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sousa, eurico fernando fernandes correia de

(1933-2015) Arquiteto, professor, poeta, Eurico de Sousa revelou interesse por todos os assuntos relacionados com a literatura e a arte, o cinema, a biologia (ecologia) e a etnologia. Desde cedo, a escrita e o desenho tornaram-se o veículo expressivo da sua preferência, tendo realizado diversos trabalhos nestas áreas, alguns deles apresentados em jornais, revistas literárias e na rádio. Depois da preparação básica e secundária, iniciou-se em Coimbra no curso de Medicina, ideia que rapidamente pôs de parte, por não se adaptar física e psicologicamente às condições que lhe eram exigidas. A propensão natural para seguir as artes levou-o a hesitar na escolha entre o curso de Pintura e o de Arquitetura. Decidiu-se finalmente pela arquitetura e partiu para o Porto, onde se matriculou na Escola de Belas-Artes, terminando o curso em Lisboa (ESBAL). Aqui frequentou o Café Gelo, centro de encontro de intelectuais da época, cuja convivência marcou de modo particular o seu percurso literário. Viajou pela Europa, Brasil e América Latina. Publicou dois livros de poesia e integrou algumas coletâneas. Nos últimos anos de vida, a fragilidade da sua saúde acentuou-se, o que o impediu de concretizar mais alguns projetos de publicação do seu espólio poético. Palavras-chave: Poesia; História da Arte; Biologia; Desenho; Arquitetura.   Fig. 1 – Eurico Fernando Fernandes Correia de Sousa (arquivo particular). Eurico de Sousa nasceu no Funchal a 17 de maio de 1933, na R. da Levada dos Barreiros, n.º 32, casa paterna. Filho de Fernando de Sousa e de Alice Fernandes Correia de Sousa, ainda criança foi residir com os pais numa casa herdada pela mãe no Sítio do Papagaio Verde (S. Martinho), onde frequentou por curto espaço de tempo a escola mais próxima, situada no Areeiro. Mais tarde, o pai matricula-o no Colégio Nuno Álvares e aqui completa a instrução primária, com a Prof.ª Isabel Marina da Encarnação, que o considerava e distinguia pelo seu excelente aproveitamento. Permaneceu neste Colégio durante o tempo de terminar o Curso Geral (antigo 5.º ano), donde transitou para o Liceu de Jaime Moniz. Começou então a afirmar-se pelas suas nítidas tendências nas áreas do desenho e da pintura e era, por isso, solicitado para trabalhos extracurriculares, realizando cenários para récitas e colaborando assiduamente na revista escolar Presente, de que foi nomeado diretor. Nesta data, escreve um poema de carácter neorrealista onde avulta o interesse pelos problemas sociais dos habitantes da vila piscatória de Câmara de Lobos. De tal modo o absorviam essas tarefas, que se alheava do estudo obrigatório, pelo que achou por bem partir para Coimbra, em 1952, onde terminou duas cadeiras do 7.º ano (11.º atual). Dentre as disciplinas do currículo liceal, a Biologia atraía-o particularmente e proporcionava-lhe uma boa opção para a escolha dum curso. Apoiado pela decisão dum colega que se matriculara em Medicina, Eurico de Sousa tentou a experiência. Mas a sua fraca capacidade de resistência perante a degradação humana, nos processos de autópsia, e o ambiente frio e húmido desta região do país não lhe permitiram prosseguir na carreira. Ruma então ao Porto, em 1954, e é admitido na Escola Superior de Belas Artes. Os estudos iniciais eram comuns às várias disciplinas artísticas, e Eurico de Sousa hesitou entre Arquitetura e Pintura. Prevaleceu a Arquitetura e foi este um período promissor em que se revelou, com boas classificações. Trabalhos seus foram apresentados na Exposição Magna da Escola, o que, para um aluno principiante, constituiu um desejado estímulo. Segue-se uma interrupção em que cumpriu o serviço militar. Nesta época, 1956, de regresso à Madeira para um período de férias, conhece Herberto Helder e António Aragão. Escreve muito e colabora na revista literária Búzio, criada por António Aragão, e, a conselho de Edmundo Bettencourt, publica em Lisboa, nos cadernos Folhas de Poesia, dirigidos por António Salvado, cujo primeiro número veio a público em 1957. Esta publicação contava com um núcleo prestigiado de colaboradores, entre os quais, além do seu diretor e de Edmundo Bettencourt, também António Maria Lisboa, Fernando Echevarría, Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, João Rui de Sousa, José Carlos González, Helder Macedo, David Mourão-Ferreira, Herberto Helder e René Bertholo e Lourdes Castro na parte ilustrativa. Mais nomes se juntavam a esta plêiade, sendo que, segundo afirmam alguns investigadores, o estudo das Folhas de Poesia continua por fazer. Eurico de Sousa inicia nesta época (fins dos anos 50) uma interessante correspondência com Herberto Helder, que, a ser divulgada, constituirá um documento importante para a história da Madeira. Ao voltar ao Porto, vai frequentes vezes a Lisboa encontrar-se com este poeta, a quem dedica grande consideração e amizade, reconhecido também pelo acolhimento aos seus poemas – no extrato duma carta de Herberto Helder, lê-se “[…] saudando com entusiasmada surpresa a qualidade dos teus poemas”. É nesta fase que frequenta o café Gelo e conhece Mário Cesariny, Luiz Pacheco e outros surrealistas. Anuncia depois a desistência do curso e fixa-se na capital. No convívio com as ideias vanguardistas e certo cariz anárquico praticado pelos frequentadores do Café Gelo, que influenciaram a sua escrita e o estilo de vida, Eurico de Sousa foi desbaratando a mesada, alojado em quartos sórdidos e sobrevivendo mal, até que seu pai, ao emigrar para Caracas, resolveu criar-lhe a oportunidade de continuar ali os estudos. Eurico de Sousa começara a manifestar predisposição para estados depressivos, chegando a recusar oportunidades de colaboração em atividades que o valorizavam profissionalmente. Fig. 2 – Eurico Fernando Fernandes Correia de Sousa, Leblon, Rio de Janeiro (arquivo particular). Na Venezuela, devido à constante agitação, por vezes violenta, que se vivia nos meios académicos e à falta de intercâmbio cultural entre aquele país e Portugal, tornou-se impossível ali permanecer. Em 1960, outra tentativa de recuperação do curso, agora no Brasil, na cidade de São Paulo, onde tinha familiares. Ao procurar a faculdade que lhe permitisse concretizar esse objetivo, julgou tê-la encontrado no Rio de Janeiro, para onde parte. Novo desaire: a Faculdade de Arquitetura fora retirada para a ilha do Governador, e tão longo percurso era impraticável. Por aqui se manteve durante cinco anos. A última opção foi voltar ao Porto, onde realizou as cadeiras que lhe faltavam. Porém, era mais fácil economicamente fixar-se em Lisboa, onde, mais uma vez, hospedado em habitações insalubres, adoece, com um problema renal, que lhe exige uma cirurgia de urgência. Depois de ter ultrapassado toda esta atribulação, termina o curso de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Foi professor numa escola secundária em Santarém e em Tomar entre 1972 e 1974 e desejou voltar à Ilha. Entre julho de 1974 e outubro de 1981, trabalha no Gabinete de Urbanização da Câmara Municipal do Funchal, função que acumula com a de professor na Escola Industrial e Comercial desta cidade e no Instituto de Artes Plásticas da Madeira. Neste ano, tenta o estágio profissional para professor. É depois destacado para a biblioteca da Escola Secundária Ângelo Augusto da Silva e ali faz trabalhos de investigação literária de apoio ao currículo da disciplina de Português. Simultaneamente, apresenta na Radiodifusão local (atual Antena 1) um programa sobre temáticas literárias, interessando-se especialmente pela obra de Herberto Helder e Saint-John Perse e pelas propostas modernistas da Bauhaus. Publica, em 1980, o livro de poesia A Festa Sendo em Agosto (Ed. Eco do Funchal), com desenhos da pintora Alice Sousa, sua irmã, e prefácio de António Aragão, um volume espesso que contém quase toda a sua obra e que obteve boas referências de Eduardo Prado Coelho, Assis Pacheco, António Aragão e Herberto Helder. Em 1995, a Direção Regional dos Assuntos Culturais patrocina o seu segundo livro, intitulado Disgrafia Florestal, com desenhos da sua autoria. Integrou as coletâneas de poesia Ilha 4 (organizada por José António Gonçalves e editada em 1994 pela Câmara Municipal do Funchal), Ilha 5 (com organização de Marco Gonçalves e edição da Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008), O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses (com organização de José António Gonçalves, editada em 1989 pela Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigração), Poet’Arte 90: Poesia Madeirense (publicada pela Associação de Escritores da Madeira em 1990) e Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (organizada e traduzida por Giampaolo Tonini no Centro Internazionale della Grafica di Venezia em 2001). A poesia de Eurico de Sousa posiciona-se num cenário delirante, onde a manipulação das imagens se exerce completamente solta, integralmente livre, e as palavras, as suspensões, omissões, neologismos e sinais gráficos superam a norma significante, para se tornarem elementos estéticos especialmente apelativos. O pensamento expressa-se, assim, através duma sobrerrealidade que reinventa a tessitura da escrita de modo fulgurante, provocatório, criando uma propositada desordem, um ritmo caótico, automático, sufocante, que o poeta utiliza no sentido de denunciar o enigma e a ambiguidade do mundo e da própria natureza humana. Neste automatismo se vislumbram contornos de solidão, claustrofobia, uma velada mágoa que se expressa em versos como este, extraído do livro A Festa Sendo em Agosto: “(Tenho andado como quem não exista)./Só cortando o coração à noite/me apercebi desse absurdo” (SOUSA, 1980, 123). Obras de Eurico Fernando Fernandes Correia de Sousa: A Festa Sendo em Agosto (1980); Disgrafia Florestal (1995).     Irene Lucília Andrade (atualizado a 28.02.2020)

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silva, nuno estêvão lomelino da

(Funchal, 1892 - Lisboa, 1967) Lomelino Silva foi um tenor lírico madeirense do séc. XX, de renome internacional. Estudou canto em Lisboa e em Itália, estreando-se no Teatro Dal Verme de Milão. Realizou várias digressões pelos grandes palcos mundiais, alcançando sucesso na interpretação de importantes papéis em óperas de, entre outros, Verdi e Puccini. Nos Estados Unidos da América foi chamado de “Caruso português”, por comparação com Enrico Caruso, célebre cantor italiano de música clássica. Em 1926, gravou alguns temas musicais pela editora britânica His Master’s Voice, que foram recuperados em 2009, na edição de um CD áudio, no Funchal. Palavras-chave:  música, ópera, tenor, teatro, cultura. Nuno Estêvão Lomelino da Silva foi um tenor lírico do séc. XX, que se tornou uma das figuras madeirenses mais célebres da sua época, com uma carreira artística de grande projeção internacional. No meio artístico usava o nome Lomelino Silva, pelo qual também ficou conhecido. Lomelino Silva nasceu na R. das Maravilhas, no sítio da Cruz de Carvalho, pertencente à freguesia de São Pedro, no Funchal, a 26 de dezembro de 1892, e faleceu em Lisboa, a 11 de novembro de 1967, um mês antes de completar 75 anos. Era filho de Guilherme Augusto da Silva e de Helena Lomelino da Silva. Completou o curso da Escola Comercial Ferreira Borges e, posteriormente, da Escola de Oficiais Milicianos. Trabalhou em Lisboa, no Banco Totta, alistando-se depois no Exército, onde alcançou o posto de alferes de Artilharia. Durante a Primeira Guerra Mundial participou na defesa da ilha da Madeira, quando foi atacada por submarinos alemães. Todavia, encorajado por amigos, acabou por abandonar a carreira militar e prosseguir os estudos na área da música. A sua estreia como cantor aconteceu em 1916, num recital de caridade, no então denominado Teatro Dr. Manuel de Arriaga (posteriormente Teatro Municipal Baltazar Dias), onde recebeu vários elogios pela sua interpretação da opereta Primeiros Afectos, da autoria de Alberto Artur Sarmento. Após o sucesso da sua primeira apresentação pública, seguiu para Lisboa, em 1918, ainda antes do fim da Primeira Guerra Mundial, para ter aulas de canto com o professor Alberto Sarti. Mais tarde, por volta de 1920, depois de regressar à Madeira, acatou diversos conselhos para estudar em Itália, onde foi aperfeiçoar o seu talento musical e adquirir conhecimentos técnicos do bel-canto como discípulo de Giovanni Laura e Ercole Pizzi, dois conceituados músicos da época. No dia 31 de dezembro de 1921, estreou-se nos palcos italianos, no Teatro Dal Verme de Milão. Esta data determinaria o início de uma carreira singular como cantor lírico, marcada por várias digressões internacionais, com apresentações públicas em vários países. Em Itália, Lomelino Silva interpretou os importantes papéis de Duque de Mântua, na ópera Rigoletto, de Verdi, e de Rodolfo, em La Bohème, de Puccini, alcançando notável reconhecimento. Ao longo da sua carreira artística desempenhou vários papéis de destaque, em obras como Mefistófeles, Tosca, Fausto, entre outras. Interpretou igualmente canções portuguesas conhecidas na época, que cantava nos seus espetáculos. No início de 1922, integrou uma companhia italiana de ópera e fez uma digressão pela Holanda. No final daquele ano, fez a sua primeira digressão ao Brasil. Nas diversas atuações que realizou nos anos seguintes, incluíram-se as que efetuou pela Europa onde, além dos concertos produzidos em várias cidades italianas, o cantor madeirense atuou ainda em Espanha, França, Suíça e Inglaterra. Decorria o ano de 1926 quando Lomelino Silva foi convidado pela editora musical britânica His Master’s Voice para gravar alguns temas, tendo sido o primeiro madeirense a ter este privilégio, de acordo com Duarte Mendonça. O reportório fonográfico incluiu composições de Verdi, Sarti, Tomás de Lima, Fernando Moutinho, Coutinho de Oliveira, António Menano, Alfredo Keil e Rui Coelho. As gravações foram distribuídas internacionalmente, o que contribuiu para a projeção mundial do tenor madeirense. Em 1927, andou em digressão pelos Estados Unidos da América, sobretudo na Florida, Nova Iorque, Pensilvânia, Massachusetts, Virgínia e Califórnia. Neste país foi comparado ao tenor italiano Enrico Caruso, devido à sua excelente voz, tendo recebido a alcunha de “Caruso português”. Na verdade, também no Brasil, em 1930, a imprensa brasileira corroborou o cognome atribuído pelos americanos e os elogios à sua voz. Em 1931, encetou outra digressão mundial, que duraria cerca de dois anos, com início pela costa leste e oeste dos Estados Unidos e pelo Havai. A partir da América empreendeu uma viagem por diversos territórios asiáticos como Xangai, Hong-Kong, Macau, Filipinas, Singapura e Índia, passando depois por Moçambique e a África do Sul, onde deu vários concertos. Em 1934, realizou uma digressão pelas Antilhas e, mais tarde, em 1936, viajou novamente pelos Estados Unidos, apresentando-se em cidades como Nova Iorque, Hollywood e Los Angeles. Entre 1938 e 1949, Lomelino Silva terá ainda voltado a atuar nas Antilhas e no Brasil, antes de se despedir dos palcos, em fevereiro de 1949, no Cinema Tivoli, em Lisboa. A par das atuações internacionais, em que foi reconhecido pelo seu talento, o tenor madeirense foi realizando concertos no seu país, nomeadamente, em Lisboa, no Porto e nos arquipélagos. À Madeira regressou várias vezes, apresentando diversos recitais líricos no Teatro Municipal do Funchal, que ia interpolando com a sua aclamada carreira internacional. Refira-se, e.g., os espetáculos realizados nos anos de 1921, 1925, 1926, 1928, 1931, 1933, 1939, 1943, 1944 e 1946, o que revela a sua estima à terra natal, pelo número de vezes que atuou “em casa”. A imprensa da época, quer a regional, quer a nacional e mesmo a internacional, por diversas vezes elogiou a melodiosa voz de Lomelino Silva e os seus concertos tiveram largo destaque nas páginas dos diferentes jornais. A imprensa madeirense, em reconhecimento do seu conterrâneo, dedicou-lhe vários artigos, sobretudo quando atuava no Funchal. Cantores de Ópera Portugueses (1984), de Mário Moreau, dedica um longo artigo ao tenor madeirense incluindo transcrições de artigos de alguns periódicos nacionais e internacionais com menções a Lomelino Silva. É também possível seguir a trajetória do célebre cantor lírico através das informações ali contidas, relativas a datas, locais, programação dos recitais e concertos dados ao longo da sua carreira artística. Em reconhecimento do seu talento, foram-lhe prestados vários tributos em vida e póstumos. Em 1925, foi realizada uma homenagem no Funchal, com o descerramento da uma placa de mármore com o seu nome no Salão Nobre do Teatro Municipal. Tratou-se de uma iniciativa do Club Sport Marítimo, após o êxito de um concerto promovido pelo Club Sports da Madeira, organizado por um grupo de amigos de Lomelino Silva, em agosto de 1925, e das solicitações do público para a realização de uma segunda récita. O Club Sport Marítimo decidiu então promover um segundo concerto, pedindo ainda autorização à Câmara Municipal do Funchal para a colocação de uma placa comemorativa da passagem do tenor pelo Teatro. A proposta foi aprovada pelo município funchalense, que se associou à iniciativa. Quatro anos depois, a 19 de junho de 1929, foi condecorado por Óscar Carmona, então Presidente da República portuguesa, com o grau de Oficial da Ordem Militar de Cristo, a maior homenagem que recebeu em vida no seu país natal. Em 1992, por ocasião do centenário do seu nascimento, o Governo regional da Madeira promoveu a colocação de uma placa comemorativa no local onde nasceu Lomelino Silva. Posteriormente, em 2001, o tenor português Carlos Guilherme (n. 1945) prestou-lhe tributo, promovendo um espetáculo no Teatro Municipal Baltazar Dias, onde interpretou o mesmo reportório apresentado pelo madeirense em Lourenço Marques (a então capital de Moçambique), a 29 de dezembro de 1932. Mais tarde, em 2009, foi editado um CD que recupera as gravações de Lomelino Silva realizadas em Londres, em 1926. Esta edição discográfica inclui um livreto com a sua biografia, elaborada por Duarte Miguel Barcelos Mendonça, assim como transcrições de artigos publicados na imprensa.   Sílvia Gomes (atualizado a 03.02.2017)

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mercado interno (união europeia)

O mercado europeu é um espaço sem fronteiras internas no qual circulam livremente pessoas, mercadorias, serviços e capitais. Com a integração dos mercados nacionais num espaço económico único procura alcançar-se aumentos de prosperidade, crescimento e emprego. Do mercado interno resultam benefícios significativos para os cidadãos europeus, tais como a mobilidade para trabalhar ou estudar, o aumento da gama de produtos e serviços, a tutela dos respetivos direitos enquanto consumidores, etc.; por seu turno, as empresas, ao operarem num contexto de maior dimensão do mercado e de concorrência, orientam-se por uma maior eficiência produtiva e pela procura de inovações diferenciadoras. As diferentes designações utilizadas, nomeadamente “mercado comum”, “mercado interno” e “mercado único”, correspondem a momentos cronologicamente distintos do percurso de integração, procurando-se através delas refletir o sucessivo aprofundamento e enriquecimento do mercado europeu. O mercado interno corresponde a um dos estádios ou fases da integração económica, entendendo-se esta como um processo composto por um conjunto de medidas que visam abolir a discriminação entre unidades económicas pertencentes a diferentes ordens nacionais (BALASSA, 1961). Seguindo o mesmo autor, um percurso de integração caracteriza-se por aprofundamentos sucessivos que assumem as seguintes formas: zona de comércio livre, união aduaneira, mercado comum, união económica e integração económica completa. Numa zona de comércio livre os Estados participantes suprimem as restrições tarifárias e quantitativas ao comércio entre si, conservando cada um deles a respetiva política tarifária perante terceiros; a união aduaneira pressupõe que, para além da supressão de restrições tarifárias e quantitativas, os Estados que a integram adotem uma pauta aduaneira comum; o mercado comum caracteriza-se pela abolição de restrições ao comércio, bem como de obstáculos à mobilidade de fatores; a união económica combina a supressão de restrições à livre circulação de bens, serviços e fatores com a harmonização das políticas nacionais em alguns domínios relevantes, a fim de eliminar tratamentos discriminatórios; por último, a integração económica completa pressupõe uma unificação das políticas monetária, orçamental, social e de contraciclo, o que implica a existência de autoridades supranacionais cujas decisões vinculam os Estados participantes. Esta classificação das fases da integração e, sobretudo, as características associadas pelo autor a cada uma delas não coincidem, com rigor, com as diversas etapas do processo de integração europeia (GRIN, 2003); no entanto, constituem um enquadramento teórico muito relevante para a compreensão da construção europeia. A análise do impacto económico dos processos de integração é objeto de vasta bibliografia. Neste domínio da teoria da integração releva o contributo de VINER (1950), o qual, segundo uma perspetiva estática, demonstra que as uniões aduaneiras geram efeitos positivos (criação de comércio) e negativos (desvio de comércio); outras análises, efetuadas de acordo com um prisma dinâmico, evidenciam os efeitos virtuosos da integração económica: a transferência de tecnologia, as economias de escala, o aumento da concorrência e da produtividade, o incremento do investimento e a diminuição do risco, entre outros.   Construção do mercado interno O Tratado que Institui a Comunidade Económica Europeia (Tratado de Roma, 1957) estabeleceu como objectivo da integração económica a criação de um mercado comum, o qual pressupunha a concretização de uma união aduaneira, a eliminação de restrições quantitativas e medidas de efeito equivalente e a livre circulação de pessoas, serviços e capitais (arts. 2.º e 3.º, TCEE). Para alcançar estas realizações, fixou-se um período de transição de 12 anos, ou seja, até 1 de janeiro de 1970 (art. 8.º, TCEE); a união aduaneira foi concluída antes do termo daquele prazo, em 1 de julho de 1968. Para além da realização da união aduaneira, e da necessária política comercial comum, o mercado comum implicava também a efetivação da livre circulação de mercadorias, de serviços, de fatores de produção e de estabelecimento. Para tanto, procede-se à eliminação de restrições quantitativas, estabelecem-se as bases da livre circulação de trabalhadores dependentes e efetua-se uma harmonização parcial da fiscalidade indireta, com a implementação do IVA em 1970. Em domínios essenciais à concretização desta fase de integração, tais como a concorrência, a agricultura e pescas e os transportes, operou-se uma transferência de competências dos Estados-membros para a Comunidade, com vista à criação de políticas comuns, pelo que, durante a década de 60, se procedeu à definição da Política Comercial Comum, da Política Agrícola Comum (PAC) e da Política de Transportes. Na década de 80, a livre circulação estava ainda longe de ser alcançada, em virtude de subsistirem cláusulas de salvaguarda, medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas (designadamente sob a forma de regulamentações técnicas nacionais), práticas restritivas da concorrência promovidas por entes públicos (através, por exemplo, de auxílios estatais), bem como fortes entraves à livre prestação de serviços e ao direito de estabelecimento. Verificava-se ainda a existência de diferenças consideráveis entre sistemas fiscais nacionais, em particular quanto à fiscalidade indireta, que se traduziam em acréscimos de custos de cumprimento, associados a formalidades administrativas, e em correlativas distorções de preços. Constatava-se também a presença de uma ampla diversidade de normas nacionais de carácter técnico (fundamentadas em razões de saúde pública, de proteção dos consumidores, sociais ou ambientais), as quais, para além de poderem dissimular intuitos protecionistas, constituíam em si mesmas entraves à livre circulação ao colocar sobre os produtos não nacionais o ónus de se terem de conformar com dois ordenamentos jurídicos distintos e, consequentemente, de incorrer em custos de adaptação de natureza produtiva ou administrativa. As dificuldades de concretização do mercado comum a este nível ficaram a dever-se, em grande parte, ao facto de a eliminação dos obstáculos decorrentes de regulamentações técnicas nacionais fazer-se por via da harmonização legislativa, o que exigia a unanimidade no Conselho (art. 149.º, TCEE). Perante estes entraves à plena concretização do mercado comum foi dado um impulso reformador no sentido do aprofundamento da integração económica através do Programa para o Mercado Interno, apresentado por Jacques Delors, seguido do Livro Branco, de 1985 (O Livro Branco da Comissão, elaborado por Lord Cockfield, e apresentado no Conselho Europeu de Milão, definia as reformas legislativas a efetuar e a transpor pelos Estados-membros até ao final de 1992: Completing the Internal Market: White Paper from the Commission to the European Council, COM(85) 310, junho de 1985). Entendendo que a realização do mercado europeu pressupunha uma supressão efetiva de fronteiras físicas, técnicas e fiscais, estes documentos propõem cerca de 300 medidas legislativas, a adoptar até 1992, destinadas a abolir o controlo de pessoas e mercadorias em postos aduaneiros internos; eliminar os entraves à circulação de mercadorias e serviços gerados por regulamentações nacionais; e aproximar a tributação indireta. Aponta-se também para a utilização de uma “nova metodologia” que privilegia o reconhecimento mútuo, reservando a harmonização técnica e normalização para as “exigências fundamentais” de segurança, de saúde e de proteção do ambiente. Assim, a par da relevância conferida ao princípio do reconhecimento mútuo das regulamentações nacionais, elaborado pela jurisprudência europeia, propõe-se uma maior flexibilidade no processo decisório de harmonização conjugada com uma nova metodologia – comitologia – destinada a eliminar o excessivo detalhe dos textos legislativos. Em consonância com aqueles objetivos de aprofundamento, o Ato Único Europeu (J.O. L 169/1 de 29/06/87), entrado em vigor a 1 de julho de 1987, introduziu no Tratado o conceito de “mercado interno”, como um “espaço sem fronteiras internas no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada”, a concretizar até 31 de dezembro de 1992 (art. 8.º-A, aditado ao TCEE). Para tal operou-se uma importante alteração do processo decisório substituindo-se a regra da unanimidade, vigente até então, pela da maioria qualificada, em domínios fundamentais como os direitos da pauta aduaneira comum, a livre prestação de serviços e a aproximação das legislações nacionais [art. 95.º (100.º-A), TCEE]. O Ato Único Europeu consagra uma articulação entre o aprofundamento do mercado comum e a coesão económica e social, bem como uma sedimentação da identidade europeia, a partir da plena circulação dos cidadãos num espaço sem fronteiras internas. A realização do mercado interno, nos termos delineados pelo Livro Branco, encontrava-se concluída no final de 1992, com a adopção de mais de 90% das medidas previstas naquele documento: alcançou-se a quase total livre circulação de pessoas e de mercadorias, a liberalização total dos movimentos de capitais e o aprofundamento da livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento. Apesar destes progressos, o mercado interno ainda estava longe de ser uma realização plena em virtude de terem sido deixados de fora importantes domínios, como a harmonização fiscal e a liberalização de sectores económicos fundamentais, bem como por se constatarem atrasos na transposição de diretivas, transposição incorreta ou a sua inadequada aplicação pelas administrações nacionais. Para além destes aspetos, cedo se constatou a necessidade de aprofundar a harmonização surgindo sucessivas “gerações” de diretivas em diversos sectores, tais como os serviços financeiros, a supervisão financeira, a contratação pública, etc. A partir de 1992, foram tomadas várias iniciativas com vista ao maior aprofundamento do mercado interno, como o Plano de Ação para o Mercado Único a Estratégia para o Mercado Interno 1999-2002, a Estratégia para o Mercado Interno 2003-2006 e o Mercado Único para o Século XXI. Após duas décadas sobre o mercado interno, a UE propôs uma nova estratégia global de aprofundamento da integração de mercado, como condição para o aumento do crescimento, do emprego e da coesão social, ao publicar uma comunicação da Comissão intitulada Ato para o Mercado Único. Doze Alavancas para Estimular o Crescimento e Reforçar a Confiança Mútua “Juntos para um Novo Crescimento” (COM/2011/206 final, 13/04/2011). Com esta estratégia pretende estimular-se o crescimento e o emprego, restaurar a confiança dos cidadãos no mercado interno e proporcionar aos consumidores todos os benefícios que ele oferece. A fim de ultrapassar as falhas da integração do mercado, propõem-se reformas estruturais que permitam concretizar os objetivos de crescimento inteligente, sustentável e inclusivo definidos pela estratégia “Europa 2020”. As falhas ou insuficiência do mercado interno, que agora se visa corrigir, respeitam à fragmentação do mercado, à eliminação dos obstáculos e barreiras à livre circulação dos serviços, à inovação e à criatividade. A Comissão identifica “doze alavancas para estimular o crescimento e reforçar a confiança dos cidadãos”, a cuja execução associa ações-chave, entendendo-se que o sucesso desta estratégia só poderá ser alcançado se existir uma melhor governação do mercado único. O relançamento do mercado interno, agora proposto, evidencia uma estreita conexão entre as políticas e ações tradicionais relativas ao mercado interno e os aspectos da integração europeia de carácter social, atento o objectivo de concretização da economia social de mercado afirmado pelo Tratado da União Europeia (TUE) no número 3 do seu artigo 3.º.   Caracterização A UE estabelece um mercado interno (art. 3.º n.º 3.º, TUE). De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 26.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), “o mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas, no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada de acordo com as disposições dos Tratados”. Nos termos deste preceito o mercado interno europeu tem como núcleo essencial as quatro “liberdades económicas fundamentais”, no entanto a sua plena efetivação pressupõe a existência de uma união aduaneira e de um enquadramento de livre concorrência. A concretização das liberdades económicas fundamentais só pode ser alcançada se os mercados forem competitivos, pelo que o mercado interno “inclui um sistema que assegura que a concorrência não seja falseada” (Protocolo n.º 27, relativo ao mercado interno e à concorrência). Nesta medida, o modelo de mercado interno europeu integra um conjunto de normas de “defesa da concorrência”, aplicáveis às empresas e aos Estados-membros (arts. 101.º a 109.º, TFUE). Ligadas indissociavelmente à construção do mercado interno encontram-se as normas relativas à “política comercial comum” (arts. 206.º e 207.º, TFUE), que disciplinam a vertente externa da união aduaneira, e as “disposições fiscais” (arts. 110.º a 113.º, TFUE), com base nas quais se procura que os custos associados à tributação indireta não representem distorções à concorrência e obstáculos ao funcionamento do mercado interno. A concretização do mercado europeu é acompanhada de uma “política de coesão” (art. 3.º n.º 3.º, TUE; arts. 174.º a 178.º, TFUE) que visa assegurar que todos os cidadãos, independentemente da sua localização geográfica, beneficiem e contribuam para esse mercado. O mercado interno constitui um domínio de competência partilhada entre a União e os Estados-membro (art. 4.º, n.º 2 a), TFUE).   União aduaneira A livre circulação de mercadorias implica que estas circulem sem entraves no espaço territorial da UE. Para alcançar plenamente essa liberdade devem ser eliminadas todas as barreiras de natureza tarifária ou aduaneira, assim como as barreiras não tarifárias. Pressupõe-se, portanto, uma eliminação das normas nacionais que estabeleçam encargos pautais ou encargos de efeito equivalente, bem como das normas que criem obstáculos quantitativos ou que consubstanciem medidas de efeito equivalente. A eliminação de barreiras tarifárias é alcançável através da concretização da união aduaneira (art. 30.º a 32.º, TFUE), alcançando-se a eliminação de barreiras não tarifárias através da proibição de restrições quantitativas e de medidas de efeito equivalente a estas (art. 34.º a 36.º, TFUE). Nos termos do artigo 28.º TFUE, “a União compreende uma união aduaneira”, que abrange todo o comércio de mercadorias (arts. 28.º n.º 2 e 29.º, TFUE), implica a proibição de direitos aduaneiros de importação e de exportação e de encargos de efeito equivalente entre os Estados-membros (arts. 28.º n.º 1 e 30.º TFUE) e pressupõe a adoção de uma Pauta Aduaneira comum (arts. 28.º n.º 1 e 31.º, TFUE). Tem a natureza de “encargo de efeito equivalente” qualquer encargo pecuniário, seja qual for a sua dimensão, designação e técnica de aplicação, imposto unilateralmente sobre as mercadorias pelo mero facto de atravessarem uma fronteira – e que não se trate de um direito aduaneiro em sentido estrito –, mesmo que não seja estabelecido em benefício do Estado, não tenha um efeito de discriminação ou de proteção, ou mesmo se o produto sobre o qual incide não concorrer com nenhum produto nacional (ac. Comissão/ Luxemburgo e Bélgica, Procs. 2/62 e 3/62, Col., 1962-1964, p. 147; ac. Alemanha/ Comissão, Procs. 52/65 e 55/65, Col. ed. port., p. 319; ac. Comissão/ Itália, Proc. 24/68, Col. 1969, p. 193; ac. Diamandarbeiders, Procs. 2 e 3/69, Col. 1969, p. 211). A jurisprudência do Tribunal de Justiça reconheceu o “efeito direto vertical” do artigo 30.º do TFUE no ac. Van Gend en Loos (Proc. 26/62, Col. 1963, p. 205). A união aduaneira constitui um domínio de competência exclusiva da UE (art. 3.º n.º 1 a), TFUE).   Liberdades económicas fundamentais As quatro liberdades encontram-se consagradas no direito primário da UE nas seguintes normas: livre circulação de mercadorias (arts. 30.º a 37.º, TFUE), de pessoas (arts. 45.º a 55.º, TFUE), de serviços (arts. 56.º a 62.º, TFUE) e de capitais (arts. 63.º a 66.º, TFUE). Para além da liberdade de circulação de mercadorias e serviços a integração do mercado europeu pressupõe também a livre circulação de recursos produtivos a fim de se alcançar a sua alocação mais eficiente, ou seja, o respetivo emprego em utilizações mais valiosas, geradoras de maiores ganhos de bem-estar. As disposições do Tratado relativas às liberdades de circulação disciplinam o exercício de atividades económicas transfronteiriças, proibindo medidas nacionais discriminatórias ou medidas indistintamente aplicáveis que restrinjam o direito de acesso ao mercado (ac. Dassonville, Proc. 8/74, Col. 1974, p. 837; ac. Rewe-Zentrale AG, Proc. 120/78, Col. 1979, p. 649); constituem, por isso, mecanismos jurídicos nucleares na concretização de “um espaço sem fronteiras internas” (art. 26.º n.º 2, TFUE). As normas do direito primário que consagram as liberdades económicas têm aplicabilidade direta (i.e., integram as ordens jurídicas dos Estados-membros sem que seja necessária qualquer medida de receção no direito nacional; ac. Van Gend en Loos, Proc. 26/62, Col. 1963, p. 205) e efeito direto vertical (conferem aos particulares direitos de que estes se podem prevalecer perante a ordem jurídica nacional, relativamente a medidas dos Estados-membros; ac. Van Gend en Loos, Proc. 26/62, Col. 1963, p. 205; ac. Salgoil, Proc. 13/68, Col. 1973, p. 453; Ac. Van Duyn, Proc. 41/74, Col. 1974, p. 1337; ac. Costa/ENEL, Proc. 6/64, Col. 1964, p. 1251; ac. Van Binsbergen, Proc. 33/74, Col. 1974, p. 1299). Em determinadas circunstâncias e condições as normas relativas às liberdades fundamentais da UE podem ter efeito direto horizontal (i.e., são constitutivas de direitos subjetivos oponíveis a particulares; ac. Bosman, Proc. C-415/93, Col. 1995, p. I-4921; ac. Angonese, Proc. C-281/98, Col. 2000, p. I-4139) e efeito indireto horizontal, por via dos deveres de proteção do Estado (ac. Comissão/França, Proc. C-265/95, Col. 1997, p. I-6959; Ac. Schmidberger, Proc. C-112/00, Col. 2003, p. I-5659). As medidas nacionais restritivas das liberdades económicas fundamentais podem considerar-se justificadas com base nas derrogações expressas previstas no Tratado (art. 36.º, 45.º n.º 3, 52.º e 62.º, TFUE), bem como em “exigências imperativas” ou “razões imperiosas de interesse geral”.   Mercado interno e União Económica e Monetária A maximização das vantagens da integração dos mercados só é alcançável se for possível operar uma efetiva comparação de preços dos bens e dos factores produtivos em todo o espaço do mercado. Nesta medida, compreende-se que, num percurso dinâmico de integração, o aperfeiçoamento do mercado interno determine a criação de uma união económica e monetária, enquanto mecanismo capaz de garantir a estabilidade e a comparabilidade dos preços e de evitar distorções à concorrência geradas por custos e desvalorizações cambiais. Em síntese, os benefícios potenciais do mercado único só são alcançáveis com uma moeda única, de forma a assegurar a transparência de preços, a redução de custos de transação e a eliminação de riscos cambiais. O Ato Único Europeu (1986), ao estabelecer o desígnio de criação do mercado interno, contribuiu para generalizar o entendimento de que a concretização daquele mercado, por determinar uma significativa interdependência entre as economias dos Estados-membros, aconselhava a uma maior convergência das políticas nacionais, sob pena da total liberdade de circulação de capitais e da plena integração dos mercados financeiros imporem, no plano nacional, difíceis ajustes monetárias e económicos. O Tratado de Maastricht (1992) consagrou a base jurídica de criação da União Económica e Monetária (arts. 119.º a 144.º, TFUE), seguindo as linhas gerais do Relatório Delors (1989). É inequívoca a particular interdependência entre a liberdade de circulação de capitais (uma das quatro liberdades económicas fundamentais do mercado interno) e a União Económica e Monetária. Se, por um lado, a criação da união monetária impulsionou o aprofundamento da livre circulação de capitais, enquanto pré-condição para a efetivação daquele estádio de integração, por outro, esta liberdade só pode concretizar-se plenamente quando existe uma política monetária e cambial únicas. Com a livre circulação de capitais pretende-se que a mobilidade deste recurso seja essencialmente determinada por razões económicas, deslocando-se o capital em busca da maior reprodutividade, o que é sinónimo de uma alocação mais eficiente. Um espaço unificado a nível cambial permite eliminar diferenças cambiais e custos de conversão, contribuindo para essa mobilidade. Deve ainda ter-se em conta que a existência de uma política monetária única e a coordenação das políticas económicas nacionais introduz uma maior estabilidade de preços e uma diminuição de riscos, o que mitiga a deslocação de capitais orientada pela obtenção de ganhos especulativos. O mercado interno europeu encontra-se, por isso, inextricavelmente associado à União Económica e Monetária, correspondendo esta a um estádio evolutivo de integração mais aperfeiçoado que tem por base o funcionamento do mercado europeu e, simultaneamente, contribui para o seu aprofundamento.   Madeira No quadro do direito da UE, a RAM é qualificada como região ultraperiférica, prevendo-se a possibilidade de serem adotadas medidas específicas relativas às condições de aplicação dos Tratados nos domínios da política aduaneira e comercial, política fiscal, zonas francas, políticas de agricultura e pescas, aprovisionamento de matérias-primas e bens de consumo de primeira necessidade, auxílios estatais, condições de acesso a fundos estruturais e a programas horizontais. As referidas medidas específicas não podem pôr em causa, porém, a integridade e coerência do ordenamento jurídico da União, incluindo o mercado interno (art. 349.º, TFUE).     Paula Vaz Freire (atualizado a 05.02.2017)

Economia e Finanças

festividades

A Madeira é um lugar em que se articulam bem as festividades tradicionais, aquelas que o povo celebra há centenas de anos, com as mais modernas, as que se ligam ao fluxo turístico, que busca coisas novas, diferentes, atrativas. As festividades começam, na Madeira, com a festa do panelo, um festival gastronómico que tem lugar no Seixal, nos finais de janeiro. Segue-se, por alturas de fevereiro, a festa dos compadres que começa dois domingos antes do Carnaval. Dura cerca de duas semanas e é essencialmente uma festa humorística em que se brinca com as mulheres (as comadres) e com os homens (os compadres), terminando com um julgamento, em que normalmente vence a comadre. Para os madeirenses, é uma oportunidade de anteciparem o calendário oficial e começarem os folguedos e as brincadeiras da quadra, a que os gigantones dão um toque burlesco. Há música tocada por instrumentos tradicionais, cantigas e danças populares, bailes, cortejos típicos com trajes regionais e um concorrido arraial onde se comem espetadas, bolos do caco, sonhos, etc.. O Carnaval do Funchal insere-se na antiga tradição de se celebrarem na folia os últimos dias antes do começo da Quaresma. É uma época em que se multiplicam os cortejos alegóricos e os desfiles de máscaras, aproveitados muitas vezes para se exprimirem críticas à atualidade ou a personalidades conhecidas. O cortejo principal é no sábado à noite, mas o desfile de terça-feira, o “Carnaval Trapalhão”, é um momento sempre bem vivido; como o nome indica, as máscaras são mais “trapalhonas” o que parece agradar a quem participa no cortejo e a quem a ele assiste. Em março, os eventos em torno da Semana da Árvore e da Floresta, celebrados maioritariamente no Parque Ecológico do Funchal, proporcionam um contacto e conhecimento próximos do meio ambiente, assim como aprendizagem de práticas para melhor o defender e preservar. Também durante o mês de março decorre, no Faial, a festa da anona. Como se revelará mais adiante outros produtos da terra e do mar justificam a realização de festas populares, um pouco por toda a parte. O Festival Literário da Madeira realiza-se no início da primavera. É essencialmente um conjunto de debates que têm lugar no Teatro Municipal Baltazar Dias, e reúne alguns dos melhores escritores de origem madeirense (e não só) com críticos e estudiosos de Literatura. Não se confina a um certame para eruditos, pois envolve a população em geral. Uma homenagem pública a um vulto relevante do panorama literário madeirense é sistematicamente incluída no programa. Em abril, realiza-se a festa da cana do açúcar na Ponta do Sol. Esta festa recorda que o açúcar foi uma das maiores riquezas da Ilha desde os primórdios do povoamento: o alfenim (massa de açúcar e óleo de amêndoa doce) era presente de elevado valor e chegou a ser moeda de troca para a aquisição de obras de arte. Na feira da cana do açúcar, é possível aprender como se recolhe e trabalha a matéria-prima, como se fabrica a aguardente, o melaço e os rebuçados, para além de se poder visitar exposições e participar em atividades de vária ordem. Além das festas típicas da gente madeirense e que, com mais ou menos alterações, se têm mantido ao longo dos tempos, outras há que, embora envolvam e entusiasmem as populações locais, nasceram como consequência da força de atração turística. Esta é uma realidade a que os madeirenses se foram habituando (há registos muito antigos de visitantes ilustres nestas paragens), e ocorreu de forma fulgurante a partir da segunda metade do séc. XX. Destas festividades, o lugar de honra vai para a famosa Festa da Flor. Na Madeira florescem flores raras e variadas, como as orquídeas, as estrelícias e os antúrios, as poinsétias, os lilases, os jasmins, os hibiscos, as hortênsias e os agapantos; e há as árvores carregadas de flores: os jacarandás, as mimosas, as árvores de fogo. Tudo isto se celebra na Festa da Flor que todos os anos, em abril, enche as ruas do Funchal e possibilita o contacto direto com tão grande e diversificada beleza. Nesta ocasião, as ruas encontram-se engalanadas, tal como o chão, os arcos e as paredes das casas; podem ver-se exposições temáticas; sucessivos cortejos; carros enfeitados; e trajes alegóricos. Do programa anual consta sempre a construção do “Muro da Esperança” pelas crianças do Funchal. Quase em simultâneo com a Festa da Flor realiza-se o Festival dos Jardins do Funchal, concurso de jardineiros encartados, mas também de particulares, comerciantes e artistas amantes de flores, que apresentam minijardins para serem apreciados e classificados pela população. No final, são atribuídos prémios às melhores e mais originais produções. As paisagens naturais da Ilha favorecem propostas de contacto com a natureza, através de caminhadas que se organizam ao longo das levadas e das veredas das montanhas. Assim, em abril, tem ainda lugar uma prova de trilho pedestre que atravessa toda a Ilha, proporcionando aos participantes uma passagem por paisagens e ambientes muitos diversos até no que respeita às condições atmosféricas. Em maio, realiza-se nova prova pedestre, com percursos mais curtos e exigindo competências de orientação. O apóstolo S. Tiago Menor é o padroeiro principal da cidade do Funchal, que o celebra no dia 1.º de maio e a cada ano lhe agradece o tê-la salvo da peste que, no séc. XVI, causou grande mortandade entre a população. As festas, que duram vários dias de música e folguedo, integram uma procissão com a imagem do santo e muitos fiéis enfeitados com cordões feitos de flores amarelas, os “maios”. Neste mês de maio, há também várias festas agrícolas: a festa da cebola, no Caniço, com cortejo de tratores e carroças enfeitadas e leilões do produto em destaque; e a festa do limão (na paróquia da Ilha), marcada pela mostra de doçaria e outros pratos feitos a partir do referido citrino, bem como pelo célebre despique de quadras populares criadas a partir dos mais variados temas e cantadas à desgarrada nos ritmos típicos da região. A Ribeira Brava assiste uma vez por ano, ainda em maio, ao encontro das bandas de música, um acontecimento cultural que permite defender e valorizar as antigas tradições musicais da Ilha e que se transforma num animado despique em que cada um quer mostrar o seu melhor, para alegria dos executantes e orgulho dos que, às vezes de longe, os vêm apoiar. É também nesta vila que se realiza, por ocasião das festas de S. Pedro, uma exibição de fogo de artifício. Acrescenta-se a esta lista de eventos a exposição de automóveis, motos e scooters antigos que se organiza em maio ao longo da estrada Monumental. Apresentam-se máquinas extraordinárias e bem tratadas, que cruzavam as estradas da Ilha nos tempos passados, quando a maioria das pessoas se deslocava a pé ou, quando muito, em carros puxados a bois. Também em junho, é possível ver muitas dessas máquinas afoitarem-se pelas estradas da Ilha numa corrida sui generis de curtas etapas, o chamado Classic Rally. O mês de maio termina com as festas da Sé, que por vezes se prolongam até ao início de junho. São festas de rua mais do que celebrações religiosas, que se realizam à volta da Sé mais do que no seu interior. De toda a cidade, “desaguam” na baixa centenas de pessoas que enchem os bares, que dançam na rua, que provam carne de vinha de alhos, sarapatel, bolo do caco ou bolo de mel, que sugam rebuçados de funcho, que bebericam malvasia e grogue, poncha e jaqué, quando não um dos licores feitos a partir do maracujá, do araçá ou da goiaba, etc. As ruas estão enfeitadas com flores e com luzes que, quer de dia quer de noite, transformam aquele espaço num cenário de festa que os grupos musicais e os ranchos folclóricos se encarregam de animar num rodopio contagiante. Em junho, realiza-se a festa da cereja, no Jardim da Serra, à qual se associa a ginjinha. Ainda neste mês, mas na Câmara de Lobos, terra de pescadores que entusiasmou Churchill pelo seu pitoresco, bem junto ao mar, festeja-se um produto deste rico manancial madeirense: o peixe-espada preto. Esta festa constitui simultaneamente um tributo a quantos labutam na pesca e, assim, aumentam a fama do arquipélago. No Funchal, os santos populares também são celebrados com pirotecnia. As celebrações de S.to António, S. João e S. Pedro animam as noites e os dias da Madeira durante o mês de junho, um dos mais animados do ano. Os bailinhos, as barracas de vinhos e petiscos, as exibições de música folclórica pelas ruas, largos e jardins e ainda o fogo de artifício que ilumina as noites do Festival do Atlântico envolvem quantos por ali se encontram. Em julho, na Madalena do Mar, faz-se a festa da banana; a abundante produção local explica que neste lugar se organize há muito tempo tal evento, famoso em toda a Ilha. Também em julho festeja-se outro produto, outra vez do mar e não da terra: as lapas, no Paul do Mar, servidas na grelha, temperadas com manteiga, alho e limão. Ainda neste mês tem lugar em vários pontos do mar da Madeira o campeonato de pesca grossa; entre as diversas provas do campeonato, conta-se a pesca do espadim azul, que ocorre simultaneamente em vários locais do Oceano Atlântico. É igualmente em julho que se realiza a Semana do Mar, em Porto Moniz, na costa Norte, com atividades e jogos variados, passeios de barco, regatas e exibições de folclore, provas desportivas, e outros acontecimentos culturais. Também em julho, vivem-se em simultâneo o festival de folclore e a festa da maçaroca. O primeiro atrai a Santana grupos folclóricos de toda a Ilha (e de Porto Santo), que se apresentam com um desfile nos seus coloridos trajes; estes variam conforme a localidade de onde são provenientes e do estatuto social que representam. O conjunto de exibições inclui, frequentemente, a de um grupo estrangeiro, vindo de um dos países que acolhe mais emigrantes madeirenses. O desafio que é feito é o de se passarem 48 horas a bailar – e há resistentes que o conseguem. A outra festa acima referida pretende apresentar o artesanato confecionado a partir das folhas do milho e da própria maçaroca, que abunda nas freguesias de Santana e São Jorge. A cidade de Machico tem festas enraizadas na cultura popular. A enseada desta urbe é considerada o local do primeiro desembarque dos Portugueses na região, em julho de 1419. A povoação de Machico é tão antiga como a do Funchal e as duas cresceram lado a lado, repartindo entre si a missão de colonizar a Ilha. Foi sede de uma das três capitanias em que o arquipélago foi dividido no tempo do infante D. Henrique (a terceira é Porto Santo), e ali se realiza o mais típico mercado medieval de toda a região. Dura uma semana e inclui diversões e entretenimentos que se considera já existirem na Idade Média: cortejos, teatros de rua, exibições de acrobatas e malabaristas, jogos pirotécnicos, entre outras atividades. Os participantes usam trajes da época e as barracas proporcionam comidas e bebidas de cariz medieval, bem como artesanato local. As ruas, à volta da igreja dos inícios do manuelino, são engalanadas com bandeiras e colgaduras. No Funchal, o festival de jazz, que se realiza ao ar livre, no parque de Santa Catarina, durante o mês de julho, congrega melómanos que se juntam para ouvir os melhores grupos nacionais e muitos estrangeiros. Também em julho, no parque de Santa Catarina, tem lugar a abertura oficial das festas de verão, com bandas e grupos instrumentais, cantores e intérpretes de várias origens. Realiza-se ainda o Festival Raízes do Atlântico, provavelmente uma das mais antigas apresentações de músicas do mundo em território nacional, que coloca frente a frente grupos tradicionais de distintos países. A romaria da Sr.ª do Monte realiza-se no dia 15 de agosto, perto do Terreiro da Luta, um dos miradouros sobre o Funchal. O motivo da romaria é a veneração de uma imagem muito antiga, alegadamente encontrada por uma pastorinha ainda nos finais do séc. XV, i.e., pouco tempo depois de iniciado o povoamento. A festa é uma das mais famosas da ilha da Madeira e atrai gente vinda de todo o mundo, designadamente das paragens por onde se encontra a diáspora madeirense, sobretudo desde que, em 1803, o bispo do Funchal colocou a cidade e a Ilha sob a proteção da Senhora. A igreja, que data do séc. XVIII e substitui a do séc. XVI, que era demasiado acanhada para tão grande devoção, é ricamente adornada e a procissão conduz multidões de fiéis por ruas engalanadas e caminhos cobertos de flores. Entre as festas citadinas destaca-se o Dia da Cidade do Funchal, instituído para celebrar as memórias daquela que é a mais antiga cidade europeia fora do continente e a sede da outrora maior Diocese do mundo inteiro. Ainda em agosto realiza-se a semana gastronómica de Machico, que junta cozinheiros de toda a Ilha, os quais apresentam os seus pratos mais emblemáticos à apreciação (e julgamento) dos muitos turistas que ali acorrem. Nova mostra gastronómica ocorre por ocasião da festa do Senhor dos Milagres, uma festa essencialmente religiosa com missa e procissão de velas. A capela do Senhor dos Milagres encontra-se na localização provável dos túmulos de Robert Machim e Anne d’Arfet, os jovens ingleses que, fugindo de quem perseguia os seus amores proibidos, ali teriam sido desembarcados no séc. XIV, i.e., antes da chegada dos Portugueses. A capela primitiva foi destruída pela força das águas no início do séc. XIX, e posteriormente reconstruída; no entanto, a imagem de Cristo é a original, uma vez que foi recuperada no mar uns dias depois por um navio americano. O facto foi considerado milagroso e a festa realiza-se em memória do dia em que a imagem foi retirada das águas. Outro núcleo temático festivo liga-se ao mar, que exerce um poderoso fascínio sobre quem vive ou visita a Madeira. Um dos eventos relacionados com este tema é a volta à Ilha de canoa, que ocorre habitualmente em agosto, e que propõe uma ida do Funchal ao Funchal, seguindo a costa. Neste mês realiza-se ainda, no Paul do Mar, uma prova de desporto radical, misto de ciclismo e mergulho. A Camacha é rica em artesanato e nela se realiza, normalmente em agosto, o Festival de Arte que, além de mostrar o que se produz na vila, em vime e giesta, constitui uma exibição de produtos tradicionais de toda a Ilha, designadamente bordados. Esta festa é acompanhada pelas atividades do rancho folclórico local. O tema “Vinho da Madeira” é celebrado nos inícios de agosto com o rally que leva esse nome e que, desde meados do séc. XX, atraiu à Ilha famosos pilotos europeus, para quem o traçado das estradas e a incerteza das condições atmosféricas constituem um verdadeiro desafio, bem como numerosos aficionados do desporto automóvel. Também nos finais de agosto, mas em Porto Santo, realiza-se a festa das vindimas que, sem o fulgor e a divulgação da do Funchal, permite celebrar um vinho diferente, generoso, produzido nas encostas quentes do sul da ilha a partir de uvas grandes, ricas em açúcar. O evento inclui manifestações culturais, provas de vinho de diversas castas e bailes populares. O Instituto do Vinho da Madeira criou o Festival do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira, em fevereiro, em ordem a divulgar estas e outras manifestações da cultura popular. Trata-se de um festival urbano, com um programa multifacetado que inclui oficinas de experimentação artesanal (tapeçaria, pintura de azulejo, etc.), manifestações culturais e propostas de divertimento. A festa do Vinho da Madeira tem lugar normalmente nos últimos dias de agosto e prolonga-se por setembro. A festa do vinho é um acontecimento de grande relevo, com programas diversificados que vão desde a participação em atividades rurais, como a vindima, a pisa da uva à volta da cidade de Câmara de Lobos e o respetivo cortejo dos vindimadores, até às visitas guiadas organizadas pelas adegas regionais, as provas de vinho das diferentes castas, propostas um pouco por toda a cidade do Funchal, e às manifestações folclóricas, espetáculos de luz e som, cortejos, bailes e petiscos tradicionais. Setembro é um mês muito fértil em celebrações populares. Neste mês celebram-se três das mais concorridas romarias da ilha da Madeira: a do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada; a de N.ª Sr.ª do Loreto, no Arco da Calheta; e a de N.ª Sr.ª da Piedade, no Caniçal. Ponta Delgada nasceu à volta de uma pequena capela do séc. XV que o fogo destruiu no início do séc. XX. A romaria é uma das mais frequentadas do norte da Ilha, por peregrinos vindos de muito longe, por vezes a pé. A festa tem lugar nos primeiros dias de setembro, mas desde meados de agosto que começam os preparativos, cobrindo-se as ruas com flores coloridas, fazendo-se os bolos tradicionais, construindo-se barracas de louro, montando-se arcos de buxo, etc. A terra enche-se de vendedores ambulantes que se preparam para expor os seus produtos regionais, nomeadamente os colares de peras passadas. As últimas horas são dedicadas a atapetar de flores e folhagens o percurso por onde há de passar no dia maior a procissão do Bom Jesus, na sua volta pela localidade. A capela do Loreto fica perto do Arco da Calheta, terra que foi rica em açúcar e onde morou Gonçalo Fernandes, grande senhor de sesmaria, muito provavelmente filho do Rei D. Afonso V, ali exilado por razões de Estado. O pequeno templo, dos inícios do séc. XVI, foi restaurado mas guarda traços manuelinos de razoável interesse. À sua volta, realiza-se todos os anos, a 8 e 9 de setembro, uma romaria muito animada e concorrida, preparada com devoção e cuidado pelos habitantes da terra, que também cobrem as ruas com dosséis floridos em honra da Mãe de Jesus, na sua invocação da Casa Santa. Quando o calendário permite, a proximidade das duas festas faz que os romeiros do Bom Jesus vão diretamente para o Loreto. O Caniçal é terra de pescadores, típica nas suas casas garridas, situada no extremo leste da Ilha. Bem perto do cabo de São Lourenço, no alto de uma escarpa elevada, fica a capela de N.ª Sr.ª da Piedade, padroeira dos homens do mar, edificada como preito de gratidão de marinheiros aflitos. A festa consta essencialmente de duas grandes procissões de barcos, uma que vai buscar a imagem da Senhora e a leva até à igreja matriz, dedicada a S. Sebastião; a outra procissão devolve-a à sua capela. As embarcações são festivamente engalanadas, destacando-se a que transporta o andor, escolhida por sorteio uns dias antes. Nos percursos a pé, no Caniçal, entre o cais e a igreja, a Virgem é acompanhada pelos fiéis, com cânticos e bandas filarmónicas. Na festa profana não faltam naturalmente os petiscos nem as bebidas tradicionais. A cidade de Vila Baleira inspira-se nos tempos antigos do povoamento para a temática das suas celebrações. De facto, foi ali que os Portugueses primeiro chegaram, em 1418, e tudo leva a crer que Cristóvão Colombo, casado com Filipa Moniz, filha do primeiro capitão donatário da ilha, Bartolomeu Perestrelo, terá vivido no Porto Santo, onde nasceu seu filho Diogo, nos finais do séc. XV. É esta presença do grande navegador de renome mundial em terras madeirenses que a cidade comemora alegremente no mês de setembro, com cortejo histórico, eventos culturais e uma reconstituição cénica da chegada de Colombo à ilha. O pero e a maçã têm as suas festas em setembro, o primeiro na Ponta do Pargo e a maçã, sob a forma de cidra, no Santo da Serra. Por toda a parte, há cortejos, degustações de produtos locais, tendas de artesanato e festa. Outra forma de contactar com a natureza é proposta pelo festival de todo-o-terreno que também se realiza em setembro, no qual pode participar qualquer pessoa que queira aprofundar a sua descoberta da Madeira. Neste conjunto de realizações, podemos ainda incluir o torneio de golfe, disputado no Santo da Serra e no Porto Santo, pelo que esta prática desportiva tem de relação estreita com os espaços naturais em que se realiza. As iniciativas incluídas no Madeira Nature Festival, tais como passeios, caminhadas, voos em parapente, experiências de vela em mar aberto, são outras tantas possibilidades de se conhecer a Madeira no mês de outubro. Na vila da Camacha, a festa da maçã ocorre igualmente em outubro, com possibilidade de se assistir ao fabrico da cidra a partir de frutos acabados de colher. Neste mês, ainda o Festival de Órgão da Madeira, que atrai organistas de todo o mundo para executarem, a solo ou acompanhados por coros locais, peças dos mais variados compositores. As peças são executadas nos órgãos de origem portuguesa, italiana e inglesa e nos muitos locais que a isso se propiciam – desde o Colégio de S. João Evangelista à igreja de S. Pedro, do convento de S.ta Clara à Sr.ª de Guadalupe. Novembro é o mês da castanha, e o Curral das Freiras e o Campanário da Ribeira Brava fazem questão de mostrar as suas especialidades com provas não só dos frutos em si, como também dos doces e licores que eles proporcionam. A Madeira tem uma sólida tradição de fotografia; as paisagens da Região inspiraram gente como os Vicentes, que as fixaram em verdadeiras obras de arte. As mostras de cinema da Madeira são por muitos consideradas uma homenagem àqueles percursores da arte da imagem. No Funchal há dois festivais de cinema: o Festival Internacional, em novembro, que apresenta no Teatro Municipal Baltazar Dias longas e curtas-metragens do mundo inteiro, dando particular relevo ao cinema independente e às produções madeirenses; e o Madeira Film Festival, em abril, que é menos divulgado mas envolve muitas outras atividades para além da simples mostra de novos filmes. Em abril tem também lugar a feira do livro que, para além da venda, tem associadas uma série de celebrações relacionadas com a leitura. Entre as festividades, o Natal tem um lugar de honra. Para o madeirense, a Festa é o Natal; é mesmo a única que é assim chamada – a “Festa” – sem precisar de mais especificações. A cidade do Funchal começa a engalanar-se logo em novembro. No campo, no entanto, perduram as velhas tradições, é por volta do dia 15 de dezembro que os preparativos têm lugar, envolvendo toda a população. Colocam-se mastros e bandeiras nas ruas, enfeitam-se as paredes das igrejas com folhagens, ornamentam-se os altares e, principalmente, começa a montar-se o presépio na igreja, repetindo hábitos de avós e bisavós. A Festa é normalmente anunciada com foguetes que convidam os fiéis para o início das “missas do parto”. A primeira é no dia 16 e, até ao dia 24, todas as madrugadas se celebra a iminente chegada do grande dia. E canta-se: “Virgem do Parto, oh Maria,/Senhora da Conceição,/Dai-nos as festas felizes,/A paz e a salvação”. Há costumes ligados a estes dias (cantos, danças, trajes, etc.), dos quais a matança do porco é, sem dúvida, um dos mais respeitados, juntando, em quase todas as freguesias, homens, mulheres e crianças numa celebração onde não falta a aguardente de uva ou de cana, nem os petiscos cozinhados no local. É também a altura de, por toda a parte, se amassar e cozer o “pão da Festa”, bem como de, em cada casa, se montar a “lapinha”, que é uma espécie de trono ao Menino Jesus, instalado em cima de uma mesa, normalmente com armações em escada de três degraus, enfeitadas com flores, ramagens, searinhas de lentilhas, trigo ou centeio, frutos coloridos, bolas e fitas, em que o Menino se representa em pé. O dia de Natal é vivido em família, demorando as celebrações populares até meados do mês de janeiro, pontuadas pelos cantos das janeiras, pelas tradições de dia de Reis (no Funchal, na Ribeira Brava, em Câmara de Lobos, entre outras localidades), pelas atividades típicas do fim da Festa: desmontar as lapinhas e “varrer os armários” (ritual que consiste em arrumar os locais onde se guardam os objetos ligados à festa de um ano para o outro), servindo estas ocasiões como novas oportunidades de folguedos e brincadeiras. Entretanto, a 28 de dezembro, realiza-se a corrida de S. Silvestre, uma das mais antigas da Europa, e, na noite do dia 31, aquele que é talvez o mais conhecido evento madeirense: a passagem do ano, festa que regularmente atrai ao Funchal largos milhares de turistas desejosos de ver o esplendoroso fogo de artifício, que ilumina toda a baía e que se derrama desde a montanha até ao mar, cobrindo a capital da Madeira com um manto de luz e de cor. No momento da passagem do ano, tocam os sinos e as sirenes dos paquetes estacionados no porto, e não são raras as famílias que lançam os seus foguetes ou acendem os fósforos coloridos na varanda ou no terraço, participando assim, à sua maneira, na grande celebração.     José Victor Adragão (atualizado a 31.01.2017)

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ferreira, antónio aurélio da costa

António Aurélio da Costa Ferreira nasceu no Funchal a 18 de janeiro de 1879. Era filho de Francisco Joaquim da Costa Ferreira, natural do Porto, e de Teolinda Augusta de Freitas, natural do Funchal. Médico, antropólogo, pedagogo e político, licenciou-se, pela Universidade de Coimbra, em Filosofia (1899) e em Medicina (1905), tendo recebido vários prémios nas duas faculdades. Estagiou em Paris, na Clínica de Tarnier e na Maternidade Lariboisière, e, mais tarde, numa clínica de doenças de crianças, especializando-se em pediatria. Nesta área, publicou Algumas Lições de Psicologia e de Pedologia em 1920 e História natural da criança em 1922. Foi professor no Liceu Camões e em outras instituições de ensino, vereador da Câmara de Lisboa (1908-1911) na altura em que era presidente A. Braancamp Freire, deputado por Setúbal (1910), primeiro-provedor da Assistência Pública (1911-1912) e ministro do Fomento (1912-1913) no Governo presidido por Duarte Leite. No ano de 1913, abandonou, quase por completo, a política. Tendo levado a cabo uma ação notável como educador na Casa Pia de Lisboa, de que foi diretor, criou, na mesma casa, em 1914, o Instituto Médico-Pedagógico, obra pioneira no atendimento e ensino de crianças com dificuldades de aprendizagem escolar. O Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, criado em 1941 por influência de Vítor Fontes, era o continuador do Instituto Médico-Pedagógico. Mobilizado durante a Primeira Guerra Mundial, organizou o serviço de assistência aos mutilados portugueses, constituindo uma secção de seleção e orientação profissional no Instituto Médico-Pedagógico e uma secção de reeducação, fisioterapia e prótese no Instituto de Reeducação dos Mutilados de Guerra, em Arroios. Foi promovido a major em 1920. Por sua influência, foi criada, em 1915, na Escola Normal Primária feminina, a cadeira de Pedologia, de que foi professor até 1918 e que regeu juntamente com a de Psicologia Experimental. Foi assistente voluntário de Anatomia na Faculdade de Medicina de Lisboa (desde 1917), segundo assistente (1919) e professor livre de Anatomia Antropológica (1921), mediante concurso, de cujas provas públicas foi dispensado após ter-lhe sido atribuída a nota de 20 valores pelo conjunto de publicações de que era autor. Também exerceu a função especializada de naturalista no Museu Bocage, em 1919. Foi sócio fundador da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia e sócio de diferentes sociedades científicas e de imprensa nacionais e internacionais e de reputados institutos, como o Instituto Geral Psicológico de Paris, de que era sócio titular, a Sociedade de Antropologia de Paris, o Real Instituto da Grã-Bretanha e Irlanda, e da Reunião Biológica de Lisboa como efetivo. Foi vice-presidente da secção antropológica da Sociedade de Geografia de Lisboa, vice-presidente do comité permanente interaliado para o estudo das questões relativas aos inválidos de guerra e delegado do governo nas conferências interaliadas para o estudo dessas questões, tendo trabalhado em várias cidades, entre as quais Paris, Bruxelas, Londres e Roma. Notabilizou-se especialmente pelos seus estudos antropológicos, um dos quais, Crânios Portugueses, publicou em 1899. Na Sociedade de Antropologia de Paris, apresentou outro estudo, que foi bem recebido pelos cientistas estrangeiros: “La Capacité du Crane et la Composition Ethnique Probable du Peuple Portugais”. Em 6 de março de 1909, fez, na Sociedade de Geografia de Lisboa, uma conferência que foi depois publicada com o título O Povo Português sob o Ponto de Vista Antropológico. Foi vastíssima a colaboração de Costa Ferreira em publicações da sua especialidade, tanto em Portugal como no estrangeiro. Dirigiu o Anuário da Casa Pia de Lisboa desde o volume de 1912-1913 até ao de 1920-1921, as Publicações do Instituto Médico-Pedagógico da mesma casa (1918-1919), bem como o boletim da mesma instituição (1921-1922). Também foi o responsável máximo da revista Esculápio (1913-1914). Relevam-se, para além dos já referidos, os seguintes títulos da sua autoria: Sobre a Psicologia, Estética e Pedagogia do Gesto; Algumas Lições de Psicologia e Pedagogia; “A Agudeza Visual e Auditiva, Debaixo do Ponto de Vista Pedagógico”; “A Visão das Cores”. António Aurélio da Costa Ferreira também era comendador da Ordem de Santiago, cavaleiro da Legião de Honra e tinha a medalha de ouro da Société Académique d’Histoire Internacional (Paris). Sob a influência de uma grave depressão nervosa, a 15 de julho de 1922 suicidou-se em Lourenço Marques (Moçambique), onde se encontrava no desempenho de uma missão de estudos antropológicos a convite de Brito Camacho. Obras de António Aurélio da Costa Ferreira: Crânios Portugueses (1899); “La Capacité du Crane et la Composition Ethnique Probable du Peuple Portugais” (1904); O Povo Português sob o Ponto de Vista Antropológico (1909); Sobre a Psicologia, Estética e Pedagogia do Gesto (1909); “A Agudeza Visual e Auditiva, debaixo do Ponto de Vista Pedagógico” (1916); “A Visão das Cores” (1917); Algumas Lições de Psicologia e Pedagogia (1920); História Natural da Criança (1922).     António José Borges (atualizado a 31.01.2017)

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estufas, impostos sobre as

Era um imposto especial e privativo da Madeira, sendo uma receita da Junta Geral, usada, entre outras coisas, para a construção e a preservação das estradas. Foi instituído em 1805 e terá sido extinto em 1856 – tendo a Junta deixado de usufruir da sua receita, única fonte de financiamento que tinha para as obras públicas –, certamente devido às dificuldades por que passara a cultura da vinha, com o aparecimento, em 1852, do oídio; com efeito, em 1857, Francisco Correia Herédia referia que o imposto nada produzia. Todavia em 1888, vemos publicitada a cobrança do imposto na imprensa, de acordo com uma tabela de 1837, o que pode significar que o mesmo foi restabelecido. De facto, num regulamento da Câmara do Funchal de 1919, aparece uma taxa sobre as estufas de sol e as de calor artificial, sendo, respetivamente, de 8$05 e 30$00. Tratava-se de uma contribuição distrital, sendo a arrecadação e a aplicação da receita feita na área do distrito. Em 1806, a sua receita foi usada para financiar a construção da cadeia pública. Em 1838, usou-se 67 % da quantia na construção e na reparação de estradas. Depois, tornou-se o suporte financeiro dos melhoramentos da agricultura e das estradas, sendo apresentada, em 1843, como a única receita da Junta Geral. Nesse ano, a Junta encarregou um empregado seu da função de arrecadar este direito e de fiscalizar a contribuição das estradas e a escrituração da receita e da despesa. Todavia, em 1844, refere-se que o ato de carregamento da estufa deveria ser comunicado à secretaria do Governo e, em 1906, que o engenheiro agrónomo do distrito deveria ser informado desse facto. Nos inícios do séc. XIX, as estufas haviam proliferado por toda a cidade do Funchal, anichando-se nas imediações das ribeiras e das respetivas lojas. A Fazenda Real viu aqui mais um meio de receita, estabelecendo um imposto mensal de 16.000 reis, por cada estufa, sem ter em conta o tamanho ou o número de pipas que aí se cozia. Em março de 1806, a Junta dava conta da resolução régia de 12 de junho de 1805, propondo que o imposto, aplicado a todas as estufas, o fosse de acordo com a capacidade de cada uma. Mas, noutra conta, de 23 de agosto de 1806, em resposta à provisão do Erário Régio de 24 de julho, a Junta propõe o lançamento de um imposto de 12.000 reis, por pipa, em cada mês, de acordo com o que já havia deliberado numa reunião de 26 de março. No entanto, a 25 de fevereiro de 1807, a Junta fez o assento de um novo decreto, de 15 de dezembro de 1806, comunicado por provisão do Erário Régio de 16 de fevereiro de 1807, e alterou o imposto, de 16.000 reis mensais por cada pipa, para 1.920 reis por pipa cozida. Por isso, ordenou ao deputado corregedor da Câmara que vistoriasse as estufas, verificasse a capacidade e cobrasse a soma respetiva, impondo-se a pena de imposto dobrado para aqueles que fizessem novas entregas e as não manifestassem. Tudo isto foi regulamentado publicamente por edital de 28 de fevereiro de 1807, em que se tinha em conta, não só a medida de cada estufa, mas, igualmente, o número de pipas carregadas por temporada lançando-se, depois, mensalmente, a respetiva imposição. Por decreto de 23 de julho de 1834, sucedeu nova alteração, passando a imposição a ser cobrada mensalmente a partir de então, à taxa de 200 reis, por pipa de vinho cozida. A medida era considerada lesiva da qualidade do vinho submetido às estufas, uma vez que os proprietários procuravam acelerar o processo de aquecimento, de forma a diminuir o período de maturação. De acordo com o decreto de 1805, que fixava o imposto de modo genérico sobre cada estufa em laboração, apenas era necessário o conhecimento das estufas e dos proprietários, pelo que se mandou proceder a um inventário ou manifesto, por editais de 29 de outubro e de 26 de novembro de 1806. De acordo com os editais, o dono deveria dirigir-se à Junta para registar as estufas, pois, caso contrário, seriam encerradas. A partir de 1806, a imposição passou a ser lançada, mensalmente, sobre a capacidade, não se tendo em conta os meses de laboração e a quantidade de vinho. Apenas se tornava necessário vistoriá-las para dar conta do número de pipas que cada uma podia conter. Com a nova modalidade, a partir de 1807, tornava-se necessária uma maior vigilância na laboração e, ao mesmo tempo, era preciso uma ação de fiscalização nos momentos de carga e descarga, de forma a estabelecer-se o cômputo do número de pipas em laboração. Em 1831, estabeleceu-se que o imposto deveria ser lançado sobre todo e qualquer método de construção, sempre que se aproveitasse o calor do fogo artificial. Daqui resultou que a cobrança, feita em 1839 e em 1840, atingia o vinho que amadurecia ao ar livre, em cima dos fornos de cozer pão, o que foi considerado lesivo para o comércio do vinho, sendo apontado como o principal fator de entorpecimento das trocas. A estrutura administrativa para a cobrança do imposto era simples. A partir de 1807, a tarefa de vistoriar as estufas ficou a cargo do deputado executor ou corregedor da comarca, cargo que, em 1821, era ocupado por Luís António Oliveira, nomeado pela Junta, e em 1825 por João da Cruz Henriques. O administrador era coadjuvado por alguns fiscais. O imposto foi confirmado por carta de lei de 20 de fevereiro de 1835, sendo três os fiscais que o supervisionavam: José da Silva Lopes, Fortunato Ernesto Soares e Tude Fernando Carmo. A arrecadação era feita pelo sistema de arrendamento que, como se pode inferir por vários documentos, era muito morosa, tardando, frequentemente, os devedores a realizar o seu pagamento e obrigando a Junta a notificá-los por várias vezes, ou a proceder judicialmente. Em alguns casos, chegou-se mesmo a confiscar as estufas e a pô-las em hasta pública, para se poder reaver os direitos em dívida ou proceder à avaliação dos bens confiscados. A partir de 1843, a Junta Geral decidiu encarregar um seu funcionário da arrecadação da taxa. De acordo com determinação da mesma Junta, de 1844, todos os proprietários de estufas, no momento de proceder ao carregamento, que acontecia normalmente nos meses de novembro a fevereiro, deveriam dar conta do seu carregamento na secretaria da junta, para se proceder ao lançamento da taxa. Noutro aviso de 1906, refere-se que todo o movimento que aconteça nas estufas deverá ser comunicado ao engenheiro agrónomo do distrito. Esta fiscalização visava evitar abusos, nomeadamente na cobrança das taxas. Ainda em 1918, o diretor da Alfândega, em aviso de 18 de abril, informava que todos os mostos e vinhos que entrassem nas estufas deveriam ser fiscalizados no ato de entrada e só depois disso poderiam ser baldeados para as cubas de aquecimento. Depois, à saída para a Alfândega ou os armazéns, deveriam ser portadores de uma guia de trânsito. Também se informava que a delegação agrícola realizava análises dos vinhos estufados, tirando as amostras adequadas.     Alberto Vieira (atualizado a 04.02.2017)

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