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a paixão do povo e a páscoa porta a porta

Durante o recato que caracteriza a época pascal existe espaço para as brincadeiras infantis e juvenis. Mas estes jogos são usados por todos, desempenhando talvez a função de distracção num período usado pelos Cristãos para a reflexão. Talvez se possa encontrar nesta prática semelhanças com práticas contemporâneas visíveis noutras latitudes, onde o desporto e o lazer surgem como uma forma de alterar as rotinas concentradas num determinado período. Lembramos a este propósito o que ocorre em Inglaterra com o designado Boxing Day. Jogos Tradicionais Esta é umas das recriações da tradição realizada pela Casa do Povo da Camacha, que se realiza na altura da Quaresma. Neste período, nesta vila serrana da Madeira não se ouviam tocar os instrumentos musicais, como noutras épocas do ano. O recato em respeito pelo sofrimento do Salvador era regra, pelo que nos dias de descanso o tempo era ocupado com diversos jogos, casos do “jogo do pião”, jogo do batoque (consiste derrubar uma rolha de cortiça colocada no chão, atirando moedas) ou o jogo do burro (placa no chão numerada à qual os participantes atiram rodelas de borracha, ganhando quem atingir maior numero de pontos) ou o “jogo das pedrinhas” e “saltar à corda”. Outros jogos populares são as escondidas, a bilhardeira ou o Jogo do lenço. Os Acólitos e o Espírito Santo Já no elucidário faz-se referência às comissões que constituídas com a coordenação do pároco para levar a efeito a celebração do Espírito Santo. Ainda segundo o Elucidário Madeirense, esta comissão é reconhecida “pelas capas encarnadas dos seus membros, um dos quais leva a coroa, outro o ceptro, outro a bandeira e um quarto o pendão”. Na Camacha tal comissão está a cargo do Grupo de Acólito da Paróquia da Camacha, que se fazem acompanhar por saloias e instrumentistas. Na Camacha as visitas ocorrem durante três dias, em que o ponto mais alto ocorre no Domingo com as visitas aos estabelecimentos comerciais, seguindo-se o cortejo do pão, realizado em benefício dos mais necessitados da freguesia. Banda Paroquial de São Lourenço. Fonte: www.paroquiadacamacha.com Banda Paroquial de São Lourenço Tem realizado um concerto, por altura das Páscoa. Fundada em 1973, pelo pároco António Joaquim Figueira Pestana Martinho. Ao seu lado esteve o primeiro ensaiador e maestro, o professor Raul Gomes Serrão, seguido pelo maestro José da Costa Miranda. Por ter sido fundada sob a égide da Fábrica da Igreja Paroquial da Camacha a banda recebeu o nome do padroeiro da freguesia (São Lourenço). Registe ainda o facto de ter sido das primeiras bandas em solo português a adoptar elementos do sexo feminino na sua formação. O estandarte ostenta as cores vermelhas (o sangue derramado por São Lourenço) e o branco (evocativo da sua santidade) e no centro a lira musical bordada a ouro, ladeada pela grelha e pela palma. Senhor dos Passos e procissão do Enterro do Senhor Este é o centro das cerimónias religiosas dedicadas à Páscoa. As cerimónias começam na Quinta-feira com o acto do Lava-Pés. Na Sexta, realiza-se a Procissão do Enterro do Senhor, que percorre o Largo da Achada, no centro da freguesia, procissão recuperada pelo actual pároco depois de uma interrupção de quarenta anos. No Sábado realiza-se a Vigília Pascal “com a bênção do círio Pascal e do lume novo”. Finalmente, no Domingo, é tempo dos cristãos celebrarem Cristo Ressuscitado, realizando a eucaristia pela manhã, seguida da Procissão, novamente em redor da Achada. Gastronomia típica da Páscoa A gastronomia da Páscoa na Madeira apresenta características comuns a todas as freguesias. Entre os pratos tidos como mais representativos desta época conta-se o bacalhau assado, o filete de espada e de atum e o atum de escabeche, acompanhado de salada, inhame, feijão e batatas. No Domingo de Páscoa volta-se a comer carne, sendo um dos pratos o borrego assado. Na doçaria, comprovando a riqueza da doçaria madeirense, relacionado com a outrora dinâmica açucareira na ilha, de que damos alguns exemplos como os torrões de açucar, bolos e doces de amêndoas. Da terra o Homem retira o tremoço, apreciado ao longo do ano a acompanhar uma cerveja ou um copo de “vinho seco”, mas muito associado a esta época.     textos: César Rodrigues fotos: Rui A. Camacho  

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natal

Na Madeira, o Natal é a quadra do ano mais festejada pela grande maioria da população. É a principal festa da tradição madeirense e é celebrada desde o início do povoamento. Na verdade, os povoadores portugueses, vindos de várias zonas do país, transportaram consigo as tradições e costumes das suas terras. Estes povoadores, junto com outras gentes, que afluíram à Ilha, de nacionalidades e origens diferentes, contribuíram para a formação da cultura e da sociedade madeirense. O modo de viver da população resultou, assim, de um processo de assimilação e de fusão de vários usos e costumes, embora tivessem predominado as raízes culturais e as crenças cristãs dos antepassados lusos. Também a celebração e a vivência do Natal foi herdada dos povoadores portugueses, à qual o povo madeirense associou um rico folclore cristão e elementos profanos. Segundo a liturgia da Igreja, o Natal não traduz apenas o nascimento de Jesus, estabelecido na data de 25 de dezembro, no séc. IV, pelo Papa Júlio I. O Natal constitui um ciclo que vai de 27 de novembro a 17 de fevereiro e compreende o conjunto das celebrações mais significativas, referentes à longa expetativa do mundo antigo pela vinda do Messias e também da sua infância. Assim, esta longa expetativa foi fixada pela Igreja no chamado tempo do Advento, que abrange as quatro semanas anteriores ao dia 25 de dezembro (28 dias), ou seja, desde os últimos 4 dias de novembro aos primeiros 24 dias de dezembro. O Advento como esperança do povo judeu pela vinda do Messias desapareceu da memória do povo, sendo substituído, na liturgia popular, por outro Advento, que começa a 16 de dezembro e termina a 24 desse mês. Durante esse tempo, celebram-se nas paróquias da Madeira nove missas em honra da Virgem Maria, denominadas popularmente de Missas do Parto. Nas manifestações litúrgicas em que a Igreja recorda a infância de Jesus, incluem-se a circuncisão, a 1 de janeiro; a epifania, a 6 de janeiro; e a fuga para o Egito, a 17 de fevereiro. Destas comemorações da Igreja, apenas transitaram para a liturgia popular as celebrações natalícias do tempo do Advento, de 16 a 24 de dezembro, e a festa dos Reis Magos, a 6 de janeiro. Na etnografia madeirense, o ciclo do Natal é popularmente conhecido e designado por Festa. É a Festa por excelência, que só termina no dia de Reis, ou, em algumas localidades da Ilha, no dia de S.to Amaro, depois de desmontados os presépios tradicionais e demais decorações da época. Os festejos natalícios no arquipélago não se limitam ao dia do nascimento do Menino Jesus e começam a ser preparados com grande antecedência. Os madeirenses preparam-se espiritualmente, cumprem a liturgia da Igreja, exteriorizando a sua fé nas cerimónias sagradas, mas também conjugam as práticas religiosas com as manifestações profanas, interligando-as de forma natural e espontânea. Os preparativos para a maior efeméride do calendário festivo islenho dividem-se em várias fases e envolvem todo o núcleo familiar. Estes momentos de preparação consistem em arranjar a casa, tratar da confeção de diversas iguarias, doces e licores típicos da época, matar o porco, armar o presépio, comprar presentes e organizar convívios familiares ou sociais. Noutros tempos, a Festa era aguardada com muito entusiamo, especialmente pelas classes mais desfavorecidas, que, apesar dos seus parcos recursos económicos e financeiros, conseguiam ter no Natal uma mesa farta, novas peças de vestuário, calçado e brinquedos para as crianças. A Festa era preparada ao longo de todo o ano: guardava-se dinheiro no mealheiro a fim de comprar algo melhor para a quadra natalícia, destinavam-se os melhores produtos, sobretudo no meio rural, para o Natal; reservava-se o trigo necessário para amassar o pão no Natal, guardava-se um quarto do melhor vinho para os brindes daqueles dias; engordava-se o porco para matar nessa altura e escolhia-se os maiores galos e galinhas. As crianças ansiavam pela Festa, por toda a envolvência da época, desde a armação do presépio aos doces e iguarias típicas, à expetativa das prendas, das roupas, dos sapatos e dos brinquedos novos, às férias escolares e aos convívios com familiares e amigos. Os adultos também esperavam o Natal de um modo especial, pois tinham um período de descanso mais prolongado, ao qual associavam os convívios e as festas litúrgicas nos templos. As festividades natalícias na Madeira foram-se adaptando às transformações sociais, económicas e religiosas que ocorreram na Ilha. No início do séc. XXI, com o aumento do poder de compra, a melhoria das condições de vida e consequentes alterações dos hábitos de consumo, algumas tradições natalícias foram gradualmente cedendo lugar a outras e muitas caíram em desuso. Os madeirenses já não esperam um ano para comer carne de porco, galinha ou outras carnes, ou para confecionar e comer os doces tradicionais, porque tudo se encontra à venda nos estabelecimentos comerciais. Por sua vez, o termo “Festa”, também comum no Minho, foi gradualmente a ser substituído pela palavra “Natal”, embora ainda prevaleça no espaço insular, sobretudo nos meios rurais e entre os mais idosos. No entanto, apesar das diferentes transformações ocorridas na sociedade, o Natal na Madeira é a quadra do ano mais celebrada pela população, quer a nível social e cultural, quer a nível religioso, mantendo muitas das suas tradições.   Os preparativos para o Natal As Missas do Parto Os festejos do Natal madeirense iniciam-se com as novenas do Menino Jesus, designadas localmente de Missas do Parto e realizadas em quase todas as paróquias do arquipélago, uma tradição introduzida pelos padres franciscanos aquando da sua ação pastoral nos primórdios do povoamento das ilhas. Este tempo de preparação é também uma devoção mariana, que comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou N.ª Sr.ª do Ó, popularmente designada Virgem do Parto. A 17 de dezembro, a Igreja celebra a festa de N.ª Sr.ª do Ó, que passou a ser assim denominada pelo povo por se proferirem nas chamadas vésperas do Ofício Divino, de 17 a 24 de dezembro, sete antífonas que começam pela interjeição exclamativa “Ó”, como suspiro pela vinda do Salvador do mundo: “O Sapientia, quae ex ore Altissimi prodisti”, “O Adonai et Dux domus Israel”, “O Radix Jesse, qui stas in signum populorum”, “O Clavis David”, “O Oriens, splendor lucis aeternae”, “O Rex gentium”, “O Emmanuel, Rex et Legifer noster”. De acordo com o folclorista Eduardo Antonino Pestana (1891-1963), o povo madeirense interpretou que tal período celebrava também a gravidez da Virgem Maria, sugerindo que o formato da letra “o” lembra os últimos tempos da gravidez da mulher. O antigo culto do Menino foi transferido para sua Mãe, passando a chamar-se Missas do Parto às novenas do Menino Jesus ou novenas do Natal. Assim, desde a véspera da festa da Senhora do Ó (16 de dezembro) até a véspera do Natal (24 de dezembro), celebram-se nove missas em honra da Virgem, sendo que cada missa corresponde a um mês de gravidez e simbolizam o parto divino que Nossa Senhora terá. As Missas do Parto eram celebradas de madrugada, entre as 05.00 h e as 07.00 h, sobretudo nas igrejas das zonas rurais, por ser uma hora conveniente para os lavradores, que começavam a trabalhar antes do nascer do sol. No início do séc. XXI, após um período de crescente desmobilização, foi recuperada a tradição de celebrar a missa na alvorada, pelas 06.00 h, correspondendo ao simbolismo de que o Menino Jesus é a luz que nasce para o mundo inteiro. Apesar da hora matutina, estas têm muita participação. A ida para a igreja era muito animada nas diferentes localidades, em grupos formados por familiares, amigos e vizinhos, sobretudo quando a utilização do automóvel não era frequente. Os fiéis seguiam juntos, a cantar, ao som de diversos instrumentos musicais, entre os quais, gaitas, flautas, rabecas, machetes, pandeiros e castanholas, proporcionando-se momentos de grande folia e convívio. Por vezes, também ressoam bombas e foguetes, que começavam nas Missas do Parto e só terminavam quando findava a quadra festiva, depois do Ano Novo. As igrejas enchem-se de pessoas que, durante a celebração religiosa, vão entoando cânticos próprios. O repertório de músicas e cantigas desta tradição é muito vasto, remontando alguns desses versos aos tempos do povoamento. Terminada a missa, a comunidade reúne-se nos adros das igrejas, prolongando a celebração religiosa numa dimensão de carácter pagão e lúdico, o que sublinha a ligação entre o religioso e o profano, com um convívio onde não faltam bebidas quentes, licores, broas e outros doces e petiscos tradicionais desta quadra. A música anima também os presentes, quer com os cantares de cariz popular, ao som de instrumentos regionais, quer ainda, em alguns locais, com a presença de bandas de música ou filarmónicas. Fig. 1 Ritual da matança do porco: ChamuscarFoto: acervo e autoria de M. Nicolau A matança do porco Outra tradição da Festa é a matança do porco (também conhecida na Ilha como a função do porco), essencial para os pratos típicos do Natal. Esta função acontece normalmente entre 8 de dezembro e o início das Missas do Parto, sobretudo no meio rural. No dia marcado para a matança do porco, reúnem-se familiares e amigos para assistir ao sacrifício do animal, que foi engordado nos meses anteriores. A ocasião proporciona momentos de convívio, com partilha de petiscos e bebidas. O ritual da matança é realizado por vários homens: uns tiram o porco do chiqueiro, amarram-no, deitam-no no chão e seguram-no com força para outro homem, denominado “marchante”, desferir o golpe certeiro, com rapidez. O sangue do porco é aparado para um alguidar, porque vai servir de petisco, depois de cozido e temperado com alho, pimenta e salsa, e misturado com cebola picada. O animal é lavado, pendurado e cortado com um serrote para se lhe limpar as vísceras, sendo-lhe retirados os intestinos, o pâncreas, o fígado e outros órgãos. O dia seguinte à morte do porco é reservado para cortar (ou “picar” como é popularmente designada esta operação) e desmanchar o suíno, que é cortado em diversas porções. As salgadeiras foram preparadas para receber a carne e a gordura, que servirá para conservá-la, a fim de poder ser consumida nos meses seguintes. Todas as partes do animal são aproveitadas: a febra destina-se ao consumo durante a quadra natalícia; a barriga é utilizada na confeção da tradicional carne de vinho e alhos; com uma parte da carne gorda fazem-se torresmos e a outra parte é para fazer banha, utilizada para fins culinários durante o ano. O debulho (intestino) é escaldado e salgado para ser comido em sopas; a cabeça é salgada e fumada, para ser consumida mais tarde, com couves e semilhas. Reserva-se ainda uma parte da carne para outras épocas do ano, sendo esta salgada. Também era hábito reservar uma boa porção para oferecer aos vizinhos, amigos e familiares que não podiam matar ou ainda não o tinham feito e que, por sua vez, retribuíam com a carne do seu porco. Oferecia-se ainda uma peça da melhor carne ao padre da paróquia e a alguma figura ilustre, como o médico da localidade. Nesse dia também havia convívios de amigos, onde não faltavam vinhos, doces, torresmos, carne de porco assado na panela e pão, entre músicas e cantigas, muitas vezes até altas horas da noite. Dado que a alimentação das classes mais desfavorecidas consistia praticamente no consumo dos produtos da terra, principalmente o inhame, e da fruta que não estava em condições de ser vendida no mercado, o ritual da matança do porco, criado em casa, era um dos momentos altos da época natalícia. Os arranjos da casa Nesta quadra, é costume efetuarem-se grandes limpezas nos lares da Ilha, preparando a habitação para receber as visitas durante os dias da Festa. Outrora, as tradicionais limpezas nas residências consistiam em pintar as paredes, as portas e as janelas, lavar as vidraças, os pavimentos e a louça guardada nos armários. Todos os cantos das casas eram limpos, incluindo a mobília. No mês de novembro, aproveitava-se o chamado verão de S. Martinho para lavar e passar a ferro as colchas, as toalhas e as rendas que estavam guardadas, para serem usadas na Festa. Depois de feitas as limpezas, arrumações e eventuais reformas nas residências, começava a azáfama da confeção dos licores e doces, das compras e das decorações natalícias, com flores naturais e artificiais e outros objetos típicos da quadra. As mulheres juntavam-se ao redor de um alguidar para amassar grandes quantidades dos típicos bolos de mel, broas de mel, broas de coco, rosquilhas e outras variedades de doces. Os bolos de mel e as broas eram cozidos no forno a lenha, sendo também frequente usarem-se os fornos das padarias, sendo a data previamente marcada no estabelecimento; ali se reuniam várias mulheres para cozerem as respetivas amassaduras, em alegres convívios, enquanto aguardavam pela sua fornada. Nas vésperas do Natal, faziam-se os licores caseiros de vários sabores, sendo os mais apreciados os licores de tangerina, de anis, de caramelo e o tim-tam-tum. Fig 2. Pão caseiro cozido em forno a lenhaFoto: acervo e autoria de M. Nicolau. MACHICO - 1985 Na véspera da Festa, amassava-se e cozia-se o pão. O trigo, lançado à terra em fins de janeiro, depois de ceifado, fora reservado numa caixa para ser moído e amassado naqueles dias festivos. No início do mês de dezembro, era moído, para fabricar o pão caseiro e os brindeiros (pão mais pequeno feito com o resto da massa) para as crianças. A 24 de dezembro, antes do raiar da aurora, a mulher do lavrador levantava-se para amassar e cozer o pão no forno a lenha. O cheiro a pão espalhava-se pela casa, enquanto os filhos iam acordando e chegavam à cozinha à espera para comer o pão fresco. Nestes dias festivos, nas cidades, sobretudo no Funchal, as ruas ficam mais movimentadas, enchem-se de cor e de luz, e o comércio ganha uma nova dinâmica. As transações comerciais aumentam consideravelmente, desde as compras de presentes para oferecer no Natal à aquisição de produtos alimentares, nomeadamente os ingredientes necessários para a confeção do bolo de mel, das broas e de outros doces; os condimentos para temperar a carne de vinho e alhos; as cebolinhas e outras verduras para fazer as conservas em vinagre; o cacau; o queijo; as azeitonas e outras iguarias; sem esquecer as bebidas espirituosas, entre as quais, a aguardente, a genebra e o vinho. Adquirem-se hortaliças frescas e frutas, onde não faltam as laranjas, as tangerinas, as peras, os peros, as maçãs, as goiabas e o ananás. Compram-se ainda as verduras, para as decorações do presépio e outros ornamentos natalícios, os galhos verdes e as flores, entre os quais, o alegra campo (Semele androgyna), o azevinho (Ilex aquifolium), a cabrinha (Davallia canariensis), os pinheirinhos, os galhos de musgo, os sapatinhos (Paphiopedilum insigne) e os junquilhos (Freesia x hybrida).   O presépio (lapinha) e outras ornamentações natalícias A tradição de armar o presépio chegou à Madeira através dos colonos e povoadores oriundos de Portugal continental, entre os quais os franciscanos, que foram os primeiros a exercer atividades pastorais e funções eclesiásticas na Ilha, influenciando a vida religiosa local. Fig 3. Lapinha tradicional (escadinha)Foto: coleção particular da autora O primeiro presépio ao vivo terá sido representado por S. Francisco de Assis, em 1223, em Greccio, no Vale de Rieti, em Itália, para melhor explicar aos camponeses a história do nascimento do Menino Jesus. S. Francisco de Assis reuniu frades e habitantes locais, em torno da imagem do Menino, reclinado na manjedoura, dentro de uma gruta, interpretando o nascimento do Cristo Salvador. Os Franciscanos levaram esta ideia de representação do Nascimento por todo o mundo, criando figuras em barro e outros materiais. Este tipo de figuração começou então a chamar-se presépio, termo que deriva do termo latino “praesepium” e significa manjedoura, curral ou estábulo, ou seja, um lugar onde se recolhe o gado. O culto do Menino Jesus e a liturgia do presépio generalizou-se nas tradições da Igreja e também pelas casas reais e da nobreza, dando origem a presépios públicos, em igrejas e nas casas de família, com imagens de madeira, barro ou plástico, em tamanhos diversos e segundo o gosto e as posses da comunidade eclesial ou familiar. No arquipélago madeirense, o presépio é também chamado lapinha. De acordo com os autores do Elucidário Madeirense, o termo “lapinha” deverá ser o diminutivo de “lapa”, que significa gruta ou furna, assemelhando-se ao local de nascimento do Menino Jesus (SILVA e MENESES, 1998, II, 219). A lapinha tradicional pode ser representada de duas formas características, denominadas, no meio insular, de escadinha e de rochinha. Fig 4. Lapinha tradicional (escadinha)Foto: acervo e autoria de M. Nicolau Na variante de escadinha, a lapinha é armada sobre uma mesa ou cómoda. O móvel é coberto com uma colcha vermelha e, sobre esta, é colocada uma toalha de linho branco, em renda ou bordada. No centro do móvel, sobre a toalha, fica a escadinha de três degraus, em forma de pirâmide, com poucos centímetros de altura, forrada a papel de fantasia de cor branca. Os degraus são ornamentados com vários adereços. No topo da escada surge a figura do Menino Jesus, de pé, de coroa na cabeça, ostentando um rico vestido branco com o típico bordado Madeira, com a escultura emoldurada por um arco de flores de papel. Em cada lado da imagem ficam colocadas duas jarras com flores, geralmente junquilhos ou sapatinhos. Nos outros degraus da escada e em torno desta, ficam dispostos alguns elementos figurativos, denominados pastores, alternados com fruta da época (laranjas, tangerinas, peros, anonas, castanhas ainda nos ouriços, e outros frutos). A lapinha é também enfeitada com verduras, designadas popularmente de ensaião (Ænium arboreum), cabrinhas e searinhas. O ensaião e as cabrinhas são colhidos nas serras madeirenses; a primeira planta, de folhas carnudas, vive agarrada às paredes rochosas mais expostas ao sol, e as cabrinhas são fetos que nascem nas fendas dos muros rochosos. Já as searinhas são obtidas colocando de molho gramíneas ou leguminosas (trigo, lentilha, tremoço ou alpista), que grelam; as searas são colocadas de molho aquando da primeira Missa do Parto e, quando começam a germinar, são plantadas em vasinhos, em pires ou outros recipientes, com uma pequena porção de terra. Por este processo obtém-se as típicas searinhas de folhas verdes que adornam a lapinha madeirense. Para complementar a ornamentação da lapinha, é colocado um brindeiro e uma lamparina de azeite. A parede também é enfeitada, com ramos verdes de alegra-campo, dispostos em arco, que envolvem todo o conjunto. Fig 5. Presépio-rochinha (pormenor da gruta)Foto: acervo e autoria de M. Nicolau. MONTE - FUNCHAL - 16-12-2004 A rochinha, a outra variante da lapinha ou presépio, pode ter várias dimensões, dependendo do espaço disponível e da criatividade de cada um. Pode ser armada em cima de uma mesa ou de outro móvel, ou ocupar uma divisão inteira, ou um canto da habitação. A rochinha é feita com papel pardo, pintado com viochene, para lhe dar uma cor acastanhada, sobre o qual são aplicados pós de mica para lhe dar cores e brilhos. O papel pintado é moldado de modo a imitar montanhas, vales, socalcos, encostas e ribeiras, onde não pode faltar uma gruta, tendo por suporte caixas, caixotes e estrados de madeira. Outrora, eram muito utilizadas socas de canavieira para moldar o papel das rochinhas mais pequenas, que se colocavam sobre mesas, arcas ou cómodas. Armada a rochinha, colocam-se as figuras de presépio, que representam cenas do nascimento. Os elementos originais do presépio incluem as figuras do Menino Jesus deitado na manjedoura, de Maria, de José e do anjo que anunciou o acontecimento. A estes juntaram-se as figuras da vaca e do burro, dos três reis magos que chegaram a Belém levando presentes, e a estrela que os guiou até à gruta. Este conjunto constitui o presépio clássico. Nos presépios-rochinha mais elaborados, é recriada a paisagem da Ilha, surgindo figuras feitas em barro que recebem o nome coletivo de pastores nas suas lides quotidianas ou em ambiente festivo, os camponeses com os seus rebanhos, e outros animais; representações do arraial madeirense, com os mastros, as bandeiras e a banda de música à volta do coreto, as espetadas, o fabrico do pão de casa, a matança do porco e outras tradições madeirenses. Aparecem casas e igrejas distribuídas pelas encostas, e há quem construa pontes, caminhos, fontes, poços, ribeiras, com algodão a invocar o curso da água e lagos com patos de plástico, entre outros elementos. A rochinha é também enfeitada com verduras e flores (alegra-campo, azevinho, ensaião, sapatinhos, junquilhos, cabrinhas e searinhas) e com frutos da época. Quer seja elaborada com simplicidade ou maior complexidade, a originalidade da lapinha madeirense traduz a alma de um povo crente, que tenta representar os seus costumes, o seu quotidiano, o seu meio envolvente e a sua vivência social e religiosa, não se limitando a apresentar um simples presépio clássico. Inicialmente, a lapinha era armada nas vésperas do dia de Natal; mais tarde, contudo, os presépios tradicionais madeirenses começam a ser construídos com mais antecedência, normalmente no dia de N.ª Sr.ª da Conceição, a 8 de dezembro, ou no dia da primeira Missa do Parto. Além do presépio, os madeirenses enfeitam as suas casas com verduras, flores e ramagens, onde não falta o pinheirinho de Natal, ornamentado com luzes ou gambiarras, bolas, sinos, anjos, bonecos e outros adereços, embora este hábito seja um costume posterior, que teve origem nos turistas e forasteiros que aportaram na Ilha, levando novos hábitos e enriquecendo os costumes seculares locais. Julga-se que a primeira árvore de Natal da Madeira tenha sido feita por membros da comitiva da arquiduquesa Carlota da Bélgica, mulher do Imperador Maximiliano do México, que visitou a Ilha em 1859-1860. Um pouco por toda a casa, enfeitam-se as jarras e fazem-se arranjos com os aromáticos junquilhos, que deixam no ar um cheiro adocicado, muito característico, com os tradicionais sapatinhos, que também podem ser deixados nos vasos, ou ainda com ramos de perinhos (Pyracantha angustifolia), um arbusto com frutos de cor alaranjada, e galhos de azevinho, de cor verde-escura em contraste com as bagas vermelhas, que conferem às casas um aroma característico da quadra. Posteriormente, muitos madeirenses foram incluindo nas suas decorações natalícias plantas como os safaris, as próteas e as manhãs-de-Páscoa.   O Natal na cidade Na quadra mais aguardada do ano, os espaços públicos de todos os municípios da Região são arranjados para o Natal, enchendo-se de luz, cor e elementos decorativos, que incluem presépios de grandes dimensões e outras representações religiosas e pagãs. O Funchal apresenta diversos ornamentos e iluminações em quase todas as artérias, que embelezam a cidade. No mês de novembro, ou até antes, os estabelecimentos comerciais começam a expor os produtos próprios da estação. O ambiente festivo da quadra natalícia atrai mais gente à cidade cosmopolita, e as ruas ganham uma nova dinâmica, com diversos polos de atração na urbe. Turistas idos de barco ou de avião, nativos da Ilha, visitantes e residentes circulam pela cidade apreciando as decorações da época. As iluminações percorrem as principais artérias da cidade e são ligadas, habitualmente, a 8 de dezembro, permanecendo até 6 de janeiro. Fig 6. Pormenor de um presépio com as figuras dos três Reis MagosFoto: acervo e autoria de M. Nicolau PRESEPIO NATAL- LARGO RESTAURAÇÃO - FUNCHAL - 23-12-2004 Na déc. de 80 do séc. XX, começou a construir-se no centro da cidade, por iniciativa de Maria Augusta Nóbrega (1929-2007), uma aldeia etnográfica, com o objetivo de recriar, dentro da cidade, os hábitos, as tradições e o modo de viver dos madeirenses em tempos mais recuados. A aldeia, que recebe anualmente milhares de turistas e residentes, apresenta barracas para venda de licores caseiros e várias casinhas que dão a conhecer o artesanato tradicional, como o brinquinho (instrumento musical típico), as botas de vilão e os barretes de orelhas. No entanto, a principal atração é o presépio, que representa a orografia madeirense, com as suas montanhas; poios, com muralhas de pedra, e plantações de pequenas alfaces e couves; cursos de água com as suas nascentes; levadas e veredas, ribeiras e alguma verdura típica da Ilha. Surgem figuradas cenas do quotidiano e das tradições populares: a labuta dos lavradores; o porco da Festa; as zonas altas da Madeira, com as suas casas brancas e janelas verdes, em redor da igreja paroquial ou viradas ao mar; a banda filarmónica, o grupo de folclore e as procissões religiosas, entre outras.   Das vésperas ao dia de Festa Antes da construção do Mercado dos Lavradores, o Funchal conheceu outras zonas de venda de bens alimentares, nomeadamente o Mercado D. Pedro V (aberto ao público em 1880 para alojar a venda de frutas e hortaliças), situado na R. do Mercado, contigua à R. da Praia. Nas imediações deste antigo mercado era grande a azáfama no dia 24 de dezembro, véspera de Festa, logo após a última Missa do Parto. Grande parte da população funchalense deslocava-se ao mercado para realizar as últimas compras de Natal. Nos alvores do séc. XX, de acordo com o testemunho de Alberto Artur Sarmento (1878-1953), os camponeses acorriam de todas as partes da Ilha para vender os seus produtos. O espaço do mercado tornava-se pequeno nesse dia e os vendedores ambulantes ocupavam lugares pelos largos mais espaçosos, pelas pontes e pelos muros das ribeiras. A população da urbe aproveitava para comprar flores, frutos e verduras. Fig 7. Borracheiros do Porto da Cruz, em frente à Sé, no âmbito do programa de animação de NatalFoto: acervo e autoria de M. Nicolau FUNCHAL - 2006 Com o desenvolvimento da cidade, a construção de novas infraestruturas e consequente encerramento do Mercado D. Pedro V, o Mercado dos Lavradores tornou-se o centro de convergência da população nas vésperas da Festa. O Mercado dos Lavradores foi inaugurado a 24 de novembro de 1940 e, desde a sua abertura, atraiu sempre numerosas pessoas, que para ali convergiam, sobretudo no Natal, para fazer compras de última hora, nas barracas de brinquedos, e nos vendedores de fruta e legumes que enchiam as ruas circundantes. Já no dia 23 de dezembro, dentro e fora do Mercado, era grande o movimento e a circulação de pessoas, proporcionando-se momentos de entretenimento e convívio, com cantigas e despiques. Os bares das proximidades vendiam bebidas e sandes de carne de vinho e alhos e, no antigo campo Almirante Reis, era instalado, durante a quadra natalícia, um parque de diversões e um circo, que garantia diversão até de madrugada. A noite de 23 de dezembro, a revéspera da Festa, passou a ser conhecida como a noite do mercado; esta noite foi-se transformando progressivamente num evento cultural mais formalmente organizado, com um programa de animação musical. Quanto à vertente religiosa da véspera de Natal, destaca-se a celebração da Missa do Galo no dia 24 de dezembro, pela meia-noite, na maioria das igrejas da Ilha. Os templos enchem-se de fiéis, para assistir à celebração litúrgica do nascimento do Menino Jesus. Em quase todas as paróquias realizam-se autos de Natal e romagens de pastores, onde são representadas cenas evangélicas com encenações simples, sobre as profecias, a anunciação do anjo, o Nascimento e a adoração dos pastores. Os pastores são homens e mulheres, geralmente trajando as vestes típicas madeirenses, que entram na igreja cantando quadras ao Menino Jesus ao som de instrumentos tradicionais, nomeadamente cordofones, harmónio, ferrinhos, castanholas e pandeiros. Surgem carregados de oferendas, mormente hortaliças, fruta, carne de porco, galinhas, cordeiros e vinho, que entregam ao celebrante e que revertem a favor da paróquia ou do pároco. Quem não assistiu à Missa do Galo, pode assistir depois à denominada missa dos pastores ou missa da manhã. Os que não participam na cerimónia religiosa da véspera de Natal podem ficar pelos adros, ou encontrar-se em locais públicos de convívio. Uma prática típica desta época era a chamada pensação do Menino, representada depois da Missa do Galo. Normalmente ficava a cargo de um grupo de raparigas, designadas por pastoras, que, sentadas ou de joelhos, rodeavam o presépio e entoavam quadras alusivas aos sofrimentos presentes e futuros do Menino Jesus. Por vezes, levavam uma bacia, uma toalha e sabonete, interpretando os cuidados que deveriam ser aplicados ao Menino após o parto. Considerado impróprio por alguns, este costume chegou a ser proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), e deixou de ser representado em muitas igrejas. Fig 8. Panela de ferro, para cozer a lenha, a sopa de trigoFoto: acervo e autoria de M. Nicolau. ACHADINHA - SAO JORGE - SANTANA - 27-06-2003 Acabada a Missa do Galo, a família regressa a casa e reúne-se à mesa para tomar canja de galinha e comer sandes recheadas com carne da ave desfiada. Brinda-se com vinho Madeira ou com os licores feitos naqueles dias, come-se bolo de mel, partido à mão, e outros doces, como o bolo de família, as broas e as rosquilhas. O dia de Natal é tradicionalmente um dia de ócio, normalmente passado em casa, consagrado à família, e destinado a degustar as diversas iguarias preparadas nos dias anteriores. Ao almoço, apresenta-se uma mesa farta, com produtos regionais, carne de porco e diversas sobremesas doces. A carne de porco é servida como a tradicional carne de vinho e alhos com semilhas novas e fatias de pão, a perna assada no forno, o lombo assado na panela. As carnes são geralmente acompanhadas com cebolinhas, batatas e cuscuz aromatizado de segurelha. No final da refeição, depois dos doces, bebe-se genebra e comem-se laranjas e tangerinas aos gomos, para ajudar a ter uma boa digestão, segundo a sabedoria popular. Depois do almoço, convive-se, fazem-se brindes e as crianças divertem-se com os seus novos brinquedos. No dia de Natal, era raro encontrar vivalma nas ruas, como afirmou Alberto Artur Sarmento, ao descrever uma rua do Funchal no séc. XIX. Este costume foi-se esbatendo, com as pessoas a encontrarem-se mais em público neste dia.   Das oitavas ao desmontar da lapinha As oitavas do Natal eram aproveitadas para visitar familiares e amigos, com os rapazes e as raparigas passeando com os seus fatos e vestidos novos, estreados na missa da primeira oitava. Os filhos casados iam passar o dia a casa de seus pais, reunindo-se toda a família. Os afilhados iam dar as Boas Festas aos padrinhos, levando uma galinha de presente. As madrinhas ofereciam às afilhadas vinho, doces e um vestido novo, enquanto os afilhados recebiam dinheiro. As oitavas duravam três dias, o comércio fechava e ninguém trabalhava no campo, pelo que estes dias eram também aproveitados para realizar as habituais visitas às lapinhas, pelos casais conhecidos, e renovar os votos de Boas Festas, entre convívios, cantigas alusivas à quadra, jogos tradicionais, rodas, despiques e outros folguedos, sobretudo nas freguesias rurais, onde era frequente ver mascarados a passear pelas ruas. As tradições cristãs da época do Natal conjugam-se com as manifestações de regozijo pela chegada do novo ano, pelo que, depois das oitavas, o povo começava a preparar-se para a festa do final do ano. Fig 9. Fachada do Mercado dos Lavradores, com iluminações natalíciasFoto: acervo e autoria de M. Nicolau. FUNCHAL - 2006 A noite do Fim de Ano na Madeira é uma festa cheia de luz e de cor. Pela meia-noite, na transição de 31 de dezembro para 1 de janeiro, começa no anfiteatro do Funchal o tradicional espetáculo pirotécnico, que “remonta aos donatários que tinham o costume de queimar o fogo no momento da transição da meia-noite para o princípio do ano seguinte. Costume que prolonga e amplia profanamente um costume litúrgico antigo de produzir o lume novo, topos simbólico do tempo novo que se avizinha. Esta tradição intensificou-se nos últimos decénios e alargou-se de tal maneira que passou a ser uma verdadeira apoteose de luz em todo o ‘anfiteatro’ da cidade funchalense” (FRANCO, 1999, 348). Segundo o Elucidário Madeirense, “o costume de festejar com tiros e foguetes a transição do ano velho para o novo” ter-se-ia generalizado na déc. de 60 do séc. XIX, promovido pelo banqueiro João José Rodrigues Leitão (SILVA e MENESES, 1998, II, 337). As famílias abastadas da Ilha começaram a competir no lançamento de foguetes em vários sítios, que se estendiam até às zonas altas da cidade. A partir da déc. de 30 do séc. XX, esta manifestação festiva começou a ganhar maior importância, uma vez que, em 1932, foi criada uma comissão das festas da cidade para coordenar todas as suas atividades de diversão. Assim, os festejos na passagem do ano da cidade, que antes tinham por palco salões e hotéis, como o Reid’s e o Savoy, ganharam uma nova dinâmica e foram também apoiados pelos comerciantes locais. Promoveram-se eventos culturais no teatro, recitais e concertos, e ainda um cortejo folclórico pelas ruas da cidade. Mais tarde, organizou-se uma marcha luminosa, que deu lugar às iluminações das árvores, dos contornos dos edifícios públicos e das igrejas. Fig 10. Fogo-de-artifício, na transição de 31 de dezembro para 1 de janeiro, FunchalFoto: acervo e autoria de M. Nicolau. FUNCHAL - 01-01-2005 O gosto pela exibição pirotécnica foi crescendo ao longo dos anos até se tornar um espetáculo organizado pelas entidades governativas da Região. Na passagem de ano de 2006 para 2007, a Madeira alcançou reconhecimento internacional como maior espetáculo pirotécnico do mundo, atribuído pelo Guiness Book of World Records. Nos alvores do séc. XXI, o dia 31 de dezembro é um dia de festa no Funchal, para onde convergem inúmeras pessoas de toda a Ilha, familiares e amigos, entre centenas de turistas, para assistir ao fogo de artifício, que começa à meia-noite, com o som das buzinas dos navios de cruzeiro ancorados na baía do Funchal. No final do espetáculo pirotécnico, a festa continua nas ruas da cidade, ou nos eventos que têm lugar nos hotéis, restaurantes, bares e discotecas da cidade. A festa dos Reis tem associado um rico folclore, herdado dos povoadores portugueses, que levaram o costume de cantar as janeiras: na véspera, 5 de janeiro, organizam-se grupos de amigos ou familiares que percorrem os casais da vizinhança para cumprir a tradição de cantar os reis. O povo tem um reportório de cantares próprios para celebrar a festa dos reis magos, que soube tornar original, sem perder a sua inspiração inicial. É um dia aproveitado também para visitar as lapinhas e saborear o típico bolo-rei. No dia 15 de janeiro, festeja-se o S.to Amaro nas freguesias de Santa Cruz, Paul do Mar e Ponta do Sol. À festividade religiosa junta-se o costume profano de cantar ao S.to Amaro: no dia 14 à noite, formam-se grupos, que percorrem as casas de familiares, amigos e vizinhos, munidos de uma vassoura e de uma pá, para cantar e comer as guloseimas e as bebidas que restaram da Festa. É por isso designado popularmente de dia de varrer os armários. A festa durava até de madrugada, e a última casa a ser visitada geralmente tinha de sacrificar galinhas para oferecer canja aos convivas. Na freguesia da Camacha, o varrer dos armários acontece a 17 de janeiro, dia de S.to Antão. Em Câmara de Lobos, desmonta-se a lapinha a 20 de janeiro, após a celebração do dia de S. Sebastião. A quadra do ano mais festejada na Madeira tem sido celebrada também por autores naturais da Ilha, através das suas criações literárias. Vejam-se, e.g., algumas obras de vários géneros literários, desde contos, crónicas, narrativas de memórias, poemas e estudos folclóricos e etnográficos: Natais: Contos e Narrativas, de João dos Reis Gomes; O Natal na Madeira – Estudo Folclórico, de Manuel Juvenal Pita Ferreira; Ilha da Madeira, II Estudos Madeirenses (1970), de Eduardo Antonino Pestana; O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses (1989), antologia organizada por José António Gonçalves, que também escreveu o livro de poesia Lembro-me desses Natais (2000); Cânticos Religiosos do Natal Madeirense, de João Arnaldo Rufino da Silva; O Natal na Cidade, a Festa no Campo (2001), de Horácio Bento de Gouveia (com seleção de textos de Nelson Veríssimo); A Festa (2002), crónicas de Lídio Araújo; e Lapinha do Caseiro (2008), uma coletânea de fotografias de Ricardo Jardim das figuras do santeiro Francisco Ferreira, bisavô de Herberto Helder, com poemas do bisneto. Para além destas obras, destaquem-se ainda vários textos publicados nos periódicos regionais evocando e perpetuando diversos aspetos da etnografia natalícia do arquipélago. Assim, os dois principais jornais da região, o Diário de Notícias e o Jornal da Madeira (antigo O Jornal), publicam, entre 23 e 25 de dezembro, artigos dedicados a este tema; e a revista Das Artes e da História da Madeira divulgou, entre 1950 e 1957, estudos de autores como Álvaro Manso de Sousa e João Cabral do Nascimento (1950); Alberto Artur Sarmento (1951); Manuel Juvenal Pita Ferreira (1953); J. de Sousa Coutinho (1955); e Antonino Pestana (1957). Há ainda a considerar os textos publicados em revistas como Xarabanda, Origens, Islenha e Atlântico, entre outras. De referir também alguns estudiosos que têm divulgado as suas pesquisas sobre o tema do Natal na Madeira, como João David Pinto Correia, José Eduardo Franco e Nelson Veríssimo.   Sílvia Gomes (atualizado a 20.01.2016) artigos relacionados: festividades folclore festas religiosas católicas nóbrega, maria augusta correia

Antropologia e Cultura Material Cultura e Tradições Populares Religiões

meneses, sérvulo drummond de

Advogado, político e jornalista madeirense, com grande influência local durante a época liberal. Nasceu em 1802 no Funchal, tendo perecido no mesmo local em 1862. Palavras-chave: Política; Jornalismo.   Sérvulo Drummond de Meneses nasceu no Funchal, em 23 de dezembro de 1802, sendo filho de João Nepomuceno Correia Drummond e de Maria Isidora de Meneses e Brito. Casou-se com Maria Carlota Arnaut, com quem teve cinco filhos. Concluiu o curso liceal no Funchal e depois iniciou-se como praticante no escritório do tio, o escrivão Inácio Correia Drummond, sendo, mais tarde, nomeado escrivão judicial. Antes de 1820, foi cadete do Corpo de Artilharia Auxiliar, mas, após a Constituição de 1822, tornou-se advogado provisionado, tendo efetuado o concurso de provas junto do Tribunal Superior de Justiça, apesar de não ser formado em Direito, acabando por se destacar como um dos mais distintos advogados do seu tempo e por deixar algumas peças de carácter administrativo e civil, umas inéditas e outras avulsas. Militou no partido cartista, ou liberal, e, mais tarde, no partido cabralista, militância que terá facilitado o seu acesso à carreira política. Foi presidente da Câmara Municipal do Funchal e vereador da mesma Câmara, tendo fundado, a 12 de janeiro de 1838, a Biblioteca Municipal do Funchal, importante estrutura cultural do arquipélago. Entre os cargos públicos que exerceu, relevam-se também o de vogal do Conselho Distrital, o de procurador à Junta Geral, o de secretário-geral do Governo Civil e o de governador civil interino, na ausência do conselheiro José Silvestre Ribeiro (1848-1849). Como jornalista, foi redator e diretor do periódico funchalense A Flor do Oceano, entre 1828 e 1866, tendo colaborado igualmente em outros periódicos, entre os quais O Regedor (1823 e 1828) e A Ordem (1852-1860). Foi autor de várias obras de interesse regional, como Uma Epocha Administrativa da Madeira e Porto Santo, publicado no Funchal (1.º vol., 1849; 2.º vol., 1850; o 3.º vol., de 1852), é de António Jacinto de Freitas); Collecção de Documentos Relativos ao Asylo da Mendicidade do Funchal; Collecção de Documentos Relativos à Construção da Ponte Ribeiro Secco; Collecção de Documentos Relativos á Fome por que Passaram as Ilhas da Madeira e Porto Santo em 1847. Como poeta, publicou, na juventude, poemas que foram incluídos na Collecção d’Algumas Obras Poeticas offerecidas ao Ilmo. e Exmo. Sr. Sebastião Xavier Botelho. Foi agraciado com o grau de cavalaria da Ordem de Nossa Senhora da Conceição, de Vila Viçosa. Faleceu no Funchal, a 13 de janeiro de 1867. Obras de Sérvulo Drummond de Meneses: Collecção de Documentos Relativos ao Asylo da Mendicidade do Funchal (1848); Collecção de Documentos Relativos à Construção da Ponte Ribeiro Secco (1848); Collecção de Documentos Relativos á Fome por que Passaram as Ilhas da Madeira e Porto Santo em 1847 (1848); Uma Epocha Administrativa da Madeira e Porto Santo (1.º vol., 1849; 2.º vol., 1850).   António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 24.02.2018)

Direito e Política História Política e Institucional

melo, antónio júlio de santa marta do vadre de mesquita e

António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), 3.º visconde de Andaluz, foi para a Madeira como secretário-geral do governador, D. Tomás de Sousa e Holstein, marquês de Sesimbra; porém, o marquês de Sesimbra não estaria um ano no lugar. António Melo foi nomeado para o lugar de governador civil do Funchal em setembro de 1879. Coube ao seu Executivo tentar acalmar a agitação política, que se devia à nomeação de nobres da Corte, o que não se enquadrava já na vida política portuguesa. Palavras-chave: Arranjos familiares; Governo civil; Partidos Políticos; Regeneração; Tumultos populares.   O governador civil do Funchal D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), do Partido Regenerador, foi exonerado em 1868 pelo Executivo do açoriano conde de Ávila, António José de Ávila (1806-1881), do Partido Reformista ou Partido Popular, então uma cisão do Partido Histórico (Partido Histórico e Partidos políticos). As complexas alianças entre estes partidos levaram o Governo de Lisboa a colocar em S. Lourenço duas figuras da aristocracia da Corte de Lisboa: o marquês de Sesimbra, D. Tomás de Sousa e Holstein (1839-1887), filho do duque de Palmela (1781-1850), como governador civil, e o 3.º visconde de Andaluz, António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), como secretário-geral. Estas duas escolhas foram alicerçadas em vagas ligações familiares às antigas famílias insulares e foram por certo resultado da pressão dos elementos do Partido Histórico, incapazes de compreender as novas realidades dos meados e da segunda metade do séc. XIX. O marquês de Sesimbra era casado com uma filha dos marqueses da Ribeira Grande, descendentes de Zarco, mas dos Açores, e viria a ser sogro do futuro conselheiro Aires de Ornelas e Vasconcelos (1866-1930); o visconde de Andaluz estaria para se casar com uma filha do barão da Conceição, Fortunato Joaquim Figueira (1809-1885), abastado proprietário que se havia fixado no Funchal nesse mesmo ano de 1868. O marquês de Sesimbra – ou de Cezimbra, como então aparece escrito – foi nomeado por decreto de 9 de setembro e viria a tomar posse a 17 de outubro de 1868, após Te Deum na catedral do Funchal celebrado à uma da tarde; disso nos dá conta o visconde de Andaluz, seu secretário-geral, que o comunicou às autoridades do Funchal, convidando-as para o evento. A administração do marquês ir-se-ia pautar por uma simples gestão administrativa, sendo praticamente toda a correspondência assinada pelo secretário-geral. Realizadas eleições em maio do seguinte ano de 1869, e passado o verão, o marquês de Sesimbra retirou-se, nos primeiros dias de setembro, para o continente, não completando um ano de governo na Madeira. Palácio e Fortaleza de São Lourenço. 1870. Arquivo Rui Carita O visconde de Andaluz tinha sido nomeado governador civil do Funchal por decreto de 4 de setembro, tomando posse a 8 do mesmo mês. Faria então uma proclamação aos “Habitantes do distrito do Funchal! Por decreto de 4 do corrente Houve por Bem Sua Majestade” nomeá-lo governador civil. Apelava então: “Auxiliai-me com o seu conselho e com as suas luzes […] pela prosperidade desta Terra, que eu hei de esforçar-me em promover os interesses dela com solicitude e dedicação” (ABM, Alfândega do Funchal, circular de 9 set. 1869). Era um discurso um pouco ultrapassado para a época, semelhante às proclamações liberais dos anos 30 e 40, conhecidas no Funchal durante a vigência da Junta Governativa de 1847 e o conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891) – proclamações que alguns anos depois ainda viriam a surgir, então ainda mais estranhas ao contexto político da época. O novo governador tentou fazer face à situação algo agitada que se vivia, não só política, como geral. No arquipélago, nem sempre se encontrava gente à altura para os vários locais diretivos e, ao mesmo tempo, não se conseguiam definir especificamente estruturas partidárias, daí resultando vagas organizações articuladas em relações pessoais em torno dos membros mais influentes das elites locais. Em maio de 1870, e.g., tendo o visconde de Andaluz suspendido o administrador do concelho de Santana, “não havendo naquela localidade pessoa com os requisitos necessários para, na atual conjetura entrar na referida vagatura”, solicitava à Casa Fiscal da Alfândega do Funchal a disponibilização do funcionário Joaquim Pinto Coelho (1817-1885) para ocupar o lugar (Ibid., Alfândega do Funchal, of. 23 abr. 1870) – uma nomeação acertada, considerando o tempo em que aquele funcionário ocupou o lugar da Alfândega. Nos inícios de 1870, por decreto de 2 de janeiro, procedeu-se à dissolução das Cortes e, a 3 de fevereiro seguinte, à reunião das assembleias eleitorais. Na Madeira, as eleições decorreram a 1 de maio, voltando a sair os nomes de Luís Vicente de Afonseca (1803-1878) e Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901). Porém, as eleições decorreram muito mal e, especialmente em Machico, ocorreram tumultos graves. Acontece que o governador destacara para os principais centros eleitorais forças de Caçadores 12, nem sempre comandados por elementos capazes de manter o sangue frio. As forças militares acabaram por se refugiar na igreja matriz e, acossadas pela populaça, fizeram fogo sobre a multidão, o que resultou em vários mortos (Tumultos populares). Houve também incidentes em outros locais, inclusivamente no Funchal. O Partido Popular, que se achava na oposição, tinha um certo domínio sobre as massas populares e quando Joaquim Ricardo da Trindade e Vasconcelos (1825-1906), então membro do Partido Fusionista, desembarcou no Funchal, ido precisamente de Machico, foi preso na Pontinha e conduzido à Pr. da Constituição para justiça popular. Evitou o assassinato o jovem Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898), uma das figuras prestigiadas do Partido Popular, que se interpôs entre os populares e Trindade e Vasconcelos. Como o visconde de Andaluz tinha feito vários contactos e estabelecido um pacto de não intervenção nos assuntos do Partido Popular, foi isso que aconteceu em relação a novas alterações da ordem pública em Machico, aquando dos funerais das vítimas do dia 1 de maio. Os acontecimentos de Machico produziram grande sensação na imprensa madeirense e, de imediato, no continente, sendo o visconde violentamente atacado nas Cortes e na imprensa de Lisboa. Em julho ainda apareciam na comunicação social de Lisboa abaixo-assinados respeitantes aos acontecimentos de Machico e à maneira pouco ortodoxa como haviam sido encaminhados juridicamente. Um conjunto de cinco guardas da Alfândega do Funchal, e.g., fora indiciado e preso “pelo crime de cumplicidade nas mortes e ferimentos feitos pela força militar dentro do templo de Machico” (A Revolução de Setembro, n.º 8416, Lisboa, 5 jul. 1870, 1). O despacho fora emitido pelo juiz da comarca oriental do Funchal, Cassiano Sepúlveda Teixeira, e os guardas não entendiam como podiam ser acusados de “crimes eleitorais e políticos” e de “crimes de violência contra membros da assembleia eleitoral” (Ibid.), quando o que estava em causa era uma série de mortes entre a população local, cujos autores tinham sido os soldados de Caçadores 12, como se queixam então os guardas António José Nunes, Jacinto Augusto Ferreira, Januário Esteves de Sousa, Augusto Celestino Lacerda e António Vieira. O visconde de Andaluz foi exonerado em poucos dias, por dec. de 14 de maio de 1870. Foi nomeado como governador do distrito do Funchal Afonso de Castro (1824-1885), que tomou posse a 19 desse mês de maio, mas que não estaria na Madeira senão oito dias, face a mais uma intentona militar do duque de Saldanha (1790-1876) em Lisboa. Poucos meses depois, e face ao insucesso das nomeações, D. João Frederico da Câmara Leme voltava a ocupar o lugar de governador civil. O 3.º visconde de Andaluz era bacharel em Direito e herdou o título de seu pai, Joaquim José dos Mártires de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1806-1863), que o tinha recebido por doação de sua tia materna, Maria Bárbara do Vadre de Almeida Castelo Branco, viúva do 1.º visconde, António Luís Maria de Mariz Sarmento, dado do casamento não ter havido descendência. Embora tenha sido uma situação algo insólita, o 3.º visconde de Andaluz, um ano depois do falecimento do pai, conseguiu a confirmação do título por carta régia do D. Luís (1838-1889), de 17 de dezembro de 1864. Casou-se no Funchal com D. Ana Joaquina Figueira, filha dos barões da Conceição. Desse casamento houve quatro filhas, tendo-se a mais velha casado com o conde de Vila Verde, D. Pedro de Almeida e Noronha Portugal Camões Albuquerque Moniz e Sousa (1865-1908). A 4 dezembro de 1890, o 3.º visconde de Andaluz ainda seria nomeado governador civil de Santarém, lugar que ocupou até 2 de janeiro de 1892. Terá falecido cerca de 10 anos depois.   Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)

Direito e Política História Política e Institucional Personalidades

música tradicional

A música tradicional madeirense da atualidade resulta da combinação de um conjunto de elementos trazidos por sucessivas levas de povoadores. Na Região Autónoma da Madeira (RAM), estes contributos foram evoluindo de forma isolada, mas recebendo pontuais influências de novas populações, de visitantes ocasionais ou ainda, a partir do séc. XX, dos meios de comunicação social de âmbito nacional, com particular incidência nas estações radiofónicas, ou da generalização do ensino oficial, com a chegada de docentes de diversos pontos do país. Deste modo, popularizaram-se na RAM canções que, com o tempo, têm vindo a assumir, para muitos, um carácter tradicional. Como é natural, trata-se de peças cuja identificação nem sempre é fácil, pois há pouca investigação feita sobre o tema nas diversas regiões do país. No caso particular das cantigas religiosas, é ainda necessário referir a influência de sacerdotes portadores de orientações precisas por parte da hierarquia ou de uma formação padronizada nos seminários que frequentaram. Um último aspeto que poderá estar na origem de algumas influências alheias é o regresso de emigrantes que trazem das terras onde viveram elementos tradicionais passíveis de ser incorporados na tradição. No entanto, seja por o fenómeno ser ainda relativamente recente, em termos de mecanismos de mudança cultural, seja apenas por ainda não ter havido quem o estudasse seriamente, a verdade é que não se sabe, atualmente, se essa componente se manifesta. Não é possível definir características genéricas da música tradicional madeirense. Por esse motivo, e de modo a facilitar a exposição, optou-se por abordar aqui, separadamente, cada um dos grandes géneros musicais, após uma primeira referência ao bailinho, o elemento mais conhecido e identitário da tradição musical da RAM. Aborda-se igualmente a mourisca, que, embora com menor realce, constitui também um modelo musical transversal a diversos géneros. Bailinho Com um padrão rítmico bastante simples, o bailinho é executado geralmente na tonalidade de Sol Maior, por ser aquela a que mais facilmente se adapta a voz. É esta melodia que está na base de muitos dos mais conhecidos bailes regionais, sendo também a forma assumida pela mais popular forma de canto improvisado em despique da RAM (com o nome de bailinho, retirada, meia noite ou outro). Encontramo-lo ainda a dar o “som” de muitos romances tradicionais, cantigas narrativas, cantigas de lazer, etc. De certa forma, é um elemento que, por si só, permite a qualquer não madeirense identificar uma melodia como sendo da RAM, sendo, atualmente, a forma musical mais presente e espontânea em todos os ambientes festivos na Região, acompanhada por qualquer instrumento ou mesmo por formas improvisadas de criar som. É importante chamar aqui a atenção para uma confusão bastante frequente resultante da coincidência do nome deste género musical. Existe uma canção muito conhecida, interpretada pelo cantor madeirense Max, que tem precisamente o nome de “Bailinho da Madeira”. No entanto, apesar da referência na sua letra ao bailinho, musicalmente esta nada tem a ver com ele. Antes pelo contrário, a música tradicional que serviu de inspiração para algumas das suas frases musicais foi o charamba. A grande popularidade desta canção tem feito com que seja frequente a confusão. Mourisca A mourisca madeirense dos começos do séc. XXI apresenta características que a aproximam de um vira valseado. Musicalmente, baseia-se no compasso binário composto, padrão rítmico de 6/8. Harmonicamente, tem a forma tradicional de alternância entre tónica e dominante. Na tradição local, principalmente a que se pode identificar através de recolhas efetuadas em anos anteriores, encontram-se formas de mourisca em diversas circunstâncias. Existem referências e alguns registos de mouriscas cantadas em despique, com letras improvisadas; contudo já não se encontram cultores desta prática, sobrevivendo apenas como canção de letra fixa. A sua grande força é traduzida numa dança, conhecida predominantemente na zona sul da ilha, em torno da Camacha, da Gaula, do Machico e do Caniçal. Existem algumas referências quanto à existência da mourisca dançada pelos populares em outras zonas, como os Canhas. Esta pode ser denominada, de forma indiferente, como mourisca ou chama-rita. No Porto Santo, existia o baile sério, nos começos do séc. XXI executado apenas pelo grupo folclórico desta ilha. Trata-se de uma variante da mourisca madeirense, com uma letra própria. Os habitantes da ilha consideravam-no a dança dos grupos mais abastados da ilha, em oposição à meia volta ou ao baile do ladrão, associados às classes populares. A sua letra é fixa, tal como na mourisca da ilha da Madeira, alternando quadra com refrão. As quadras são entoadas alternadamente por uma mulher e por um homem, sendo o refrão cantado em coro. Cantigas de trabalho Como resultado da transformação dos modos de vida e das atividades produtivas rurais, as cantigas associadas ao trabalho encontram-se atualmente numa situação peculiar. Com efeito, a verdade é que, nas zonas rurais, já não se ouve cantar a chamusca, a cava, a sementeira, a erva, a ceifa do trigo, a malha na eira, a boiada ou cantigas do moleiro, de acartar lenha, dos borracheiros, do linho, dos pastores, etc. Com o desaparecimento das atividades agrícolas que lhes estavam associadas, estas cantigas perderam o seu carácter funcional. De uma forma geral, podemos considerar que as cantigas de trabalho assumem diversas das características a seguir enunciadas: – Género exclusivamente vocal, sem acompanhamento instrumental; – Estrutura musical vulgar, nalguns casos simétrica; – Melodia simples e curta, muitas vezes irregular, com intervalos curtos; – Andamento lento e livre, dependente da respiração de cada um. O seu tempo é relativo e variável, dependendo da sensibilidade de quem canta e também do trabalho associado; – A tonalidade é a que melhor serve ao intérprete. Por vezes, verifica-se um prolongamento da última nota (de 8 ou 12 tempos finais), como, por exemplo, na cantiga da ceifa, da carga ou dos borracheiros. Não há mudança de tom; – Padrão rítmico: 2+2; 4+4; – Canto monódico. No entanto, a sua entoação pode variar, existindo diferentes formas de o fazer: a) Um único intérprete canta a totalidade da cantiga, ou cada um canta a sua quadra; b) Uma voz inicia a quadra e, nos dois últimos versos, os restantes participantes acompanham em uníssono imperfeito; c) Todos entoam, em conjunto, quadras já conhecidas; d) Cada um improvisa a sua quadra. – Sem refrão; – Forma de cantar: alto (agudo), voz de cabeça; – São frequentes os modos arcaicos (sistema modal); As características mais notórias da letra são: – A mesma letra pode servir para diferentes melodias, podendo ser de temática completamente alheia à tarefa. Esta é geralmente pouco profunda, mas ligada à tarefa do dia-a-dia, às dificuldades da vida. São temas recorrentes: Deus, amor, saudade, tristeza, alegria, humor, malandrice; – É frequente a apropriação de versos já conhecidos e pertencentes a cantigas de lazer, de carácter religioso ou romances tradicionais; – O cantar de improviso é um fator importante neste género de música associada ao trabalho caseiro, dependendo da capacidade poética de quem canta; – Entre as quadras ou versos, são frequentes os apupos ou onomatopeias; Listam-se abaixo algumas das mais significativas cantigas de trabalho madeirenses. Borracheiros Na costa norte da Madeira, as uvas eram tradicionalmente apanhadas e levadas para um lagar local. O mosto era posteriormente acartado para as adegas do Funchal, onde iria fazer parte do processo de produção do famoso vinho generoso. A ausência de boas vias de comunicação obrigava a que o seu transporte fosse feito em odres (borrachos) carregados aos ombros de homens pelas veredas da serra. Podiam juntar-se várias dezenas de borracheiros, que, em fila, faziam o percurso até à cidade. Como forma de atenuar a dureza da caminhada, iam entoando uma cantiga específica. O primeiro homem da fila era o chamado candeeiro, que cantava umas quadras de métrica irregular, a que respondiam os restantes (o gado), com vivas. O último do grupo era o boieiro. O canto servia para animar os elementos do grupo, fazendo alusão ao próprio caminho, podendo também incluir elementos de troça em relação a algum componente ou de incentivo ao esforço. A construção de estradas e infraestruturas levou ao inevitável fim dos borracheiros. Em 1974, por iniciativa de Eduardo Caldeira, constituiu-se um grupo, no Porto da Cruz, que recuperou essas tradições, apresentando-as em diversos eventos madeirenses. Cantiga da carga A força humana foi, desde sempre, o elemento que assegurou o transporte na ilha. Mesmo cargas pesadas eram levadas aos ombros ou à cabeça. Por vezes, onde os terrenos o permitiam, podia recorrer-se à ajuda de animais para facilitar a tarefa. No entanto, a ida à serra para recolher lenha para aquecer a casa ou cozinhar, ou para cortar erva para o gado que, no palheiro, a aguardava, dificilmente escapava à necessidade da força humana para o transporte dos pesados fardos. Esta cantiga era entoada naqueles percursos do regresso, aliviando, de certa forma, a dureza do esforço. A letra era composta por quadras, que podiam ser improvisadas, intercaladas por apupos e entoadas numa cadência lenta, acompanhando o ritmo lento da tarefa. Cantiga de embalar Adormecer uma criança é uma tarefa que pode ser árdua e que está muito dependente do tempo necessário para atingir o objetivo. Assim, a tradicional cantiga de embalar tem um andamento muito lento, sem grandes irregularidades. A letra tem versos intercalados por onomatopeias destinadas a fazer adormecer mais facilmente a criança.   Cantigas de carácter religioso O ciclo do Natal O primeiro momento do ciclo do Natal na Madeira, em termos musicais, é constituído pelas Missas do Parto. No seu estudo sobre o tema, Rufino da Silva (1998) afirma que os cantos que têm presença certa nestas cerimónias são conhecidos, pelo menos, desde finais do séc. XIX>, sendo no entanto impossível determinar se são de origem madeirense. Segundo o mesmo autor, estes cânticos apresentam traços de lirismo popular, revelam influência minhota pela harmonização em terceiras e a sua estrutura harmónica é basicamente de alternância entre a tónica e dominante e quase exclusivamente em modo maior. Embora esta seja a caracterização da maior parte das canções, o autor detecta nalgumas delas traços de influência do canto gregoriano.   Romagem. Missa do Galo. Boaventura. Foto: Rui A. Camacho A missa da Noite de Natal é um mais alto momento das vivências religiosas da população regional. Associadas à importância litúrgica de comemorar o nascimento de Cristo, há diversas práticas tradicionais que ajudam a que esta seja realmente a grande Festa. Em alguns locais, esta celebração ainda assume características muito próprias, terminando com as romagens, nas quais grupos de vizinhos, familiares ou amigos percorrem a nave do templo tocando e cantando, para levar até ao sacerdote as suas oferendas. A própria missa é intercalada por diversos momentos de representação e entoação de cantos, como o da “Anunciação aos Pastores” ou a “Pensação do Menino”, tradicionalmente cantados junto do presépio. Possivelmente, estes serão os últimos vestígios de um ancestral auto apresentado na ocasião. A alteração das condições de realização da cerimónia, incluindo alguma necessidade de encurtar a sua duração, poderá estar na origem da eliminação de componentes ou redução do número de estrofes entoadas, daí resultando a sobrevivência de apenas algumas canções isoladas. As romagens são um bom exemplo de uma outra realidade: o que aqui é tradicional é o contexto de interpretação e não a canção em si. Apesar de ser uma tradição que tende a perder-se, nos locais onde se mantém, a principal preocupação dos vários grupos que preparam a sua romaria é mostrar qualquer coisa que as pessoas presentes na igreja não conheçam, pelo menos no que respeita à letra, pelo que muitas vezes se adapta uma música conhecida a uma letra criada. Principalmente nas zonas onde essa preocupação pela conservação da tradição é maior, o grupo que apresente uma romaria que ele ou outro cantou naquela igreja no ano anterior ou dois anos antes, da qual toda a gente se lembra, é alvo de troça, uma vez que não foi capaz de preparar e apresentar uma romagem original, o que obriga a questionar o lugar da tradição. A tradição está na prática de as pessoas de um determinado sítio se reunirem e levarem uma canção para a missa de Natal, com ou sem instrumentos. Por definição, se o que o grupo tem de apresentar é uma novidade, então as músicas não podem ser tradicionais. O que acontece por vezes é que se o público gostar de uma romaria de Natal, seja pela situação em que ela foi apresentada, seja pela qualidade artística da sua melodia ou da sua letra, esta permanece e pode tornar-se tradicional, como uma cantiga de passatempo.   Noite de Reis. Foto: Rui A. Camacho Cantiga de Reis Na noite de 5 para 6 de janeiro, formam-se grupos que percorrem as casas dos vizinhos ou amigos, entoando cantos próprios da época, como forma de desejar um bom Ano Novo. Ao chegar à porta, canta-se enquanto se aguarda que o dono da casa abra e ofereça a todos as bebidas e bolos que os esperam. Depois de uns minutos de convívio, há que prosseguir o percurso, que dura até de manhã. Em cada zona da ilha tende a haver um canto próprio desta noite, embora haja alguns mais conhecidos que são partilhados por várias localidades. A cantiga é entoada em uníssono por todos os participantes. A sua estrutura melódica é constituída por duas partes distintas: uma primeira cantada em compasso de 3/4 e uma segunda em compasso de 3/8, embora haja casos em que surge o compasso 2/4. No final, é frequente haver uma quadra de despedida aos donos da casa. Espírito Santo. Camacha. Foto: Rui A. Camacho Espírito Santo Após a Páscoa, começam as visitas das insígnias do Espírito Santo às casas. Num número de domingos variável em função da quantidade de locais a percorrer, forma-se um grupo constituído pelos festeiros, portadores das insígnias (pendão com a pomba desenhada, coroa e cetro), músicos e duas ou quatro saloias (meninas que transportam cestos para acolher as ofertas). Ao chegar a cada casa, as saloias entoam o Hino, que pode variar de freguesia para freguesia, alusivo à entrada do Espírito Santo, a que se seguem o pedido e o agradecimento das esmolas ao dono da casa. Podem seguir-se outras cantigas, de acordo com pedidos feitos pelos moradores e/ou decisão dos festeiros. Cantigas de lazer Cantos improvisados Brinco em bailinho O despique em bailinho é, ainda hoje, o momento alto da festa popular. Em qualquer arraial tradicional, ou mesmo nas festas familiares, se pode encontrar um brinco. Um músico, pelo menos – tocando rajão, braguinha ou viola de arame, hoje frequentemente substituídos pelo acordeão –, atrai uma roda de cantadores que, à vez, entoam as suas quadras, podendo haver um acompanhamento adicional de palmas (se necessário, pode-se prescindir inclusivamente da presença de músicos). Musicalmente, encontramos uma melodia tonal, com base na harmonia da tónica, dominante.   Despique. Arraial de Ponta Delgada. Foto: Rui A. Camacho O canto é, no essencial, improvisado. No entanto, um bom despicador pode recorrer, se necessário, a quadras decoradas. Esta situação será um recurso aceite no contexto de um despique que se prolongue num arraial. A tentativa de “atirar” quadras críticas ou irónicas sobre os restantes pode proporcionar momentos de grande alegria. A forma poética escolhida é a quadra de verso curto, com rima cruzada (ABAB ou ABCB). Habitualmente, cada verso é bisado, e após o segundo verso toca-se o interlúdio musical. Por vezes, o despicador acrescenta mais dois versos (rima CB ou DB), como mecanismo que permite completar melhor a ideia. Em casos mais raros, poderá ser entoada uma nova quadra completa, tendência que se tem tornado mais comum em tempos mais recentes, possível sinal de uma menor capacidade inventiva e de síntese. A satisfação dos presentes é manifestada por meio de apupos. O despicador, ao chegar a sua vez, pode prescindir de participar, passando a vez ao seguinte. A conclusão mais natural do despique será a que resultar do progressivo abandono dos participantes, vencidos pelo mais inspirado. Num arraial, o brinco poderia prolongar-se por longo tempo, sendo um dos grandes momentos de animação antes da generalização dos grupos de música moderna. Na ilha do Porto Santo, é habitual chamar “Retirada” ao despique em bailinho. Charamba   Charamba. Foto: Rui A. Camacho É hoje a forma musical associada por excelência à viola de arame, embora tradicionalmente pudesse ser acompanhado por outros instrumentos. É uma forma de canto despicado, quase exclusivamente masculino. Na maior parte das vezes, os tocadores não participam no canto, sendo este alternado entre os participantes, que podem cantar quadras ou estrofes mais longas e também com uma métrica variável. A sequência é obrigatoriamente no sentido dos ponteiros do relógio. Ao conjunto dos charambistas que participam numa determinada sessão chama-se “quadrado”. Segundo alguns dos intérpretes tradicionais, o importante neste género musical era o conteúdo do que se cantava. Nalguns casos, acordava-se previamente um tema (fundamento) que estaria obrigatoriamente presente em todas as intervenções. O tema poderia também ser acordado após quadras iniciais entoadas pelos participantes. No momento do canto, o intérprete tem toda a liberdade de definir o andamento e a extensão dos seus versos. Se necessário, o tocador terá de “ir atrás” do cantor, prolongando as frases musicais ou repetindo-as. Para alguns, a opção é ir tocando uns acordes muito simples durante o canto. As quadras são entoadas com repetição de cada verso ou repetindo cada par de versos. Após a repetição, há o indispensável interlúdio musical, que tem uma forma padronizada e bem definida, num padrão rítmico regular de 2/4 (embora possa mudar para 5/8), sendo ele que, musicalmente, define o charamba. A estrutura harmónica é simples, baseando-se na Tónica e Dominante do tom de Sol maior. O seu andamento é lento/andante. Jogos cantados Nos momentos de convívio dos mais jovens, seja entre si, seja com os adultos da família ou amigos, as lengalengas e os jogos ocupavam um lugar importante. Estes apresentam uma grande diversidade de características, podendo ser cantados ou não, tal como ter associada uma coreografia própria. Embora não sendo possível efetuar generalizações, existe um conjunto de aspetos que se podem apresentar como sendo muito comuns aos jogos cantados: – São cantados em tom maior, com refrão e um ritmo simples; – É habitual possuírem refrão, cantado por todos em uníssono, intercalado com outras partes entoadas a solo por algum dos participantes; – Sem acompanhamento instrumental; – Recurso a acompanhamento de palmas; – A sua letra é composta maioritariamente por quadras de verso curto Muitos dos jogos têm uma coreografia associada. Os jogadores podem colocar-se em roda simples ou dupla, podendo ter um elemento no centro, podem estar em fila, frente a frente, etc. Histórias Outra forma muito comum de passar o tempo livre, ou mesmo acompanhar as longas horas de trabalho do bordado, era contando ou cantando histórias. Estas podiam assumir características diversificadas. Tanto podiam ser os antigos romances da tradição hispânica, como narrativas inspiradas em factos da vida real, como ainda histórias de animais ou mesmo lengalengas. Um elemento importante é assumirem, com grande frequência, um carácter didático ou terem uma conclusão moral. A sua componente musical varia muito. Ainda podemos encontrar alguns romances com as suas melodias ancestrais, a par de outros textos a que se foi adaptando uma música mais recente. Nestes casos, o facto de se tratar de uma melodia bem conhecida facilitava a sua memorização e podia tornar mais recetivos os ouvintes. De qualquer modo, são sempre melodias com frases musicais curtas, que se vão repetindo ao longo de todo o texto. Danças As duas formas dançadas mais comuns na RAM são os já referidos bailinho e mourisca. Para além delas, pode referir-se duas outras tradicionais da ilha do Porto Santo, a Meia Volta e o Ladrão, e uma outra, a Dança das Espadas, associada à festa de São Pedro, na Ribeira Brava. Meia volta Na ilha do Porto Santo, os momentos de festa em família ou com vizinhos e amigos tinham lugar nas eiras ou num espaço amplo dentro de casa. Aí, o tocador da rabeca colocava-se no centro e os restantes participantes do baile iam formando pares em roda (pares que nunca se tocavam, realçavam alguns dos mais antigos). Na roda, incluíam-se os tocadores dos outros instrumentos, como o rajão e viola de arame. Caso único nas danças da RAM, existia um mandador que orientava a sequência coreográfica do baile, ao mesmo tempo que cantava e tocava a viola de arame. Os restantes cantadores ficavam fora da roda. A música tem ainda hoje carácter modal (frígio), claro sintoma da sua antiguidade, embora todas as hipóteses até hoje lançadas para explicar a sua origem sejam puramente especulativas. Tradicionalmente, o canto era improvisado. Atualmente extinto da tradição, são elementos do Grupo Folclórico local que preservam a sua recordação. Musicalmente, apresenta uma sequência harmónica de três acordes: Sol, Lá, Sol, tom de Sol maior. O andamento é moderado e mantém-se sempre inalterável, mudando o número de notas musicais, criando uma intensidade sonora e desenvolvendo uma dinâmica rítmica, enquanto o violino executa uma interessante melodia com base na escala de Sol maior. A meia volta é única em relação a todas as outras músicas tradicionais. Dança das espadas Música tradicionalmente executada durante os festejos de São Pedro, na Ribeira Brava. Praticada até meados do séc. XX, esta dança desapareceu progressivamente da tradição, sendo alvo de trabalho de reconstituição em finais do século, tendo posteriormente retomado o seu lugar na festa.   Dança das Espadas. Ribeira Brava. Foto: Rui A. Camacho É interpretada por um conjunto de homens com um trajo próprio, tendo duas partes distintas: uma executada em marcha e a outra com uma coreografia própria. Aspecto peculiar, a dança é apenas instrumental, sem qualquer canto associado, o que faz com que seja a única dança da tradição popular que apresenta essas características. Musicalmente, é simples, baseando-se apenas em quatro compassos, em tom maior. Embora haja registo de ligeiras alterações, podemos definir o acompanhamento musical como sendo feito por rajão, braguinha, viola de arame e pandeiro.   Jorge Torres Rui Camacho (atualizado a 01.02.2018)

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planeamento

É um instrumento administrativo que permite entender a realidade, avaliar os caminhos a seguir e construir um referencial futuro, estruturando o trâmite adequado e reavaliando todo o processo a que o plano se destina. No código administrativo de 1936, são atribuídas às Juntas de província competências no domínio do planeamento regional. A partir de 1956, a palavra “planeamento” integra o dicionário político nacional, mas a sua institucionalização só se torna uma realidade na década de 60. Entretanto, só em 1966 surgiu a Divisão de Planeamento Regional, integrada na Direcção de Serviços de Planeamento. Em 1967, pela lei 2133, que definia as bases do III Plano de Fomento para 1968-73, aparece o planeamento regional a corporizar as políticas destes planos, dividindo o país em regiões de planeamento, com comissões consultivas regionais, tendo um Secretariado Técnico na Presidência do Conselho de Ministros. Neste quadro, deveremos salientar a visita à Madeira, entre 11 e 15 de novembro de 1968, de José Santos Varela e Carlos Rebelo de Simões, da Divisão de Planeamento Regional/Secretariado Técnico da Presidência do Conselho, no sentido de estabelecer a estrutura de trabalho capaz de elaborar o planeamento regional da Madeira. Desta forma, a partir do terceiro plano de fomento, de 1969, assistiu-se à criação de organismos de planeamento económico regional em regiões-plano, conhecidas como Comissões de Planeamento Regional, que deram lugar, em 1979, às Comissões de Coordenação Regional. Na Madeira, já a partir de 1963, o planeamento regional aparece como uma constante no discurso do deputado madeirense Agostinho Cardoso, que afirma o turismo como um dos fatores destacados do planeamento regional no arquipélago, o que o diferencia do resto do país. Em 1967, junta-se-lhe a voz doutro deputado, Rui Vieira, a reclamar a criação de uma comissão de planeamento regional. Esta problemática motivou um debate público no Funchal, em janeiro de 1968, sob a epígrafe I Semana de Estudos Sobre Problemas Sociais e Económicos do Desenvolvimento. No Plano Quadrienal da Junta Geral, apresentado nesta época, era referida a necessidade de uma política de planeamento regional para o distrito, reforçada pelo grupo que estava associado à publicação do semanário Comércio do Funchal. A primeira estrutura madeirense de planeamento foi definida pelo dec.-lei n.º 48905, de 11 de março de 1969, que estabelece uma estrutura local para o III Plano de Fomento. Desta forma, a Madeira tornou-se uma Região de planeamento com uma comissão consultiva, cujas funções eram, até então, atribuídas à Junta Geral do Distrito do Funchal. Assim, na reforma do estatuto, a grande novidade foi a função de coordenação económica da Junta, que tinha expressão ao nível do planeamento para os planos trienais. O presidente e os vogais procuradores à Junta eram os mesmos elementos da Comissão de Planeamento da Região da Madeira. Contra esta decisão reclamam Agostinho Cardoso, nas páginas de A Voz da Madeira, e o grupo de oposicionistas, através do Comércio do Funchal. Esta situação de mal-estar na Junta Geral levou, em 1971, à demissão de Nuno Homem Costa, que acabou por ser substituído por Rui Vieira. Em 1969, aproveitando a “Primavera Marcellista” (que foi um momento de distensão no regime do Estado Novo, decorrente da substituição de Oliveira Salazar por Marcello Caetano na presidência do governo), um grupo de 39 cidadãos, composto por elementos da oposição, na maioria afetos à publicação do semanário Comércio do Funchal, entregou ao governador civil, Braancamp Sobral uma carta, reclamando uma mudança do sistema político, soluções para a situação da Madeira, e uma política de planeamento: “Eis, Senhor Governador, um dos problemas primários a ser tratados por qualquer comissão de planeamento regional que venha a ser constituída, conforme o pedem as necessidades de uma economia cuja situação de descalabro e de desajustamento entre os diversos sectores (tanto privados como públicos) exige soluções globais urgentes e decisivas. E consideramos muito importante que o Planeamento Regional, não dispensando o concurso de especialistas de outras zonas do país e até estrangeiros, não prescinda da colaboração de madeirenses ou de quaisquer outros que, pelo seu contacto prolongado com a vida local, tenham conhecimento perfeito da sua problemática” (Carta, 1969, 20). O planeamento regional era, assim, uma opção assumida por todos, sendo encarado como um mecanismo importante na definição das políticas regionais, que passavam pela promoção da agricultura e do turismo. Podemos, aqui, enquadrar a ação da Comissão dos Aproveitamentos Hidráulicos e Hidroeléctricos (1941), assim como a política de melhoria do sistema de transportes internos e externos, em que se destaca a construção dos aeroportos do Porto Santo (1960) e do Funchal (1964). Rui Manuel Vieira presidiu, entre 1970 e 1971, à Comissão de Estudo e Coordenação Económica, órgão consultivo e de planeamento da Junta Geral do Funchal. A 24 de fevereiro de 1971, foi nomeado presidente da Junta Geral, tendo tomado posse a 27 deste mês, cargo que passou a acumular com o de presidente da Comissão de Planeamento da Região da Madeira. Nesta altura, existia a Comissão de Estudo e Coordenação Económica, órgão consultivo da Junta Geral, criado por deliberação da Comissão Executiva de 11 de junho de 1970. Foi exonerado, a seu pedido, no início de setembro de 1974. Em 1980, foi nomeado diretor regional do Planeamento. Em 1971, na sequência da tomada de posse do novo presidente da Junta e da organização dos serviços de planeamento, o subsecretário de Estado do Planeamento Económico, João Salgueiro, visitou o Funchal. A partir de então, o planeamento regional tornou.se uma realidade, criando-se, em 1971, as subsecções de trabalho sobre agricultura e infraestruturas e, em 1972, a de industriais. Desta forma, no orçamento da Junta Geral de 1971, surge um novo capítulo sobre Planeamento Regional para os estudos necessários ao desenvolvimento económico-social da Madeira. A 2 de junho de 1972, numa reunião dos presidentes das Comissões de Planeamento das diversas regiões do país, foi proposta a criação de sociedades de desenvolvimento regional. O IV Plano de Fomento Nacional já receberá o aporte significativo destas comissões. Com o 25 de Abril de 1974, acabaram os planos de Fomento e foi criada uma nova política de planeamento. Os governos provisórios (1974-1976) estabeleceram programas e planos económicos para o período de transição. Depois, a Constituição da República de 1976 definiu as grandes opções do plano, os planos anuais e plurianuais, os investimentos do plano, e os programas integrados de desenvolvimento regional dos programas de investimentos intermunicipais. O suporte destes planos é o Secretariado Técnico do Planeamento que, em 1975, deu lugar ao Departamento Central de Planeamento, que teve como parceiros, desde 1977, a Comissão Técnica Interministerial de Planeamento e o Conselho Nacional do Plano. Com as alterações políticas introduzidas pelo dec.-lei n.º 139/75, de 18 de março, foi criada na Madeira a Junta de Planeamento, que funcionava como instituição governativa transitória, e que tinha sob a sua tutela a Junta Geral do Distrito Autónomo da Madeira e a Comissão Regional de Planeamento. Esta deu lugar, pelo dec.-lei n.º 101/76, de 3 de fevereiro, à Junta Administrativa e de Desenvolvimento Regional, com competências no planeamento e nas finanças. A Junta Administrativa Regional foi criada na dependência direta do primeiro-ministro. Com a Constituição de 1976, foram instituídas as Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, que passaram a usufruir de poderes financeiros e administrativos, expressos na autonomia patrimonial plena, com poderes de planeamento e orçamentais próprios. Com a criação do primeiro Governo Regional, pelo dec. regional n.º 2/76, de 21 de outubro de 1976, foi criada a Secretaria Regional do Planeamento Finanças e Comércio e, finalmente, pelo dec. reg. regional n.º 9/79/M, de 29 de maio, foi criada, no âmbito da Secretaria Regional de Planeamento e Finanças, a Direcção Regional de Planeamento. Finalmente, pelo dec. leg. regional n.º 18/2007/M, de 12 de novembro, é criado o Instituto de Desenvolvimento Regional, para substituir o Instituto de Gestão de Fundos Comunitários, com a missão de coordenação das atividades de planeamento e de monitorização do modelo de desenvolvimento regional, bem como de coordenação e gestão da intervenção dos fundos comunitários, na RAM.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

História Política e Institucional