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vínculos (morgadios e capelas)

Surgidos em Portugal no séc. XIII e consolidados na Baixa Idade Média, os morgadios – ou morgados – foram instituições características da península Ibérica e da nobreza, servindo como instrumentos jurídicos para salvaguardar e conservar os alicerces materiais dos grupos sociais nobres. Desta forma, através dos morgadios, prescrevia-se a inalienabilidade e indivisibilidade dos bens da família ou da casa, impedindo-se assim a sua fragmentação, por partilhas, após o falecimento do instituidor. A propriedade era transmitida, preferencialmente por ramo varonil, ao primogénito, de modo a alcançar uma sucessão perpétua no seio da família. Estas instituições acabaram, afinal, por contribuir para a manutenção de uma agricultura de natureza feudal. Em íntima relação com a questão económica, os vínculos tinham ainda por objetivo a manutenção de um estatuto social baseado na conservação de privilégios e de uma memória coletiva partilhada pelos membros da linhagem. No cômputo geral, uma propriedade vinculada – ao invés de uma propriedade livre ou alodial – implicava a prerrogativa da apropriação de uma porção dos seus rendimentos. Por vezes, nos documentos (testamentos, geralmente) que instituíam vínculos – morgadios ou capelas –, não era clara ou fácil de destrinçar a tipologia do vínculo criado, além de que ambas as palavras chegavam a ser usadas indiferentemente. O articulado das Ordenações Manuelinas, no parágrafo 49 do título 35 do livro II, estabelece a distinção entre morgadios e capelas, diferença que se passa a apresentar. Existe um morgadio quando, após cumpridos os encargos estipulados por vontade do fundador – comummente, missas pela sua alma –, o remanescente do rendimento dos bens do vínculo pertencer aos administradores ou quando o instituidor legar os bens com a condição de os herdeiros realizarem ou mandarem realizar missas e outras obras pias; existe uma capela, por outro lado, quando ficar estabelecido que, da totalidade dos rendimentos dos bens vinculados, os administradores terão direito a uma parte – 1/3, 1/4 ou 1/5 –, e o restante será usado em missas e outras obras de cariz piedoso. Pode dizer-se que, no primeiro caso, o que estava em causa, sobretudo, era uma dimensão secular – os bens materiais e a perpetuação do capital social e simbólico da linhagem –; no que concerne à capela, o mais importante era a dimensão espiritual – traduzida nos encargos pios. Tem sido apontado que, no quadro português, a ilha da Madeira foi uma das regiões onde a existência de instituições vinculares atingiu maior expressão. Cabral do Nascimento, no seu estudo “Capelas e morgados da Madeira” (1935), asseverou que, na Ilha, as capelas tiveram preponderância sobre os morgadios. Assim, na história deste espaço insular, o fenómeno da vinculação da propriedade assume uma importância de tal ordem que o seu desconhecimento compromete uma compreensão cabal do passado e do presente. Porém, a sua história global ainda está por fazer. Os vínculos foram precedidos pelas sesmarias – ou tiveram, na sua maior parte, origem nestas –, surgindo a partir de finais do séc. XV e, mormente, do séc. XVI. Instituídos no séc. XV, houve, e.g., os vínculos de Água de Mel, na freguesia de Santo António, que foi agregado à casa Carvalhal; de Consolação, na freguesia do Caniço, da família Ornelas e Vasconcelos; de João Afonso, em Câmara de Lobos, incorporado na casa Torre Bela; e de Vasco Moniz, em Machico, do qual José Bettencourt e Freitas foi o derradeiro representante. Na primeira metade da centúria quinhentista, foram criados vários vínculos de relevo na história da Madeira, de entre os quais se referenciam (em conjunto com os instituidores e as localidades) os seguintes: o da Lombada dos Esmeraldos, fundado por João Esmeraldo, na Ponta do Sol; o dos Lomelinos, por Urbano Lomelino, em Santa Cruz; o dos Franças, por João de França, na freguesia do Estreito da Calheta; o de São João de Latrão, por Nuno Fernandes Cardoso, em Gaula; o da Penha de Águia, por António Teixeira, na freguesia do Porto da Cruz; e o de São Gil, por D. Brites Escórcio, em Santa Cruz. Será útil fornecer ainda um exemplo pormenorizado de um vínculo que apresenta algumas das características gerais já apontadas e outras de índole diversa: o morgadio das Desertas, instituído no início da segunda metade do séc. XVI. Luís Gonçalves de Ataíde, filho do segundo casamento do 3.º capitão do donatário do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, celebrado com Isabel de Ataíde, era proprietário da ilha Deserta e recebeu de sesmaria, a 24 de março de 1546, o ilhéu Chão. Obedecendo a uma determinação de sua mãe, instituiu, por uma escritura de compromisso de 3 de setembro de 1552, os referidos bens em morgado perpétuo, obrigando a sua terça. Um alvará régio de 28 de janeiro de 1576 confirmou e aprovou este morgadio. Por vontade do instituidor, ficou estabelecido que: depois do seu falecimento e do da sua consorte, a sucessão recairia no filho varão mais velho ou no neto ou bisneto – seguindo, no plano geral e em regra, a primogenitura varonil legítima, em detrimento das linhas secundogénita e feminina; todos os herdeiros sucessores ficavam obrigados a ampliar os bens vinculados, mediante a inserção no morgadio de metade da sua terça; de igual modo, era-lhes imposto o uso dos apelidos e das armas das linhagens; era-lhes ainda interdita a venda, a troca, o escambo ou a alienação dos bens do morgadio; e teriam de ser cumpridos vários encargos pios – quatro missas anuais pela alma dos pais do instituidor. As duas pequenas ilhas nomeadas – Deserta e ilhéu Chão – fizeram parte do património dos descendentes de Luís Gonçalves de Ataíde até 1864. Tradicionalmente considerados como instrumentos jurídicos usados pela fidalguia ou pequena nobreza da Madeira, diga-se, no entanto, que indivíduos houve, de outros grupos sociais menos privilegiados, que também instituíram vínculos. A tutela judicial sobre estas instituições pertencia, desde o séc. XV até ao final do Antigo Regime, ao Juízo dos Resíduos e Provedoria das Capelas. O primeiro juiz de que há menção, João do Porto, foi indigitado no ano de 1486. As atribuições deste organismo incluíam, nomeadamente, a fiscalização da observância dos encargos pios. Desta incumbência ficaram, posteriormente, encarregados o corregedor da comarca do Funchal (de 1820 a 1837), a comissão da Santa Casa da Misericórdia do Funchal e, finalmente, os administradores dos concelhos (consoante o que foi estabelecido no Código Administrativo de 1842). O desenvolvimento económico e a riqueza criados pela transformação e comercialização do açúcar, desde o séc. XV, conduziram a um fenómeno alargado de vinculação de propriedades e ao absentismo dos proprietários. Diz Álvaro Rodrigues de Azevedo (em palavras sobejamente conhecidas e amiudadas vezes citadas) que “O sesmeiro, rico, enfastiou-se da vida campesina, ufanou-se de sua originária fidalguia, e apeteceu vivenda de mais aparato e bulício; desprezou, por isso, a terra; vinculou-a, na mira de assegurar-se dos réditos dela; contratou-lhe a cultura com os colonos livres” (FRUTUOSO, 1873, 678). Como seria de esperar, as conjunturas económicas de crise também tinham influência nas instituições vinculares. Na primeira metade do séc. XVII, devido ao decréscimo da produção açucareira e dos movimentos comerciais, vários administradores de capelas viram-se incapazes de cumprir os encargos pios nos moldes em que haviam sido instituídos e solicitaram a sua diminuição. Outro tempo de crise, em meados do séc. XIX, por causa do declínio do comércio e da produção de vinho, e de uma carestia de víveres, foi o contexto no qual eclodiram propostas atinentes à abolição dos vínculos, como se verá adiante. Vários documentos – de teor algo crítico quanto à existência e às consequências dos vínculos, ressalve-se – fazem alusão à proliferação destas instituições na Madeira. O Gov. Luís Beltrão de Gouveia, em ofício datado de 22 de abril de 1814, a propósito do imposto de sisa, faz uma série de considerações sobre a propriedade. Nesse sentido, refere que a Madeira “é verdadeiramente a Pátria dos Morgados” e divide o espaço insular em quatro partes, de molde a demonstrar que as transações de propriedades seriam de pouco relevo, não justificando a existência de um imposto: uma parte “de rochedos escarpados improdutivos”; duas “possuídas, administradas, e amortizadas nos grandes e pequenos Proprietários” (em que se inseriam os vínculos); e a última composta de bens alodiais (ALMEIDA,1907, 244). Em 1847, o governador civil José Silvestre Ribeiro, ao arrolar as várias razões que obrigavam os madeirenses à emigração – para ele, um fenómeno deveras nefasto –, referencia, no domínio da propriedade, os vínculos e o contrato de colonia. Neste sentido, calcula, porventura com algum exagero, que 2/3 das terras agricultáveis da ilha da Madeira estavam vinculadas. Esta realidade, ao manter muitas propriedades inalienáveis, imunes a reformas e fora do mercado, constituía um fator de bloqueio do mundo agrícola, beneficiando os proprietários absentistas e prejudicando os colonos. O cálculo de José Silvestre Ribeiro tem sido mencionado em vários trabalhos posteriores sobre a história da Madeira para demonstrar a grande disseminação, neste espaço insular, das instituições vinculares. O juiz de direito José Pereira Sanches e Castro, em 1856, ao pronunciar-se sobre as perversidades que tinham lugar com o contrato de colonia e sobre a relação deste com a instituição vincular, afirma que “a maior parte dos terrenos aproveitáveis para a cultura são vinculados” e que era imperativo extinguir os vínculos (CASTRO, 1986, 232 e 236). Com o marquês de Pombal, principiou uma vaga, que durou quase um século, de normas que restringiram a existência e a criação de vínculos. Este foi um processo gradual e de longo prazo que começou por visar as instituições vinculares de menor valor ou rendimento e que culminou, finalmente, na sua extinção completa, em 1863. Apontem-se os diplomas mais relevantes. Assim, por intermédio de legislação datada de 9 de setembro de 1769 e de 3 de agosto de 1770, estabeleceu-se a abolição ou anexação de vínculos que não chegassem a 200$000 réis de rendimento nas províncias da Estremadura e do Alentejo, e a 100$000 réis nas restantes; acresce que a instituição de morgadios ficou dependente de licença régia. Posteriormente, o decreto de 4 de abril de 1832, de Mouzinho da Silveira, aboliu os vínculos cujos rendimentos não montassem a pelo menos 200$000 réis. A carta de lei de 30 de julho de 1860 – em articulação com o decreto regulamentar de 19 de janeiro de 1861 – suprimiu os morgadios que não tivessem, no mínimo, 400$000 réis de rendimento líquido anual e tornou, ainda, a extinção facultativa para os conjuntos de vínculos que, anexados e sob o mesmo administrador, totalizassem 600$000 réis de rendimento por ano; ademais, sob pena de abolição, estabeleceu a obrigatoriedade, num período de dois anos, do registo de morgadios e capelas existentes e a existir. No fim deste processo histórico está a carta de lei de 19 de maio de 1863, a qual estabeleceu, no art. 1.º, que ficavam “abolidos todos os morgados e capelas atualmente existentes no continente do reino, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas, e declarados alodiais os bens de que se compõem” (VASCONCELLOS, 1864, 200), com exceção da casa de Bragança. É muito significativo que, no séc. XIX, várias propostas para a completa supressão de vínculos tenham provido das ilhas (Madeira e Açores) – terras onde havia uma maior proliferação destas instituições e onde, conexamente, os seus efeitos estruturais perniciosos para a economia e sociedade eram mais prementes (ou como tal sentidos). Logo na sessão de 8 de março de 1822 das Cortes Constituintes, o deputado João Bento de Medeiros Mântua, de São Miguel, apresentou um projeto para a extinção dos vínculos nos Açores. Outras iniciativas se seguiram. Aquelas que aqui interessa explorar diretamente, por serem relativas à Madeira, são as de António Correia Herédia e do barão de São Pedro, em época de profunda crise. O barão de São Pedro, Daniel de Ornelas de Vasconcelos, apresentou, na sessão de 15 de fevereiro de 1850, na Câmara dos Pares do Reino, um projeto de lei com o propósito de abolir todos os vínculos no arquipélago da Madeira. Esta proposta foi antecedida pela defesa, em 1847, na imprensa do Funchal, por António Correia Herédia, da extinção destas instituições. Herédia redigiu ainda um manifesto, datado de 1849, intitulado Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, que encontrou uma viva oposição de vários morgados e administradores da Madeira, os quais responderam com um outro panfleto – Resposta ao Folheto Intitulado Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, de 1850. Esta guerra panfletária teve ainda mais desenvolvimentos, com novas publicações de António Correia Herédia: As Contradições Vinculadas pelo A. das Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira e Duas Palavras sobre a Representação ou Exposição dos Morgados e Immediatos Successores, ambas igualmente de 1850. O barão de São Pedro, no seu projeto legislativo, referenciava o estado de crise que imperava na Madeira e defendia, como medida necessária e salutar, a supressão dos vínculos, considerados ineficazes e prejudiciais, porquanto não permitiam o progresso da agricultura e o incremento financeiro e comercial. A iniciativa foi muito bem aceite na Madeira e originou uma grande vaga de apoio em órgãos de imprensa e por parte de organismos de poder local (várias câmaras municipais e juntas de paróquia) e inclusive de vários indivíduos (proprietários e membros da elite) – organismos e indivíduos que redigiram petições com argumentos a defender a extinção. Entre os defensores desta medida estavam, como seria de esperar, proprietários de bens livres, lavradores ricos, comerciantes, funcionários públicos, clérigos seculares e ainda diversos administradores de vínculos. Por outro lado, vários morgados opositores, em exposição remetida à Câmara dos Pares do Reino, pretendiam contraditar os argumentos do barão de São Pedro. A realidade, todavia, é que o projeto não chegou a ser aprovado em sede parlamentar. Foi necessário esperar por 1863, ano em que foram abolidos os vínculos em Portugal, como se viu. Na sequência da lei de 30 de julho de 1860 e do decreto regulamentar de 19 de janeiro de 1861, foi redigido o Tombo do Registo Vincular do Funchal, em três volumes. Esta fonte documental apresenta, em virtude do que foi prescrito nas duas normas, somente uma amostra dos vínculos que existiram na Madeira; ainda assim, contém informações relevantes que não devem ser ignoradas. A partir das análises de Cabral do Nascimento, no seu estudo já referido, e sobretudo de Miguel Jasmins Rodrigues, em “Abolição dos morgadios: o caso da Madeira” (2013), fica-se a conhecer um tanto do seu conteúdo. Foram registados, deste modo, de 1862 a 1865, os bens de vínculo de 15 casas, através de traslados de documentos que suportavam juridicamente a existência das instituições vinculares (títulos de instituições, anexações, desanexações, hipotecas, sub-rogações ou expropriações, sentenças de supressão, descrições de valores e encargos). Neste âmbito, foram inscritas as seguintes informações: as várias parcelas que compunham cada vínculo; o rendimento anual das mesmas; a identidade e a situação – foreiro ou colono – de quem as cultivava; os produtos agricultados; e o usufruto de água por direito. Os administradores e representantes das 15 casas, preponderantemente absentistas, eram João José de Bettencourt e Freitas, o marquês de Castelo Melhor, João Cabral de Noronha, o visconde de Torre Bela, Urbano Egídio da Costa Campos, Sebastião Francisco Falcão de Melo Trigoso, João Facundo Alves Spínola de Freitas, João de Bettencourt Baptista, o visconde do Amparo, Agostinho de Ornelas Vasconcelos Rolim de Moura, Luís da Câmara Leme, José Cupertino da Câmara, Remígio António da Silva Barreto, Laureano Francisco da Câmara Falcão e Manuel Raimundo Telo de Meneses Torresão. Os vínculos criados nos dois primeiros séculos da história da Madeira – sécs. XV e XVI – perfazem 67% dos vínculos inventariados; os restantes – 33% – representam obviamente os que foram instituídos em época subsequente. A importância das duas centúrias mais remotas sai reforçada quando se apura que 85% do rendimento anual da totalidade dos vínculos registados pertence aos que foram fundados em Quatrocentos e em Quinhentos. É percetível também uma ligação estreita entre a instituição vincular e o contrato de colonia, porquanto a maioria dos morgados – i.e., detentores ou administradores de morgadios – referidos no Registo Vincular faz explorar as suas terras recorrendo a colonos. Três categorias de morgadios podem ainda ser percecionadas nesta fonte: a que consistiu na transformação de um senhorio banal em propriedade, facto que ocorreu com o morgadio dos marqueses de Castelo Melhor; a dos morgadios compostos por propriedades dispersas por toda a ilha da Madeira, como os de Agostinho de Ornelas Rolim de Moura, do visconde de Torre Bela e de Luís da Câmara Leme; e, enfim, os morgadios que abarcavam propriedades somente em uma ou duas freguesias, e.g., os de João de Bettencourt Baptista (no Porto da Cruz e em Santa Cruz) e João Facundo Spínola de Freitas (na Ponta do Pargo e Calheta). Os morgados que detêm um maior número de vínculos e de parcelas são os intervenientes finais num processo transecular de concentração de propriedade, quer por via de heranças, quer através de estratégias matrimoniais. Sirvam de exemplo João José de Bettencourt e Freitas (com pouco mais de 140 parcelas) e, de novo, os viscondes de Torre Bela (com mais de 170) e Agostinho de Ornelas Rolim de Moura (com quase 140). Na sequência, ainda, das normas de 1860 e 1861, foram depositados na Torre do Tombo processos de registo vincular provenientes de vários distritos, entre eles o do Funchal (10 processos). Alfredo Pimenta, na sua obra Vínculos Portugueses. Catálogo dos Registros Vinculares Feitos em obediência às Prescrições da Lei de 30 de Julho de 1860, e Existentes no Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo, catalogou essa documentação. Partindo desse trabalho, dá-se aqui nota de um processo constituído pela cópia de registos de vários vínculos criados na ilha da Madeira e administrados por João Correia Brandão Henriques de Noronha, 2.º visconde de Torre Bela. Pretende-se ilustrar a confluência de várias instituições vinculares nas mãos de um mesmo administrador. Mencionem-se, assim, os seguintes instituidores de vínculos (acompanhados das datas dos documentos de criação, quando conhecidas): João Afonso Correia, a 11 de maio de 1490; António Correia, o Grande, a 29 de dezembro de 1572; D. Isabel de Bettencourt, a 2 de dezembro de 1561; D. Maria Vieira, a 23 de julho de 1592; António Correia Bettencourt e primeira mulher, D. Joana Henriques, a 21 de abril de 1624 e a 21 de julho de 1643, e ainda pelo dito e sua segunda consorte, D. Maria da Câmara, a 10 de dezembro de 1670; D. Mécia da Câmara, a 2 de outubro de 1676; D. Guiomar Correia; D. Isabel Abreu, a 29 de outubro de 1545; D. Maria Pestana, a 2 de janeiro de 1566; António Gonçalves da Câmara, a 2 de novembro de 1545; D. João Henriques e mulher, D. Joana; D. Isabel Fernandes, a 27 de novembro de 1546; Pedro de Brito, a 2 de dezembro de 1586; D. Isabel Afonso, anteriormente a 1561; D. Joana Cabral, a 12 de junho de 1598; D. Ana Murante, a 2 de novembro de 1569 até 29 de fevereiro de 1570; Pedro de Bettencourt Henriques, a 27 de dezembro de 1688; António Correia Bettencourt Henriques e mulher, D. Antónia Joana Francisca Henriques, e Henrique Henriques de Noronha e mulher, a 17 de fevereiro de 1706; D. Antónia Joana Francisca Henriques, a 20 de maio de 1746; João de Bettencourt Henriques, a 27 de novembro de 1649; António da Silva Barreto; Fr. Francisco Bettencourt e Fr. Pedro de Noronha; D. Beatriz Chamorra, a 27 de abril de 1565; Inácio da Câmara Leme e mulher, D. Isabel de Castelbranco; Filipe Gentil de Limoges e mulher, D. Isabel Achiaioli de Vasconcelos, a 23 de novembro de 1674 e em datas posteriores. De 1834 até 1878, prolongando um fenómeno que vinha do Antigo Regime, no conjunto das elites municipais do Funchal, continuava a avultar o grupo dos proprietários – morgados e administradores de morgadios e capelas. A título de exemplo, podemos nomear Aires de Ornelas e Vasconcelos, António Caetano Aragão, Tristão Joaquim da Câmara Júnior, António Bettencourt da Silva Favila, Francisco Araújo Bettencourt Esmeraldo, João de Freitas Correia e Silva, João José Bettencourt e Freitas, João José de Ornelas Cabral, Manuel de Gouveia Rego, Nuno de Freitas Lomelino, António de Carvalhal Esmeraldo (2.º conde de Carvalhal, tido como o homem mais abastado na sua época), Diogo França Neto (visconde de São João) e Diogo Frazão Figueiroa (visconde da Calçada).   Filipe dos Santos     artigos relacionados colonia documentário "Colonia e Vilões" capelas morgado dos piornais elites madeirenses e sua reprodução

História Económica e Social

atlântico, revista

Revista Atlântico O primeiro número da Atlântico. Revista de Temas Culturais, publicação periódica de cariz cultural e científico, veio a lume na primavera de 1985. A revista, de assinatura anual, teve uma vigência temporal de cinco anos e uma periodicidade trimestral – deste modo, cada edição, com cerca de 80 páginas, correspondia a uma estação do ano. Saíram do prelo 20 números, à razão de quatro por ano, sendo o último o do inverno de 1989. As suas dimensões eram de 24 x 17 cm e a paginação iniciava-se a cada novo ano. A redação e administração da publicação estavam sediadas no Funchal e a fotocomposição, o fotolito, a montagem, a impressão e o acabamento processavam-se em Lisboa. O editor e diretor foi António E. F. Loja, que assinou os editoriais de todas as edições (e, inclusive, diversos artigos). As fichas técnicas apresentam um elenco de colaboradores cujos nomes e número (37 na 1.ª edição, 41 na 20.ª) não variaram substancialmente ao longo do tempo. Alguns destes colaboradores elaboraram artigos e providenciaram ilustrações. Na contracapa e no interior – mormente no início, no fim e na separação dos artigos – de todas as revistas podem ser encontradas páginas com anúncios publicitários a produtos e serviços do arquipélago da Madeira. O número inaugural, publicado em 1985, nascia, segundo o editorial do mesmo, “como tentativa sincera de criar na Madeira um local de encontro de ideias, um ponto de confluência de opiniões”. Através de uma análise breve, não exaustiva, dos editoriais, no sentido de apreender os propósitos e a filosofia da revista Atlântico, percebe-se que por meio dela se propunha instaurar um espaço de comunicação aberto e livre, informado pela relevância do conhecimento do passado e do presente, com vista a edificar o futuro. Era veiculada a esperança de que esta publicação fosse considerada útil e, assim, usada amiúde. Desde cedo, foram acolhidos colaboradores de outras geografias, de modo a estreitar as relações com o exterior. Usavam-se igualmente estas páginas para denunciar o clima de mediocridade e para defender maior fulgor e riqueza culturais, afirmando a ligação recíproca e necessária entre cultura e liberdade. A necessidade do conhecimento do passado passava por respeitar e preservar o património – cultural e natural; nesse sentido, foi denunciada e criticada a indiferença, a falta de proteção, o desaparecimento e a intervenção desadequada no mesmo por parte de entidades públicas. A este respeito, afirmava-se a premência da recuperação dos centros históricos e a relevância da inventariação do património natural e construído (criticou-se, e.g., a ação de instituições governamentais no que tocava ao lobo-marinho). A revista era composta de artigos – estudos e ensaios – sobre múltiplas temáticas atinentes, principalmente, ao arquipélago da Madeira; repertórios de literatura (poesia, crónicas, etc.) e de fotografia; e antologias de fontes históricas de diversa índole, reproduzidas no final de cada número (em certos casos, anotadas, traduzidas e com considerações introdutórias e críticas). Contribuíram para a revista os seguintes autores (com estudos e ensaios sobretudo relativos à Madeira): Manuel José Biscoito (mares); Maria dos Remédios Castelo Branco (viajantes estrangeiros – Jean Mocquet); Teresa Brazão Câmara (empedrados, bonecas de “maçapão”, mobiliário); Celso Caires (fotografia); Zita Cardoso (expostos); Rui Carita (litografia – Andrew Picken, defesas de Santa Cruz, embutidos, remates de teto, arquitetura religiosa); Fátima Maria Fernandes Machado de Castro (literatura – Raul Brandão); Jorge de Castro (natureza); Luísa Clode (pintura flamenga, bordado); Marcelo Costa (habitação, arquitetura ); João Couto (escultura – Francisco Franco); Sérgio António Correia (literatura – Bernardo Soares); Silvano Porto da Cruz (museologia e património); Fátima Pitta Dionísio (literatura – Camões e análise de soneto, Revolta da Madeira); João Ferreira Duarte (filosofia); Pedro M. P. Ferreira (eleições no século XIX); António Luís Alves Ferronha (Revolta da Madeira, republicanismo); Paulo Fragoso Freitas (cultura, fontes históricas, azulejos); Maurício Fernandes (escultura – Francisco Franco, fotografia, vídeo); José Luís de Brito Gomes (a Madeira e a Rússia); Fátima Freitas Gomes (comércio interno no Funchal, hotéis e hospedarias); Maria de Fátima Gomes (festas – romarias); José Laurindo de Góis (Ateneu Comercial do Funchal, indumentária e indústria, imprensa); David Ferreira de Gouveia (madeirenses no Brasil, história do açúcar); Emanuel Janes (implantação da Primeira República); Luís Sena Lino (função social do corpo); João Lizardo (arte do renascimento, arte mudéjar); António Loja (história social, económica e política, arquitetura); Castro Lourdes (pintura); Armando de Lucena (escultura – Francisco Franco); Irene Lucília (poesia, ruas); Diogo de Macedo (Francisco Franco); Maria Elisa Basto Machado (filatelia e maximafilia); João Medina (história cultural – Zé Povinho, arte – I República); Luís Francisco de Sousa Melo (teatro, o texto “Alcoforado”), com a colaboração de Maurício Fernandes num dos seus artigos; Anabela Mendes (cultura e museologia); Mary Noel Menezes (madeirenses na Guiana britânica); António Montês (escultura – Francisco Franco); Teresa Pais (Visconde da Ribeira Brava); Jaime Azevedo Pereira (vimes, o Jardim Botânico da Ajuda e a Madeira, Padre Eduardo Clemente Nunes Pereira, João Fernandes Vieira); António Jorge Pestana (história militar); Fernando Pessoa (serras); Gabriel de Jesus Pita (decadência e queda da I República); Raimundo Quintal (turismo, paisagem, ambiente, jardins, quintas, património natural, geografia); Adriano Ribeiro (tratado de Utrecht); Miguel Rodrigues (Madeira nos finais do século XV); José de Sainz-Trueva (heráldica, ex-librística, quintas, arte, arquitetura civil e religiosa); Joel Serrão (cultura e filosofia – Antero de Quental); António Ribeiro Marques da Silva (viajantes estrangeiros, imprensa, quotidiano das freiras de Santa Clara, arquitetura doméstica, ecologia, política e literatura – o Conde de Abranhos e o desembargador José Caetano); Jorge Marques da Silva (arqueologia industrial, computador e arte, arte naïve); Amândio de Sousa (museologia, ourivesaria); João José Abreu de Sousa (povoamento, emigração, história político-institucional, social e económica, rural e urbana, capitania de Machico, rua da Carreira, convento de Santa Clara, escravos, corsários, levadas); Maria José Soares (madeirenses no Curaçau); Francisco Clode de Sousa (Francisco Franco); Luís de Sousa (Quirino de Jesus); Manuel Rufino Teixeira (numismática); Ana Paula Marques Trindade e Teresa Maria Florença Martins (administração nos séculos XV e XVI); Nelson Veríssimo (história da autonomia, festa do Espírito Santo, o Funchal e a aluvião de 1803, presépios e Meninos Jesus, literatura – Bulhão Pato e a Madeira); Maria Francisca Favila Vieira (mito no discurso platónico sobre a alma, ética em Verney); Rui Vieira (Jardim Botânico da Madeira, Carlos Azevedo de Menezes); Eberhard Axel Wilhelm (alemães na Madeira, Max Römer); Manuel Zimbro (cultura). No que concerne a repertórios literários, encontram-se: crónicas (algumas de pendor evocativo e memorialístico) de Amaro Amarante, António Ribeiro Marques da Silva, Jorge Sumares e José Pereira da Costa; poemas de Edmundo Bettencourt, Manuel Vilhena de Carvalho, Fátima Pitta Dionísio, Carlos Alberto Fernandes, Carlos Fino, São Moniz Gouveia, Irene Lucília, João Cabral do Nascimento, António Manuel Neves, Gualdino Avelino Rodrigues e José de Sainz-Trueva; prosa poética de Ângela Varela. Vários artigos e repertórios beneficiaram de ilustrações (fotografias e desenhos) dos próprios autores. Outros foram acompanhados de fotografias de Rui Camacho, Mota Pimenta, Photographia – Museu Vicentes, Maurício Barros, Carmo Marques, Perestrellos, João Pestana, Sanches Almendra, Gilberta Caires, José Ivo Correia, João Vasconcelos, Teresa Brazão, Celso Caires, Manuel Valle e Vicentes e José de Sainz-Trueva. Outros, ainda, apresentaram desenhos de Maurício Fernandes, Sá Braz e Vieira da Silva. O início da publicação de Atlântico inaugurou, em meados da década de 80 do século XX, tempos de mudança e de renovação no panorama cultural, científico e historiográfico da Madeira. Esta transformação foi também corporizada pela criação, em 1985, do Centro de Estudos de História do Atlântico, pela realização, em 1986, do I Colóquio Internacional de História do Atlântico, e pelo aparecimento, em 1987, da revista Islenha.   Filipe dos Santos   artigos relacionados revistas sobre arte revistas de tradições populares periódicos literários poetas  

Cultura e Tradições Populares História Económica e Social

contacto linguístico

A coexistência de línguas é um facto. Existe desde sempre e desempenha um papel importante na variação inerente a qualquer sistema linguístico, nomeadamente quando esta variação ocorre ao longo do tempo. A publicação de Languages in Contact (1953), de Uriel Weinrich, constitui um marco nesta área de estudos linguísticos e na investigação sobre multilinguismo. Os principais temas relacionados com o contacto linguístico tinham sido abordados já na sua tese de doutoramento, Research Problems in Bilinguism with Special Reference to Switzerland (1951), obra que teve por base o trabalho de campo feito pelo autor na Suíça e que contém uma descrição detalhada da situação linguística naquele país, sobretudo nos espaços de fronteira e de contacto linguístico. O contacto entre línguas mereceu, desde então, a atenção de vários investigadores, que procuraram observar e descrever, de modo sistemático, as suas propriedades – origens, processos e resultados. Contacto linguístico (conceitos) Uma situação de contacto linguístico pode ser definida como “aquela em que pelo menos algumas pessoas usam mais do que uma língua” (THOMASON, 2001, 1). Tal acontece em várias situações do quotidiano, e.g., por via de vários tipos de mobilidade humana (emigração e imigração, turismo, etc.), em que os falantes de uma determinada língua materna se encontram em contacto com falantes de outras línguas. Este fenómeno ocorre também na escola, em situações de aquisição formal de uma segunda língua, não materna, ou L2, e ainda na comunicação digital (Internet). Na era da globalização, podemos entender que, de acordo com Maria Antónia Mota (1996), as sociedades de começos do séc. XXI são, na sua maioria, plurilinguísticas e que as línguas são sistemas marcados por grande variação interna, pois a relação comunicacional entre comunidades linguísticas é tão grande que é quase impossível não se influenciarem umas às outras. Trata-se de um processo que decorre da coexistência temporal e espacial de duas ou mais línguas ou variedades linguísticas, para o qual é necessário não só “definir a natureza [como também] a escala e o grau desse contacto e determinar quem entra em contacto com quem, se indivíduos, famílias, comunidades ou sociedades inteiras”, como observam René Appel Pieter Muysken, em obra citada por Glaucia Santos (SANTOS, 2008, 23). A dinâmica do contacto pode ser descrita como a passagem de uma situação de monolinguismo para uma de bilinguismo, existindo ainda a possibilidade de um regresso ao monolinguismo (manutenção da língua de origem, anterior ao contacto). Os processos e resultados linguísticos envolvidos nesta dinâmica, descritos na bibliografia de referência e referidos por Amália de Melo Lopes (2011), são os seguintes: (i) manutenção da língua de origem (LO) como única língua da comunidade; (ii) mudança de língua (language shift, FISHMAN, 1964), em que a LO é substituída pela língua de outro grupo em contacto, pelo facto de a comunidade considerar a língua adotada mais funcional ou mais prestigiada socialmente, ou por outro tipo de circunstâncias; (iii) mistura de línguas (language mixing), que pode dar origem a outros produtos linguísticos, marcados pela influência mútua das duas línguas, tais como: bilinguismo, pidgins e crioulos. Vários fatores, tais como a quantidade de migrantes e a duração da coabitação, o prestígio ou o poder económico e político das comunidades migrantes e daquelas que as recebem, intervêm nos resultados do contacto. Este assunto tem sido particularmente debatido no âmbito da ecologia do contacto de línguas, que faz parte da disciplina de ecolinguística, que consiste no estudo das relações entre língua e meio ambiente (ou território), e foi detalhadamente discutido, e.g., por Jean-Louis Calvet e Salikoko Mufwene. Assim, nem todas as comunidades respondem ao contacto linguístico da mesma forma. Há aquelas nas quais ocorrem processos de hibridismo, quando os falantes não diferenciam os diferentes códigos, constituindo-se então uma mistura de línguas – de tipo code-switching ou alternância de códigos e/ou de tipo code-mixting – que resultam de um maior e mais permanente contacto linguístico. É o caso dos crioulos e dos pidgins, que resultam do “surgimento de uma nova entidade linguística qualitativamente distinta de todas as línguas envolvidas na situação de contacto de onde ela emergiu” (LUCCHESI, 2004, 157). Noutras situações, podemos assistir à coabitação entre duas línguas na mesma comunidade linguística – bilinguismo – ou de duas variedades da mesma língua – diglossia. Bilinguismo O bilinguismo, situação muito comum no mundo dos alvores do séc XXI, corresponde ao conhecimento e uso de duas ou mais línguas por um indivíduo – bilinguismo individual – ou por uma comunidade – bilinguismo social –, quando esta se caracteriza pela existência de um número significativo de falantes bilingues. Os falantes bilingues podem apresentar diferentes graus de proficiência e uma grande variedade de uso das duas línguas, manifestando, na sua fala, interferências e alternâncias de línguas. Assim, o code-switching é uma manifestação de bilinguismo e consiste em trocar de língua no decurso de uma mesma produção linguística, mesmo que não haja mudança de interlocutor ou de situação. Em alguns casos, esta influência pode criar uma dualidade dentro de uma comunidade linguística, que, sendo “monolingue pode tornar-se bilingue pela conservação da sua língua autóctone e da língua forasteira” (LOPES, 2011, 14). Relativamente ao bilinguismo social, é de assinalar que um país pode ser bilingue ou multilingue/plurilingue, mas parte da sua população ser monolingue, assim como pode ser predominantemente monolingue sem que tal signifique que todos os cidadãos desse país falem só uma língua ou que todos os que vivem nesse país tenham essa língua como materna. Podem configurar-se situações estáveis de bilinguismo, de bilinguismo mútuo ou assimétrico, e outras situações que se situam entre esses dois extremos. Diglossia A diglossia é uma variante de bilinguismo, sendo um termo usado para classificar situações de comunicação em comunidades que recorrem ao uso complementar de variedades e/ou línguas distintas na vida quotidiana. Nestas circunstâncias, uma variedade/língua só pode ser usada em situações em que a outra variedade/língua está excluída. Esta definição abrange muitas situações que ocorrem na maioria das sociedades. A ilha da Madeira, e.g., no âmbito do português europeu (PE), poderá ser caracterizada, do ponto de vista linguístico, por uma situação de diglossia, uma vez que os falantes madeirenses usam uma variedade falada do português, distinta da variedade padrão e excluída das trocas comunicacionais em que é exigido o uso da variedade padrão (conferências, escrita). Este tipo de situação poderá gerar um conflito, uma vez que as duas variedades não gozam do mesmo prestígio, sendo a variedade falada e informal (conversas com familiares próximos etc.) objeto de maior estigma. Interlíngua A probabilidade de ocorrer uma ou outra das três situações referidas pode estar relacionada com condições socio-históricas e políticas específicas, com as atitudes dos falantes em relação à variação linguística observada, e com as relações de força que se estabelecem entre as comunidades de falantes de línguas ou variedades distintas. A estes fatores extralinguísticos juntam-se fatores de natureza linguística, tais como a importância da distância tipológica entre a língua materna (LM) e a língua não materna, ou língua alvo (LA), e os que estão relacionados com os efeitos linguísticos da interferência na LA, dando origem ao surgimento de uma outra variedade nessa língua. Assim, no processo de aquisição de uma segunda língua, como destaca Sara Thomason (2001), os falantes podem permanecer numa fase de interlanguage (ou “interlíngua”, SELINKER, 1972), um processo de variação linguística no qual se incluem os empréstimos lexicais e mesmo interferências estruturais, resultado da transposição de alguns traços da LM para a LA. Este processo poderá dar também origem à mudança linguística; tal ocorre quando traços de interferência são conservados e transmitidos às gerações seguintes, construindo-se, assim, uma nova versão da LA. No entanto, estar em contacto com outras línguas não implica necessariamente mudança. De assinalar também que todos os níveis dos sistemas linguísticos – fonológico, morfossintático e lexical – podem ser afetados (SANKOFF, 2001). O contacto linguístico é, normalmente, mais saliente ou dinâmico em zonas fronteiriças, onde duas línguas interagem constantemente, em comunidades onde a afluência de estrangeiros é grande, e ainda em espaços marcados pela ocorrência de fluxos migratórios (emigração para o estrangeiro e o seu regresso), bem como naqueles que foram objeto de colonização ou de ocupação por parte de outros países e, como anteriormente referido, em situações de aprendizagem de outra língua (MOTA, 1996). A língua portuguesa, e.g., tal como hoje se apresenta no começo do séc. XXI, resulta de séculos de contacto com o latim vulgar e com línguas de outros povos. Emergiu no Noroeste da península Ibérica, por volta do séc. IX, numa comunidade linguística que incluía também a língua falada na Galiza. A língua escrita continuou a ser o latim, e a primitiva produção escrita em português de que há conhecimento, de natureza notarial, data do séc. XIII. A partir da constituição do reino de Portugal, em 1143, o português foi acompanhando a configuração de novas fronteiras para o reino, passando a ser falado em espaços cada vez mais alargados. O repovoamento do Sul do território reconquistado aos árabes e a situação de contacto linguístico com os falares moçárabes que dele resultou criaram novas condições para a transformação e mudança na língua. A norte e a sul desenharam-se variedades distintas: nas áreas dialetais setentrionais, a norte, a mudança tinha levado, e.g., à perda da oposição etimológica entre /b/ e /v/; no centro e sul, emergiram variantes inovadoras, como foi o caso da monotongação do ditongo [ej] em [e] em palavras como “ceifar” [sefar] e “feito” [fetu]. Estabelecidas as novas fronteiras, também a capital do reino se mudou para sul do rio Mondego, fixando-se em Lisboa. Esta mudança histórica iria determinar novos caminhos para a língua: o modelo unificador do português desloca-se, a partir do séc. XVI, para esta região, que se torna pólo inspirador da sua norma culta e ponto de partida do padrão linguístico posterior. A partir do séc. XV, a língua conquistadora foi povoando ilhas e sendo também acolhida em sociedades distintas, em África, na Ásia e na América. As diferentes situações de contacto com as línguas faladas pelos nativos nos novos espaços ocupados enriqueceram o português, tendo tido um papel muito relevante na construção das suas variedades geográficas extra-europeias – brasileiras e africanas. No âmbito do PE, as variedades insulares, afastadas do contacto com as variedades peninsulares, desenvolveram traços linguísticos próprios. Deles fazem parte a manutenção de traços conservadores nas suas variedades populares, como no caso da variante nasal [õ] nas finais verbais de terceira pessoa do plural (“comeram” [kumerõ]) – também atestada em variedades peninsulares setentrionais –, que correspondem a uma fase da língua na qual ainda não tinha ocorrido a ditongação em [Œ)w)], variante que viria a ser integrada na norma do português apenas no séc. XVI. As variedades insulares ostentam também aspetos inovadores, como a mudança manifesta na ditongação das vogais altas acentuadas /i/ e /u/, em palavras como “aqui” e “rua”, pronunciadas [Œ’kŒj] e [{’ŒwŒ], respetivamente. Tal como a estrutura sonora da língua, também o léxico está em permanente renovação, com ganhos e perdas de palavras, e com outras a gerarem novos sentidos. No português, a herança lexical latina incorporou, no início da sua formação, os contributos de povos colonizadores – germânicos (nomes como “guerra”, “luva”, “roupa”) e árabes (“alcatifa”, “arroz”, “açúcar”, “atum”, “armazém”, “aldeia”). Mais tarde, na sua expansão marítima, os contactos com outras comunidades linguísticas enriqueceram a língua portuguesa e as suas variedades, sendo introduzidos novos itens: empréstimos das línguas ameríndias (“canoa”, “amendoim”, “tapioca”, “mandioca”, “goiaba”, “pitanga”), africanas (“banana”, “berimbau”, “cachimbo”, “cubata”) e asiáticas (“leque”, “chá”, “bengala”, “azul”, “bambu”, “chávena”, “xaile”). Em diversos momentos da sua história, provenientes de outras línguas europeias de cultura e de prestígio, outros empréstimos foram importados e integrados, sendo de notar, e.g., os galicismos (“monge”, “joia”, “blusa”, “soutien”, “envelope”), os italianismos (“soneto”, “aguarela”, “bússola”, “piano”, “violoncelo”) e os anglicismos (“pudim”, “bife”, “lanche”, “futebol”, “andebol”, “penalti”). Aspetos socio-históricos dos contactos linguísticos no espaço insular atlântico Na altura dos Descobrimentos, como referido, os Portugueses levaram a língua para as terras por onde passavam, que conquistavam e povoavam. Tal aconteceu na ilha da Madeira, descoberta em 1418. Os primeiros colonos, oriundos tanto do Norte como do Sul do reino, terão chegado pouco depois, por volta de 1420 ou 1425. Sendo as suas fronteiras traçadas pelo mar, poder-se-ia pensar que, quando comparada com outros espaços não insulares, a ilha da Madeira, e assim as suas comunidades de falantes, se caracteriza pelo isolamento e a falta de qualquer tipo de contacto. Porém, historicamente, a Madeira estabeleceu, desde o seu povoamento, no séc. XV, vários tipos de contacto linguístico, não só com falantes de outras variedades regionais do português europeu continental, como também com falantes de outras línguas, graças a fatores relacionados com o seu desenvolvimento socioeconómico (comércio, turismo, emigração). Assim, tal como outras ilhas situadas em alto mar, mas localizadas no centro de rotas marítimas, a ilha da Madeira nunca ficou completamente isolada, porque, beneficiando das condições económicas internas oferecidas pelas culturas da cana-de-açúcar, primeiro, e da vinha, mais tarde, constituiu-se num lugar de passagem obrigatório nos caminhos traçados no oceano Atlântico. O Funchal, uma cidade portuária, era um lugar de paragem quase obrigatória para a maioria das pessoas que viajavam pelas principais rotas do Atlântico. Esta situação manteve-se quase inalterada até ao séc. XIX, tornando a Ilha, na periferia da Europa, um ponto estratégico de ancoragem, um microcentro atlântico. A sociedade madeirense pode ser vista como resultado de fluxos migratórios constantes desde o início da sua história, regulados pelos ciclos económicos. Para além da presença de comerciantes, sobretudo europeus, e de escravos vindos inicialmente das Canárias (os guanches) e, mais tarde, do Norte de África (árabes) e da Costa da Guiné (negros), é de assinalar o alto nível de mobilidade social dos madeirenses. Povoamento do arquipélago da Madeira Aquando do descobrimento do arquipélago da Madeira, no séc. XV, houve a necessidade de o povoar, tal como aconteceria posteriormente noutros espaços atlânticos portugueses: os arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde. Inicialmente, foram enviadas para a Madeira pessoas de variadas origens sociais. Como afirma Joel Serrão, “o primeiro grupo de povoadores da pequena nobreza, pelo menos, uns catorze, e os restantes, gente de condição modesta, entre a qual, antigos presos das cadeias do Reino, e aos quais se destinavam as tarefas mais humildes e ingratas” (SERRÃO, 1961, 2). As origens geográficas da população madeirense teriam sido, como observado por Luís de Sousa Melo, sobretudo as “províncias do Minho e do Algarve” (MELO, 1988, 20). Pinto e Rodrigues (1993) apresentam também evidências de que os distritos a norte de Portugal terão contribuído em maior quantidade para a ocupação humana do espaço insular. [table id=108 /] Apesar do decréscimo de matrimónios de imigrados ao longo dos decénios, podemos observar que Faro tem uma representação mais baixa, comparativamente aos imigrantes provenientes das zonas mais a norte de Portugal. Crê-se que a importância dos indivíduos oriundos do Algarve estivesse ligada à atividade marítima e a dos emigrantes do Norte de Portugal à atividade agrícola. Por outro lado, registou-se a presença de Espanhóis na ilha da Madeira entre os anos de 1539 e 1600, como podemos comprovar no gráfico apresentado por Luís de Sousa Melo no mesmo artigo: [caption id="attachment_16108" align="aligncenter" width="661"] Fig. 2 – Gráfico representativo do movimento migratório para a Madeira no séc. XVI.Fonte: MELO, 1988, 26.[/caption]   A presença espanhola na Madeira estaria ligada sobretudo à chegada de indivíduos da Galiza. Talvez tenha sido significativa anteriormente, sobretudo pelo comércio de escravos com o arquipélago das Canárias. O povoamento teve início no perímetro entre Machico e Calheta, portanto, na costa sul, por ser mais apropriada para o arroteamento. Porém, é à cidade do Funchal que se manifesta uma maior afluência de falantes vindos de todas as partes, uma vez que ali se encontrava o porto de embarque e de desembarque. Presença de escravos (canários e africanos) A chegada dos primeiros colonos à Madeira não pareceu ser suficiente para a mão-de-obra necessária ao desenvolvimento agrícola, bastante exigente no seu início, devido à orografia e densidade florestal da Ilha. Julgou-se então necessário recorrer, para esse fim, à introdução do escravo na região. No fim do séc. XV, a população de escravos ascendia a cerca de 2 milhares, perfazendo 12 % da população total da altura. Veja-se, na fig. 3, a evolução global da população madeirense entre os finais do séc. XV e o séc. XVI: [table id=109 /] Foram, aliás, os escravos, os negros do Golfo da Guiné, os mouros cativos do Norte de África e ainda os canários quem mais contribuiu para o desenvolvimento do arroteamento de terras e, mais tarde, para a produção de cereais e de açúcar. Crê-se que até da Índia foram escravos, pois, segundo se lê no Elucidário Madeirense, “Tristão Vaz da Veiga, que foi governador-geral do arquipélago em 1582 tinha doze escravos indianos para serviço particular da casa” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Alberto Vieira, citando Alberto Sarmento, adianta que a escravatura na Madeira se apresenta como “um regresso à História Antiga, ao tempo patriarcal, com o escravo doméstico; à velha Grécia, com o escravo lavrador do Império Romano, com o escravo industrial” (VIEIRA, 1996). Os escravos guanches, marroquinos e africanos foram os primeiros a chegar à Ilha, porque a localização geográfica da Madeira, perto do continente africano, a posicionava idealmente para a receção do mercado escravo, sendo também de referir a intervenção de escravos vindos do Brasil e das Antilhas. Aos escravos deve-se, na sua maioria, o crescimento e o desenvolvimento da economia do arquipélago, que podem ser vistos por duas perspetivas: primeiro, como uma “economia de aproveitamento imediato daquilo que se apresenta com valor mercantil (madeiras, pastel, urzela) ou valor alimentar (peixe); segundo, como uma economia de produção (trigo, gado, mais tarde açúcar e vinho)” (PINTO e RODRIGUES, 1993, 408). A afluência de escravos foi tão acentuada na Ilha que muitos terão aí casado e permanecido. Inventariam-se 593 casamentos, dos quais uns ocorriam entre escravos da mesma condição, outros entre escravos e forros ou libertos, e outros ainda entre escravos ou ex-escravos e não escravos. O primeiro casamento no seio desta comunidade teria ocorrido em 1539, na igreja da Sé, e o último em 1830. Influência europeia através da história económica e social (comércio e turismo) A presença de estrangeiros na Ilha remonta ao seu povoamento. Os primeiros mercadores estrangeiros que aí apareceram eram florentinos, genoveses e venezianos, todos comerciantes do açúcar, o que originava muitas vezes na sua naturalização. Assim, refere o Elucidário Madeirense: “Os estrangeiros contribuíam consideravelmente, embora com proveito próprio, para o estado de prosperidade a que chegou esta ilha desde os fins do século XV até meados do século seguinte. Entregaram-se a diversos ramos de negócio, montaram muitos engenhos de açúcar e era por seu intermédio que se fazia uma boa parte da exportação desse produto para os países estrangeiros” (SILVA e MENESES, 1998, 422). Os Ingleses adquiriram um lugar de relevo na burguesia cosmopolita da cidade desde o séc. XVII, e a ilha da Madeira transformou-se numa escala obrigatória nas rotas marítimas da Inglaterra. A expansão do comércio, através dos negócios de exportação de produtos diversos, como o trigo, as madeiras, o açúcar, o vinho e o bordado Madeira, foi uma forma de a comunidade madeirense entrar em contacto, não só com os escravos, mas também com estrangeiros europeus que pela Madeira passavam. O comércio açucareiro terá tido início logo no dealbar do séc. XV, acentuando-se a sua produção depois da crise económica na última metade do séc. XVI, que decorreu da falta de trigo e, consequentemente, de pão. Os madeirenses viram-se para a produção do açúcar, uma vez que a produção cerealífera não prosperava nas frondosas e acentuadas montanhas da Ilha. A produção subiu, assim, em grande escala, não só para consumo próprio, como também para exportação, sendo de registar, a este propósito, o despacho enviado em 1461 ao Rei de Portugal, D. Fernando, a pedir autorização para “carregar vinhos açuquares madeyra pam e todo ho q avees de vosas nouidades pera hu vos mais prouuer sem me pagardes dizima da carregaçam”, acrescentando ainda: “taes carregações […] pera fora destes reynos” (PEREIRA, 1991, 91). Durante algum tempo, a produção e a exportação de açúcar seguiram bom porto e estenderam-se pelas cidades mediterrânicas e nórdicas, bem como para o reino, fomentando um grande interesse da burguesia estrangeira pelo comércio do açúcar. O mercado açucareiro, e principalmente a exportação deste produto para Flandres, Inglaterra, Ruão, Rochela e Bretanha, deram grande visibilidade à Madeira, sobretudo entre 1450 e 1550. Contudo, o comércio do açúcar não vingou nos séculos seguintes, devido à forte concorrência de outros locais, com maior produção. A Madeira, por ser uma ilha de pequenas dimensões, não conseguiu competir, pelo menos em grande escala, com os novos produtores da América do Sul (Caraíbas e Brasil). Com o declínio do açúcar, é a vinha que, enquanto cultura, passa a predominar, já nos fins do séc. XVI. O clima da Madeira, ameno em qualquer estação do ano, para além de favorecer as culturas, também não passou despercebido aos estrangeiros do Norte da Europa, cujos invernos eram muito mais rigorosos. De acordo com Albert Silbert, citado por António Marques da Silva, as características peculiares do clima da Madeira devem-se à “presença dos ventos alísios que emolduram o arquipélago da Madeira” (SILVA, 2007, 35). Apesar da grande afluência de Ingleses à Madeira, não foram apenas estes que tiveram interesse na beleza, no clima e no comércio que a Ilha podia oferecer. Os Alemães também mostraram essa vontade. A presença alemã na Madeira, tal como a inglesa, remonta ao seu povoamento, no séc. XV; com efeito, há registo de duas figuras lendárias, Henrique e André Alemão, tendo este etnónimo por referência “um indivíduo natural de Além-Reno” (VERÍSSIMO, 2012, 17). Henrique Alemão, cavaleiro de Santa Catarina, recebeu terras na ribeira da Madalena, em sesmaria de Gonçalves Zarco; uma outra terra, situada entre a Madalena e o Arco da Calheta, teria sido doada a André Alemão. A presença alemã nesta zona da Ilha “ficou assinalada através do topónimo Fajã do Alemão, hoje designada, por corruptela, Fajã do Limão” (VERÍSSIMO, 2012, 16). Mais tarde, já no séc. XVI, o comércio internacional do açúcar fica associado aos Alemães da família Paumgarther de Augsburg e à sua companhia, que mantinha relações entre a Madeira e as Canárias. Outros nomes associados à companhia são Welser Lucas Rem, Hans Rem e os feitores Leo Ravensburger e Hans Schmid. No século posterior e até ao séc. XIX, sabe-se que a presença alemã em território português vigorou principalmente nos Açores. A partir do séc. XVIII, a Madeira recebe um outro tipo de visitantes europeus: cientistas, sobretudo britânicos, mas também franceses e alemães. De facto, no séc. XIX, a permanência de Alemães na Ilha relaciona-se sobretudo com a chegada de cientistas cujos estudos incidem sobre a Madeira e têm como objeto o clima e a tuberculose; Alemães como Karl Mittermeier (que esteve na Madeira em 1855) e Rudolph Schultz (que ali esteve em 1864), entre outros, acreditavam que a Ilha possuía condições favoráveis para a sua cura. De acordo com Eberhard Wilhelm (1997), durante o período de 1815 a 1915, foram imensos os visitantes de língua alemã na Madeira, sobretudo naturalistas e médicos, que mostraram grande interesse pela botânica insular, sendo de referir, e.g., Johann Reinhold Foster e Johann George Adam Foster, e ainda, na área geológica, Leopold Von Buch. Na fig. 4, apresentam-se alguns nomes importantes de figuras alemãs que estiveram na Madeira e que em muito contribuíram para o seu desenvolvimento em diversas áreas: [table id=110 /] No séc. XIX, devido à vasta literatura científica e de viagem que inclui a ilha da Madeira, é possível reconstruir a situação da mesma nessa altura. Os viajantes que por lá passavam descreviam vários aspetos, como a natureza, a topografia, o relevo, as tradições, as vestimentas e os hábitos alimentares, e acrescentavam detalhes muito significativos, que representavam as suas ideias sobre determinadas situações do quotidiano madeirense: “De facto, o século XIX trouxe à Madeira muitos viajantes que julgaram oportuno proceder em termos dum ‘fifty-first’ e, assim, o número dos que deixaram registado em livro o seu ‘glimpse’ madeirense ascende a umas boas dezenas. Entre eles e para mencionar apenas os mais representativos em campos literários diferentes e perseguindo também diferentes objetivos temos Robert Steele, James Edward Alexander, o Dr. Wilde, James Golman, John Osborne, Wiliam Hadfield, Henry Vizetelly” (BRANCO, 1989, 201). Para além do grande número de estrangeiros interessados no arquipélago da Madeira, inicialmente pelo comércio do açúcar, do vinho, do bordado Madeira, e pelas características naturais do território (clima, botânica, geologia, medicina), na viragem do séc. XIX para o séc. XX, a Madeira começou a ser pensada como um espaço de lazer. É nesta altura que tem início o turismo na Madeira, uma nova era em que se começa a desenvolver um ciclo económico ligado a esta atividade. Se, por um lado, o turismo pode ser visto como algo motivador e revitalizador de práticas estagnadas, através do processo de aculturação, por outro, podemos inferir que o mesmo processo poderá influenciar e motivar a comunidade linguística a que se destina. Esta atração pelo turismo permitiu que houvesse, a nível económico e urbanístico, principalmente na cidade do Funchal, um grande investimento na construção de hotéis, levado a cabo sobretudo por Ingleses, que fez surgir na cidade uma realidade nova. A atividade turística transforma, assim, a capital insular num centro cosmopolita e num palco de muitas culturas. A emigração madeirense entre os séculos XV e XX Desde o séc. XV que a Madeira viu os filhos da sua terra partirem em busca de novos rumos, num movimento normalmente associado a crises socioeconómicas. A primeira crise do trigo, logo no séc. XVI, forçou os madeirenses a partirem, sendo a falta de cereais, que perdurou pelos séculos seguintes, responsável pelo facto de a Madeira se ter tornado refém da importação cerealífera vinda dos Açores. Nos sécs. XVI e XVII, os madeirenses foram essenciais no Brasil, pois contribuíram com as suas aptidões como lavradores e mestres de engenho, bem como na exportação de cana-de-açúcar, tendo tido um papel relevante no comércio açucareiro do Brasil. No séc. XVII, com a invasão holandesa do Brasil, o comércio teve dificuldades. Houve necessidade de enviar novamente madeirenses para a reconstrução dos engenhos, e eles contribuíram para a expulsão dos Holandeses do Maranhão em 1642, em particular o madeirense António Teixeira Mello; em Pernambuco, em 1645, a organização de resistência foi feita pelo madeirense João Fernandes Vieira. No séc. XVIII, a fome e a crise persistiam, consequência, ainda, da falta de trigo, como afirma Maria Licínia dos Santos: “logo nos primeiros anos do século XVIII, ou seja, 1806, a Madeira foi intensamente ameaçada pelo espectro da fome” (SANTOS, 1999, 16). A emigração para o Brasil foi, portanto, uma fuga à fome e uma forma de ascender social e economicamente. Por esta razão, os madeirenses optam por levar os seus cônjuges, decisão que beneficiou e garantiu as terras do Sul do Brasil, que estavam quase à mercê dos Espanhóis com o Tratado de Madrid. Daqui resultou uma grande afluência de madeirenses para as regiões de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Maranhão e Rio de Janeiro. A chegada dos madeirenses ao Brasil foi difícil, tendo esta situação ficado conhecida como “escravatura branca” (VIEIRA, 2004a). Na tabela seguinte, apresentam-se os dados fornecidos por Alberto Vieira relativamente ao número de emigrantes para este destino, entre os anos de 1835 e 1860. [table id=111 /]   A par do Brasil, outro destino procurado pelos madeirenses foi o sul de África, nomeadamente a extensa colónia angolana, onde se regista presença madeirense desde 1664. Até ao séc. XIX, a emigração (imigração/emigração) para esta região não se fazia de forma acentuada, quando comparada com esse século e os seguintes. O processo de emigração, resultado da continuada crise económica e das várias calamidades naturais que afetaram a agricultura, especialmente a vinícola, levou os insulares a procurarem em massa, comparativamente aos séculos anteriores, outros destinos para obterem melhores condições de vida. Para além dos problemas acima enunciados, a Madeira sofreu ainda o impacto do conflito político entre liberais e absolutistas, tornando o arquipélago vulnerável e dando aso às investidas de ocupação por parte dos Ingleses, em 1801 e em 1810. A crise permitiu que as diferenças sociais aumentassem e as classes sociais se diferenciassem mais umas das outras, levando a que as classes mais baixas, famintas, procurassem outros rumos. A meio do século (1846 e 1847), a Madeira sofre nova crise, desta vez no cultivo da semilha, o meio de sustento dos pobres, levando a mais um surto de fome e, consequentemente, a nova vaga de emigração. As Antilhas britânicas foram um dos locais procurados pelos madeirenses para emigrar, até porque, na altura, os ingleses tinham falta de mão de obra para as suas plantações. Assim, os destinos de emigração mais frequentes dos madeirenses foram as Antilhas, Demerara, os países da América Central, o Brasil, o Havai e Angola. Nas tabelas seguintes, podemos observar o número de emigrantes distribuídos pelos vários países entre 1834 e 1847 (fig. 6) e pelas colónias britânicas entre 1843 e 1866 (fig. 7): [table id=112 /] [table id=113 /]   No outro lado do oceano, a colonização de Angola era um assunto premente, pelo que, em 1884, se fixaram nessa terra os primeiros 222 colonos saídos do porto do Funchal. Ainda no mesmo ano, chegariam mais 349 emigrantes e, até 1890, registaram-se mais de 704 indivíduos. Ainda no séc. XIX, outro destino procurado pelos madeirenses foi o Havai, que, na segunda metade da centúria, recebeu 400.000 emigrantes de todo o mundo. A emigração madeirense deveu-se em grande parte ao trabalho de Wilhem Hillebrand. Em 1978, este promoveu uns panfletos denominados “Breve notícia acerca das ilhas Sandwich – e das vantagens que elas oferecem à emigração que as procure”. Segundo Susana Caldeira, “Primeiro, foram os chineses, em 1852. A emigração portuguesa começou com o primeiro grupo de 120 madeirenses que chegaram lá [ao Havai] no dia 29 de setembro de 1878, a bordo do navio Priscilla, respondendo [ao apelo de] mão de obra [para as] plantações de açúcar”. A predominância dos madeirenses durou até ao início do séc. XX, e “o português, que foi ensinado, na universidade do Havai, até 1956 e, mesmo depois, por alguns tutores privados, ainda é falado por alguns descendentes, sendo que o sotaque e os termos utilizados podem denotar-se de origem madeirense” (CALDEIRA, 2011). Se, por um lado, a emigração madeirense se acentuou no séc. XIX em países da América Central e nas colónias ingleses, já no séc. XX os destinos emigratórios serão predominantemente o Brasil, Curaçau, a África do Sul e a Venezuela. No início do séc. XX, com as guerras mundiais à porta, a emigração viu-se fechada e será apenas a partir de 1940 que irá acentuar-se, consequência dos danos colaterais provocados pela Segunda Guerra Mundial. Neste período, o turismo diminuiu, assim como a exportação do vinho, o que fez agravar a situação económica na Ilha e aumentar a necessidade de saída dos madeirenses. Na fig. 8, podemos ver o número de emigrantes para a Venezuela e para o Brasil no período compreendido entre 1943 e 1954.   [table id=114 /]   No séc. XIX, apesar de muitos madeirenses terem saído da Madeira, muitos regressaram também; já no séc. XX, e segundo os censos 2011, a população de nacionalidade portuguesa residente na Madeira que já tinha residido no estrangeiro é de 18,2 %; a maior fatia corresponde aos que tinham emigrado para a Venezuela (37,1 %), seguindo-se os indivíduos que tinham estado no Reino Unido (17,5 %). A Madeira é, portanto, uma porta aberta para o mundo, para o fluxo de entradas e saídas de várias comunidades linguísticas e culturais, caracterizada por um contacto persistente e acentuado com outras comunidades linguísticas ao longo do tempo. Desta forma, é possível entender o contacto linguístico na Madeira como um facto que poderá estar na origem de vários fenómenos linguísticos variáveis, sobretudo a nível lexical, mas também fonético, morfológico e, porventura, sintático. Os produtos resultantes dos contactos etnolinguísticos no arquipélago da Madeira serão exemplificados a seguir.   Produtos linguísticos resultantes do contacto linguístico Os estrangeirismos correspondem a empréstimos, porque são termos importados de outras línguas, podendo ou não sofrer adaptações para se adequarem às características fonéticas e morfológicas da língua de acolhimento; surgem por necessidades denominativas e comunicativas. Um dos empréstimos mais usados e generalizados no arquipélago será, sem dúvida, o nome “semilha” (batata), empréstimo do espanhol “semilla” (semente), a partir do qual surgem as formas derivadas “semilheira” (de “semilha” + sufixo -eira), para designar a planta que dá a semilha, e “semilhal” (de “semilha” + sufixo -al), para denominar uma grande quantidade de semilhas. Património linguístico ligado à presença britânica No séc. XVII, uma considerável comunidade inglesa afirma-se na Madeira. Para tal contribuiu também a conjuntura favorável ao comércio colonial inglês, definida em 1663 por D. Carlos II, que lança o vinho madeirense como um importante produto do Atlântico. O vinho ganha hegemonia na cultura madeirense, substituindo o açúcar, tal como refere, em 1727, António Cordeiro, citado por Alberto Vieira: “a abundância de frutos já não é tanta, como nem é tanto açúcar, […] mas a principal de todas é a dos muitos, e excelentes vinhos” (VIEIRA, 2004a, 44). O vinho da Madeira ganha grande relevo e atrai investidores estrangeiros, nomeadamente Ingleses, à Ilha. Aliás, António Ribeiro Marques da Silva, falando da perspetiva de um estrangeiro, afirma que: “Hancock parece ter razão em referir o vinho Madeira como um dos mais importantes motivos da deslocação do comércio atlântico” (SILVA, 2007, 38). Nos séculos que se seguem ao ciclo do açúcar, a Madeira continua a receber imensos estrangeiros, na sua maioria Ingleses, que se fixaram na Ilha e que contribuíram significativamente para o comércio vinícola. Estas comunidades estrangeiras terão provavelmente começado a influenciar linguisticamente a comunidade madeirense. A língua inglesa é, assim, depois da portuguesa, a que é mais falada e a que detém mais prestígio na Ilha. Os elementos da comunidade britânica aí assentaram primeiro como comerciantes e, mais tarde, como naturalistas. No séc. XVIII, a Madeira era vista como um centro político e social em transformação, o que se deveu à presença de duas comunidades linguísticas diferentes. Aliás, a comunidade inglesa na Madeira contribuiu maioritariamente para o desenvolvimento da economia insular, desde o séc. XVII até ao séc. XX, tendo estabelecido uma organização conhecida como British Factory. A narrativa segundo a qual a descoberta da ilha da Madeira é tributária dos Ingleses, ou a lenda de Machim, reforça a ideia da ligação mítica e histórica à cultura anglicana, ideia que tem sido explorada sobretudo na literatura britânica. Alberto Gomes (1950) menciona que uma revista britânica sugere que a conservação da Cruz do túmulo de Anne d’Arfet e Robert Machim na capela da Ordem de Cristo em Machico poderá ser um sinal de que os madeirenses consentem na tese de que o descobrimento foi feito pelo casal inglês. Esta lenda poderá também explicar a forte adesão de Ingleses ao arquipélago. De acordo com David Hancock (2012), a comunidade inglesa fixada na Madeira no início do séc. XIX deveria rondar os 500 indivíduos, muitos deles a viverem nas suas quintas, próximas ao Funchal. Embora a comunidade britânica tivesse poucos membros, a sua influência na construção e no desenvolvimento da sociedade insular foi enorme. Na verdade, não foi só o vinho que os interessou. No séc. XIX, em 1850, apareceram numa exposição no Funchal uns bordados madeirenses que chamaram a atenção de Elisabeth Phelps. No mês de junho do mesmo ano, nos dias 29 e 30, o Cons. Silvestre Ribeiro promoveu os bordados numa feira com o objetivo de fomentar o comércio interno, feira que, de acordo com Luísa Clode (1968), foi visitada por 15.000 pessoas. Posteriormente, Elisabeth Phelps deu a conhecer o bordado madeirense aos Ingleses e, a partir 1854, deu-se início à produção de bordados em larga escala. Com o continuar dos anos, e apesar dos altos e baixos que a sua produção conheceu, pode considerar-se que, de um modo geral, houve um aumento significativo do número de bordadeiras e da sua produção, que se refletiu numa maior afluência de estrangeiros, em especial de Ingleses, ao Funchal para a compra do bordado, assim como na exportação. O património natural insular também resulta, em grande parte, da atividade científica conduzida por naturalistas britânicos que viveram na Ilha, tal como o Rev. Lowe, ou que nela permaneceram algum tempo, e.g., sir Joseph Banks, no séc. XVIII e, no séc. XIX, Morgan Lemann, James Yate Johnson, sir Dalton Hooker, entre outros, a fim de coletar dados que integram várias taxonomias científicas (botânica, fauna, geológica, etc.). Os Ingleses estiveram, assim, ligados à história socioeconómica da Madeira nas suas diferentes fases (açúcar, vinho, bordados e turismo). Logo no final do séc. XVII, a economia da Madeira beneficiou da sua integração no sistema comercial do Atlântico inglês, através do acordo conhecido como Lei da Navegação de 1660, usufruindo, posteriormente, do Tratado de Methuen. No entanto, é de salientar que, apesar da influência da comunidade inglesa na economia insular, os contactos com os ilhéus eram superficiais. Como afirma David Hancock “Interactions between strangers and natives […] were more restrained. […] The Portuguese had ‘a strong aversion’ to the British in particular, specially British Protestants, and the British held a similar view in reverse [As interações entre os estrangeiros e os nativos […] eram mais contidas. […] Os Portugueses tinham ‘uma forte aversão’ aos Britânicos em particular, especialmente aos protestantes britânicos, e os Britânicos tinha uma visão semelhante, simétrica]” (HANCOCK, 2009, 18). Destes tipos de contacto linguístico e intercultural há a registar vários produtos linguísticos, entre os quais regionalismos como “bambote” e “bamboteiro” (de “bum boat”). Aline Bazenga, João Adriano Ribeiro e Miguel Sequeira (2012) referem também o uso de etnónimos, tais como “inglês” e “britânico”, tanto no domínio da antroponímia como da toponímia. No que concerne ao primeiro caso, são de sublinhar os registos da alcunha “o inglês” em arquivos notoriais da Região; no caso dos topónimos, são de assinalar a antiga R. dos Ingleses, a igreja inglesa e o cemitério dos Ingleses. O etnónimo “inglês” também integra nomes de estabelecimentos comerciais, e.g., Botica Inglesa. Os patrónimos de figuras de prestígio da comunidade britânica insular foram também celebrados através do seu uso na toponímia regional. É o caso de Blandy (levada do Blandy), de Phelps (Lg. do Phelps) e de Murray (fontanário Carlos Murray, na freguesia do Monte, no Funchal). O legado da comunidade britânica contempla referências onomásticas de naturalistas britânicos nas descrições taxonómicas de plantas endógenas da ilha da Madeira, e.g. nomes de espécies, como Arachniodes webbiana (A. Braun) Schelpe, de Philip Barker Webb (1793-1854); Dryopteris aitoniana Pic. Serm., de William Aiton (1731-1793); Limonium lowei R. Jardim, M. Seq., Capelo, J.C. Costa & Rivas Mart.; Monanthes lowei (A. Paiva) P. Pérez & Acebes; Lotus loweanus Webb & Berthel; Peucedanum lowei (Coss.) Menezes; Scrophularia lowei Dalgaard; Phagnalon lowei DC.; Koeleria loweana Quintanar, Catalán & Castrov., todas dedicadas ao Rev. Thomas Lowe (1802-1874), naturalista britânico que viveu alguns anos na ilha da Madeira, Convolvulus massonii F. Dietr. e Cheirolophus massonianus (Lowe) A. Hansen & Sunding, ambas em nome de Francis Masson (1741-1805), e ainda Musschia wollastonii Lowe 1856, do mesmo autor, cujo naturalista celebrado é T. Vernon Wollaston (1822-1878). Influência do castelhano na variedade insular madeirense O arquipélago madeirense possui, ainda no séc. XXI, um grande número de emigrantes a residir na Venezuela. As segundas e terceiras gerações, já de nacionalidade venezuelana, quando regressam, esporádica ou definitivamente, à terra natal dos pais ou avós apenas falam castelhano. O bilinguismo é raro nesta comunidade, que, mesmo a residir no espaço insular, conserva a língua daquele país da América do Sul. Quem emigrou jovem fala, normalmente, português com muitas interferências castelhanas, mas o inverso também acontece, porque há quem opte pelo castelhano com, inevitavelmente, interferências portuguesas. De qualquer modo, sucede que, quando regressam para residir no arquipélago, formam comunidades, essencialmente familiares, mas também de vizinhança, mantendo tradições venezuelanas e conservando o idioma que falam entre si. Diz-se que o hábito madeirense de cozer milho terá origem venezuelana, mais precisamente na polenta; não será por acaso que muitas marcas de farinha de milho usadas neste prato madeirense têm nomes castelhanos. Estes “madeirenses venezuelanos” são reconhecidos e identificados pelos locais como “mira”, a exclamação castelhana usada para chamar a atenção de outrem. Congregando a comunidade, o Consulado da Venezuela joga um papel determinante na valorização da mesma, que inclui madeirenses casados com venezuelanos de outras origens que não a madeirense, havendo, portanto, outros contactos linguísticos. Esta influência castelhana é notória, e.g., nos nomes próprios de muitos madeirenses, sobretudo os de dupla nacionalidade, que se destacam no conjunto dos nomes próprios tipicamente portugueses dos madeirenses que não emigraram. Quando se ouvem nomes como “Melita”, “Reina”, “Estefani”, “Nancy”, “Juan” e “Juan Carlos”, reconhecem-se, sobretudo, lusodescendentes, cujos pais passaram por aquele país da América Latina. Para além disto, é na culinária que se destaca a ocorrência de vocábulos de origem castelhana; assim, a empanada, que se reencontra em restaurantes da ilha da Madeira, é um exemplo claro deste contacto linguístico motivado pela aquisição de novos hábitos culturais. Apesar do forte peso que tem, não se deverá, contudo, apenas à Venezuela a influência castelhana na variedade insular madeirense. Segundo Deolinda Macedo, tal influência remontará ao séc. XVII, aquando do domínio filipino; é uma convicção da autora, embora não exemplifique: “Em algumas regiões, nomeadamente, no norte, existem certos vocábulos que parecem acusar influência espanhola. O caso não deve parecer-nos muito estranho, porquanto é facto averiguado que durante o domínio filipino se foram estabelecer, na Madeira, várias famílias daquela nacionalidade. É natural, pois, que a estada dessas famílias na ilha tivesse deixado entre os seus habitantes alguns vestígios” (MACEDO, 1939, 3). Quando enuncia, e.g., “particularidades fonéticas”, a autora refere que “no norte, especialmente em S. Vicente, é vulgaríssima a pronúncia de tu e su para designar respetivamente os pronomes teu e seu ou tua e sua, o que denota certamente influência espanhol [sic]” (Id., Ibid., 14). No entanto, não fica bem demonstrada esta influência. Aliás, Helena Rebelo (2007), procurando influências do castelhano na variedade insular madeirense pela consulta de alguns vocabulários madeirenses, realça isso mesmo. O exemplo mais flagrante é o caso de “semilha”, que, comprovadamente, tem origem castelhana, mas pelo contacto, de novo, com a América Latina. Contudo, a presença de falantes de castelhano no arquipélago madeirense vai sendo, pontualmente, referida. Na narrativa “Prophetas” (1884), de Mariana Xavier da Silva, e.g., é mencionada a presença de um castelhano a viver no Porto Santo: “Um aventureiro espanhol servia-lhes de sacristão, e tocava todos os dias a campainha lançando pregão para a prática”; “servindo-lhes de porteiro o espanhol, que era fino e astuto, e muito dedicado aqueles impostores” (SILVA, 1884, 167-168). Esta presença não será, decerto, caso isolado e isso terá consequências na língua falada. Num dos textos de “populismos madeirenses”, o subintitulado “origens”, escreve Alberto Artur Sarmento: “A corrente de famílias estrangeiras que acudiu à Madeira pouca influência teve, a não ser a castelhana e depois mais durante o domínio em que foi estabelecido no Funchal o presídio com tropas vindas de Espanha. [...] Além dos nomes de origem algarvia, grande número de vocábulos dos árabes e castelhanos andam de mistura com termos corrompidos do inglês que atropelam os primitivos numa contínua variedade de palavras introduzidas, especialmente no Funchal, coração de todo o comércio, e onde o negociante de bordo ou bomboteiro tem uma linguagem muito sua própria” (SARMENTO, 1914). Esta quase ausência de dados, como se não houvesse grandes relações entre o castelhano e a variedade insular, deixa, no entanto, sérias dúvidas. Sabe-se que os arquipélagos da Madeira e das Canárias mantiveram desde muito cedo contactos estreitos, existindo, inclusivamente, famílias mistas; talvez por isso, gerou-se o hábito de passar férias no outro arquipélago, quer para madeirenses, quer para canários. Os investigadores do arquipélago espanhol procuram atestar influências recíprocas entre o português e o castelhano falado nas ilhas. Além disso, residirá no arquipélago da Madeira um número considerável de galegos, que se foram misturando com a população. Terá sucedido o mesmo com alguns gibraltinos, espanhóis, bolivianos, peruanos, mexicanos, etc. Mas o que se conhece, no começo do séc. XXI, sobre os contactos linguísticos entre o castelhano e o português falado no arquipélago madeirense é muito pouco; a deteção dos vestígios linguísticos de uma influência castelhana carece de trabalho de campo, faltando aprofundar a investigação no terreno.   A presença árabe na Madeira A presença árabe no arquipélago da Madeira deve-se, sobretudo, à contribuição dos madeirenses para a conquista e proteção das praças marroquinas, assim como ao desenvolvimento das relações comerciais e culturais entre as ilhas atlânticas, neste caso entre a Madeira e as Canárias, como resultado principalmente da produção açucareira. Alberto Artur Sarmento, no seu artigo acerca dos mouros na Madeira transcrito no Elucidário Madeirense, afirma: “O mouro era mais trabalhador do que o escravo da Guiné e da Mina, por isso a preferência dos senhores das terras em importá-lo para as suas fazendas de cultivo. Este comércio escandaloso […] originou o clamor do chefe dos mouros que lamenta em carta a D. Manuel, o que fazia Azambuja, apanhando a torto e a direito e de todas as classes, para enviar de contrato aos capitães da Madeira. Os mouros formaram núcleos importantes, reunindo-se em grupo ou bairro à parte, como o atesta a Mouraria, uma das ruas mais antigas do Funchal. […] Tiveram grande comércio nas vilas, especialmente em Ponta do Sol e Santa Cruz” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Acrescenta ainda que foi grande o número de mouros existentes no arquipélago da Madeira, nos primitivos tempos da colonização, nomeadamente no Funchal, na Ponta do Sol, no Curral das Freiras e em Machico. Os escravos mouros surgem das várias expedições guerreiras dos madeirenses a Marrocos e este grupo servil teve grande importância na sociedade madeirense no séc. XV. No Elucidário Madeirense, pode ler-se: “Em Santa Cruz, mostrava-se ainda há anos um retábulo existente na igreja paroquial, onde figuravam escravos mouros usando um pequeno turbante afunilado, com uma ponta caída, de que derivaram a carapuça do vilão e a toalhinha pendente da cabeça, antigos trajes característicos da camponesa da Madeira” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Sobre a carapuça madeirense, Wuellerstorf-Urbair, citado por Eduardo Pereira, em Ilhas de Zargo, afirmava em 1857: “O capuz mourisco também se modificou, desfigurando-se em gorra semelhante ao barrete frígio e desceu aos ombros em tapa-nuca; reduziu-se depois a carapuça limitada à cabeça, elevada em esboço de ponta cónica no cocuruto e sobreposta a um curto pano de linho, contra o sol, descaído até o pescoço; aguçou em apêndice a parte superior retesada em rabo-de-gato, adelgaçando para cima até acabar em ponta. Em sua forma atual não oferece abrigo nem contra o frio nem contra o calor; não parece mais do que um fragmento de touca mourisca” (PEREIRA, 1989, II, 569). Acrescenta que os habitantes das costas africanas, com quem os primeiros colonos madeirenses tiveram estreitas relações, usavam carapuças semelhantes, as quais eram à maneira de turbantes, circundadas dum pano branco fino, referindo também a igreja de Santa Cruz, onde apareciam alguns escravos árabes com estas carapuças (Id., Ibid.). Voltando ao Elucidário Madeirense, na transcrição do texto de Sarmento, o autor explicita: “Dos mouros, a dolência dos cantares, mas a dança repisada é movimento de negro. Dos mouros as lengas-lengas serranas, os populares: lengi lengi o nevoeiro corriqueiro, a formiga que o seu pé prende” “Entre as brumas, princesas encantadas, as histórias de palácios e riquezas entesouradas, ladrões e varas de condão, são influências e assuntos do povo, migrados nesta corrente de longe subordinada” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Francisco Lacerda, na sua enumeração de influências mouras no arquipélago, também regista os contos de princesas mouras encantadas, bem como os tapetes mágicos, as varinhas de condão e as lengalengas (lingue-lingue). Afirma também que certos sítios têm na sua toponímia reminiscências mouriscas, como a Fajã da Moura (Serra de Água) e a Cova do Mouro (Monte), acrescentando que “aonde hoje se encontra a Capela de Nossa Senhora da Penha de França, no Faial, existiu uma pequena mesquita, com entrada disfarçada, aonde os mouros secretamente se reuniam” (LACERDA, 1993, 102). O autor menciona ainda que os corsários mouros rondavam os mares do arquipélago e que, muitas vezes, assaltavam povoações, como o Caniçal e a Fajã dos Padres (no Campanário), e salienta que o Porto Santo foi assolado muitas vezes, ficando em escombros e a ilha quase desabitada. Refere ainda a expressão “vai-te p’ra Argel” como praga popular que relembra o saque e cativeiro em terras da moirama. Ao fazer o estudo das tradições orais populares, Lacerda documenta o romance de conde Claro (ou Claros), variante de D. Carlos de Mont’Alvar, recolhido no Porto Santo, no qual podemos encontrar uma referência aos mouros ou moiros: “– Aonde vais tu, conde Claro,/que assim vais tão arreiado?/ – Se eu venho muito arreiado,/É p’ra com moiros brigar” (LACERDA, 1993, 24). A forma “arreiado”, provavelmente de “arrear”, significa “pôr os arreios, peças do aparelho das cavalgaduras” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Nas cantigas, regista uma referência à moirama nos seguintes versos: “Fui cativo p’ra moirama,/pelo triste azar da guerra;/que por mim moneta desse,/não houve perro nem perra [?]” (LACERDA, 1993, 62). “Moirama” ou “mourama”, “terra de muçulmanos” e “os mouros”; “moneta”, possivelmente “moeda” (de monetário); “perro” e “perra”, respetivamente “cão” e “cadela”, “pessoa vil, canalha, patife, sacana” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). O autor documenta ainda, na parte denominada “Cantigas d’amor”, a composição “Pretidão de amor”, onde também há uma clara referência aos mouros: “Passei pela tua porta/Pedi-te água, não me deste./Tu passaste pela minha/Bebeste quanta quiseste./Nem os moiros da moirama/Faziam o que tu fizeste!” (LACERDA, 1993, 153). Outra relação entre a ilha da Madeira, o Norte de África e Portugal diz respeito à lenda da ilha de Arguim, que Lacerda regista da seguinte forma: “Em certas tardes brumosas, aparece, ao pôr do sol, para os lados do Porto Santo uma ilha, também envolta em bruma, onde o Desejado (Rei D. Sebastião) dorme e espera, desde a desastrosa jornada de Alcácer-Quibir. Espera, até que uma alma forte consiga abordar a misteriosa ilha de Arguim” (LACERDA, 1993, 80). Arguim é uma ilha na baía de Arguim, na Mauritânia, onde teria sido construída a primeira feitoria portuguesa na costa ocidental africana, por ordem do infante D. Henrique, senhorio do arquipélago da Madeira. Foi um importante centro de comércio, estabelecendo ligações com Safim, depois Marrocos. O Rei D. Sebastião, derrotado pelos mouros na batalha de Alcácer-Quibir, teria fugido para uma ilha no oceano Atlântico, que seria Arguim; na rota para esse lugar, teria passado pela ilha da Madeira, tocando o cabo do Garajau, e na rocha teria espetado a sua espada, que aí ficou encantada, a aguardar que um dia ele voltasse para a conquista do território português que, entretanto, tinha sido submetido aos Filipes de Castela. Outra versão da lenda diz que o Rei enterrou a sua espada na encosta mais árida e escarpada da Penha de Águia, no Porto da Cruz. Marco Livramento refere ainda a lenda da construção do templo a S.to António, na freguesia de Santo António da Serra (concelho de Santa Cruz), que, curiosamente, teve como interlocutor preferido um escravo mouro (Lendas e mitos fundadores). A presença árabe parece estar patente na música e nas tradições populares madeirenses, e.g. na mourisca, como o próprio nome indica. Lacerda, a propósito da presença moura no arquipélago da Madeira, diz que mourisca é o nome de uma dança que perdeu todo o seu carácter mouro (LACERDA, 1993, 103). Carlos Santos afirma tratar-se de uma canção que se popularizou, adquirindo variantes de freguesia para freguesia, sendo cantada sobretudo na cultura do trigo do trabalhador mouro ou madeirense (SANTOS, 1937, 39). No entanto, não há nenhuma certeza sobre a herança árabe no folclore madeirense, i.e., não há dados concretos que provém esta influência. Carlos Santos refere que “A canção popular revela fielmente a vida e os trabalhos do homem rural, as alegrias e dores, esperanças e incertezas, o amor e a fé. As ilhas da Madeira e Porto Santo, colonizadas por gentes vindas do Norte ao Algarve de Portugal continental, assim como escravos mouros, negros e outros, naturalmente reflete o modo de ser, pensar, agir e reagir, a mentalidade dos povos que as precederam […]. A influência árabe, que mais do que qualquer outra se manifesta no nosso povo, não é já árabe, senão portuguesa na sua origem, para nós. Essencialmente portugueses são a nossa gente e o nosso carácter” (Id., Ibid., 8). O autor escreve: “Igualmente não é crível que as primeiras gerações madeirenses fossem todas puras e assimilassem unicamente os hábitos e costumes dos seus progenitores. […] Não esqueçamos, igualmente, que aos escravos nunca foi proibido dançar e cantar” (Id., Ibid., 39), tal como aconteceu no Brasil. No entanto, isto não invalida que haja traços de música continental portuguesa, i.e., parecenças entre a música da Madeira e a do Minho, do Alentejo e do Algarve. Mas, segundo o autor, o estilo é madeirense, produto de uma miscelânea em que prepondera o árabe; e questiona: “E se no Minho há muitas canções alegres, porque haviam de ficar na Madeira só as monótonas?” (Id., Ibid., 40-41), para concluir que, na Madeira, “tanto nas populações ribeirinhas como nas serranas usam-se as mesmas músicas – o charamba, a mourisca e o bailinho. […] Se o estilo preponderante e generalizado mais se aproxima do mouro, segue-se que eles o deixaram por cá como aconteceu em várias províncias continentais. […] Há de haver de tudo um pouco; mas o estilo musical, não sendo o característico do continente, convida a uma reflexão demorada. A sua pobreza melódica aproxima-se da música árabe tanto quanto se afasta das ricas melodias portuguesas” (Id., Ibid., 44-45). Posto isto, o charamba, a canção mais conhecida no folclore madeirense, possivelmente deixada pelos árabes, foi adotada com variação de freguesia para freguesia. Com um ritmo arrastado e sentimental que revela a alma do povo madeirense, é o género musical mais antigo da tradição popular ou rural. Na Madeira é cantado, enquanto nos Açores é uma dança. Para Carlos Santos, o charamba parece traduzir o lamento de escravo ou ser uma melodia árabe; os camponeses madeirenses identificaram-se com esta melodia, devido à sua dura vida rural. O autor observa que, sempre acompanhado com a viola de arame, o charamba entrou no ouvido dos madeirenses, como provam as seguintes quadras: “O charamba pelo meio/Toda a vida m’agradou/Depois que o charamba veio/Outra moda não se usou” e “O Charamba foi às lapas/A mulher aos caranguejos/A filha ficou em casa/A dar abraços e beijos” (Id., Ibid., 49). Maria de Lurdes de Oliveira Monteiro, ao descrever o baile da meia-volta do Porto Santo, aponta as “características irrefragáveis dos árabes, com os quais a ilha, durante séculos, teve intercâmbio populacional: [...] não há ninguém que, vendo estas rodas e meneios lentos, em noites de luar e ouvindo as toadas melancólicas e trinadas que os acompanham não chegue instantaneamente a essa conclusão, tão grande é a semelhança” (MONTEIRO, 1945, 48). Adalberto Alves (1999) afirma que grande parte dos instrumentos musicais usados em Portugal, como o violino, a guitarra, o alaúde, a gaita, o pandeiro e o adufe, deriva diretamente dos instrumentos árabes. Jorge Torres e Rui Camacho (2015), a propósito dos instrumentos musicais populares, citam Gaspar Frutuoso, que, por volta de 1590, na descrição da ilha da Madeira, referindo-se à romaria de N.ª Sr.ª do Faial, diz congregar mais de 8000 pessoas, “que se deixam estar dois, três e mais dias em Nossa Senhora […] e juntos fazem muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, flautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 1873, 99). Os autores não nos dão nenhuma indicação sobre o que seria(m) este(s) instrumento(s) denominado(s) rabis, talvez por ser(em) desconhecido(s). Nem Torres e Camacho (2015) nem Torres (2015) fazem qualquer referência à influência árabe, pelo facto de não existirem dados que a comprovem, como já referido. Sobre o violino popular, o grupo de folclore do Porto Santo escreve: “Mais conhecido por rebeca foi sempre um acompanhante inseparável das danças e cantares mais característicos e tradicionais do Porto Santo, como o Baile da Meia Volta e Ladrão. Assim, pode-se concluir que o seu aparecimento no Porto Santo esteja ligado à chegada dos mouros a esta ilha, tal como as danças referidas. Posteriormente, este instrumento passou a acompanhar todas as festas populares, tanto religiosas como profanas” (GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO, 1999, 10). Relativamente à influência árabe na alimentação madeirense, os autores do Elucidário Madeirense citam Sarmento, que chama a atenção para o cuscuz dos mouros, “massa granulada de farinha de trigo, tão apreciada pelas classes pobres e que só a comem nas ocasiões solenes, com um naco de carne de porco, pelos batizados e casamentos, não faltando o ramo de segurelha e coentro que encima o prato e o aromatiza” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408-409). A palavra “cuscuz” (do ár. “kuskus”) surge em Luís de Sousa com a grafia “cuscus”, definida como “produto de confeção mourisca, fabricado principalmente em Marrocos e na Madeira. Notas. I. Z.” (SOUSA, 1950, 57), que se utiliza geralmente como arroz; com efeito, na Madeira, o trigo, convertido em farinha, além de ser usado para fazer pão e doces, também é usado para fazer cuscuz. Veríssimo refere que, no Convento da Encarnação do Funchal, “No Dia de Jesus ou nos Reis nunca faltava o picado de carneiro com cuscuz” (VERÍSSIMO, 1987, 39). O trigo era empregue em pão, bolos, doces, empadas, pastéis e cuscuz. No ano de 1769, e.g., as freiras consumiram 6,5 alqueires de cuscuz (Id., Ibid., 40). O Visconde do Porto da Cruz escreve: “O cuscus – parece que foi introduzido na culinária madeirense pelos escravos mouros do tempo dos povoadores – é dos pratos mais divulgados”. Diz-nos que há dois pratos: “o cuscus vulgar e o cuscus rico. O primeiro come-se só com água, sal, um raminho de segurelha, manteiga e serve-se quente e o segundo é feito do mesmo modo mas come-se com passas de uva, azeitonas, pedaços de chouriço, de carne de porco, de carne de galinha e até conservas de pepino, couve-flor, etc.” (PORTO DA CRUZ, 1963, 43). Lacerda nota que o cuscuz é “receita e uso deixado pelos mouros, muito usado nos conventos e entre seculares, nos casamentos e batizados” (LACERDA, 1993, 96); Zita Cardoso menciona que o cuscuz é servido como arroz, especialmente na quadra do Natal e na Páscoa, com pratos de carne: “Trazido do Norte de África, depois muito usado na Madeira e Porto Santo, foi alimento dos pobres muito vulgarizado na Ponta do Sol, Ponta do Pargo e Calheta. Foi também manjar senhorial. Daí haver o cuscuz rico, quando adicionado com pedaços de carne de porco, vaca, galinha, chouriço, passas, legumes e azeitonas em conserva” (CARDOSO, 1994, 134). O cuscuz é característico da zona oeste da Madeira, mas a tradição de fazer e cozinhar cuscuz não era desconhecida na parte leste da ilha, onde, como já se referiu, também houve uma importante presença moura. Élvio Sousa mostra que o cuscuz constava do receituário tradicional das cozinhas dos solares da Vila de Machico, ou seja, o seu fabrico e consumo seria frequente apenas nas casas abastadas, ao contrário do que acontecia noutras partes da Ilha (em que o seu uso era generalizado); talvez tenha sido por isso que desapareceu da parte leste da Ilha. Normalmente, era um prato confecionado em dezembro, antecedendo a matança do porco. A Revista Folclore informa que o cuscuz de trigo, na alimentação tradicional madeirense de São Vicente, era utilizado todo o ano, mas principalmente entre novembro e junho, porque se cozinhava com linguiça de porco e esta era feita com a matança do porco (GRUPO DE FOLCLORE DA CASA DO POVO DE SÃO VICENTE, 1998, 31). Segundo o Elucidário Madeirense, os habitantes da ilha do Porto Santo dão o nome de escarpiada ao pão de fina espessura feito com farinha de milho moída em moinho de mão ou de vento, sem fermento, que só terá sobrevivido nessa ilha. A massa do pão, achatada e muito fino, é cozida numa pedra de barro (o caco), untada com azeite ou banha de porco, sendo voltada de um lado e do outro (GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO, 1998, 13). Parece tratar-se de um pão de origem árabe, característico do Porto Santo, onde a influência moura teria sido maior; contudo, segundo Alberto Vieira (2004a), consumia-se escarpiada, no séc. XVIII, no Convento da Encarnação, no Funchal. Alberto Vieira, em “A mesa e a cozinha na história madeirense” (2004b), afirma que o cuscuz, a escarpiada e o bolo do caco terão origem no Norte de África, devido ao contacto entre as duas áreas geográficas e aos escravos mouros; a escarpiada ou escrapiada teria sido introduzida no Porto Santo pelos árabes; igualmente de origem árabe será, como já se disse, o bolo do caco, pão elaborado à base de farinha de trigo, podendo levar batata-doce para ficar mais fofo e doce, tendo igualmente um aspeto achatado e de bordas arredondadas. O bolo do caco deve o nome ao facto de ser cozido a lenha, numa pedra de basalto, denominada caco de pedra, colocada sobre o lar. A presença árabe no Arquipélago da Madeira também passa pela influência berbere dos escravos guanches das Canárias. Segundo o Elucidário Madeirense, o gofe ou gófio, papa que se fazia no Porto Santo com cevada moída depois de torrada, terá sido introduzido no arquipélago no séc. XV pelos guanches, oriundos de Gran Canária, de La Palma, de Tenerife e de La Gomera (SILVA e MENESES, 1998, II, 92-93). Em Ilhas de Zargo, Eduardo Pereira informa que ainda se fabricava gófio no Porto Santo, mas em diminuta quantidade, somente para uso particular na alimentação de crianças, débeis e doentes (PEREIRA, 1989 II, 580). Destaque-se ainda a tanarifa ou abóbora moira, também conhecida por moganga com a variante boganga/o, que parece ser simultaneamente de influência canária e moura. Trata-se de uma abóbora branca que, na Madeira, serve sobretudo para fazer sopa. Os vocábulos “tanarifa” e “abóbora moira” apresentam pouca vitalidade no concelho do Funchal e na zona leste da ilha, enquanto no concelho da Ponta do Sol e Calheta (zona oeste) parecem ser muito conhecidos. O termo “tanarifa” surge em Fernando Augusto Silva (1950), em Luís de Sousa (1950), em Antonino Pestana (1970) e em Marques da Silva (2013) como sinónimo de “abóbora moira”. Helena Rebelo (2007) refere a possível origem espanhola ou canária do termo, também registado como “tenerifa” por Luís de Sousa (1950). J. M. Barcelos (2016, 392), além de registar este termo como “abóbora, o m. q. boganga/moganga”, explica que a tanarifa também é conhecida como “abóbora de Tenerife”, indicando que “Tanarife era forma antiga de Tenerife, de onde terão vindo algumas dessas espécies de legumes, em caixas de madeira, nas quais vinha escrito o nome dessa ilha das Canárias”. O estudo destas palavras e coisas da cultura madeirense mostra-nos a herança das inter-relações históricas, linguísticas e etnográficas, cuja presença se prolongou na cultura madeirense. O francesismo linguístico na realidade insular: o regionalismo “tratuário”/“trotoario” Contrariamente às situações de contacto já referidas, que remetem para a presença de comunidades linguísticas e culturais distintas no mesmo espaço insular, o contacto do português falado na Madeira com o francês pode ser visto como sendo à distância, uma vez que não pressupõe a presença de uma comunidade francesa apreciável. A influência francesa no léxico regional deve-se, tal como ocorre com a variedade padrão do português, ao facto de ser grande o prestígio da cultura francesa em geral no final do séc. XVIII e durante o séc. XIX. Esta situação, de tipo unidirecional (no sentido do francês para o português), difere, e.g., da que caracteriza o contacto com o espanhol, sobretudo nas variedades das ilhas Canárias, as quais integram um número considerável de portuguesismos, sendo por este motivo considerada uma situação de contacto bidireccional A terceira fonte em número de vocábulos no português é o francês, que, durante séculos, primeiro na Idade Média, e mais tarde, nos sécs. XVIII e especialmente XIX, foi a língua de cultura da Europa. Muitas das palavras de origem francesa recolhidas nos dicionários tornaram-se de uso culto, literário, sendo outras arcaísmos; contudo, uma parte apreciável continuou a ser utilizada, integrando-se na linguagem diária portuguesa, “abajur”, “afazeres”, “agrafo”/“agrafar”, “berma”, “betão”, “creche”, “écran”, “ancestral”, “apartamento”, “assassinato”, “avenida”, “banal”, “bicicleta”, “bobina”, “boné”, “cabine”, “cabotagem”, “camuflagem”, “chance”, “conduta”, “constatar”, “crachá”, “departamento”, “detalhe”, “eclosão”, “elite”, “embalagem”, “emoção”, “evoluir”, “fetiche”, “governante”, “greve”, “maquete”, “restaurante”, “revanche”, “revoltante”, “silhueta”, “sabotagem”, “vitrine”, etc. Algumas foram integradas no português sem alterações (“fantoche”), outras adaptaram-se às propriedades morfológicas e fonológicas do português, obedecendo também a alguns ajustes de tipo gráfico (“chauffeur”>“chofer”). Este processo de empréstimo de palavras a outras línguas pode ocorrer com alteração de propriedades gramaticais, e.g., o género, como, na passagem do francês para o português, em: “une robe”>“um robe”; “une envelope”>“um envelope”; “le courage”>“a coragem” (VILLALVA, 2008). A variedade urbana insular (Funchal) integra no seu léxico a palavra “tratuário”, que tem a sua origem no termo francês “trottoir”, nome masculino derivado do verbo “trotter” (de *“trotton”>“trotten”, correr , forma intensiva de “treten”, dar um passo, andar). Palavra atestada nesta língua desde o séc. XVI, destaca-se ainda, na sua etimologia, o uso da expressão “être sur le trottoir” (1577), com o significado ser tema de conversa; “se mettre sur le trottoir”, com o sentido figurado de produzir-se, mostrar-se (1592); o termo designa a pista na qual trotam cavalos (1660). A referência a passeio, ou “chemin élevé le long des quais et des ponts pour les gens qui vont à pied [percurso elevado, ao longo dos cais e das pontes, destinado aos transeuntes] ”, surge já no séc. XVIII (1782) (REY, 2005). Do ponto de vista das suas propriedades semânticas, integra-se, enquanto nome locativo, na categoria de objetos dimensionais de superfícies de duas dimensões; nesta categoria, pertence à classe dos nomes de passagem, caracterizados pelas correlações com deslocação, ao lado de uma via urbana, no domínio da vida quotidiana (LE PESANT, 2000). “Tratuário” aparece, assim, no léxico regional madeirense, variedade do PE, entre peregrina e empréstimo, acompanhada de uma outra, “trotoário” (como em O Amor Que Purifica e Trotoário Azul, Fotonovelas Feitas na Ilha da Madeira). Estas duas formas gráficas revelam opções de adaptação distintas: a primeira procura conformar-se à fonologia do português e a uma das suas propriedades (redução do vocalismo átono), dando conta, no seu radical *trat-, da realização da vogal central, média-alta (VELOSO, 2012) em posição pretónica, afastando-se da representação gráfica da palavra francesa; já na segunda, reconhece-se o radical nominal trot- (de “trote”, nome masculino), com diferentes realizações fonéticas nas duas línguas em relação. Ambas opções recebem, através da vogal final -o, índice temático com valor de género (masculino), de acordo com as regras morfológicas do português. De notar que os sufixos -ário e -oir, português e francês, respetivamente, têm a mesma origem latina (-arius e -orium), sendo utilizados na formação de nomes de agente, com valores instrumental e locativo, mas com propriedades morfológicas distintas: o primeiro anexa-se a radicais nominais, o segundo a radicais verbais. “Tratuário” e “trotoário”, configuram-se então como hibridismos (CUNHA e CINTRA, 1984, 115). Palavras não registadas nos vocabulários regionais de referência, não é possível datar a sua entrada no léxico regional. No entanto, atendendo à data em que surgem atestadas no léxico de origem, é provável que o momento em que passaram a ser utilizadas na comunidade insular se situe nos finais do séc. XIX, altura em que se procede à edificação e calcetamento da praça do Rossio, em Lisboa, em que surge a calçada-mosaico e em que, “nas ilhas, o seixo rolado em abundância floresce num tratuário urbano para os peões” (MATOS, 2014), época coincidente com a do francesismo – iniciado a partir dos meados do séc. XVIII até aproximadamente à Segunda Guerra Mundial, período marcado pela influência cultural de França em vários aspetos da vida portuguesa (literatura, política, ideias) e também na língua, em diversas componentes do seu sistema, como refere Paul Teyssier (1994).     Catarina Andrade Aline Bazenga Helena Rebelo Naidea Nunes     artigos relacionados: cintra, luís filipe lindley gramáticas provérbios e outros ditos populares regionalismos madeirenses  

Linguística

natal

Na Madeira, o Natal é a quadra do ano mais festejada pela grande maioria da população. É a principal festa da tradição madeirense e é celebrada desde o início do povoamento. Na verdade, os povoadores portugueses, vindos de várias zonas do país, transportaram consigo as tradições e costumes das suas terras. Estes povoadores, junto com outras gentes, que afluíram à Ilha, de nacionalidades e origens diferentes, contribuíram para a formação da cultura e da sociedade madeirense. O modo de viver da população resultou, assim, de um processo de assimilação e de fusão de vários usos e costumes, embora tivessem predominado as raízes culturais e as crenças cristãs dos antepassados lusos. Também a celebração e a vivência do Natal foi herdada dos povoadores portugueses, à qual o povo madeirense associou um rico folclore cristão e elementos profanos. Segundo a liturgia da Igreja, o Natal não traduz apenas o nascimento de Jesus, estabelecido na data de 25 de dezembro, no séc. IV, pelo Papa Júlio I. O Natal constitui um ciclo que vai de 27 de novembro a 17 de fevereiro e compreende o conjunto das celebrações mais significativas, referentes à longa expetativa do mundo antigo pela vinda do Messias e também da sua infância. Assim, esta longa expetativa foi fixada pela Igreja no chamado tempo do Advento, que abrange as quatro semanas anteriores ao dia 25 de dezembro (28 dias), ou seja, desde os últimos 4 dias de novembro aos primeiros 24 dias de dezembro. O Advento como esperança do povo judeu pela vinda do Messias desapareceu da memória do povo, sendo substituído, na liturgia popular, por outro Advento, que começa a 16 de dezembro e termina a 24 desse mês. Durante esse tempo, celebram-se nas paróquias da Madeira nove missas em honra da Virgem Maria, denominadas popularmente de Missas do Parto. Nas manifestações litúrgicas em que a Igreja recorda a infância de Jesus, incluem-se a circuncisão, a 1 de janeiro; a epifania, a 6 de janeiro; e a fuga para o Egito, a 17 de fevereiro. Destas comemorações da Igreja, apenas transitaram para a liturgia popular as celebrações natalícias do tempo do Advento, de 16 a 24 de dezembro, e a festa dos Reis Magos, a 6 de janeiro. Na etnografia madeirense, o ciclo do Natal é popularmente conhecido e designado por Festa. É a Festa por excelência, que só termina no dia de Reis, ou, em algumas localidades da Ilha, no dia de S.to Amaro, depois de desmontados os presépios tradicionais e demais decorações da época. Os festejos natalícios no arquipélago não se limitam ao dia do nascimento do Menino Jesus e começam a ser preparados com grande antecedência. Os madeirenses preparam-se espiritualmente, cumprem a liturgia da Igreja, exteriorizando a sua fé nas cerimónias sagradas, mas também conjugam as práticas religiosas com as manifestações profanas, interligando-as de forma natural e espontânea. Os preparativos para a maior efeméride do calendário festivo islenho dividem-se em várias fases e envolvem todo o núcleo familiar. Estes momentos de preparação consistem em arranjar a casa, tratar da confeção de diversas iguarias, doces e licores típicos da época, matar o porco, armar o presépio, comprar presentes e organizar convívios familiares ou sociais. Noutros tempos, a Festa era aguardada com muito entusiamo, especialmente pelas classes mais desfavorecidas, que, apesar dos seus parcos recursos económicos e financeiros, conseguiam ter no Natal uma mesa farta, novas peças de vestuário, calçado e brinquedos para as crianças. A Festa era preparada ao longo de todo o ano: guardava-se dinheiro no mealheiro a fim de comprar algo melhor para a quadra natalícia, destinavam-se os melhores produtos, sobretudo no meio rural, para o Natal; reservava-se o trigo necessário para amassar o pão no Natal, guardava-se um quarto do melhor vinho para os brindes daqueles dias; engordava-se o porco para matar nessa altura e escolhia-se os maiores galos e galinhas. As crianças ansiavam pela Festa, por toda a envolvência da época, desde a armação do presépio aos doces e iguarias típicas, à expetativa das prendas, das roupas, dos sapatos e dos brinquedos novos, às férias escolares e aos convívios com familiares e amigos. Os adultos também esperavam o Natal de um modo especial, pois tinham um período de descanso mais prolongado, ao qual associavam os convívios e as festas litúrgicas nos templos. As festividades natalícias na Madeira foram-se adaptando às transformações sociais, económicas e religiosas que ocorreram na Ilha. No início do séc. XXI, com o aumento do poder de compra, a melhoria das condições de vida e consequentes alterações dos hábitos de consumo, algumas tradições natalícias foram gradualmente cedendo lugar a outras e muitas caíram em desuso. Os madeirenses já não esperam um ano para comer carne de porco, galinha ou outras carnes, ou para confecionar e comer os doces tradicionais, porque tudo se encontra à venda nos estabelecimentos comerciais. Por sua vez, o termo “Festa”, também comum no Minho, foi gradualmente a ser substituído pela palavra “Natal”, embora ainda prevaleça no espaço insular, sobretudo nos meios rurais e entre os mais idosos. No entanto, apesar das diferentes transformações ocorridas na sociedade, o Natal na Madeira é a quadra do ano mais celebrada pela população, quer a nível social e cultural, quer a nível religioso, mantendo muitas das suas tradições.   Os preparativos para o Natal As Missas do Parto Os festejos do Natal madeirense iniciam-se com as novenas do Menino Jesus, designadas localmente de Missas do Parto e realizadas em quase todas as paróquias do arquipélago, uma tradição introduzida pelos padres franciscanos aquando da sua ação pastoral nos primórdios do povoamento das ilhas. Este tempo de preparação é também uma devoção mariana, que comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou N.ª Sr.ª do Ó, popularmente designada Virgem do Parto. A 17 de dezembro, a Igreja celebra a festa de N.ª Sr.ª do Ó, que passou a ser assim denominada pelo povo por se proferirem nas chamadas vésperas do Ofício Divino, de 17 a 24 de dezembro, sete antífonas que começam pela interjeição exclamativa “Ó”, como suspiro pela vinda do Salvador do mundo: “O Sapientia, quae ex ore Altissimi prodisti”, “O Adonai et Dux domus Israel”, “O Radix Jesse, qui stas in signum populorum”, “O Clavis David”, “O Oriens, splendor lucis aeternae”, “O Rex gentium”, “O Emmanuel, Rex et Legifer noster”. De acordo com o folclorista Eduardo Antonino Pestana (1891-1963), o povo madeirense interpretou que tal período celebrava também a gravidez da Virgem Maria, sugerindo que o formato da letra “o” lembra os últimos tempos da gravidez da mulher. O antigo culto do Menino foi transferido para sua Mãe, passando a chamar-se Missas do Parto às novenas do Menino Jesus ou novenas do Natal. Assim, desde a véspera da festa da Senhora do Ó (16 de dezembro) até a véspera do Natal (24 de dezembro), celebram-se nove missas em honra da Virgem, sendo que cada missa corresponde a um mês de gravidez e simbolizam o parto divino que Nossa Senhora terá. As Missas do Parto eram celebradas de madrugada, entre as 05.00 h e as 07.00 h, sobretudo nas igrejas das zonas rurais, por ser uma hora conveniente para os lavradores, que começavam a trabalhar antes do nascer do sol. No início do séc. XXI, após um período de crescente desmobilização, foi recuperada a tradição de celebrar a missa na alvorada, pelas 06.00 h, correspondendo ao simbolismo de que o Menino Jesus é a luz que nasce para o mundo inteiro. Apesar da hora matutina, estas têm muita participação. A ida para a igreja era muito animada nas diferentes localidades, em grupos formados por familiares, amigos e vizinhos, sobretudo quando a utilização do automóvel não era frequente. Os fiéis seguiam juntos, a cantar, ao som de diversos instrumentos musicais, entre os quais, gaitas, flautas, rabecas, machetes, pandeiros e castanholas, proporcionando-se momentos de grande folia e convívio. Por vezes, também ressoam bombas e foguetes, que começavam nas Missas do Parto e só terminavam quando findava a quadra festiva, depois do Ano Novo. As igrejas enchem-se de pessoas que, durante a celebração religiosa, vão entoando cânticos próprios. O repertório de músicas e cantigas desta tradição é muito vasto, remontando alguns desses versos aos tempos do povoamento. Terminada a missa, a comunidade reúne-se nos adros das igrejas, prolongando a celebração religiosa numa dimensão de carácter pagão e lúdico, o que sublinha a ligação entre o religioso e o profano, com um convívio onde não faltam bebidas quentes, licores, broas e outros doces e petiscos tradicionais desta quadra. A música anima também os presentes, quer com os cantares de cariz popular, ao som de instrumentos regionais, quer ainda, em alguns locais, com a presença de bandas de música ou filarmónicas. Fig. 1 Ritual da matança do porco: ChamuscarFoto: acervo e autoria de M. Nicolau A matança do porco Outra tradição da Festa é a matança do porco (também conhecida na Ilha como a função do porco), essencial para os pratos típicos do Natal. Esta função acontece normalmente entre 8 de dezembro e o início das Missas do Parto, sobretudo no meio rural. No dia marcado para a matança do porco, reúnem-se familiares e amigos para assistir ao sacrifício do animal, que foi engordado nos meses anteriores. A ocasião proporciona momentos de convívio, com partilha de petiscos e bebidas. O ritual da matança é realizado por vários homens: uns tiram o porco do chiqueiro, amarram-no, deitam-no no chão e seguram-no com força para outro homem, denominado “marchante”, desferir o golpe certeiro, com rapidez. O sangue do porco é aparado para um alguidar, porque vai servir de petisco, depois de cozido e temperado com alho, pimenta e salsa, e misturado com cebola picada. O animal é lavado, pendurado e cortado com um serrote para se lhe limpar as vísceras, sendo-lhe retirados os intestinos, o pâncreas, o fígado e outros órgãos. O dia seguinte à morte do porco é reservado para cortar (ou “picar” como é popularmente designada esta operação) e desmanchar o suíno, que é cortado em diversas porções. As salgadeiras foram preparadas para receber a carne e a gordura, que servirá para conservá-la, a fim de poder ser consumida nos meses seguintes. Todas as partes do animal são aproveitadas: a febra destina-se ao consumo durante a quadra natalícia; a barriga é utilizada na confeção da tradicional carne de vinho e alhos; com uma parte da carne gorda fazem-se torresmos e a outra parte é para fazer banha, utilizada para fins culinários durante o ano. O debulho (intestino) é escaldado e salgado para ser comido em sopas; a cabeça é salgada e fumada, para ser consumida mais tarde, com couves e semilhas. Reserva-se ainda uma parte da carne para outras épocas do ano, sendo esta salgada. Também era hábito reservar uma boa porção para oferecer aos vizinhos, amigos e familiares que não podiam matar ou ainda não o tinham feito e que, por sua vez, retribuíam com a carne do seu porco. Oferecia-se ainda uma peça da melhor carne ao padre da paróquia e a alguma figura ilustre, como o médico da localidade. Nesse dia também havia convívios de amigos, onde não faltavam vinhos, doces, torresmos, carne de porco assado na panela e pão, entre músicas e cantigas, muitas vezes até altas horas da noite. Dado que a alimentação das classes mais desfavorecidas consistia praticamente no consumo dos produtos da terra, principalmente o inhame, e da fruta que não estava em condições de ser vendida no mercado, o ritual da matança do porco, criado em casa, era um dos momentos altos da época natalícia. Os arranjos da casa Nesta quadra, é costume efetuarem-se grandes limpezas nos lares da Ilha, preparando a habitação para receber as visitas durante os dias da Festa. Outrora, as tradicionais limpezas nas residências consistiam em pintar as paredes, as portas e as janelas, lavar as vidraças, os pavimentos e a louça guardada nos armários. Todos os cantos das casas eram limpos, incluindo a mobília. No mês de novembro, aproveitava-se o chamado verão de S. Martinho para lavar e passar a ferro as colchas, as toalhas e as rendas que estavam guardadas, para serem usadas na Festa. Depois de feitas as limpezas, arrumações e eventuais reformas nas residências, começava a azáfama da confeção dos licores e doces, das compras e das decorações natalícias, com flores naturais e artificiais e outros objetos típicos da quadra. As mulheres juntavam-se ao redor de um alguidar para amassar grandes quantidades dos típicos bolos de mel, broas de mel, broas de coco, rosquilhas e outras variedades de doces. Os bolos de mel e as broas eram cozidos no forno a lenha, sendo também frequente usarem-se os fornos das padarias, sendo a data previamente marcada no estabelecimento; ali se reuniam várias mulheres para cozerem as respetivas amassaduras, em alegres convívios, enquanto aguardavam pela sua fornada. Nas vésperas do Natal, faziam-se os licores caseiros de vários sabores, sendo os mais apreciados os licores de tangerina, de anis, de caramelo e o tim-tam-tum. Fig 2. Pão caseiro cozido em forno a lenhaFoto: acervo e autoria de M. Nicolau. MACHICO - 1985 Na véspera da Festa, amassava-se e cozia-se o pão. O trigo, lançado à terra em fins de janeiro, depois de ceifado, fora reservado numa caixa para ser moído e amassado naqueles dias festivos. No início do mês de dezembro, era moído, para fabricar o pão caseiro e os brindeiros (pão mais pequeno feito com o resto da massa) para as crianças. A 24 de dezembro, antes do raiar da aurora, a mulher do lavrador levantava-se para amassar e cozer o pão no forno a lenha. O cheiro a pão espalhava-se pela casa, enquanto os filhos iam acordando e chegavam à cozinha à espera para comer o pão fresco. Nestes dias festivos, nas cidades, sobretudo no Funchal, as ruas ficam mais movimentadas, enchem-se de cor e de luz, e o comércio ganha uma nova dinâmica. As transações comerciais aumentam consideravelmente, desde as compras de presentes para oferecer no Natal à aquisição de produtos alimentares, nomeadamente os ingredientes necessários para a confeção do bolo de mel, das broas e de outros doces; os condimentos para temperar a carne de vinho e alhos; as cebolinhas e outras verduras para fazer as conservas em vinagre; o cacau; o queijo; as azeitonas e outras iguarias; sem esquecer as bebidas espirituosas, entre as quais, a aguardente, a genebra e o vinho. Adquirem-se hortaliças frescas e frutas, onde não faltam as laranjas, as tangerinas, as peras, os peros, as maçãs, as goiabas e o ananás. Compram-se ainda as verduras, para as decorações do presépio e outros ornamentos natalícios, os galhos verdes e as flores, entre os quais, o alegra campo (Semele androgyna), o azevinho (Ilex aquifolium), a cabrinha (Davallia canariensis), os pinheirinhos, os galhos de musgo, os sapatinhos (Paphiopedilum insigne) e os junquilhos (Freesia x hybrida).   O presépio (lapinha) e outras ornamentações natalícias A tradição de armar o presépio chegou à Madeira através dos colonos e povoadores oriundos de Portugal continental, entre os quais os franciscanos, que foram os primeiros a exercer atividades pastorais e funções eclesiásticas na Ilha, influenciando a vida religiosa local. Fig 3. Lapinha tradicional (escadinha)Foto: coleção particular da autora O primeiro presépio ao vivo terá sido representado por S. Francisco de Assis, em 1223, em Greccio, no Vale de Rieti, em Itália, para melhor explicar aos camponeses a história do nascimento do Menino Jesus. S. Francisco de Assis reuniu frades e habitantes locais, em torno da imagem do Menino, reclinado na manjedoura, dentro de uma gruta, interpretando o nascimento do Cristo Salvador. Os Franciscanos levaram esta ideia de representação do Nascimento por todo o mundo, criando figuras em barro e outros materiais. Este tipo de figuração começou então a chamar-se presépio, termo que deriva do termo latino “praesepium” e significa manjedoura, curral ou estábulo, ou seja, um lugar onde se recolhe o gado. O culto do Menino Jesus e a liturgia do presépio generalizou-se nas tradições da Igreja e também pelas casas reais e da nobreza, dando origem a presépios públicos, em igrejas e nas casas de família, com imagens de madeira, barro ou plástico, em tamanhos diversos e segundo o gosto e as posses da comunidade eclesial ou familiar. No arquipélago madeirense, o presépio é também chamado lapinha. De acordo com os autores do Elucidário Madeirense, o termo “lapinha” deverá ser o diminutivo de “lapa”, que significa gruta ou furna, assemelhando-se ao local de nascimento do Menino Jesus (SILVA e MENESES, 1998, II, 219). A lapinha tradicional pode ser representada de duas formas características, denominadas, no meio insular, de escadinha e de rochinha. Fig 4. Lapinha tradicional (escadinha)Foto: acervo e autoria de M. Nicolau Na variante de escadinha, a lapinha é armada sobre uma mesa ou cómoda. O móvel é coberto com uma colcha vermelha e, sobre esta, é colocada uma toalha de linho branco, em renda ou bordada. No centro do móvel, sobre a toalha, fica a escadinha de três degraus, em forma de pirâmide, com poucos centímetros de altura, forrada a papel de fantasia de cor branca. Os degraus são ornamentados com vários adereços. No topo da escada surge a figura do Menino Jesus, de pé, de coroa na cabeça, ostentando um rico vestido branco com o típico bordado Madeira, com a escultura emoldurada por um arco de flores de papel. Em cada lado da imagem ficam colocadas duas jarras com flores, geralmente junquilhos ou sapatinhos. Nos outros degraus da escada e em torno desta, ficam dispostos alguns elementos figurativos, denominados pastores, alternados com fruta da época (laranjas, tangerinas, peros, anonas, castanhas ainda nos ouriços, e outros frutos). A lapinha é também enfeitada com verduras, designadas popularmente de ensaião (Ænium arboreum), cabrinhas e searinhas. O ensaião e as cabrinhas são colhidos nas serras madeirenses; a primeira planta, de folhas carnudas, vive agarrada às paredes rochosas mais expostas ao sol, e as cabrinhas são fetos que nascem nas fendas dos muros rochosos. Já as searinhas são obtidas colocando de molho gramíneas ou leguminosas (trigo, lentilha, tremoço ou alpista), que grelam; as searas são colocadas de molho aquando da primeira Missa do Parto e, quando começam a germinar, são plantadas em vasinhos, em pires ou outros recipientes, com uma pequena porção de terra. Por este processo obtém-se as típicas searinhas de folhas verdes que adornam a lapinha madeirense. Para complementar a ornamentação da lapinha, é colocado um brindeiro e uma lamparina de azeite. A parede também é enfeitada, com ramos verdes de alegra-campo, dispostos em arco, que envolvem todo o conjunto. Fig 5. Presépio-rochinha (pormenor da gruta)Foto: acervo e autoria de M. Nicolau. MONTE - FUNCHAL - 16-12-2004 A rochinha, a outra variante da lapinha ou presépio, pode ter várias dimensões, dependendo do espaço disponível e da criatividade de cada um. Pode ser armada em cima de uma mesa ou de outro móvel, ou ocupar uma divisão inteira, ou um canto da habitação. A rochinha é feita com papel pardo, pintado com viochene, para lhe dar uma cor acastanhada, sobre o qual são aplicados pós de mica para lhe dar cores e brilhos. O papel pintado é moldado de modo a imitar montanhas, vales, socalcos, encostas e ribeiras, onde não pode faltar uma gruta, tendo por suporte caixas, caixotes e estrados de madeira. Outrora, eram muito utilizadas socas de canavieira para moldar o papel das rochinhas mais pequenas, que se colocavam sobre mesas, arcas ou cómodas. Armada a rochinha, colocam-se as figuras de presépio, que representam cenas do nascimento. Os elementos originais do presépio incluem as figuras do Menino Jesus deitado na manjedoura, de Maria, de José e do anjo que anunciou o acontecimento. A estes juntaram-se as figuras da vaca e do burro, dos três reis magos que chegaram a Belém levando presentes, e a estrela que os guiou até à gruta. Este conjunto constitui o presépio clássico. Nos presépios-rochinha mais elaborados, é recriada a paisagem da Ilha, surgindo figuras feitas em barro que recebem o nome coletivo de pastores nas suas lides quotidianas ou em ambiente festivo, os camponeses com os seus rebanhos, e outros animais; representações do arraial madeirense, com os mastros, as bandeiras e a banda de música à volta do coreto, as espetadas, o fabrico do pão de casa, a matança do porco e outras tradições madeirenses. Aparecem casas e igrejas distribuídas pelas encostas, e há quem construa pontes, caminhos, fontes, poços, ribeiras, com algodão a invocar o curso da água e lagos com patos de plástico, entre outros elementos. A rochinha é também enfeitada com verduras e flores (alegra-campo, azevinho, ensaião, sapatinhos, junquilhos, cabrinhas e searinhas) e com frutos da época. Quer seja elaborada com simplicidade ou maior complexidade, a originalidade da lapinha madeirense traduz a alma de um povo crente, que tenta representar os seus costumes, o seu quotidiano, o seu meio envolvente e a sua vivência social e religiosa, não se limitando a apresentar um simples presépio clássico. Inicialmente, a lapinha era armada nas vésperas do dia de Natal; mais tarde, contudo, os presépios tradicionais madeirenses começam a ser construídos com mais antecedência, normalmente no dia de N.ª Sr.ª da Conceição, a 8 de dezembro, ou no dia da primeira Missa do Parto. Além do presépio, os madeirenses enfeitam as suas casas com verduras, flores e ramagens, onde não falta o pinheirinho de Natal, ornamentado com luzes ou gambiarras, bolas, sinos, anjos, bonecos e outros adereços, embora este hábito seja um costume posterior, que teve origem nos turistas e forasteiros que aportaram na Ilha, levando novos hábitos e enriquecendo os costumes seculares locais. Julga-se que a primeira árvore de Natal da Madeira tenha sido feita por membros da comitiva da arquiduquesa Carlota da Bélgica, mulher do Imperador Maximiliano do México, que visitou a Ilha em 1859-1860. Um pouco por toda a casa, enfeitam-se as jarras e fazem-se arranjos com os aromáticos junquilhos, que deixam no ar um cheiro adocicado, muito característico, com os tradicionais sapatinhos, que também podem ser deixados nos vasos, ou ainda com ramos de perinhos (Pyracantha angustifolia), um arbusto com frutos de cor alaranjada, e galhos de azevinho, de cor verde-escura em contraste com as bagas vermelhas, que conferem às casas um aroma característico da quadra. Posteriormente, muitos madeirenses foram incluindo nas suas decorações natalícias plantas como os safaris, as próteas e as manhãs-de-Páscoa.   O Natal na cidade Na quadra mais aguardada do ano, os espaços públicos de todos os municípios da Região são arranjados para o Natal, enchendo-se de luz, cor e elementos decorativos, que incluem presépios de grandes dimensões e outras representações religiosas e pagãs. O Funchal apresenta diversos ornamentos e iluminações em quase todas as artérias, que embelezam a cidade. No mês de novembro, ou até antes, os estabelecimentos comerciais começam a expor os produtos próprios da estação. O ambiente festivo da quadra natalícia atrai mais gente à cidade cosmopolita, e as ruas ganham uma nova dinâmica, com diversos polos de atração na urbe. Turistas idos de barco ou de avião, nativos da Ilha, visitantes e residentes circulam pela cidade apreciando as decorações da época. As iluminações percorrem as principais artérias da cidade e são ligadas, habitualmente, a 8 de dezembro, permanecendo até 6 de janeiro. Fig 6. Pormenor de um presépio com as figuras dos três Reis MagosFoto: acervo e autoria de M. Nicolau PRESEPIO NATAL- LARGO RESTAURAÇÃO - FUNCHAL - 23-12-2004 Na déc. de 80 do séc. XX, começou a construir-se no centro da cidade, por iniciativa de Maria Augusta Nóbrega (1929-2007), uma aldeia etnográfica, com o objetivo de recriar, dentro da cidade, os hábitos, as tradições e o modo de viver dos madeirenses em tempos mais recuados. A aldeia, que recebe anualmente milhares de turistas e residentes, apresenta barracas para venda de licores caseiros e várias casinhas que dão a conhecer o artesanato tradicional, como o brinquinho (instrumento musical típico), as botas de vilão e os barretes de orelhas. No entanto, a principal atração é o presépio, que representa a orografia madeirense, com as suas montanhas; poios, com muralhas de pedra, e plantações de pequenas alfaces e couves; cursos de água com as suas nascentes; levadas e veredas, ribeiras e alguma verdura típica da Ilha. Surgem figuradas cenas do quotidiano e das tradições populares: a labuta dos lavradores; o porco da Festa; as zonas altas da Madeira, com as suas casas brancas e janelas verdes, em redor da igreja paroquial ou viradas ao mar; a banda filarmónica, o grupo de folclore e as procissões religiosas, entre outras.   Das vésperas ao dia de Festa Antes da construção do Mercado dos Lavradores, o Funchal conheceu outras zonas de venda de bens alimentares, nomeadamente o Mercado D. Pedro V (aberto ao público em 1880 para alojar a venda de frutas e hortaliças), situado na R. do Mercado, contigua à R. da Praia. Nas imediações deste antigo mercado era grande a azáfama no dia 24 de dezembro, véspera de Festa, logo após a última Missa do Parto. Grande parte da população funchalense deslocava-se ao mercado para realizar as últimas compras de Natal. Nos alvores do séc. XX, de acordo com o testemunho de Alberto Artur Sarmento (1878-1953), os camponeses acorriam de todas as partes da Ilha para vender os seus produtos. O espaço do mercado tornava-se pequeno nesse dia e os vendedores ambulantes ocupavam lugares pelos largos mais espaçosos, pelas pontes e pelos muros das ribeiras. A população da urbe aproveitava para comprar flores, frutos e verduras. Fig 7. Borracheiros do Porto da Cruz, em frente à Sé, no âmbito do programa de animação de NatalFoto: acervo e autoria de M. Nicolau FUNCHAL - 2006 Com o desenvolvimento da cidade, a construção de novas infraestruturas e consequente encerramento do Mercado D. Pedro V, o Mercado dos Lavradores tornou-se o centro de convergência da população nas vésperas da Festa. O Mercado dos Lavradores foi inaugurado a 24 de novembro de 1940 e, desde a sua abertura, atraiu sempre numerosas pessoas, que para ali convergiam, sobretudo no Natal, para fazer compras de última hora, nas barracas de brinquedos, e nos vendedores de fruta e legumes que enchiam as ruas circundantes. Já no dia 23 de dezembro, dentro e fora do Mercado, era grande o movimento e a circulação de pessoas, proporcionando-se momentos de entretenimento e convívio, com cantigas e despiques. Os bares das proximidades vendiam bebidas e sandes de carne de vinho e alhos e, no antigo campo Almirante Reis, era instalado, durante a quadra natalícia, um parque de diversões e um circo, que garantia diversão até de madrugada. A noite de 23 de dezembro, a revéspera da Festa, passou a ser conhecida como a noite do mercado; esta noite foi-se transformando progressivamente num evento cultural mais formalmente organizado, com um programa de animação musical. Quanto à vertente religiosa da véspera de Natal, destaca-se a celebração da Missa do Galo no dia 24 de dezembro, pela meia-noite, na maioria das igrejas da Ilha. Os templos enchem-se de fiéis, para assistir à celebração litúrgica do nascimento do Menino Jesus. Em quase todas as paróquias realizam-se autos de Natal e romagens de pastores, onde são representadas cenas evangélicas com encenações simples, sobre as profecias, a anunciação do anjo, o Nascimento e a adoração dos pastores. Os pastores são homens e mulheres, geralmente trajando as vestes típicas madeirenses, que entram na igreja cantando quadras ao Menino Jesus ao som de instrumentos tradicionais, nomeadamente cordofones, harmónio, ferrinhos, castanholas e pandeiros. Surgem carregados de oferendas, mormente hortaliças, fruta, carne de porco, galinhas, cordeiros e vinho, que entregam ao celebrante e que revertem a favor da paróquia ou do pároco. Quem não assistiu à Missa do Galo, pode assistir depois à denominada missa dos pastores ou missa da manhã. Os que não participam na cerimónia religiosa da véspera de Natal podem ficar pelos adros, ou encontrar-se em locais públicos de convívio. Uma prática típica desta época era a chamada pensação do Menino, representada depois da Missa do Galo. Normalmente ficava a cargo de um grupo de raparigas, designadas por pastoras, que, sentadas ou de joelhos, rodeavam o presépio e entoavam quadras alusivas aos sofrimentos presentes e futuros do Menino Jesus. Por vezes, levavam uma bacia, uma toalha e sabonete, interpretando os cuidados que deveriam ser aplicados ao Menino após o parto. Considerado impróprio por alguns, este costume chegou a ser proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), e deixou de ser representado em muitas igrejas. Fig 8. Panela de ferro, para cozer a lenha, a sopa de trigoFoto: acervo e autoria de M. Nicolau. ACHADINHA - SAO JORGE - SANTANA - 27-06-2003 Acabada a Missa do Galo, a família regressa a casa e reúne-se à mesa para tomar canja de galinha e comer sandes recheadas com carne da ave desfiada. Brinda-se com vinho Madeira ou com os licores feitos naqueles dias, come-se bolo de mel, partido à mão, e outros doces, como o bolo de família, as broas e as rosquilhas. O dia de Natal é tradicionalmente um dia de ócio, normalmente passado em casa, consagrado à família, e destinado a degustar as diversas iguarias preparadas nos dias anteriores. Ao almoço, apresenta-se uma mesa farta, com produtos regionais, carne de porco e diversas sobremesas doces. A carne de porco é servida como a tradicional carne de vinho e alhos com semilhas novas e fatias de pão, a perna assada no forno, o lombo assado na panela. As carnes são geralmente acompanhadas com cebolinhas, batatas e cuscuz aromatizado de segurelha. No final da refeição, depois dos doces, bebe-se genebra e comem-se laranjas e tangerinas aos gomos, para ajudar a ter uma boa digestão, segundo a sabedoria popular. Depois do almoço, convive-se, fazem-se brindes e as crianças divertem-se com os seus novos brinquedos. No dia de Natal, era raro encontrar vivalma nas ruas, como afirmou Alberto Artur Sarmento, ao descrever uma rua do Funchal no séc. XIX. Este costume foi-se esbatendo, com as pessoas a encontrarem-se mais em público neste dia.   Das oitavas ao desmontar da lapinha As oitavas do Natal eram aproveitadas para visitar familiares e amigos, com os rapazes e as raparigas passeando com os seus fatos e vestidos novos, estreados na missa da primeira oitava. Os filhos casados iam passar o dia a casa de seus pais, reunindo-se toda a família. Os afilhados iam dar as Boas Festas aos padrinhos, levando uma galinha de presente. As madrinhas ofereciam às afilhadas vinho, doces e um vestido novo, enquanto os afilhados recebiam dinheiro. As oitavas duravam três dias, o comércio fechava e ninguém trabalhava no campo, pelo que estes dias eram também aproveitados para realizar as habituais visitas às lapinhas, pelos casais conhecidos, e renovar os votos de Boas Festas, entre convívios, cantigas alusivas à quadra, jogos tradicionais, rodas, despiques e outros folguedos, sobretudo nas freguesias rurais, onde era frequente ver mascarados a passear pelas ruas. As tradições cristãs da época do Natal conjugam-se com as manifestações de regozijo pela chegada do novo ano, pelo que, depois das oitavas, o povo começava a preparar-se para a festa do final do ano. Fig 9. Fachada do Mercado dos Lavradores, com iluminações natalíciasFoto: acervo e autoria de M. Nicolau. FUNCHAL - 2006 A noite do Fim de Ano na Madeira é uma festa cheia de luz e de cor. Pela meia-noite, na transição de 31 de dezembro para 1 de janeiro, começa no anfiteatro do Funchal o tradicional espetáculo pirotécnico, que “remonta aos donatários que tinham o costume de queimar o fogo no momento da transição da meia-noite para o princípio do ano seguinte. Costume que prolonga e amplia profanamente um costume litúrgico antigo de produzir o lume novo, topos simbólico do tempo novo que se avizinha. Esta tradição intensificou-se nos últimos decénios e alargou-se de tal maneira que passou a ser uma verdadeira apoteose de luz em todo o ‘anfiteatro’ da cidade funchalense” (FRANCO, 1999, 348). Segundo o Elucidário Madeirense, “o costume de festejar com tiros e foguetes a transição do ano velho para o novo” ter-se-ia generalizado na déc. de 60 do séc. XIX, promovido pelo banqueiro João José Rodrigues Leitão (SILVA e MENESES, 1998, II, 337). As famílias abastadas da Ilha começaram a competir no lançamento de foguetes em vários sítios, que se estendiam até às zonas altas da cidade. A partir da déc. de 30 do séc. XX, esta manifestação festiva começou a ganhar maior importância, uma vez que, em 1932, foi criada uma comissão das festas da cidade para coordenar todas as suas atividades de diversão. Assim, os festejos na passagem do ano da cidade, que antes tinham por palco salões e hotéis, como o Reid’s e o Savoy, ganharam uma nova dinâmica e foram também apoiados pelos comerciantes locais. Promoveram-se eventos culturais no teatro, recitais e concertos, e ainda um cortejo folclórico pelas ruas da cidade. Mais tarde, organizou-se uma marcha luminosa, que deu lugar às iluminações das árvores, dos contornos dos edifícios públicos e das igrejas. Fig 10. Fogo-de-artifício, na transição de 31 de dezembro para 1 de janeiro, FunchalFoto: acervo e autoria de M. Nicolau. FUNCHAL - 01-01-2005 O gosto pela exibição pirotécnica foi crescendo ao longo dos anos até se tornar um espetáculo organizado pelas entidades governativas da Região. Na passagem de ano de 2006 para 2007, a Madeira alcançou reconhecimento internacional como maior espetáculo pirotécnico do mundo, atribuído pelo Guiness Book of World Records. Nos alvores do séc. XXI, o dia 31 de dezembro é um dia de festa no Funchal, para onde convergem inúmeras pessoas de toda a Ilha, familiares e amigos, entre centenas de turistas, para assistir ao fogo de artifício, que começa à meia-noite, com o som das buzinas dos navios de cruzeiro ancorados na baía do Funchal. No final do espetáculo pirotécnico, a festa continua nas ruas da cidade, ou nos eventos que têm lugar nos hotéis, restaurantes, bares e discotecas da cidade. A festa dos Reis tem associado um rico folclore, herdado dos povoadores portugueses, que levaram o costume de cantar as janeiras: na véspera, 5 de janeiro, organizam-se grupos de amigos ou familiares que percorrem os casais da vizinhança para cumprir a tradição de cantar os reis. O povo tem um reportório de cantares próprios para celebrar a festa dos reis magos, que soube tornar original, sem perder a sua inspiração inicial. É um dia aproveitado também para visitar as lapinhas e saborear o típico bolo-rei. No dia 15 de janeiro, festeja-se o S.to Amaro nas freguesias de Santa Cruz, Paul do Mar e Ponta do Sol. À festividade religiosa junta-se o costume profano de cantar ao S.to Amaro: no dia 14 à noite, formam-se grupos, que percorrem as casas de familiares, amigos e vizinhos, munidos de uma vassoura e de uma pá, para cantar e comer as guloseimas e as bebidas que restaram da Festa. É por isso designado popularmente de dia de varrer os armários. A festa durava até de madrugada, e a última casa a ser visitada geralmente tinha de sacrificar galinhas para oferecer canja aos convivas. Na freguesia da Camacha, o varrer dos armários acontece a 17 de janeiro, dia de S.to Antão. Em Câmara de Lobos, desmonta-se a lapinha a 20 de janeiro, após a celebração do dia de S. Sebastião. A quadra do ano mais festejada na Madeira tem sido celebrada também por autores naturais da Ilha, através das suas criações literárias. Vejam-se, e.g., algumas obras de vários géneros literários, desde contos, crónicas, narrativas de memórias, poemas e estudos folclóricos e etnográficos: Natais: Contos e Narrativas, de João dos Reis Gomes; O Natal na Madeira – Estudo Folclórico, de Manuel Juvenal Pita Ferreira; Ilha da Madeira, II Estudos Madeirenses (1970), de Eduardo Antonino Pestana; O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses (1989), antologia organizada por José António Gonçalves, que também escreveu o livro de poesia Lembro-me desses Natais (2000); Cânticos Religiosos do Natal Madeirense, de João Arnaldo Rufino da Silva; O Natal na Cidade, a Festa no Campo (2001), de Horácio Bento de Gouveia (com seleção de textos de Nelson Veríssimo); A Festa (2002), crónicas de Lídio Araújo; e Lapinha do Caseiro (2008), uma coletânea de fotografias de Ricardo Jardim das figuras do santeiro Francisco Ferreira, bisavô de Herberto Helder, com poemas do bisneto. Para além destas obras, destaquem-se ainda vários textos publicados nos periódicos regionais evocando e perpetuando diversos aspetos da etnografia natalícia do arquipélago. Assim, os dois principais jornais da região, o Diário de Notícias e o Jornal da Madeira (antigo O Jornal), publicam, entre 23 e 25 de dezembro, artigos dedicados a este tema; e a revista Das Artes e da História da Madeira divulgou, entre 1950 e 1957, estudos de autores como Álvaro Manso de Sousa e João Cabral do Nascimento (1950); Alberto Artur Sarmento (1951); Manuel Juvenal Pita Ferreira (1953); J. de Sousa Coutinho (1955); e Antonino Pestana (1957). Há ainda a considerar os textos publicados em revistas como Xarabanda, Origens, Islenha e Atlântico, entre outras. De referir também alguns estudiosos que têm divulgado as suas pesquisas sobre o tema do Natal na Madeira, como João David Pinto Correia, José Eduardo Franco e Nelson Veríssimo.   Sílvia Gomes (atualizado a 20.01.2016) artigos relacionados: festividades folclore festas religiosas católicas nóbrega, maria augusta correia

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nau sem rumo

A História diz-nos que a Nau Sem Rumo é, hoje, o único testemunho perdurável das esquadras de navegação terrestres que marcaram o quotidiano do Funchal, entre finais do séc. XIX e princípios do século seguinte. Esta condição de única e mais antiga associação de boémia gastronómica apresenta-se como o antecedente da atual moda das confrarias gastronómicas, sendo o prato do repasto habitual das quartas-feiras o bacalhau. Não temos documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da Nau sem Rumo. Os primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, mas a associação existia já há muito tempo. A leitura dos livros de honra da associação revela-nos que a agremiação representava a arte de bem receber dos madeirenses, podendo ser entendida como a sala de visitas da Ilha, pois não havia visitante ilustre que aportasse ao porto que não tivesse, de imediato, franqueadas as portas da Nau Sem Rumo. A ligação da associação ao movimento do porto era permanente e a sua vocação marítima expressava-se por esta total abertura à hospitalidade dos que transitavam pelo porto. Palavras-chave: Nau Sem Rumo; Esquadras de navegação terrestre; Diversão; Boémia; Gastronomia.   A História diz-nos que a Nau Sem Rumo (NSR) é, hoje, o único testemunho perdurável das esquadras de navegação terrestre que marcaram o quotidiano do Funchal, entre finais do séc. XIX e princípios do seguinte. Esta condição de única e antiga associação boémia e gastronómica, que antecedeu a atual moda das confrarias gastronómicas, deve servir de alento para que não se perca este raro testemunho do quotidiano madeirense. A NSR assume um papel importante na história da Ilha e da cidade do Funchal, pois está sempre presente no quotidiano funchalense, foi o exemplo da hospitalidade madeirense. As inúmeras presenças de diversas individualidades nacionais e estrangeiras na sua sede são exemplo disso. A leitura dos livros de honra da NSR revela-nos que a agremiação representava a arte de bem receber dos madeirenses, podendo ser entendida como a sala de visitas da Ilha, pois não havia visitante ilustre que aportasse ao porto que não tivesse, de imediato, franqueadas as portas desta Associação. Os comandantes das embarcações, que assiduamente aportavam ao Funchal, eram sempre convidados da NSR, pois através deles fazia-se avivar o espírito marítimo. A Associação acolheu, em receção ou nos seus almoços, eminentes personalidades de visita ou de passagem pela Ilha. Políticos, cientistas, jornalistas, madeirenses ilustres emigrados, participavam, com frequência, nos pratos de bacalhau da NSR e não se faziam rogados nos elogios à mesa, nem ao espírito de camaradagem que unia todos os marinheiros reunidos para o repasto. O prestígio da NSR na sociedade madeirense era e é inegável, afirmando o visconde do Porto da Cruz, em 1952, que “Ao contrário do que o seu nome indica tem o seu rumo perfeitamente orientado, sendo um centro de recreio de ‘bons-vivants’ onde há a melhor e mais especializada cozinha que satisfaz os mais requintados epicuristas e além disso trás o propósito de desenvolver uma interessante obra social de assistência e de expansionismo regionalista” (VIEIRA, 2001, 10). A NSR foi, durante muito tempo, um dos principais cartões-de-visita para as personalidades que passavam pelo Funchal para uma curta escala ou estadia. A ligação da Associação ao movimento do porto era permanente e a sua vocação marítima expressava-se por esta total abertura à hospitalidade dos que transitavam pelo porto, sendo, em muitos momentos, como a principal expressão da hospitalidade dos madeirenses, que a todos brindava. Esta arte de bem receber foi testemunhada por muitos e atuou certamente como uma bandeira favorável à presença frequente de personalidades de diversa índole e de gente anónima. A todos o madeirense acolhia da melhor forma, portas adentro, nas casas ou quintas, e reservava-lhe a melhor cama e mesa. A origem desta Associação parte do ambiente cultural e boémio do séc. XIX funchalense. Assim, na segunda metade do século, generalizou-se a criação de clubes destinados ao recreio e distração dos sócios. Estes clubes primavam pela realização de bailes e soirées, que contavam com a participação de residentes e forasteiros. Aliás, era tradição destes clubes receber nas suas instalações as personalidades ilustres que passavam pela Ilha. Assim, em 1885, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens foram aclamados no Clube Funchalense e, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram obsequiados pelo Club Sport Madeira. Dos inúmeros clubes que organizaram o folguedo dos madeirenses entre a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do seguinte, podemos salientar os seguintes: Clube Económico (1856), Sociedade Club Económico (1856), Clube Recreativo (1856), Clube Aliança (1867), Sociedade Clube Funchalense (1872), Clube Restauração (1879), Clube Washington (1882), Clube União (1888), Clube Recreativo Musical (?-1900), Clube Recreio e Instrução (1892), Clube Internacional do Funchal (1896), Clube dos Estrangeiros (1897), Turf Club (1900), The Sports Club (1901), Stranger’s Club-Casino Pavão (1906), Novo Clube Restauração (1908), Clube Sports da Madeira (1910), Clube Sport Marítimo (1911), Clube Republicano da Madeira (1911) e Clube Naval Madeirense (1917). Não faltava ao madeirense imaginação para encontrar formas de diversão e de passar o tempo. Deste modo, na déc. de 80 do séc. XIX, afirmaram-se as chamadas esquadras de navegação terrestre. O seu espírito, porém, é muito anterior, pois desde a déc. de 40 da centúria sucedeu este tipo de confrontos lúdicos, tendo como base o confronto entre miguelistas e pedristas. Aqui, não estamos perante estruturas militares, mas sim de boémios que se juntavam sob a capa do ritual da marinha. Nas quintas, ergueram-se os mastros engalanados com bandeirinhas e uma peça de fogo. Ficaram célebres as quatro esquadras: Esquadra Torpedeira, Esquadra Submarina, Esquadra Couraçada e Esquadra Independente. O espírito era levado a sério, aparecendo os associados em atos públicos fardados a rigor. As atividades resumiam-se a alguns desfiles dominicais e nos dias feriados, passeios a pé ou ao longo da costa e, acima de tudo, aos assaltos combinados às adegas para o tão esperado repasto. O espírito da marinharia portuguesa em terra era assumido na sua plenitude e conduziu a alguns equívocos em 1901, com a visita do Rei D. Carlos. A partir de 1914, as dificuldades sentidas com a guerra refrearam a iniciativa das esquadras, provocando o apagamento das esquadras submarinas de navegação terrestre. Acabou o aparato de rua, e o movimento em torno dos mastros e miradouros transferiu-se para espaços recatados. As associações de boémios assumem este carácter interior, por vezes fechado e elitista. A grande aposta ficou para a mesa e jogos da fortuna e azar, que ajudavam a passar os fins de tarde e as noites. A NSR, cuja data de aparição não está devidamente revelada, ganhou dimensão a partir da déc. de 30 do séc. XX, retomando este espírito das esquadras submarinas de navegação terrestre, agora transferido para dentro de portas e tendo como palco a mesa e o bacalhau, seu inseparável amigo. Não temos documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da NSR. Apesar de a Associação existir há já muito tempo, os seus primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, por força de uma nova exigência do regime político. Note-se que era costume a data dos estatutos oficiais não coincidir com o início de funcionamento. Tomemos como exemplo alguns clubes: o Clube União foi fundado a 10 de março de 1836, mas os seus estatutos só foram aprovados pela Assembleia Geral a 20 de agosto de 1874 e pelo Governo Civil a 7 de fevereiro de 1879; o Clube Funchalense é de 3 de dezembro de 1839, mas os primeiros estatutos são de 18 de dezembro de 1876, tendo sido aprovados pelo governador civil apenas em 16 de fevereiro de 1877. O mesmo deverá ter sucedido com a NSR. As entrevistas feitas aos mais antigos associados dão a entender esta realidade. De acordo com o testemunho do Sr. José Egídio Barros, veterano da NSR, a Associação terá surgido por volta de 1917, quando o Com. José Gomes reunia regularmente um grupo de amigos num banco de jardim em frente do café A Brasileira, hoje edifício da Secretaria Regional do Turismo, na Av. Arriaga. Contudo, segundo informa Amadeu Ribeiro Saraiva, comandante do Funchalense, na visita que fez à NSR a 3 de janeiro de 1962, esta teria surgido em 1926: “Nas visitas à ‘Nau Sem Rumo’, de que fui um dos primitivos fundadores em 1926, verifiquei com muito agrado que do pouco mais de nada se levantou uma grande organização que me apraz registar como modelar e simpática, nela encontrando ainda alguns dos primeiros fundadores. Decorridos que são trinta e seis anos, esta ‘Nau’ não sossobra, – antes pelo contrário navega a todo o pano [...]” (Id., Ibid., 18). Oficialmente, a data de fundação da NSR foi atribuída à do primeiro registo da Associação, a 27 de maio de 1935, tal como se poderá constatar pelo regulamento de 1950. Assim, o dia 27 de maio ficou registado como o dia do aniversário da NSR. A NSR tardou em encontrar o porto seguro. A sua primeira sede foi no edifício do atual Museu da Quinta das Cruzes, partilhado com outras associações, passando depois, em 1928, com o Alm. Dr. Agostinho de Freitas, para a R. da Carreira. A partir daqui, vagueou por algumas ruas da cidade: R. dos Murças, Trav. do Nascimento e, finalmente, a R. 31 de Janeiro, onde varou em definitivo, a partir de 1941. A 27 de janeiro de 1945, inaugurou-se a nova sede, à R. 31 de Janeiro, onde permanece ainda hoje em prédio construído em 1940, por Raul Câmara. O ato de inauguração foi um momento importante na vida da Associação, contando com a participação das mais importantes individualidades da Ilha. De entre estas, podemos destacar: Dr. Fernão Ornelas, presidente da Câmara Municipal do Funchal; Dr. Félix Barreira, secretário-geral do Governo Civil; Com. João Inocêncio Camacho de Freitas, capitão do porto do Funchal; Eng.º António Egídio Henriques de Araújo, vice-presidente da Junta Geral; Dr. Humberto Pereira da Costa, diretor da Alfândega; e Fernando Rebelo Andrade, diretor da PIDE. As declarações do Dr. Fernão Ornelas, no livro de honra, dão o testemunho claro da solenidade: “As instalações da ‘Nau Sem Rumo’ revelam um espírito de iniciativa que não é vulgar no nosso meio. É grato, para quem tem posto o melhor carinho no progresso da cidade, verificar que no Funchal existe um club que seria uma grande realização em qualquer meio. Sinceros parabéns em nome da câmara” (Id., Ibid., 20). Igual ideia tinha o então inspetor da PIDE, Fernando Rebelo Andrade: “A Nau Sem Rumo deixa maravilhado pelo rumo que agora tomou não só pelas suas belas instalações, como pelo fim que proporciona a cada convidado que assiste aos seus esmerados jantares” (Id., Ibid., 20). Os livros de honra da NSR revelam-nos que a agremiação era entendida, como já referido, como a sala de visitas da Ilha: visitantes ilustres, comandantes das embarcações, eram sempre convidados da Associação, fazendo-se o espírito marinheiro da NSR. Um dos habituais convivas era o Alm. Sarmento Rodrigues, que muito se destacou na política e administração colonial. No período da Segunda Guerra Mundial, amainou o movimento de embarcações, mas não faltaram marinheiros na NSR. A este propósito, referia-se, em 1939, os comandantes de diversos navios comerciais gregos que permaneceram algum tempo atracados na Pontinha. Pelos salões da Associação passaram eminentes personalidades, de visita ou de passagem pela ilha. Políticos, cientistas, jornalistas, madeirenses ilustres emigrados, participavam, com frequência, dos repastos de bacalhau da NSR e não se faziam rogados nos elogios à mesa e ao espírito de camaradagem que unia todos os marinheiros. A NSR era uma associação masculina, não tendo nunca, entre os seus sócios, surgido alguém do sexo feminino, mesmo como sócio honorário. Todavia, a presença feminina é uma constante na lista de convidados. De entre as ilustres convidadas, destacam-se as inúmeras artistas que participavam nas quermesses dos clubes desportivos, como a Dr.ª Beatriz Franco de Almeida, que, em 1945, considerou a NSR como “uma coletividade com pontos de vista magníficos e de utilidade altamente comprovada” (Id., Ibid., 25). Porém, de todas estas visitas femininas, a mais notada foi a de Amália Rodrigues. A 23 de maio de 1948, a NSR engalanou-se para receber a ilustre fadista, que cantou e encantou da varanda o inúmero público que a seguia e lavrou no livro de honra a sua gratidão: “Agradeço a todos do meu coração este simpático almoço e Deus queira que não seja o último” (Id., Ibid., 25). O cantor Francisco José foi outro dos convidados da NSR, que deixou registado, em 1952: “Nau sem rumo, não concordo, tem o grande sentido da amizade e da boa camaradagem” (Id., Ibid., 24-25). Max, o célebre artista madeirense, tinha as portas franqueadas, mas só em 1955 e 1960 frequentou a Associação. Nesta última visita, deixou o seguinte pensamento: “A nau da minha terra é a nau do meu pensamento” (Id., Ibid., 26). Era frequente a presença de convidados do sexo masculino: artistas, jornalistas e políticos não escapavam à simpatia e arte de bem receber da guarnição. Em 1945, o Com. M. Sarmento Rodrigues, governador-geral de Angola, ficou de tal modo cativado que não hesitou em afirmar: “vejo nesta grande barca uma das mais nobres e simples manifestações de simpatia humana que tenho conhecido” (Id., Ibid., 26). E repetiu a experiência, passados 10 anos, já como ministro do Ultramar. Quatro anos mais tarde, a Ilha deu guarida, por algum tempo, ao deposto Presidente da República de Cuba, o Gen. Fulgencio Batista. A sua presença na Ilha não passou despercebida ao almirante que o homenageou na NSR, a 18 de dezembro de 1959. O general, sensibilizado, decidiu oferecer dois contos de reis para a quermesse de Natal e lavrou aquele que será o melhor testemunho sobre a NSR: “Nau sem rumo es para los que se orientan en la tierra la mejor nave para encontrar el rumbo, con la mágica brújula de su cordial Fraternidad, de lo que podría ser el hombre, en sus fundamentales actividades, por el progresso de la humanidad. Aqui deja el navigante eventual, que es el hosped bien recebido en Madeira, este recuerdo agradecido. Salud!” [Nau sem Rumo é, para os que se orientam em terra, a melhor nave para encontrar o rumo, com a bússola mágica da sua cordial Fraternidade, do que poderia ser o homem nas suas atividades fundamentais, com vista ao progresso da humanidade. Aqui deixa o navegador eventual, hóspede bem recebido na Madeira, esta memória agradecida. Saúde!] (Id., Ibid., 26). Havia entre os membros da NSR um particular reconhecimento pelos marinheiros de profissão, de modo que, de todos os militares da marinha ou tripulações das diversas embarcações que aportavam no Funchal, vinham também os maiores elogios. Em 1945, Fernando Moreira, comandante do Maria Cristina, não hesita em afirmar que esta foi “a maior organização que até hoje conheci, não tendo medo de afirmar (como marinheiro que conhece quase todo o mundo) única no seu género no globo” (Id., Ibid., 26). Muitos madeirenses, residentes ou de visita à Ilha, tinham as portas da Associação abertas e foram alvo de homenagem. Em 1946, o deputado Juvenal de Araújo disse que saía “encantado e penhoradíssimo. Mais vou com desejo de voltar” (Id., Ibid., 26). Contudo, não temos notícia de que tivesse regressado. Já o célebre psiquiatra Dr. Aníbal Faria, em 1947, sentia-se maravilhado com a viagem pelo facto de não ter enjoado nesta: “Estou como sempre enjoado a bordo... Necessito muitas e muitas viagens… como esta para me tornar valente marinheiro e... talvez um brioso rival do simpático almirante da Nau sem Rumo” (Id., Ibid., 26-27). A ligação e vocação marítima lusíada estava sempre presente no ambiente que envolvia os visitantes, nomeadamente no dos escritores. Foi o caso de Assis Esperança, que, em 1946, exclamava: “Foi numa nau que os portugueses cá vieram – e é numa nau ainda melhor que estes bons portugueses sabem ser amigos e sabem ser portugueses” (Id., Ibid., 27). E parece que estava no rumo certo, a fazer fé nas palavras de Hermínio Simões, em 1950: “‘Sem Rumo’!!! Não. [...] O rumo é certo porque com esta tripulação os ventos são sempre de... Feição” (Id., Ibid., 27). E, no ano imediato, Arthur Vieira Ávila explicava que “A Nau Sem Rumo foi para mim uma revelação de bom rumo que os seus dirigentes sabem dar à missão de amizade e fraternidade para com os seus conterrâneos. As amabilidades recebidas jamais serão esquecidas” (Id., Ibid., 27). Para a maioria dos convidados, era uma grande honra e um ato de reconhecimento social o almoço na NSR. Esta é a expressão que fica de muitas das opiniões, como se atesta nas palavras de um forasteiro do Brasil: “Sinto-me envaidecido e grato por ter participado de uma das suas viagens” (Id., Ibid., 27). Já para outros, é o sabor dos pratos degustados, desde o bacalhau aos mariscos, como era obrigatório na NSR, que fica na memória. Em 1959, Ana Maria de Amorim Ferreira de Sousa Moniz regista: “Desejo que esta nau continue a navegar com rumo para continuar a pescar mais lagostas tão boas como aquelas que comi esta noite” (Id., Ibid., 27). Carlos Areias, em 1961, não teme dar conta dos seus excessos: “Comi bem, bebi melhor. Já não estou com muito aprumo. Nunca mais posso esquecer o almoço na ‘Nau Sem Rumo’” (Id., Ibid., 27). Ou então um remate original, como o de Mário Nobre, em 1960: “Cantar em verso ou prosa a generosidade tradicional do almirante e tripulação da ‘Nau Sem Rumo’, quando recebem amigos e convidados, é lugar comum. Por isso limito-me a transmitir as seguintes palavras que constituem o meu melhor elogio: ‘Nesta nau embarco sempre [...]’” (Id., Ibid., 27). A NSR foi ainda um privilegiado interlocutor do intercâmbio de excursionistas com as Canárias. Note-se que, a 1 de novembro de 1959, os excursionistas do Real Club Nautico de Gran Canaria foram ali recebidos de forma festiva. Isto foi o início de um profícuo intercâmbio que levou alguns madeirenses a estas ilhas em 1962 e 1963. Por outro lado, entre as personalidades recebidas na Associação, destacam-se algumas do arquipélago vizinho, desde políticos e militares a jornalistas. A 7 de abril de 1947, a NSR homenageou o Gen. Garcia Escaner, capitão-general do arquipélago canário, a que se seguiu, a 9 de junho de 1955, uma homenagem a D. Joaquim Vileles Burgos, presidente da Sala de lo civil de la Audiencia Territorial de las Palmas. Em 1959, foi a vez do presidente do Real Club Nautico de Gran Canaria e, em 1960, o grupo folclórico de Tenerife, que esteve presente nas festas das bodas de ouro do Club Nacional. Também os cidadãos espanhóis da Península, de passagem pelo Funchal, foram alvo da hospitalidade da NSR, sendo de destacar o caso de Cristóbal Colon de Carvajal y Maroto, duque de Veragua, que, a 24 de abril de 1956, veio em busca do rastro do seu ancestral Cristóvão Colombo, que algumas centenas de anos antes havia também testemunhado e fruído da hospitalidade madeirense. A partir de finais da déc. de 60, parece ter esmorecido a tradição de bem receber os forasteiros e comandantes das embarcações que aportavam ao Funchal. Aliás nota-se, entre 1970 e 1991, um hiato em que ninguém se dignou registar, no livro de impressões dos visitantes, o testemunho da sua adesão ao convívio da tertúlia gastronómica. Desde então e até 2016, a lista de convidados incidia preferencialmente nos homens ligados ao mar, nalguns políticos ligados à autonomia e em poucos artistas. A NSR não encalhou com o 25 de Abril de 1974, e o interregno nas visitas evidencia apenas que se manteve virada para os associados. Esta capacidade de resistir ao ambiente politizado deve-se, segundo alguns dos seus associados, ao facto de a política não ter franqueado as portas da Associação e de todos os associados se absterem religiosamente dela ao entrarem no seu recinto. Aliás, esta era uma das recomendações fundamentais dos estatutos dos anos 50. O alheamento dos tripulantes relativamente à violência e inimizades do discurso partidário é considerado o principal fator de coesão e continuidade no último quartel do séc. XX, como a partir da déc. de 30, com o apertado sistema de controlo das associações existentes. A NSR terá nascido com o Estado Novo e conseguiu suplantá-lo em longevidade, sabendo sempre vencer a agitação da segunda República, sem se deixar contagiar. As palavras de agradecimento e enaltecimento do espírito da NSR e os opíparos almoços ou jantares, sempre de produtos do mar, encantam todos os gastrónomos. Aqui, nada falta, excepto, segundo o registo de Polybio Serra e Silva, de 3 de março de 1995, as mulheres: “Boa gastronomia, óptimo companheirismo [...] só faltam as mulheres […]” (Id., Ibid., 31). A NSR continua a ser ainda hoje a principal sala de visitas da Ilha, sendo para os forasteiros a melhor imagem da mesma. Deste modo, a 28 de dezembro de 1995, o Eng.º Rui Vieira não hesitava em afirmar que a “nau vale a ilha inteira […]” (Id., Ibid., 31). O então presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim, na visita que fez à Associação a 4 de março de 1994, registou: “Sinto-me honrado e feliz, por hoje estar numa confraternização da ‘Nau Sem Rumo’. Instituição que tanto simboliza e interpreta a cultura e o sentir do Povo Madeirense, no ambiente e trato que aqui se viveu. Durante decénios, e hoje também, verdadeira e representativa sala do bem receber e convívio madeirense. Sucesso de gerações ilustres que construíram esta terra. Vida e força para continuar o que somos” (Id., Ibid., 31). Para muitos dos associados, a presença e o carinho dos convidados de honra foram um fator de coesão e afirmação da NSR. Deste rol, constavam alguns dos comandantes do porto do Funchal, como Moura da Fonseca, Celestino Ramos Monteiro. Com estes, ombreavam outros verdadeiros homens do mar, como o Com. Cristiano de Sousa. O modo de funcionamento da NSR estava estabelecido num regulamento interno. O primeiro que se conhece é de 30 de abril de 1950, mas a sua versão definitiva só foi aprovada e publicada a 31 de janeiro de 1953, da qual se fez uma edição que passou a ser distribuída por todos os sócios. Em data posterior, ocorreram ainda outras reformas, que não alteraram substancialmente o espírito do regulamento inicial. Por imperativos de legislação, foi necessário assegurar a sua manutenção, dando-lhe personalidade jurídica, através da formalização da escritura dos novos estatutos, a 13 de maio de 1999. As atas das reuniões do Conselho de Estado Maior são a imagem do dia-a-dia da NSR. Aqui, discutia-se tanto a admissão de novos sócios, como os demais problemas quotidianos da Associação. A vida da NSR parece decorrer de forma normal nas décs. de 50 e 60, havendo apenas a notar um interregno em 1960. Assim, a última reunião deste ano decorreu a 23 de maio, só voltando a haver novo registo de reunião a 15 de junho de 1961. A admissão dos sócios obedecia a requisitos especiais. Estes últimos eram individualidades que, pelo mérito ou serviços prestados à NSR, adquiriam esta possibilidade mediante proposta do almirante e do Conselho do Estado Maior a apresentar em reunião deliberativa. Ouvido o Conselho de Estado Maior, o almirante podia ainda nomear os oficiais correspondentes, em qualquer país, estado ou cidade, aquelas pessoas de reconhecida categoria e idoneidade comprovada. Em assembleia geral de 11 de abril de 1959, foi criada a figura do sócio benemérito, para contemplar os que contribuíam para aumentar o património da NSR ou pelos seus relevantes serviços. Tal como refere o art.º 7.° dos estatutos, os sócios eram obrigatoriamente do sexo masculino: “Só poderão ser admitidas para sócios efectivos pessoas do sexo masculino, de comprovada idoneidade moral e civil, maiores, de qualquer profissão, independentes ou subordinadas [...]” (Id., Ibid., 73). Tirando isto, não havia qualquer exclusão na admissão de sócios por outros quaisquer motivos, estando mesmo permitido o acesso a estrangeiros, não obstante esta ser uma associação regionalista que tem como lema “da Madeira, pela Madeira”. Neste grupo, destacam-se alguns Ingleses residentes na Ilha. Todavia, o regulamento estabelece algumas limitações à presença de estrangeiros, uma vez que não podem ser almirantes, apenas vice-almirante, e ter assento no Conselho de Estado de apenas dois sócios. A tripulação da NSR, tal como se revela na lista de sócios, foi maioritariamente constituída por comerciantes da cidade, havendo entre ela advogados, jornalistas, empregados do comércio, guarda-livros, engenheiros, médicos, oficiais do exército e gerentes bancários. A Associação continua a manter esta tradição, sendo o ponto de encontro de gentes de diversas origens e profissões, juntando algumas das personalidades que mais se têm destacado no campo da política, comércio, medicina e construção civil. Estes dados revelam que a NSR não estabelecia qualquer impedimento relacionado com as convicções religiosas ou políticas dos candidatos. Todavia, uma regra fundamental do são convívio foi deixar à porta estas opções, fazendo com que o convívio fosse o mais correto, pois, tal como preceituavam os estatutos, “O respeito mútuo é obrigatório, sendo absolutamente proibidas quaisquer discussões de carácter político ou religioso [...]” (Id., Ibid., 73). Os candidatos eram apresentados por um sócio e, antes da decisão final pelo Conselho, os seus nomes publicitados no quadro durante 15 dias. Findo este prazo, se não houvesse oposição, eram discutidos e votados em reunião de Conselho do Estado Maior pelo sistema de bola branca e preta. O candidato só teria as portas franqueadas caso colhesse a totalidade de bolas brancas. Ao final da terceira tentativa, acabava a possibilidade de ser admitido, ficando na lista negra. O novo sócio, com o posto de grumete, estava obrigado ao pagamento de uma joia a estabelecer pelo Conselho. Para além disso, o candidato deveria submeter-se a uma prova de fogo, ficando em observação por algum tempo para ver se se adaptava à nova realidade e ao espírito da NSR. A primeira prova era o batismo na Associação, através de uma viagem gastronómica por sua conta. Este era um momento de grande importância, contando sempre com a presença de entidades públicas ligadas ao mar, como foi o caso do comandante do porto, convidado, em fevereiro de 1962, para a cerimónia de batismo dos novos grumetes. A partir daqui, era-lhe atribuído um número de sócio e procedia-se ao seu lançamento no livro de bordo. A entrada de novos sócios fazia-se por contágio dos amigos. É o testemunho dos sócios amigos e os eventuais convites para visitar a Associação que aliciam os novos associados. A amizade e a boémia eram contagiantes. Fala-se que, durante muito tempo, a NSR foi um importante ponto de encontro de empregados e patrões de empresas ligados às ferragens. Esta representação empresarial fazia com que a Associação fosse um lugar para se concretizar alguns negócios. A primeira lista dos sócios só foi organizada a partir de 1942. O primeiro livro de bordo, isto é, o livro de registo dos sócios, apresenta 58, sem data de entrada, sendo anteriores a 1 de outubro de 1942, data em que se registou a entrada do novo sócio, João M. F. Ribeiro, bibliotecário da Alfândega do Funchal. Apenas o sócio 178, Vergílio Pedro Rodrigues Pimenta, tem a indicação da data de admissão, 26 de abril de 1930. De acordo com o testemunho de alguns associados, a primeira lista teria sido elaborada em 1940. Os livros de registo dos sócios, disponíveis na sede da NSR, apresentam 479 associados, mas o grupo de efetivos foi sempre menor, uma vez que muitos foram forçados a desistir, por saírem da Região ou por outros motivos. Facto significativo é o número de desistências, que chega aos 50% do grupo, o que quererá dizer que muitos dos sócios não demonstraram destreza na viagem. A NSR era um espaço de amizade e camaradagem, dizem-nos os estatutos e as declarações de muitos convidados, pelo que todos aqueles que atentavam contra este espírito eram expulsos. No total, foram assinaladas 12 ordens de exclusão da Associação. Também os associados com dívidas, caso não as saldassem, se sujeitavam a serem suspensos e impedidos de entrar na sede. A 12 de abril de 1972, o Conselho deliberou suspender a admissão de novos sócios, situação que se manteve até 1974. Quanto a admissões, 1944 é o ano que regista o maior número de novos sócios. As dificuldades da Segunda Guerra Mundial não afastaram os madeirenses da NSR, que continuou a ser um dos raros espaços de encontro e diversão da cidade. Aqui, também transitaram informações, a soldo da espionagem dos beligerantes. Se excluirmos o período de 1974 a 1977, podemos afirmar que, nas últimas décadas, a NSR terá perdido o interesse e a adesão que outrora provocara na maioria dos funchalenses. Os motivos de diversão são hoje diversificados e as tertúlias gastronómicas têm proliferado. A guarnição da NSR era constituída pelos grumetes e pelo Conselho de Estado Maior. O comando era da responsabilidade deste último, sendo representado pelo almirante e vice-almirante. Sob a dependência do almirante, estavam os oficiais da guarnição, a quem competiam os serviços de bordo. Na primeira listagem dos associados anteriores a 1942, os cargos de serviço estavam assim distribuídos: capitão, imediato e capelão. Todavia, informações dos associados indicam que o primeiro almirante foi Agostinho de Freitas. Já em 1959, a estrutura é distinta: tesoureiro, secretário, restaurante e bar. A estes, juntou-se, em 1961, o responsável pelas contas correntes. Em 1963, os serviçais tinham já categorias distintas: tesoureiro, secretário, comissário e vogal. O número um da lista de sócios é o jornalista Elmano Vieira, que surge na condição de almirante. Aliás, foi ele quem teve a iniciativa de, em 1935, solicitar ao Governo Civil a aprovação dos estatutos. Note-se que o primeiro almirante terá sido, como referido, Agostinho de Freitas, a que sucedeu Elmano Vieira, que, segundo testemunhos, esteve à frente da NSR entre 1934 a 1943, sendo substituído por António Maria Fernandes Nunes. Diz a tradição que os almirantes só são depostos por morte, o que indicia uma prática de atribuir ao cargo um carácter vitalício. A eleição do almirante ocorria sempre no momento em que se procedia à do Conselho de Estado Maior, cujo mandato era anual. Este era composto por cinco sócios, eleitos a partir de uma lista proposta pelo almirante cessante. Era de entre estes que o almirante escolhia o seu braço direito, o vice-almirante. O ato eleitoral fazia-se escolhendo o Conselho uma lista de 15 associados, que era exposta no quadro. No dia assinalado, de entre estes escolhia-se os cinco mais votados para exercer as funções. Apenas uma vez, em 1995, por iniciativa de um sócio, foi decidido em assembleia geral reconduzir todo o Conselho de Estado. Concluída a eleição, o almirante procedia à escolha do vice-almirante de entre os eleitos. As eleições eram sempre um momento grande na vida da NSR. A 3 de fevereiro de 1962, o redator da ata foi profícuo na descrição da ambiência festiva que rodeou mais um ato eleitoral. Após a viagem, isto é o jantar, procedeu-se à votação e contagem dos votos, tendo sido eleito como almirante, para o triénio de 1962-1964, António F. Nunes. E remata-se: “[…] e no meio de grande euforia, foi esta viagem dada por finda, [...] fazendo todos votos, para que os destinos desta Nau Sem Rumo sejam sempre bem governados e dirigidos [...]” (Id., Ibid., 44). De acordo com o testemunho de alguns associados, o ato de posse acontecia sempre com todo o rigor, posando os membros da direção fardados com boné, jaqueta e divisas. Tudo isto à boa maneira das esquadras de navegação terrestre. Hoje, é uma tradição que se perdeu. O Conselho de Estado Maior tinha um papel fundamental no funcionamento da NSR, pois a ele competia o bom funcionamento da Associação, tomando conta do bar e restaurante, e também a iniciativa de organizar reuniões e encontros de carácter cultural e científico. O Conselho podia nomear mensalmente dois sócios, conhecidos como oficiais da guarnição, a quem competia preparar os dois repastos semanais e zelar pelo bom funcionamento do bar e pela escrituração da receita e despesa. Com a aprovação dos estatutos e respetivo registo notarial, em 1999, a NSR passava a ser regida da mesma forma que as demais associações. A obrigação legal de adequar a NSR ao regime legal das associações não quebrou a forma de funcionamento e estrutura peculiar que sempre regeu os seus destinos e que a aproxima da vivência marítima. Deste modo, a estrutura hierárquica de mando continua a manter a terminologia antiga e a tradição, fazendo da Associação uma esquadra de navegação terrestre que teima em sentar-se à mesa todas as quintas-feiras. Os encontros da guarnição na NSR eram conhecidos como viagens. Em ata de 9 de fevereiro de 1963, regista-se o seguinte: “[…] fez-se uma viagem na Nau Sem Rumo [...] fazendo parte da viagem [...] dezanove tripulantes” (Id., Ibid., 53). Era uma viagem em terra, ou melhor, utilizando os termos atuais, uma viagem virtual. Estes foram e continuam a ser os momentos cruciais da vida da Associação. Aconteciam no salão próprio do segundo andar e tinham por palco a mesa e o fiel amigo por companhia. A ementa estava a cargo dos oficiais de serviço que a preparavam, de acordo com a lista de inscritos e de convidados. As reuniões aconteciam sempre duas vezes por semana, ao almoço de quinta-feira e jantar de sábado. Esta última era conhecida como viagem e, segundo os estatutos, “destinava-se a estabelecer o convívio da Guarnição e a estreitar a amizade entre os sócios, formando um ambiente de melhor confraternização” (Id., Ibid., 54). As viagens contavam, para além da guarnição com convidados, de alguns dos associados ou convidados de honra do Conselho de Estado Maior. Os primeiros deveriam ter anuência do órgão máximo. O sócio que formulava o convite era “responsável por todos os actos do seu convidado ocorridos dentro da sede e pelo pagamento de todas as despesas que o mesmo faça” (Id., Ibid., 54). Já os convidados de honra eram da exclusiva competência do almirante e do Conselho de Estado Maior, com prévio conhecimento dos sócios. Este deveria ser “pessoa de reconhecida categoria social, ou entidade oficial, portuguesa ou estrangeira” (Id., Ibid., 54). A estes acresce a deliberação do Conselho, em 1963, em associar-se à iniciativa do dia do turista, convidando quatro estrangeiros ligados a assuntos do mar para o jantar das quartas-feiras no mês de abril. As viagens da NSR não se resumiam ao repasto, pois, por diversas vezes, aconteciam outras atividades, como conferências. O regulamento assim o estabelecia: “Organizar conferências, palestras culturais, reuniões de carácter económico, literário ou científico, trazendo à sede, sob convite e para tal fim, pessoa ou pessoas de qualquer sexo, nativa ou estranha à terra, mas, previamente, deverá comunicar ao Almirante o carácter do assunto ou assuntos a apresentar” (Id., Ibid., 55). Todavia, estas não eram usuais, pois apenas temos notícia de uma, no jantar de 7 de maio de 1960, em que o Dr. Manuel Romão Boavida foi convidado a proferir uma conferência, que depois foi editada com o apoio da Delegação de Turismo. Note-se ainda o empenho da NSR nas festas que anualmente animavam a passagem de ano. Muitos dos associados participaram ativamente na comissão, angariando as magras verbas para custear o fogo-de-artifício e as iluminações. Muita da animação e brilhantismo que deu corpo ao principal cartaz turístico teve nos obreiros da NSR a sua origem. O visconde do Porto da Cruz é testemunho disso: “As festas do Fim-do-Ano devem à ‘tripulação’ da Nau-Sem-Rumo, e muito especialmente a seu ‘Almirante’ Nunes, o empenhado esforço de lhes imprimir o máximo brilhantismo, que satisfaça os madeirenses e os visitantes que de todo o mundo fazem por ir assistir à feérica noite de São Silvestre ao Funchal” (Id., Ibid., 55). A partir de 1986, temos referência ao passeio anual de convívio dos sócios, no mês de outubro. Os testemunhos de alguns sócios evidenciam que a tradição era antiga, sendo mantida pela Associação, que organizou sempre as suas excursões a locais de interesse, como o Caniçal e as Desertas. Nos últimos anos, as escolhas recaíram na Feira do Gado, no Porto Moniz, Achada do Teixeira, Bica da Cana. O encontro da tripulação e familiares em lugares aprazíveis da Ilha tem sempre como principal motivo uma farta mesa, preparada com esmero por um dos associados. Sendo a mesa o centro de toda a atividade da NSR, é natural que a Associação apostasse, desde o início, no esmero do cardápio, através da contratação de verdadeiros mestres da culinária – a este propósito, ficou para a história da NSR o cozinheiro João Valério Gomes. A abnegada dedicação à causa da NSR, saciando o voraz apetite dos associados, persiste ainda hoje na memória de todos. E, para a história, ficam também os seus pratos especiais, como a sopa de peixe e o bacalhau empacotado. Para muitos, a continuidade da NSR, em alguns dos momentos periclitantes, deve-se à sua douta capacidade de cativar os associados com ementas especiais. O menu das quintas-feiras sempre manteve a tradição do bacalhau, enquanto ao sábado a guarnição delega nas mãos do chefe de cozinha a escolha de entre os variados produtos do mar para encontrar o repasto adequado. Sem ser uma academia do bacalhau, a NSR fez com que o fiel amigo ficasse como o inseparável companheiro dos almoços de quinta-feira. Na voz dos associados, novos e velhos, houve, repetidamente, “sempre e sempre sopa de peixe e bacalhau” (Id., Ibid., 56). As cavalas de molho de vilão e outras variedades de peixe faziam a diferença. Ao longo da história da Associação, só temos documentada uma refeição feita por cozinheiros exteriores, o que sucedeu a 27 de maio de 1974, com o jantar do 39.º aniversário, um buffet servido pelo Hotel do Carmo. A sede da Associação era também o local predileto para os associados receberem os amigos e convidados, em ameno jantar ou almoço, pois era a casa de todos e estava sempre aberta para estas ocasiões. As obras realizadas na sede, entre 1979 e 1981, quebraram o ritmo das viagens na NSR, contudo, a 15 de maio desse ano, a Associação retomou a tradição, com uma baixa de vulto, o cozinheiro Valério. A partir de então, a mesa tornou-se animada aos almoços de terça-feira, quinta-feira e sábado e aos jantares de sábado. O convívio dos sócios não se resumia aos repastos e às ocasionais receções aos convidados, sendo a sede um permanente espaço de encontro da guarnição. A NSR oferecia, desde fevereiro de 1960, a assinatura de algumas revistas e jornais. Também estavam disponíveis vários jogos, com que se entretinham os sócios ao final da tarde. Sabe-se que, em 1966, havia um diretor de jogos responsável por estas atividades lúdicas da guarnição. De entre os jogos, refere-se, em 1961, o jogo de cartas “o barato”, a canasta e a bisca de nove. No caso de “o barato”, cada jogador pagava 10$00 e, caso a sessão se prolongasse para além da 1 h, estava sujeito a uma taxa de 10$00 por cada duas horas. Quanto aos demais jogos, o pagamento era de apenas de 2$00. O jogo e o convívio eram companheiros de uma bebida e dos famosos “dentinhos”, petiscos e coisas para picar, estes estipulados pelo Conselho de 1961. De acordo com a então nova tabela de preços, aprovada em sessão de 13 de maio de 1965, sabemos que o bar era seleto, sendo preenchido com bebidas espirituosas estrangeiras. Na memória de muitos, estão ainda presentes os almoços de quinta-feira, onde a diversão se poderia prolongar até à manhã do dia seguinte. Também o jogo da bisca, as histórias e anedotas do João Teixeira, conhecido como o “malcriado”, regados com álcool, tornavam as noites curtas. A NSR não pode, de modo algum, ser considerada apenas um clube onde se bebe e come, pois as suas atividades alargavam-se à formação dos próprios associados ao propiciar momentos de lazer, como passeios na Iha e fora dela. De entre as iniciativas mais relevantes, releva-se as excursões a Tenerife, entre 28 de abril e 5 de maio de 1962 e em março de 1963. Para a primeira, foi nomeada uma comissão e solicitado ao gerente da Empresa Insular de Navegação as possíveis facilidades a bordo do Funchal, para tornar mais agradável a viagem, de facto, à tripulação da NSR. A Associação demonstrava também o espírito filantrópico através do apoio às crianças oriundas das famílias mais desfavorecidas. Uma das iniciativas de grande relevo que ainda persiste é o mercado de Natal da NSR, que tem lugar num dos sábados do mês de dezembro de cada ano, numa organização das esposas dos associados. Este mercado era e é constituído com as dádivas dos associados, amigos e comerciantes, revertendo o dinheiro do leilão em benefício das crianças do Auxílio Maternal, assim o determinava o Conselho a 30 de novembro de 1961: “o produto reverte a favor das crianças nossas protegidas, que são as do Auxílio Maternal” (Id., Ibid., 59). Outra iniciativa irregular era a colónia balnear infantil da NSR, também dedicada às crianças pobres. O regulamento refere ainda a existência de um fundo para apoio “aos pobres envergonhados, principalmente às crianças sem amparo” (Id., Ibid., 7). Este fundo era recolhido numa caixa que circulava em todos os jantares da Associação. Os estatutos posteriores a 1953 referem outro fundo destinado à concessão de uma bolsa de estudo. Em 1972, temos uma ideia da aplicação destes fundos. Assim, o mercado de Natal rendeu 72.875$10, tendo-se aplicado 63.000$00 no Auxílio Maternal, 6000$00 para donativos particulares e 8075$10 para o fundo de Assistência da NSR. De acordo com os estatutos de 1950, as insígnias da Associação consistiam num emblema de lapela e um estandarte de mastro ou vara metálica. “O emblema é representado por uma roda de leme com uma caravela amarela ao centro e entre aquela e esta uma auréola de cor azul-marinho. O estandarte é de forma triangular e nele predominam as cores da cidade – fundo amarelo, uma linha horizontal e outra vertical de cor roxa cruzadas ao centro do emblema, que é colocado no lado esquerdo do corpo do estandarte” (Id., Ibid., 60). Este último foi inaugurado, de forma festiva, no dia 1 de novembro de 1959. Alberto Vieira (atualizado a 03.03.2018)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

mouros

As populações árabes e os berberes oriundos do noroeste de África eram identificados como mouros. O termo mouriscos, por sua vez, era aplicado aos muçulmanos batizados. Ambos os grupos marcam presença na Madeira, dada a proximidade da Ilha à costa africana e os vínculos que se criaram entre o Funchal e a praças portuguesas aí estabelecidas. Palavras-chave: escravos; ataques corsários; batalhas; Norte de África.   Nome dado às populações árabes e aos berberes oriundos do noroeste de África. O termo “mouriscos”, por sua vez, era aplicado aos muçulmanos batizados. Ambos os grupos marcaram presença na Madeira, dada a proximidade da Ilha à costa africana e dos vínculos que se criaram entre o Funchal e as praças portuguesas aí estabelecidas. Perante o Tribunal do Santo Ofício, mourisco era, muitas vezes, sinónimo de professo do islão e não se confundia com a ideia de escravo, na medida em que era numeroso o grupo de mouriscos alforriados ou livres. Ao contrário, aos mouros, passou a estar associada a noção de escravo. As condições particulares da presença portuguesa no Norte de África definiram para este mercado madeirense uma forma peculiar de intervenção. Os escravos eram os presos de guerra resultantes das múltiplas pelejas em que se envolviam Portugueses e mouros. Para os madeirenses que defenderam com valentia a soberania portuguesa nessas paragens, os escravos mouros eram, ao mesmo tempo, um prémio e um testemunho dos seus feitos bélicos. Os principais obreiros do reconhecimento e ocupação da Madeira, como criados da casa do infante D. Henrique, foram impelidos para a aventura africana, destacando-se nas viagens henriquinas de 1445 e 1460 e nas aventuras bélicas nas praças norte africanas, nos sécs. XV e XVI. O capitão de Machico, Tristão Vaz Teixeira, participou pessoalmente numa das expedições de 1445, e João Gonçalves Zarco mandou duas vezes uma caravela, sob comando do sobrinho Álvaro Fernandes. Enquanto Zarco interveio apenas para bem servir o infante, Tristão Vaz fê-lo por “bom desejo para serviço do infante e muito ao seu proveito” (VIEIRA, 1991, 22). Mas Álvaro Fernandes, escudeiro da casa do mesmo senhor, armou caravela “por fazer alguma cousa de sua honra” (Id., Ibid.). Os filhos dos primeiros povoadores madeirenses evidenciaram-se, também, em diversas façanhas bélicas nas praças marroquinas e no oriente, guiados pelo ideal cavaleiresco e interesses económicos. Nas praças marroquinas, intervieram várias casas madeirenses, com especial relevo para os Câmara, os Abreu, os Correia, os Bettencourt, os Dória, os Freitas, os Lomelino, os Vasconcelos, os Ornelas, os Catanho e os Moniz, entre outros. Os Câmara, nomeadamente João Gonçalves, segundo capitão do Funchal, e Simão Gonçalves, terceiro da capitania, marcaram bem a sua presença nestas praças, empenhando nelas os seus haveres e aplicando aí as suas capacidades militares. A participação madeirense no norte de África não se resumiu ao apoio humano efetivo nas diversas campanhas de defesa das respetivas praças, mas também no provimento de cereais e materiais de construção para as diversas fortificações aí implantadas. Todas as despesas inerentes ao socorro das praças foram custeadas com as receitas dos direitos do açúcar. Só em 1508, com o envio de uma armada de socorro a Safim, despenderam-se as receitas da venda de 963 arrobas de açúcar dos direitos reais, enquanto em 1514 se gastaram 83$815 reais. A Madeira, porque próxima do continente africano e envolvida no seu processo de reconhecimento, ocupação e defesa do controlo da Coroa portuguesa, tinha as portas abertas ao comércio de escravos. Deste modo, a Ilha e os madeirenses destacaram-se, nas primeiras centúrias da ocupação da Madeira, pelo seu empenho na aquisição e no comércio desta pujante e promissora mercadoria do espaço atlântico, os escravos. À Ilha chegaram os primeiros escravos guanches (Canárias), marroquinos e africanos que contribuíram para o arranque económico do arquipélago. Este comércio entre a Ilha e os principais mercados fornecedores existiu e foi, em alguns momentos, fulgurante. Ignoramos, todavia, o número de escravos de diversas origens étnicas que entraram na Ilha: as lacunas documentais para os sécs. XV a XVII não permitem a conhecê-lo. De facto, faltam os respetivos registos de entrada da Alfândega do Funchal e as atas notariais. No séc. XIV e inícios do seguinte, o principal mercado de escravos situava-se no mar Mediterrâneo, sob a égide dos mercadores venezianos, mas, a partir de meados do séc. XV, o movimento foi orientado, por iniciativa portuguesa, para o Atlântico. A penetração portuguesa no continente africano, primeiro no norte, em Ceuta (1415) e depois ao longo da costa, a partir da passagem do Bojador (1434), contribuiu para a posição hegemónica dos Portugueses no tráfico de escravos na costa ocidental africana. Os escravos que surgiram no mercado madeirense eram, na sua quase totalidade, de origem africana, sendo reduzidas ou nulas outras proveniências. Apenas o mercado africano, onde se destacava a extensa costa ocidental em poder dos Portugueses, não foi alvo de quaisquer proibições. Aí, as únicas medidas foram no sentido de regular o tráfico, como atestam os contratos e arrendamentos de escravos. O litoral atlântico do continente africano, definido, num extremo, pelas Canárias e costa marroquina e, noutro, pela costa e golfo da Guiné e Angola, era a principal fonte de escravos. A Madeira foi buscar aí a mão de obra necessária para a cultura dos canaviais. Primeiro, foram os escravos das Canárias e de Marrocos, depois, os negros da Guiné e de Angola. Na costa africana, para lá do Bojador, os meios de abastecimento de escravos eram outros. De início, interveio-se violentamente, por meio de assaltos e razias; em seguida, estabeleceu-se um trato pacífico com as populações indígenas. Todavia, um dos meios mais importantes de aquisição de escravos era o corso marítimo nas áreas adjacentes ao mundo muçulmano. Até à definição da rota atlântica para o comércio de escravos negros, a fonte de abastecimento era quase somente as iniciativas de corso no estreito de Gibraltar, as incessantes incursões nas Canárias e os prisioneiros da guerra de cruzada contra os muçulmanos, na Península Ibérica ou em Marrocos. A guerra de corso foi uma prática comum nas primeiras décadas do séc. XV, intervindo nela homens como João Gonçalves Zarco. A tradição diz-nos que terá sido numa destas ações que ele conheceu, pela primeira vez, o arquipélago da Madeira. Aliás, desde 1433, os infantes D. Pedro e D. Henrique usufruíram da isenção do quinto do valor das capturas realizadas, devido à Coroa. Com a tomada de Ceuta, em 1415, abriu-se a possibilidade de novas fontes de abastecimento de escravos. Os cronistas do séc. XV e XVI relevam o ativo protagonismo dos madeirenses na manutenção e defesa das praças em Marrocos. A principal aristocracia da Ilha fez delas um meio para o reforço das tradições da cavalaria medieval, uma forma de serviço ao senhor e uma fonte granjeadora de títulos e honras. Essa ação tornou-se evidente e determinante para a sua presença, na primeira metade do séc. XVI, destacando-se, no contexto, diversas armadas de socorro a Arzila, Azamor, Mazagão, Santa Cruz de cabo Gué e Safim. Aí, assumiram especial função os capitães do Funchal e de Machico, bem como a aristocracia da Ribeira Brava e do Funchal. Foi também a Madeira quem abasteceu estas praças, durante algum tempo, dos cereais necessários à manutenção das gentes. O mesmo sucedeu com o tabuado e a cal para a construção ou reparo de fortalezas. Na déc. de 70 do séc. XV, num momento em que a Madeira se debatia com a quebra da produção cerealífera, este provimento às praças marroquinas e feitorias da costa da Guiné passou a ser assegurado pelos Açores, mantendo-se, no entanto, a Madeira como centro redistribuidor. A dupla intervenção da Ilha no provir das praças marroquinas e portos da costa além do Bojador terá contribuído para a abertura das rotas do comércio de escravos daí oriundos. No caso das praças de Marrocos, a presença assídua dos madeirenses na sua defesa trouxe-lhes algumas contrapartidas favoráveis em termos dos prisioneiros de guerra. Daí terão resultado os escravos mouriscos encontrados na Ilha. Gaspar Frutuoso refere, a propósito da ilha de São Miguel (Açores), que, em 1522, quando do sismo e derrocada de terras que soterraram Vila Franca do Campo, o grupo de escravos mouros que o capitão Rui Gonçalves da Câmara e acompanhantes detinham era numeroso; ora estes, anos antes, haviam ido socorrer Tânger e Arzila. Idêntico foi o comportamento dos madeirenses que participaram, com frequência, nestas campanhas. Os mouros surgiram com maior incidência no Funchal e Ribeira Brava, áreas ondes as personalidades principais mais se distinguiram nas guerras marroquinas. Eles situam-se quase que exclusivamente no séc. XVI, se excetuarmos um caso isolado no Funchal, na déc. de 30 do séc. XVII. Isto resultou das medidas restritivas à posse de escravos dessa origem estabelecidas pela Coroa a partir 1597. A intervenção madeirense nas praças marroquinas aproximou os corsários argelinos da costa do arquipélago, podendo esta ser entendida como uma ação de represália. Eles surgem com assiduidade a partir de 1566, sendo de referenciar, em 1617, o assalto às ilhas de Porto Santo e Santa Maria. Da primeira ilha, levaram como cativos 900 vizinhos, escapando apenas 18 homens e 7 mulheres. O tratamento dado a estes cativos era quase idêntico ao dos escravos da civilização ocidental. O que os diferenciava era a possibilidade que lhes era dada pelos marroquinos, de alcançarem a liberdade antes de entrarem no mercado de escravos, caso fosse possível o pagamento do resgate. A gravidade do assalto de 1617, mercê do avultado espólio, motivou uma ativa intervenção da Mesa de Consciência e Ordens. A celeridade procurada para a resolução do resgate devia-se à presença de inúmeras crianças entre os prisioneiros, temendo-se a sua conversão ao islamismo. O resgaste de cativos era feito pelos alfaqueques. No caso do assalto de 1617, eram frades, Fr. Paulino da Apresentação e Fr. André de Albuquerque. Os contactos entre as partes interessadas faziam-se em Ceuta, Argel e Valença, onde se estabeleciam as formas de resgate. Ele poderia consistir numa troca mútua de cativos ou no pagamento de uma certa quantia em dinheiro. O dinheiro para esta rendição era resultado das esmolas, legados, rendas e multas, e era reunido, pelo mamposteiro-mor dos cativos, no “cofre dos cativos”. Todavia, dos cativos do Porto Santo de 1617, 200 atingiram a liberdade por outros meios, pois o navio que os conduziu à costa da Berberia naufragou e eles foram recolhidos por embarcações portuguesas. Mas nem todos tiveram igual sorte e, em 1656, ainda se providenciava a libertação de cativos do Porto Santo. Alguns porto-santenses entregaram ao governador da Ilha o dinheiro necessário para que, em Lisboa, se providenciasse o resgaste, o que nunca aconteceu. Também as vizinhas ilhas de Lanzarote e Forteventura foram alvo de incessantes assaltos mouros que causaram inúmeros problemas às populações de ambas as ilhas. Gaspar Frutuoso descreve um assalto a Lanzarote, em 1586, mas outros tiveram lugar na centúria imediata. O mesmo autor refere que os lanzarotenhos “são leais a Portugueses e a Castelhanos, e inimigos de mouros da Berberia, aonde vão fazer muitos saltos e trazem muita presa deles, que vendem para a ilha da Madeira” (Id., Ibid., 40). Note-se que o senhorio destas ilhas usufruía do quinto das presas feitas na Berberia. A partir de 1566, estabeleceram-se entraves a estas entradas e, em 1572, ficou exarada a sua total proibição, como forma de evitar as represálias que tinham tido local nesta segunda metade da centúria. A par da organização de armadas castelhanas para saque na área da Berberia, surgiram outras, para resgate dos cativos. Situação semelhante teve lugar em Portugal, em 1461, com a proibição da posse de escravos mouros. A proximidade das ilhas das Canárias à costa africana e as incursões à Berberia para capturar escravos conduziram à valorização deste grupo étnico nas Canárias, havendo em Lanzarote e Forteventura mais de 1500 escravos oriundos daí. Também em Grã Canária e Tenerife eles eram numerosos, como levam a crer as incessantes intervenções do cabido contra a sua presença: primeiro, em Tenerife, no ano de 1530 e, depois, na Grã Canária, em 1541. Diferente foi a situação da Madeira, onde eles não ganharam expressão significativa. Este mútuo temor de represália dos mouros condicionou o comércio e a presença de escravos também mouros, na Madeira e nas Canárias. No caso madeirense, o abandono de algumas praças, no período de 1541-1550 (Alcácer Ceguer, Arzila, Azamor, Safim e Santa Cruz), será um dos fatores que contribuíram para o paulatino decréscimo do número de mouros, que, num e noutro caso, foram substituídos, em condições mais favoráveis, pelos da costa da Guiné. Facto curioso é que o desinteresse canário-madeirense pela rota marroquina de escravos coincide, precisamente, com o avolumar das investidas de represália às ilhas de Lanzarote, Forteventura, Porto Santo e Santa Maria. A partir desta data, inverte-se a situação, surgindo os ilhéus, como vimos, na condição de cativos ou escravos dos mouros. Não obstante os números sobre a presença desta população, na condição de livre ou escrava, serem escassos, são vários os vestígios que revelam a sua permanência no arquipélago. A capela de N.ª Sr.ª da Penha de França (Faial) foi instituída em 1680 por António Teixeira Dória, no local onde, segundo a tradição, terá funcionado uma mesquita clandestina dos escravos mouros. De origem tipicamente mourisca são, no vestuário, o capuz e, na alimentação, o cuscuz e o bolo do caco. Há ainda quem aponte o borracho ou odre como sendo de origem norte africana, o mesmo sucedendo com a canavieira ou roca. Todavia, ainda está por saber se esta importação derivou da presença dos escravos mouros no arquipélago ou das assíduas deslocações dos madeirenses a África, em defesa das fortalezas portuguesas aí existentes. É no Porto Santo, a exemplo do que sucede na ilha de Santa Maria, nos Açores, que se nota uma maior influência, havendo bastantes razões para que isso aconteça. Neste ponto, merecem especial referência os incessantes assaltos de corsários argelinos que, por diversas vezes, levaram como reféns os habitantes da ilha (por exemplo, em 1616). O cativeiro poderá ter sido o meio mais eficaz para a assimilação da tradição do Norte de África. Por outro lado, estes elementos etnográficos de afinidade norte africana poderão ter vindo com os primeiros colonos algarvios, também permeáveis a tais influências. Na toponímia madeirense, a presença dos mouros pode ser testemunhada através dos nomes de alguns acidentes geográficos. Assim, temos o Lombo do Mouro (Paul da Serra), a Cova do Mouro (Porto Moniz), a Cova do Moirão (Arco da Calheta e Serra de Água) e a Furna do Mouro (sítio do Pomar Novo). Já a rua da Mouraria e das Pretas, na cidade do Funchal, terá uma origem diferente: a investigação levada a cabo por Ernesto Gonçalves aponta para que este nome decorra do apelido de pessoas que aí viveram e não da existência de um bairro de “mouros” e “pretos”, coisa que nunca existiu na Madeira. Neste sentido, vale a pena indicar que persistem na tradição oral duas expressões: “há mouro na costa” e “vai-te p’ra Argel”. A primeira, dá conta da permanente insegurança dos insulares, devido às investidas de corsários, em especial, oriundos do Norte de África. O séc. XVII foi o momento mais significativo destas investidas, com os assaltos ao Porto Santo e à Fajã dos Padres, anteriormente referidos. A segunda expressão sinaliza o cativeiro de madeirenses, nomeadamente de porto-santenses, fruto das investidas feitas a esta ilha. Assim, parece existir no imaginário madeirense uma visão pouco abonatória dos mouros, definidos como violentos, o que conduziu a apertadas medidas, expressas nas posturas, quanto à sua mobilidade na sociedade madeirense. Alberto Vieira (atualizado a 01.02.2018)

História Económica e Social