudantes que nela são formados.     Andreia Micaela Nascimento (atualizado a 14.12.2016)

Educação História da Educação Sociedade e Comunicação Social

bazenga, gil

O escultor Gil Bazenga formou-se em Artes Plásticas/Escultura no Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira, tendo frequentado antes Arquitetura na Escola de Belas Artes do Porto. Após uma estadia em Moçambique nos anos 60 e 70, regressou ao Funchal onde seguiria a carreira docente na Escola Secundária Francisco Franco como professor de Artes Visuais, desenvolvendo uma pesquisa e prática artística centrada na técnica da cerâmica. Participou em diversas exposições coletivas na Madeira, Continente e Açores, tendo deixado também obra pública no Funchal quer da sua autoria quer, em alguns casos, em pareceria com outros artistas. Uma retrospetiva inaugurada na Casa da Cultura de Santana, em 2011, constituiu-se como a mais completa mostra da sua produção artística. Palavras-Chave: Bazenga, escultura, cerâmica, arte pública, ensino das artes visuais. Gil França Bazenga nasceu em 1933, no Funchal, e faleceu em 2013. Nos anos 50, frequentou o curso de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes do Porto e nas décs. de 60 e 70 viveu em Moçambique, onde foi docente e onde dinamizou várias atividades culturais, destacando-se o desempenho na coordenação do Auditório e Galeria de Arte da Cidade da Beira e do Centro de Cultura e Arte da Beira. Em finais dos anos 70 regressa ao Funchal, onde conclui, no Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira (ISAPM), o curso de Artes Plásticas, na sua variante de Escultura. Escultor de formação, Bazenga destacou-se também enquanto docente de Artes Visuais, tendo pertencido ao quadro de professores da Escola Secundária de Francisco Franco, no Funchal. Para além da sua atividade como docente, desenvolveu uma prática contínua especializada na área da cerâmica, explorando com rigor e criatividade diversas possibilidades técnicas desta linguagem. Neste contexto, foi um dos protagonistas da intensa movimentação cultural e artística ocorrida no Funchal nos anos 80, tendo participado em diversas exposições coletivas, das quais se destacam as mostras promovidas pelo ISAPM, a primeira das quais na própria galeria do ISAPM, em 1981; outra no Museu de Arte Sacra do Funchal, em 1983; e outras duas novamente na galeria do ISAPM, nos anos 1984 e 1989. Ainda em 1982, fez parte da Exposição de Artistas Madeirenses que teve lugar no Salão Nobre do Teatro Municipal Baltazar Dias; uma mostra de pintura, escultura e cerâmica onde Gil Bazenga partilhou o espaço com a pintora Alice Sousa e o escultor Franco Fernandes, colegas que o acompanharam ao longo da sua carreira, expondo em conjunto e realizando trabalhos em coautoria. São de salientar ainda outras coletivas desta década: a exposição na galeria da Secretaria Regional de Turismo e Cultura (SRTC), com Alice Sousa e Luís Amado, em 1985; a coletiva itinerante ISAPM/85 – 30 Anos do Ensino Superior Artístico na Madeira, do mesmo ano; a Exposição Colectiva de Artes Plásticas patente na Escola Secundária Francisco Franco; e a I Mostra da Circul’Arte – Associação de Artistas Plásticos da Madeira, integrada na Feira de Arte Marca Madeira 87, no Teatro Municipal Baltazar Dias. Fora da Região, Gil Bazenga mostrou o seu trabalho na coletiva 24 Artistas Madeirenses nos Açores, na cidade de Ponta Delgada, em 1983; na coletiva Panorâmica – Arte & Cultura, na Galeria do Casino Estoril, em 1985; e na exposição Olhares Atlânticos – Mostra de artes da Madeira, realizada na Biblioteca Nacional de Lisboa, em 1991. Para além da criação de objetos cerâmicos, quer numa versão mais experimental e escultórica, quer numa versão mais tradicional, de que são exemplos objetos como pratos ou potes, o escultor realizou também esculturas de parede e pequenos painéis cerâmicos. No que diz respeito a obras de maior envergadura, patentes em espaços públicos, destaca-se o painel cerâmico do Mercado da Penteada, no Funchal, realizado em coautoria com Celso Caires, em 1988. Este painel é composto por um conjunto de azulejos desenhados por Caires, acompanhados por um conjunto de peças quadrangulares em volume, texturizadas e sem figuração, da responsabilidade de Bazenga. Trata-se de uma composição dinâmica e ao mesmo tempo equilibrada, que 30 anos mais tarde se encontrava em bom estado de conservação. Outra peça de relevo, também criada em coautoria, desta vez com o escultor Franco Fernandes, é o painel de título Água Viva, realizado em 1993, que se encontra nas instalações do Clube Naval do Funchal. Neste caso, foi realizada uma composição à volta da representação do nu feminino de carácter mitológico, acompanhado por desenvolvimentos abstratizantes de rico colorido e inspiração orgânica, elementos característicos dos trabalhos do autor que assina a pintura deste painel (fig. 1). Podem ser encontradas outras intervenções do escultor em espaços visitáveis, nomeadamente no interior da Escola Secundária Francisco Franco, no Colégio de Santa Teresinha e no Hotel Éden Mar. Para espaços exteriores, Bazenga executou um painel para o antigo Complexo Balnear do Lido, o qual, após remodelação, foi retirado. Ainda nos anos 90, o autor participou em várias mostras no Funchal, expondo novamente com Alice Sousa, na Galeria da SRTC (1991); com Marcos Milewsky, no mesmo espaço (1995); na coletiva Marca Madeira/97; no Madeira Tecnopolo (1997); e na coletiva Na Torre do Tempo, na Galeria de Arte Francisco Franco (1999). Já entrado o novo século, voltou a expor com Alice Sousa numa mostra intitulada À Tarde, em Frente, na Galeria de Arte Francisco Franco (2002). Em 2012, foi organizada uma exposição retrospetiva intitulada Cerâmica. Magia do Fogo. Retrospetiva na Casa de Cultura de Santana. Nesta mostra, a única individual apurada por esta investigação, pôde ser vista a diversidade de experiências realizadas e os diferentes tipos de objetos criados por Gil Bazenga, destacando-se uma clara influência estética com raízes num modernismo de carácter orgânico e abstratizante, onde se salienta uma forte presença de um cromatismo brilhante e de fortes contrastes, compensado por algumas peças de pendor mais térreo e brutalista.   Carlos Valente (atualizado a 10.10.2016)

Artes e Design História da Arte História da Educação Personalidades

arte na educação

Em matéria de arte na educação, a RAM aproveitou a descontinuidade territorial, que a separa do continente português e a privou de usufruir de muitas valências, invertendo a seu favor o sabor da insularidade. Usufruiu do mar e do que, em matéria social, este podia oferecer, proporcionando uma estreita relação com outros povos que ali paravam. Falamos, e.g., de uma forte relação com a comunidade inglesa, que por lá se estabeleceu no séc. XIX e com individualidades de outras nacionalidades, como a alemã, a espanhola e a russa, que ao longo dos séculos se distinguiram na relação com os autóctones. Pelos registos apurados, podemos afirmar que, desde o início do séc. XIX, as artes fizeram regularmente parte da educação. Existem referências à aprendizagem da música, à prática do canto, às danças de salão, às récitas teatrais e às artes e ofícios, a par de outras atividades de cariz artístico, como os lavores e a aprendizagem das línguas. Fazendo um périplo pelos periódicos entre 1821 e 2015, é possível observar-se o lugar que as artes ocuparam em instituições de ensino regular, bem como confirmar a existência de aulas artísticas de cariz doméstico e até em instituições mais regulamentadas. Na Madeira, as escolas com opção de disciplinas de âmbito artístico fizeram parte da educação ao longo do séc. XIX. Quando, em 1835, se assistiu à implementação do ensino primário obrigatório, uma das consequências foi a criação de múltiplas escolas e colégios. Na Madeira, a rede pública de escolas deveria ser notoriamente insuficiente, visto que encontramos, ao longo de Oitocentos, diversas escolas em espaços domésticos ou sem designação oficial onde era possível as famílias optarem por uma ou mais atividades artísticas, como o ensino do canto, da guitarra, do piano ou da dança, a par do desenho. Além destas atividades, as escolas e os pequenos colégios permitiam igualmente a opção pelo ensino das línguas, nomeadamente a francesa e a italiana, justificando-se esta última, sobretudo, quando do bel canto se tratava. Estas disciplinas (artísticas e línguas) tinham normalmente um custo acrescido. Apesar do ensino feminino já existir no reinado de D. Maria I, foi com a reforma do ensino primário, em 1836, que foram implementadas as “escolas de meninas”. Na Madeira, também encontramos referências ao ensino feminino na imprensa, registando-se que as escolas ou colégios para meninas eram dirigidas por senhoras, como atesta o seguinte anúncio: “Colégio para educação de meninas, direção de Felisberta Augusta Teixeira” (com opção de lições de piano, dança e desenho com pagamento extra) (A Flor do Oceano, 12 set. 1839, 4). Neste contexto, é interessante constatar a presença contínua do ensino da dança, a par de disciplinas ligadas às línguas, à música e ao desenho. As aulas de artes não aconteciam apenas em escolas ou colégios de ensino primário. Ao longo de todo o séc. XIX, há registos de aulas particulares, organizadas nas casas dos professores ou mesmo dos alunos. Entre outros, recolhemos anúncios na imprensa local de aulas de dança ministradas por Eduardo Soares e Paulo Valentino d’Ornelas Costa; lições de música, rabeca, piano, violoncelo e violino dadas por Nuno Graceliano Lino; e de piano e canto pelo P.e João Aleixo de Freitas. Até ao último quartel do séc. XIX, os docentes eram essencialmente masculinos, começando as mulheres, nessa altura, a predominar no ensino das artes. Importante, já então, era a presença de professores de naturalidades diferentes da portuguesa, proprietários, e.g., da Eschola Collegial Inglesa, que tinha lições de música e do Collegio de Jane H. Manly Tello. Estes factos revelam bem, ao nível da educação, a influência da comunidade inglesa na Madeira oitocentista. Além do ensino artístico em contexto doméstico, também era possível desenvolver-se uma prática artística em contexto institucional, principalmente nas sociedades e clubes que proliferaram no séc. XIX, depois da revolução liberal. Neste âmbito, salienta-se o coro da Sociedade Philarmonica; a Academia Marcos Portugal, que proporcionava lições de solfejo para violino, violeta, violoncelo, rabecão grande e instrumentos de metal e palheta; e a Sociedade Recreio Musical, com aulas de dança dadas por Eduardo Soares, que acumulava com aulas que lecionava no Theatro D. Maria Pia. Como se depreende do anteriormente enunciado, a maior parte das instituições e aulas artísticas desenvolvia-se fora do domínio público, embora houvesse algumas exceções. O Liceu, e.g., apresenta-se como uma escola oficial genérica que incluía atividades de educação artística. Outro caso de atividades artísticas promovidas por uma instituição pública é o da escola municipal de D. Francisco Vila y Dalmau, onde era possível estudar canto e dança. Por fim, uma categoria que não deve ser esquecida: as aulas proporcionadas por professores e companhias que passavam pelo Funchal, como, e.g., as aulas de dança do Circo Equestre, em 1865. Era comum que os artistas que passavam pela Madeira para realizar concertos e espetáculos se disponibilizassem também para dar aulas particulares a quem estivesse interessado, situação que se manteve na primeira metade do séc. XX, como mostram os seguintes casos divulgados pela imprensa periódica: maestro Ricardo Nicosia Cortesi (piano); professor Cleto Zavala (lições de piano); cavalheiro inglês, muito competente para ensinar violino; professor D. Domingo Bosch (lições de piano). Na transição do séc. XIX para o XX, qualquer novo estabelecimento de ensino vocacionado para mulheres que fosse criado no Funchal teria mesmo de incluir, quase obrigatoriamente, a disciplina de piano, embora de forma opcional, pois era lecionada em regime de aulas individuais. No colégio para meninas de D. Christina Adelaide Gomes, e.g., o currículo era constituído pelas disciplinas de inglês, francês, português, piano, machete, canto, viola e dança, em 1895. Em 1909, o colégio para raparigas João de Deus informava que as suas alunas podiam ter “aulas especiais de canto, piano e dança” com a professora Cora Cunha, discípula de Maria Capitolina Crawford do Nascimento Figueira (Almanach de Lembranças Madeirense, 1909, 288-289). Poucos anos mais tarde, por volta de 1912, foi criada, no convento de S.ta Clara, a Escola de Utilidades e Belas Artes, que se destinava a raparigas e que incluía no seu currículo também as áreas de música e de dança, assim como o ensino de piano em aulas individuais, de forma opcional.   Mª Adelaide Meneses e alunas. Photographia Vicentes. Fonte: Arquivo Sílvio Fernandes   Este aumento do papel da mulher na educação artística contribuiu, provavelmente, para a sua emancipação profissional através da música. Enquanto noutras áreas era considerado pouco apropriado que a mulher de classe média assumisse uma profissão, no caso da música, a mulher começou regularmente a aparecer como professora, sobretudo nas áreas do canto, do piano e da dança. No período entre 1812 e 1880 surgem poucas mulheres a lecionar, mas a partir de 1870 inverte-se esta tendência, aparecendo frequentemente mulheres a lecionar música como atividade profissional remunerada, desaparecendo, e.g., quase por completo, os professores de piano masculinos. No séc. XX, a par das reformas a no ensino oficial das artes, continuaram a ser criadas diversas escolas particulares de cariz doméstico que ofereciam no seu currículo a opção de atividades artísticas. Temos, assim, o Collegio de Santa Clara (piano e canto); o Collegio Maria José Ferreira (classe de dança, francês, inglês e música); o Colégio do Lisbonense (classes de instrução primária, português, francês, inglês, piano, dança e lavores); e o Colégio Madeira (classes de dança por Eugénia Rêgo). É igualmente relevante encontrarem-se anúncios com a redação que se segue, sem nomear as professoras: “Uma senhora devidamente habilitada dá lições de piano e francês em sua casa ou na das alunas, por preços moderados” (DNM, 9 out. 1911, 1); “Senhora competentemente habilitada dá lições de piano e bandolim” (DNM, 26 mar. 1915, 1); ou ainda, o pormenor, “Classe de dança – Para principiantes e praticantes” (DNM, 6 out. 1911, 2); “Chamamos a atenção para o anúncio que hoje publicamos sob a epígrafe, ‘Classes de piano’, recomendando a professora, que tem toda a competência requerida” (DNM, 19 ago. 1917, 1). No ensino específico e particular, nomeadamente em contexto doméstico, encontramos referências a lições de música dadas por Eduardo Antonino Pestana; Isabel Pamplona Spínola; Nuno Graceliano Lino; Artur Maria Lopes; Alfredo A. Graça, com o pormenor de se referenciar o método (piano e rabeca pelo curso do Real Conservatório de Lisboa, e bandolim pelo método de Christofaro y Gautiero); Angelique de Beer Lomelino; Gabriella Campos (lições de piano e solfejo pelo método do Conservatório de Lisboa); Maria Eugénia de Afonseca Acciaiolly Rêgo Pereira (ensinava coreografia erudita e folclórica a membros das classes alta e média madeirense num salão de dança); M. Graça Rego (ex-aluna dos professores Cleto Zavala, em piano e Beer Lomelino, em canto, dava lições de piano e canto); Maria Izabel Ferraz (aulas de dança). Denota-se uma preocupação com a metodologia aplicada e os fins a que se destinava. Leia-se “Lições de música. Curso geral completo pelos métodos mais modernos adotados no Conservatório de Lisboa” (DNM, 16 maio 1917, 1); “Professor Vasco de Oliveira (curso de violino seguindo todo o programa do conservatório (escola de Leonard)” (DNM, 4 abr. 1919, 1). Mantêm-se as escolas dirigidas por estrangeiros com atividades artísticas e as sociedades e clubes com atividades de educação artística: o artigo “Academia Dançante” referencia já o Atheneu Commercial com a professora Mathilde Xavier Ferraz, que dá lições de dança; o Grupo Recreativo da Mocidade Portuguesa proporciona aulas de música e classes de dança acompanhadas pelo pianista Leandro S. C. de Freitas. No contexto das escolas oficiais de ensino genérico, existem igualmente diversas menções ao ensino de disciplinas artísticas: no Instituto de Ensino Secundário e Comercial, referem-se aulas de música, em que os métodos adotados são os mesmos do Conservatório de Lisboa e um curso de canto regido por uma distinta professora, que dava lições individuais e em classe; no Liceu Jaime Moniz, o professor de canto coral era Júlio Câmara, contanto a tuna académica e o orfeão com a direção de Gustavo Coelho; na Escola de Utilidades e Belas Artes (estabelecimento de ensino feminino), era possível aprender dança, piano e canto. Em 1943 ocorreu um dos principais acontecimentos no campo da educação artística na Madeira, uma iniciativa que, em 2015, continua a dar frutos. Nesse ano, Luiz Peter Clode e seu irmão William Clode fundaram a Sociedade de Concertos da Madeira, que reunia um escola de intelectuais e artistas portugueses e estrangeiros, naturais ou residentes na Ilha, com a finalidade de contribuir para o crescimento de artistas e público especializado. No seguimento da criação dessa instituição, a prática das expressões artísticas cresceu substancialmente e, a partir de 1946, altura em que foi fundada, no âmbito da mesma, a Academia de Música da Madeira, que mais tarde conseguiu o paralelismo pedagógico com o Conservatório de Música de Lisboa, contribuiu para a creditação de professores e alunos madeirenses. Este estabelecimento foi sucessivamente restruturado após o 25 de Abril, vindo a integrar o ensino profissional das artes na viragem do século, alterando a sua designação, em 2000, para Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira e, em 2006, para Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira Eng. Luiz Peter Clode, em homenagem ao seu mentor. Os cenários dos sécs. XX e XXI são completamente distintos e acompanham o natural desenvolvimento do ensino artístico na Região, tendo contribuído fortemente para o efeito o trabalho realizado, ao longo de 35 anos (1980-2015), pela Direção de Serviços do Ensino Artístico e Multimédia (antigo Gabinete Coordenador de Educação Artística). A par do trabalho de campo desenvolvido em toda a Região, motivou o surgimento de associações, filarmónicas e grupos de iniciativa privada que, em conjunto, contribuíram para os resultados atingidos: o ensino artístico integra, em 2015, a quase totalidade da rede do pré-escolar como atividade obrigatória e o ensino técnico profissional e especializado abrange já todas as áreas da expressão artística: a dança, a música, o teatro e variantes.   Paulo Esteireiro Teresa Norton Dias (atualizado a 26.09.2016)

Artes e Design Educação História da Educação