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nunes, manuel

Manuel Nunes nasceu na ilha da Madeira, na freguesia do Paul do Mar, em 1848 e morreu, com 51 anos, na freguesia de São Gonçalo, a 28 de dezembro de 1899, quando ali exercia funções eclesiásticas como pároco, depois de ter sido ordenado presbítero por D. Patrício Xavier de Moura, a 25 de maio de 1872. Era filho de Tomás Nunes, do Jardim do Mar, e de Maria Joaquina, natural do Paul. Foi batizado a 22 de dezembro de 1848 pelo P.e Francisco Plácido da Silva, vigário do Paul. Em 1 de março de 1873, tornou-se pároco convidado do Jardim do Mar; em 1 de dezembro de 1875, cura de Santa Luzia; mais tarde, em 11 de novembro de 1878, pároco convidado da mesma freguesia; em 4 de julho de 1887, cura de São Martinho; e a 7 de março de 1893, tomou posse da igreja de S. Gonçalo, onde teve instituição canónica e acabou por produzir a maior parte das suas composições. Sacerdote, reconhecido pelas suas orações sagradas, famosas pela elegância da forma e correção da linguagem, músico que deixou várias produções apreciadas no seu tempo, baixo barítono muito considerado na música sacra – a música comum a toda a ilha da Madeira, dizia em 1869 o bem conhecido escritor russo Platão de Vakcel, reduz-se a dois ou três géneros de trovas, acompanhadas de violas, rajões e machetes, dos quais se tiram sempre as mesmas modulações, ora em acordes simples, ora em dobrados –, na verdade, um digno literato, conquanto somente depois da sua morte tenham sido reconhecidos os seus méritos nos meios intelectuais. Colaborou em vários jornais locais, mas especialmente no Diário de Notícias. Há versos seus no livro Paróquia de Santo António, de Fernando Augusto da Silva. Cultivou com brilho as letras, sendo a poesia satírica o género literário de que mais cuidou. Luís Marino, na obra Musa Insular, tem o mérito de ter colhido e fixado alguns poemas que permitem ao leitor aferir da qualidade poética de Manuel Nunes, sendo eles o “Hino da Sociedade Artístico Musical”, que comporta como epígrafe “que se organizou nesta cidade, para compor a orquestra do novo teatro D. MARIA PIA”, o “Hino” do 7.º centenário do nascimento de S.to António e a composição inédita “Repique do Baptisado”.   António José Borges (atualizado a 03.03.2018)

Religiões

nascimento, joão do

A 21 de setembro de 1684, nasceu dentro do castelo de Lisboa João Marques de Afonseca, que viria a ser o 16.º bispo do Funchal, com o nome de D. Fr. João do Nascimento. Foram seus pais Inácio de Mira Solteiro, capitão de cavalos do terço do duque de Cadaval, e D. Garcia Ferreira de Afonseca, membros de uma pequena nobreza rural e morgados da Torre da Giesteira, Montemor-o-Novo. Sendo os progenitores gente piedosa, o jovem João cresceu e foi educado na observância de estritos princípios religiosos e habituado à frequência da comunhão e confissão, bem como à prática da oração mental, cumprindo, desde o nascimento, um programa que em muito se aproximava do da corrente jacobeia, na qual militou depois de adulto. Terminados os seus estudos em Humanidades na corte, transferiu-se para Coimbra, em cuja Universidade concluiu, com louvor, o doutoramento em Cânones. O seu desempenho enquanto aluno fê-lo sobressair de entre os companheiros, pelo que, dentro de pouco tempo, já se encontrava a lecionar na Universidade, tendo-lhe posteriormente sido oferecido o lugar de mestre-escola na Sé de Évora. Apesar das boas perspetivas de carreira eclesiástica que tão cedo se lhe depararam, João Marques de Afonseca, seu nome no século, sentiu o apelo da vida monástica e, renunciando aos cargos que se encontravam à sua disposição, decidiu ingressar no Convento franciscano do Varatojo, onde se fez noviço, em 1713, e frade, em maio de 1714, passando a chamar-se Fr. João do Nascimento. No convento, continuou a dar provas de um talento especial no púlpito e no confessionário e, por isso, em breve se transformou em confessor e missionário. Durante anos, percorreu o interior do país, lutando por uma reforma de costumes e pelo estabelecimento da prática da oração mental em público, isto é, trilhando o caminho proposto pelos ideais da jacobeia. Quando Fr. Gaspar da Encarnação, figura emérita da jacobeia e futuro conselheiro de D. João V em matéria de provimentos episcopais, abandonou o lugar de guardião do Varatojo para, por ordem régia, ir para Coimbra reformar um convento agostinho, passou Fr. João do Nascimento à qualidade de presidente do Seminário varatojano, e o modo como se desincumbiu da função levou a que ascendesse ao lugar de guardião do Convento em 1734. Nessa situação se encontrava quando, em 1740, D. João V se lembrou dele para a mitra do Funchal, então vaga por promoção de D. Fr. Manuel Coutinho para Lamego. Informado da decisão real, procurou Fr. João do Nascimento livrar-se daquele peso, rogando ao monarca que o aliviasse de “uma Dignidade para a qual não tinha ombros” (SANTÍSSIMA, 1804, 247). Não tendo a escusa sido aceite, viu-se o frade nomeado bispo do Funchal a 5 de janeiro de 1741, vindo a ser confirmado a 5 de março, na Patriarcal de Lisboa, na presença, entre outros, do Cardeal e do também jacobeu e bispo de Angra, D. Fr. Valério do Sacramento. Chegado à Madeira a 4 de setembro, recolheu-se provisoriamente ao Convento dos seus confrades no Funchal, de onde saiu para, a 17 do mesmo mês, solenemente assumir na Sé a condução dos destinos da Diocese. Depois de instalado no paço episcopal, pôde D. Fr. João do Nascimento começar a pôr em prática as ideias que trazia para governo do bispado, as quais se começaram a descortinar a partir da sua primeira pastoral, publicada a 5 de janeiro de 1741. Nesse documento, tornam-se visíveis aquelas que eram as preocupações do novo prelado e que respeitavam, em primeiro lugar, ao exemplo que se esperava provir dos eclesiásticos, nomeadamente no tocante à responsabilidade que lhes estava cometida do ensino da doutrina, ainda que partilhada com os pais de família e os mestres de estudantes, como o bispo também referia. Em paralelo com a doutrinação religiosa, chamava-se, ainda, a atenção para a transmissão da importância dos bons costumes, do respeito aos superiores e da devoção a Nosso Senhor e mais santos, reforçando, assim, a mensagem do devocionário tridentino. Como para o cabal cumprimento deste desígnio eram precisos clérigos instruídos e capazes, o prelado apelava, depois, ao estudo da teologia moral, condição necessária à continuação do exercício da função de confessor cometida aos párocos e curas de almas, dando a todos um prazo para se apresentarem a exame. Para os clérigos de ordens menores e outros estudantes que esperassem promoção a ordens maiores, era exigida a frequência da lição de moral no Colégio da Companhia de Jesus. Outro assunto que avultava desta primeira pastoral tinha a ver com a obrigação de residência, impondo-se as devidas penalizações a todo aquele que a não respeitasse. Logo de seguida, eram abordadas as questões da intervenção dos párocos na correção dos pecados públicos, na satisfação das obrigações testamentárias, assunto que muito preocupou o bispo durante todo o episcopado, e no cumprimento das determinações relativas ao modo de trajar dos eclesiásticos. A 6 de Maio de 1742, D. Fr. João do Nascimento fazia publicar a sua segunda pastoral, desta vez mais destinada a chamar a atenção para a necessidade de ouvir missa nos dias de preceito, a lembrar a obrigação de os clérigos participarem nas procissões e os cuidados espirituais a prodigalizar aos doentes. Numa terceira pastoral, de 1743, o prelado voltava a insistir em pormenores do vestuário eclesiástico, sublinhando a proibição do uso de anéis e outros atributos de luxo a todos os que não os pudessem exibir como marca de estatuto, num apontamento consistente com o ideário jacobeu que repudiava o luxo, a ostentação e a vaidade. Em 1744, os cuidados pastorais de D. Fr. João do Nascimento voltaram-se, claramente, para o cabal cumprimento dos legados pios, uma das vertentes da sua ação em que melhor se demonstrou que, apesar de procurar agir com brandura em todas as circunstâncias em que tal fosse possível, o bispo poderia ser duro, se fosse caso disso. O problema do incumprimento dos encargos pios na Madeira vinha de longe, e já tinha custado ao bispo anterior, D. Fr. Manuel Coutinho, bastantes dissabores, estando, no entanto, muito longe de se achar resolvido. O problema radicava sempre nos testamenteiros que, ou por falta de meios, ou por negligência pura e simples, não acudiam às almas do purgatório com os devidos ofícios divinos. A responsabilidade de assegurar que essa obrigação era satisfeita cabia, em meses alternados, à Igreja e ao juiz do resíduo secular, o qual, era, porém, particularmente remisso neste particular. Com esta pastoral, dava D. Fr. João do Nascimento sinal de que este assunto lhe era caro e de que estaria vigilante em relação ao cumprimento do estipulado. O juiz dos resíduos, porém, parece não ter levado em linha de conta as advertências episcopais e a situação manteve-se inalterada até 1747, altura em o bispo decidiu ordenar aos seus visitadores que averiguassem o que se passava também nos meses em que, de acordo com a regra da alternativa, o cumprimento competia ao juiz dos resíduos. Este, ofendido, instou junto do prelado para que suspendesse a medida, comprometendo-se a tratar da questão. Como tal não se chegasse a verificar, o bispo acabou por assumir a responsabilidade integral da satisfação dos encargos, atitude que lhe valeu a apresentação de uma queixa contra si nos tribunais da Coroa, cuja resolução, tendo-lhe sido favorável, não impediu a continuidade de uma relação conflituosa com as entidades envolvidas no processo. Em 1746, D. Fr. João do Nascimento publicou nova pastoral, desta vez dedicada ao problema do sigilismo. O sigilismo foi uma questão que surgiu como decorrência da atuação de alguns bispos jacobeus que, por perseguirem e condenarem desmandos, foram acusados de pressionar os clérigos para obterem dados sobre os cúmplices dos confitentes. Desta situação foi apresentada queixa ao patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida, e ao inquisidor geral, D. Nuno da Cunha, os quais, por sua vez, a fizeram chegar ao Papa, Bento XIV. O pontífice reagiu à denúncia com um breve em que liminarmente proibia tal prática e foi na sequência desta proibição que D. Fr. João promulgou a sua pastoral, na qual, apesar de declarar não ter conhecimento de que na Diocese se praticassem tais infrações, não deixava de exortar os seus confessores a que nunca caíssem no erro apontado, sob pena de afastarem os fiéis da frequência do sacramento da confissão. Em 1753, o bispo mostrava-se preocupado com o devido cumprimento do ritual a ser observado pelo corpo de eclesiásticos ao serviço da Sé, pelo que publicou uma última pastoral que continha o novo regimento a observar na Catedral, onde se encontravam bem evidenciados os cuidados postos na observação dos comportamentos e no respeito pela hierarquia e pela formalidade, honrando assim um outro princípio da jacobeia, que era o de dar “às práticas da vida espiritual notável dose de exterioridade”, com vista a fazer “contagiosa a virtude” (SILVA, 1963, 266). No que diz respeito às visitações, D. Fr. João do Nascimento também as executou, pessoalmente ou por delegação, revelando, quer o louvor que lhe mereciam os párocos comprometidos com obras e cuidados com as suas igrejas, como aconteceu em São Jorge, quer a atenção que dedicava à prática do ensino da doutrina, à satisfação dos encargos pios, à criteriosa contabilidade das confrarias, ao adequado comportamento dos fiéis, ou ainda, e mais uma vez, às formalidades a observar nas procissões e nos ofícios religiosos, como aconteceu em São Pedro, em 1743. Nunca esquecendo a sua anterior prática missionária e conhecedor dos frutos que as missões de interior poderiam prodigalizar aos fiéis, levou consigo do reino, quando da sua ida para o Funchal, dois pregadores franciscanos, Fr. Lourenço de Santa Maria, futuro arcebispo de Goa e Fr. João do Sacramento, que, durante 20 meses, percorreram todo o arquipélago, tendo operado, com o seu labor, “conversões inumeráveis” (SANTÍSSIMA, 1804, 248). Regressados os dois pregadores ao Varatojo, em 1743, o bispo manteve o interesse na prossecução de um trabalho deste teor, continuando a promover a deslocação de missionários para as paróquias tanto da Madeira como do Porto Santo, embora agora tivesse de se socorrer dos meios que o Convento local de S. Francisco podia disponibilizar. Em relação aos dois conventos sobre os quais exercia tutela direta, a saber, o Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação e o de N.ª Sr.ª das Mercês, mostrou-se o bispo empenhado na observação criteriosa das normas da vida conventual, visitando-os com regularidade e zelando para que fossem garantidos os rendimentos necessários à subsistência das freiras. No tocante ao Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação, e talvez para dissipar a crispação que se estabelecera entre esta casa monástica e o seu antecessor, D. Fr. Manuel Coutinho mandou D. Fr. João que se instituísse uma capelania perpétua, a qual dotou com a quantia de três contos de reis anuais, a fim de que nela se rezasse missa diária por sua alma e a de seus familiares, tendo até estipulado que o sacerdote encarregado dessa celebração não poderia ser o capelão e confessor do Convento, o que daria às religiosas o privilégio do contacto com uma forma renovada de ouvir a palavra divina. Na gestão do corpo eclesiástico da sua Diocese, os cuidados de D. Fr. João do Nascimento dirigiram-se, por um lado, ao melhoramento das condições materiais para o exercício das funções, tendo conseguido a anuência real para o aumento dos ordenados do provisor e vigário geral, para o reforço das côngruas dos beneficiados de algumas das colegiadas, e para o sustento dos colegiais do seminário, instituição que protegeu e dotou de novo regimento. Apesar desta preocupação com o bem-estar do seu clero, o bispo não deixou de intervir com rigor quando o procedimento de alguns dos seus subordinados não se revelava correto. Foi o que aconteceu quando, estando o prelado já doente, em 1753, se registou um diferendo entre o cabido e o provedor da Fazenda a propósito de um embargo por este movido contra uma nomeação capitular. A queixa que o provedor apresentou a Lisboa foi prontamente atendida e, na sequência de uma recomendação régia para que o prelado mandasse averiguar responsabilidades, D. Fr. João do Nascimento não hesitou em mandar prender um cónego e o prioste na torre da Sé e um padre no Aljube. Por outro lado, esforçou-se por fazer os provimentos dos benefícios nos sujeitos mais capazes, não tendo tido, neste processo, os problemas que afetaram o episcopado do seu antecessor. Sensível à escassez de recursos humanos de que enfermavam algumas paróquias, o bispo também lutou pela criação de cinco novos curatos, apesar de alguns não terem chegado a ser ocupados em tempo da sua vida. Durante os 13 anos que durou o seu episcopado, foi D. Fr. João do Nascimento ainda convocado para desempenhar as funções de governador militar do arquipélago, cargo que ocupou, durante 4 anos, a partir de 1747. Enquanto responsável militar, foi solicitado a resolver a questão do envio de 200 soldados para acudir a Angola, a facilitar a ida para o Brasil de um conjunto de casais madeirenses, em resposta a um pedido do reino, e a gerir as prepotências perpetradas por alguns juízes ordinários que, nas relações com as partes que tinham de arbitrar, trocavam a justiça pela opressão. Em tais casos, não lhe tremeu a mão e mandou, inclusivamente, prender os prevaricadores, encarcerando-os em “Cadeias e Torres conforme a qualidade das pessoas” (SILVA, 1964, 254). Em 1748, durante o seu exercício do cargo de governador, foi o território da Madeira abalado por um tremor de terra que destruiu parte da cidade e não só, tendo-o obrigado à pronta adoção de um conjunto de medidas. Entre estas, contam-se a reconstrução do paço episcopal, tão severamente danificado que o prelado procurou reedificá-lo, desta vez nas imediações da Sé. As dificuldades na aquisição de um terreno para o efeito decidiram-no, porém, a recuperar o edifício primitivo, aí levantando a construção que sobreviveu. A destruição provocada pelo terramoto atingiu, igualmente, a igreja de N.ª Sr.ª do Monte, com cuja recuperação também o prelado se comprometeu, designadamente através da criação da Confraria dos Escravos de Nossa Senhora do Monte, estabelecida em todas as paróquias, a partir das quais se recolheram esmolas que muito ajudaram à recuperação do edifício. No lugar do Estreito de Câmara de Lobos também se fizeram sentir os efeitos do sismo e a igreja paroquial, que já se encontrava em processo de reconstrução, teve igualmente de ser intervencionada, embora a documentação existente remeta o protagonismo da campanha de obras mais para o pároco, Manuel Borges Alemanha, do que para a figura do prelado. A responsabilidade episcopal está, contudo, mais evidenciada na reparação de algumas fortalezas, bem como na edificação, de raiz, de um novo reduto militar – a Fortaleza de S. Francisco, em Santa Cruz. O desempenho de D. Fr. João do Nascimento como governador militar, tanto nas atitudes já referidas, como nas que assumiu em termos dos critérios utilizados para prover lugares de chefia militar, ou até, de subalternos, e que, à semelhança do que fizera em relação aos benefícios eclesiásticos, se pautaram pelo mérito, levou a que o exercício do cargo se prolongasse até agosto de 1751, altura em que foi substituído por D. Álvaro Xavier Botelho de Távora. Em dezembro desse mesmo ano, adoeceu gravemente com uma paralisia que lhe deixou comprometido o lado esquerdo do corpo, ainda que intacto o entendimento. Por conselho médico, procurou obter licença para se ausentar para o reino, na demanda de alívio para o mal que o afligia, mas a progressiva deterioração do seu estado de saúde, agravada por repetições dos ataques, acabou por inviabilizar a deslocação e por conduzir à sua morte, ocorrida a 5 de novembro de 1753. Depois de um episcopado pautado por um espírito rigoroso, mas não autoritário, por uma vida pessoal austera e regrada, por uma preocupação com os pobres, pelos quais fazia, frequentemente, distribuir esmolas, e por uma capaz chefia militar do arquipélago, foi D. Fr. João do Nascimento a sepultar na capela-mor da Catedral do Funchal, no findar do ano de 1753.   Ana Cristina Machado Trindade (atualizado a 03.03.2018)

Religiões

nau sem rumo

A História diz-nos que a Nau Sem Rumo é, hoje, o único testemunho perdurável das esquadras de navegação terrestres que marcaram o quotidiano do Funchal, entre finais do séc. XIX e princípios do século seguinte. Esta condição de única e mais antiga associação de boémia gastronómica apresenta-se como o antecedente da atual moda das confrarias gastronómicas, sendo o prato do repasto habitual das quartas-feiras o bacalhau. Não temos documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da Nau sem Rumo. Os primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, mas a associação existia já há muito tempo. A leitura dos livros de honra da associação revela-nos que a agremiação representava a arte de bem receber dos madeirenses, podendo ser entendida como a sala de visitas da Ilha, pois não havia visitante ilustre que aportasse ao porto que não tivesse, de imediato, franqueadas as portas da Nau Sem Rumo. A ligação da associação ao movimento do porto era permanente e a sua vocação marítima expressava-se por esta total abertura à hospitalidade dos que transitavam pelo porto. Palavras-chave: Nau Sem Rumo; Esquadras de navegação terrestre; Diversão; Boémia; Gastronomia.   A História diz-nos que a Nau Sem Rumo (NSR) é, hoje, o único testemunho perdurável das esquadras de navegação terrestre que marcaram o quotidiano do Funchal, entre finais do séc. XIX e princípios do seguinte. Esta condição de única e antiga associação boémia e gastronómica, que antecedeu a atual moda das confrarias gastronómicas, deve servir de alento para que não se perca este raro testemunho do quotidiano madeirense. A NSR assume um papel importante na história da Ilha e da cidade do Funchal, pois está sempre presente no quotidiano funchalense, foi o exemplo da hospitalidade madeirense. As inúmeras presenças de diversas individualidades nacionais e estrangeiras na sua sede são exemplo disso. A leitura dos livros de honra da NSR revela-nos que a agremiação representava a arte de bem receber dos madeirenses, podendo ser entendida como a sala de visitas da Ilha, pois não havia visitante ilustre que aportasse ao porto que não tivesse, de imediato, franqueadas as portas desta Associação. Os comandantes das embarcações, que assiduamente aportavam ao Funchal, eram sempre convidados da NSR, pois através deles fazia-se avivar o espírito marítimo. A Associação acolheu, em receção ou nos seus almoços, eminentes personalidades de visita ou de passagem pela Ilha. Políticos, cientistas, jornalistas, madeirenses ilustres emigrados, participavam, com frequência, nos pratos de bacalhau da NSR e não se faziam rogados nos elogios à mesa, nem ao espírito de camaradagem que unia todos os marinheiros reunidos para o repasto. O prestígio da NSR na sociedade madeirense era e é inegável, afirmando o visconde do Porto da Cruz, em 1952, que “Ao contrário do que o seu nome indica tem o seu rumo perfeitamente orientado, sendo um centro de recreio de ‘bons-vivants’ onde há a melhor e mais especializada cozinha que satisfaz os mais requintados epicuristas e além disso trás o propósito de desenvolver uma interessante obra social de assistência e de expansionismo regionalista” (VIEIRA, 2001, 10). A NSR foi, durante muito tempo, um dos principais cartões-de-visita para as personalidades que passavam pelo Funchal para uma curta escala ou estadia. A ligação da Associação ao movimento do porto era permanente e a sua vocação marítima expressava-se por esta total abertura à hospitalidade dos que transitavam pelo porto, sendo, em muitos momentos, como a principal expressão da hospitalidade dos madeirenses, que a todos brindava. Esta arte de bem receber foi testemunhada por muitos e atuou certamente como uma bandeira favorável à presença frequente de personalidades de diversa índole e de gente anónima. A todos o madeirense acolhia da melhor forma, portas adentro, nas casas ou quintas, e reservava-lhe a melhor cama e mesa. A origem desta Associação parte do ambiente cultural e boémio do séc. XIX funchalense. Assim, na segunda metade do século, generalizou-se a criação de clubes destinados ao recreio e distração dos sócios. Estes clubes primavam pela realização de bailes e soirées, que contavam com a participação de residentes e forasteiros. Aliás, era tradição destes clubes receber nas suas instalações as personalidades ilustres que passavam pela Ilha. Assim, em 1885, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens foram aclamados no Clube Funchalense e, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram obsequiados pelo Club Sport Madeira. Dos inúmeros clubes que organizaram o folguedo dos madeirenses entre a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do seguinte, podemos salientar os seguintes: Clube Económico (1856), Sociedade Club Económico (1856), Clube Recreativo (1856), Clube Aliança (1867), Sociedade Clube Funchalense (1872), Clube Restauração (1879), Clube Washington (1882), Clube União (1888), Clube Recreativo Musical (?-1900), Clube Recreio e Instrução (1892), Clube Internacional do Funchal (1896), Clube dos Estrangeiros (1897), Turf Club (1900), The Sports Club (1901), Stranger’s Club-Casino Pavão (1906), Novo Clube Restauração (1908), Clube Sports da Madeira (1910), Clube Sport Marítimo (1911), Clube Republicano da Madeira (1911) e Clube Naval Madeirense (1917). Não faltava ao madeirense imaginação para encontrar formas de diversão e de passar o tempo. Deste modo, na déc. de 80 do séc. XIX, afirmaram-se as chamadas esquadras de navegação terrestre. O seu espírito, porém, é muito anterior, pois desde a déc. de 40 da centúria sucedeu este tipo de confrontos lúdicos, tendo como base o confronto entre miguelistas e pedristas. Aqui, não estamos perante estruturas militares, mas sim de boémios que se juntavam sob a capa do ritual da marinha. Nas quintas, ergueram-se os mastros engalanados com bandeirinhas e uma peça de fogo. Ficaram célebres as quatro esquadras: Esquadra Torpedeira, Esquadra Submarina, Esquadra Couraçada e Esquadra Independente. O espírito era levado a sério, aparecendo os associados em atos públicos fardados a rigor. As atividades resumiam-se a alguns desfiles dominicais e nos dias feriados, passeios a pé ou ao longo da costa e, acima de tudo, aos assaltos combinados às adegas para o tão esperado repasto. O espírito da marinharia portuguesa em terra era assumido na sua plenitude e conduziu a alguns equívocos em 1901, com a visita do Rei D. Carlos. A partir de 1914, as dificuldades sentidas com a guerra refrearam a iniciativa das esquadras, provocando o apagamento das esquadras submarinas de navegação terrestre. Acabou o aparato de rua, e o movimento em torno dos mastros e miradouros transferiu-se para espaços recatados. As associações de boémios assumem este carácter interior, por vezes fechado e elitista. A grande aposta ficou para a mesa e jogos da fortuna e azar, que ajudavam a passar os fins de tarde e as noites. A NSR, cuja data de aparição não está devidamente revelada, ganhou dimensão a partir da déc. de 30 do séc. XX, retomando este espírito das esquadras submarinas de navegação terrestre, agora transferido para dentro de portas e tendo como palco a mesa e o bacalhau, seu inseparável amigo. Não temos documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da NSR. Apesar de a Associação existir há já muito tempo, os seus primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, por força de uma nova exigência do regime político. Note-se que era costume a data dos estatutos oficiais não coincidir com o início de funcionamento. Tomemos como exemplo alguns clubes: o Clube União foi fundado a 10 de março de 1836, mas os seus estatutos só foram aprovados pela Assembleia Geral a 20 de agosto de 1874 e pelo Governo Civil a 7 de fevereiro de 1879; o Clube Funchalense é de 3 de dezembro de 1839, mas os primeiros estatutos são de 18 de dezembro de 1876, tendo sido aprovados pelo governador civil apenas em 16 de fevereiro de 1877. O mesmo deverá ter sucedido com a NSR. As entrevistas feitas aos mais antigos associados dão a entender esta realidade. De acordo com o testemunho do Sr. José Egídio Barros, veterano da NSR, a Associação terá surgido por volta de 1917, quando o Com. José Gomes reunia regularmente um grupo de amigos num banco de jardim em frente do café A Brasileira, hoje edifício da Secretaria Regional do Turismo, na Av. Arriaga. Contudo, segundo informa Amadeu Ribeiro Saraiva, comandante do Funchalense, na visita que fez à NSR a 3 de janeiro de 1962, esta teria surgido em 1926: “Nas visitas à ‘Nau Sem Rumo’, de que fui um dos primitivos fundadores em 1926, verifiquei com muito agrado que do pouco mais de nada se levantou uma grande organização que me apraz registar como modelar e simpática, nela encontrando ainda alguns dos primeiros fundadores. Decorridos que são trinta e seis anos, esta ‘Nau’ não sossobra, – antes pelo contrário navega a todo o pano [...]” (Id., Ibid., 18). Oficialmente, a data de fundação da NSR foi atribuída à do primeiro registo da Associação, a 27 de maio de 1935, tal como se poderá constatar pelo regulamento de 1950. Assim, o dia 27 de maio ficou registado como o dia do aniversário da NSR. A NSR tardou em encontrar o porto seguro. A sua primeira sede foi no edifício do atual Museu da Quinta das Cruzes, partilhado com outras associações, passando depois, em 1928, com o Alm. Dr. Agostinho de Freitas, para a R. da Carreira. A partir daqui, vagueou por algumas ruas da cidade: R. dos Murças, Trav. do Nascimento e, finalmente, a R. 31 de Janeiro, onde varou em definitivo, a partir de 1941. A 27 de janeiro de 1945, inaugurou-se a nova sede, à R. 31 de Janeiro, onde permanece ainda hoje em prédio construído em 1940, por Raul Câmara. O ato de inauguração foi um momento importante na vida da Associação, contando com a participação das mais importantes individualidades da Ilha. De entre estas, podemos destacar: Dr. Fernão Ornelas, presidente da Câmara Municipal do Funchal; Dr. Félix Barreira, secretário-geral do Governo Civil; Com. João Inocêncio Camacho de Freitas, capitão do porto do Funchal; Eng.º António Egídio Henriques de Araújo, vice-presidente da Junta Geral; Dr. Humberto Pereira da Costa, diretor da Alfândega; e Fernando Rebelo Andrade, diretor da PIDE. As declarações do Dr. Fernão Ornelas, no livro de honra, dão o testemunho claro da solenidade: “As instalações da ‘Nau Sem Rumo’ revelam um espírito de iniciativa que não é vulgar no nosso meio. É grato, para quem tem posto o melhor carinho no progresso da cidade, verificar que no Funchal existe um club que seria uma grande realização em qualquer meio. Sinceros parabéns em nome da câmara” (Id., Ibid., 20). Igual ideia tinha o então inspetor da PIDE, Fernando Rebelo Andrade: “A Nau Sem Rumo deixa maravilhado pelo rumo que agora tomou não só pelas suas belas instalações, como pelo fim que proporciona a cada convidado que assiste aos seus esmerados jantares” (Id., Ibid., 20). Os livros de honra da NSR revelam-nos que a agremiação era entendida, como já referido, como a sala de visitas da Ilha: visitantes ilustres, comandantes das embarcações, eram sempre convidados da Associação, fazendo-se o espírito marinheiro da NSR. Um dos habituais convivas era o Alm. Sarmento Rodrigues, que muito se destacou na política e administração colonial. No período da Segunda Guerra Mundial, amainou o movimento de embarcações, mas não faltaram marinheiros na NSR. A este propósito, referia-se, em 1939, os comandantes de diversos navios comerciais gregos que permaneceram algum tempo atracados na Pontinha. Pelos salões da Associação passaram eminentes personalidades, de visita ou de passagem pela ilha. Políticos, cientistas, jornalistas, madeirenses ilustres emigrados, participavam, com frequência, dos repastos de bacalhau da NSR e não se faziam rogados nos elogios à mesa e ao espírito de camaradagem que unia todos os marinheiros. A NSR era uma associação masculina, não tendo nunca, entre os seus sócios, surgido alguém do sexo feminino, mesmo como sócio honorário. Todavia, a presença feminina é uma constante na lista de convidados. De entre as ilustres convidadas, destacam-se as inúmeras artistas que participavam nas quermesses dos clubes desportivos, como a Dr.ª Beatriz Franco de Almeida, que, em 1945, considerou a NSR como “uma coletividade com pontos de vista magníficos e de utilidade altamente comprovada” (Id., Ibid., 25). Porém, de todas estas visitas femininas, a mais notada foi a de Amália Rodrigues. A 23 de maio de 1948, a NSR engalanou-se para receber a ilustre fadista, que cantou e encantou da varanda o inúmero público que a seguia e lavrou no livro de honra a sua gratidão: “Agradeço a todos do meu coração este simpático almoço e Deus queira que não seja o último” (Id., Ibid., 25). O cantor Francisco José foi outro dos convidados da NSR, que deixou registado, em 1952: “Nau sem rumo, não concordo, tem o grande sentido da amizade e da boa camaradagem” (Id., Ibid., 24-25). Max, o célebre artista madeirense, tinha as portas franqueadas, mas só em 1955 e 1960 frequentou a Associação. Nesta última visita, deixou o seguinte pensamento: “A nau da minha terra é a nau do meu pensamento” (Id., Ibid., 26). Era frequente a presença de convidados do sexo masculino: artistas, jornalistas e políticos não escapavam à simpatia e arte de bem receber da guarnição. Em 1945, o Com. M. Sarmento Rodrigues, governador-geral de Angola, ficou de tal modo cativado que não hesitou em afirmar: “vejo nesta grande barca uma das mais nobres e simples manifestações de simpatia humana que tenho conhecido” (Id., Ibid., 26). E repetiu a experiência, passados 10 anos, já como ministro do Ultramar. Quatro anos mais tarde, a Ilha deu guarida, por algum tempo, ao deposto Presidente da República de Cuba, o Gen. Fulgencio Batista. A sua presença na Ilha não passou despercebida ao almirante que o homenageou na NSR, a 18 de dezembro de 1959. O general, sensibilizado, decidiu oferecer dois contos de reis para a quermesse de Natal e lavrou aquele que será o melhor testemunho sobre a NSR: “Nau sem rumo es para los que se orientan en la tierra la mejor nave para encontrar el rumbo, con la mágica brújula de su cordial Fraternidad, de lo que podría ser el hombre, en sus fundamentales actividades, por el progresso de la humanidad. Aqui deja el navigante eventual, que es el hosped bien recebido en Madeira, este recuerdo agradecido. Salud!” [Nau sem Rumo é, para os que se orientam em terra, a melhor nave para encontrar o rumo, com a bússola mágica da sua cordial Fraternidade, do que poderia ser o homem nas suas atividades fundamentais, com vista ao progresso da humanidade. Aqui deixa o navegador eventual, hóspede bem recebido na Madeira, esta memória agradecida. Saúde!] (Id., Ibid., 26). Havia entre os membros da NSR um particular reconhecimento pelos marinheiros de profissão, de modo que, de todos os militares da marinha ou tripulações das diversas embarcações que aportavam no Funchal, vinham também os maiores elogios. Em 1945, Fernando Moreira, comandante do Maria Cristina, não hesita em afirmar que esta foi “a maior organização que até hoje conheci, não tendo medo de afirmar (como marinheiro que conhece quase todo o mundo) única no seu género no globo” (Id., Ibid., 26). Muitos madeirenses, residentes ou de visita à Ilha, tinham as portas da Associação abertas e foram alvo de homenagem. Em 1946, o deputado Juvenal de Araújo disse que saía “encantado e penhoradíssimo. Mais vou com desejo de voltar” (Id., Ibid., 26). Contudo, não temos notícia de que tivesse regressado. Já o célebre psiquiatra Dr. Aníbal Faria, em 1947, sentia-se maravilhado com a viagem pelo facto de não ter enjoado nesta: “Estou como sempre enjoado a bordo... Necessito muitas e muitas viagens… como esta para me tornar valente marinheiro e... talvez um brioso rival do simpático almirante da Nau sem Rumo” (Id., Ibid., 26-27). A ligação e vocação marítima lusíada estava sempre presente no ambiente que envolvia os visitantes, nomeadamente no dos escritores. Foi o caso de Assis Esperança, que, em 1946, exclamava: “Foi numa nau que os portugueses cá vieram – e é numa nau ainda melhor que estes bons portugueses sabem ser amigos e sabem ser portugueses” (Id., Ibid., 27). E parece que estava no rumo certo, a fazer fé nas palavras de Hermínio Simões, em 1950: “‘Sem Rumo’!!! Não. [...] O rumo é certo porque com esta tripulação os ventos são sempre de... Feição” (Id., Ibid., 27). E, no ano imediato, Arthur Vieira Ávila explicava que “A Nau Sem Rumo foi para mim uma revelação de bom rumo que os seus dirigentes sabem dar à missão de amizade e fraternidade para com os seus conterrâneos. As amabilidades recebidas jamais serão esquecidas” (Id., Ibid., 27). Para a maioria dos convidados, era uma grande honra e um ato de reconhecimento social o almoço na NSR. Esta é a expressão que fica de muitas das opiniões, como se atesta nas palavras de um forasteiro do Brasil: “Sinto-me envaidecido e grato por ter participado de uma das suas viagens” (Id., Ibid., 27). Já para outros, é o sabor dos pratos degustados, desde o bacalhau aos mariscos, como era obrigatório na NSR, que fica na memória. Em 1959, Ana Maria de Amorim Ferreira de Sousa Moniz regista: “Desejo que esta nau continue a navegar com rumo para continuar a pescar mais lagostas tão boas como aquelas que comi esta noite” (Id., Ibid., 27). Carlos Areias, em 1961, não teme dar conta dos seus excessos: “Comi bem, bebi melhor. Já não estou com muito aprumo. Nunca mais posso esquecer o almoço na ‘Nau Sem Rumo’” (Id., Ibid., 27). Ou então um remate original, como o de Mário Nobre, em 1960: “Cantar em verso ou prosa a generosidade tradicional do almirante e tripulação da ‘Nau Sem Rumo’, quando recebem amigos e convidados, é lugar comum. Por isso limito-me a transmitir as seguintes palavras que constituem o meu melhor elogio: ‘Nesta nau embarco sempre [...]’” (Id., Ibid., 27). A NSR foi ainda um privilegiado interlocutor do intercâmbio de excursionistas com as Canárias. Note-se que, a 1 de novembro de 1959, os excursionistas do Real Club Nautico de Gran Canaria foram ali recebidos de forma festiva. Isto foi o início de um profícuo intercâmbio que levou alguns madeirenses a estas ilhas em 1962 e 1963. Por outro lado, entre as personalidades recebidas na Associação, destacam-se algumas do arquipélago vizinho, desde políticos e militares a jornalistas. A 7 de abril de 1947, a NSR homenageou o Gen. Garcia Escaner, capitão-general do arquipélago canário, a que se seguiu, a 9 de junho de 1955, uma homenagem a D. Joaquim Vileles Burgos, presidente da Sala de lo civil de la Audiencia Territorial de las Palmas. Em 1959, foi a vez do presidente do Real Club Nautico de Gran Canaria e, em 1960, o grupo folclórico de Tenerife, que esteve presente nas festas das bodas de ouro do Club Nacional. Também os cidadãos espanhóis da Península, de passagem pelo Funchal, foram alvo da hospitalidade da NSR, sendo de destacar o caso de Cristóbal Colon de Carvajal y Maroto, duque de Veragua, que, a 24 de abril de 1956, veio em busca do rastro do seu ancestral Cristóvão Colombo, que algumas centenas de anos antes havia também testemunhado e fruído da hospitalidade madeirense. A partir de finais da déc. de 60, parece ter esmorecido a tradição de bem receber os forasteiros e comandantes das embarcações que aportavam ao Funchal. Aliás nota-se, entre 1970 e 1991, um hiato em que ninguém se dignou registar, no livro de impressões dos visitantes, o testemunho da sua adesão ao convívio da tertúlia gastronómica. Desde então e até 2016, a lista de convidados incidia preferencialmente nos homens ligados ao mar, nalguns políticos ligados à autonomia e em poucos artistas. A NSR não encalhou com o 25 de Abril de 1974, e o interregno nas visitas evidencia apenas que se manteve virada para os associados. Esta capacidade de resistir ao ambiente politizado deve-se, segundo alguns dos seus associados, ao facto de a política não ter franqueado as portas da Associação e de todos os associados se absterem religiosamente dela ao entrarem no seu recinto. Aliás, esta era uma das recomendações fundamentais dos estatutos dos anos 50. O alheamento dos tripulantes relativamente à violência e inimizades do discurso partidário é considerado o principal fator de coesão e continuidade no último quartel do séc. XX, como a partir da déc. de 30, com o apertado sistema de controlo das associações existentes. A NSR terá nascido com o Estado Novo e conseguiu suplantá-lo em longevidade, sabendo sempre vencer a agitação da segunda República, sem se deixar contagiar. As palavras de agradecimento e enaltecimento do espírito da NSR e os opíparos almoços ou jantares, sempre de produtos do mar, encantam todos os gastrónomos. Aqui, nada falta, excepto, segundo o registo de Polybio Serra e Silva, de 3 de março de 1995, as mulheres: “Boa gastronomia, óptimo companheirismo [...] só faltam as mulheres […]” (Id., Ibid., 31). A NSR continua a ser ainda hoje a principal sala de visitas da Ilha, sendo para os forasteiros a melhor imagem da mesma. Deste modo, a 28 de dezembro de 1995, o Eng.º Rui Vieira não hesitava em afirmar que a “nau vale a ilha inteira […]” (Id., Ibid., 31). O então presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim, na visita que fez à Associação a 4 de março de 1994, registou: “Sinto-me honrado e feliz, por hoje estar numa confraternização da ‘Nau Sem Rumo’. Instituição que tanto simboliza e interpreta a cultura e o sentir do Povo Madeirense, no ambiente e trato que aqui se viveu. Durante decénios, e hoje também, verdadeira e representativa sala do bem receber e convívio madeirense. Sucesso de gerações ilustres que construíram esta terra. Vida e força para continuar o que somos” (Id., Ibid., 31). Para muitos dos associados, a presença e o carinho dos convidados de honra foram um fator de coesão e afirmação da NSR. Deste rol, constavam alguns dos comandantes do porto do Funchal, como Moura da Fonseca, Celestino Ramos Monteiro. Com estes, ombreavam outros verdadeiros homens do mar, como o Com. Cristiano de Sousa. O modo de funcionamento da NSR estava estabelecido num regulamento interno. O primeiro que se conhece é de 30 de abril de 1950, mas a sua versão definitiva só foi aprovada e publicada a 31 de janeiro de 1953, da qual se fez uma edição que passou a ser distribuída por todos os sócios. Em data posterior, ocorreram ainda outras reformas, que não alteraram substancialmente o espírito do regulamento inicial. Por imperativos de legislação, foi necessário assegurar a sua manutenção, dando-lhe personalidade jurídica, através da formalização da escritura dos novos estatutos, a 13 de maio de 1999. As atas das reuniões do Conselho de Estado Maior são a imagem do dia-a-dia da NSR. Aqui, discutia-se tanto a admissão de novos sócios, como os demais problemas quotidianos da Associação. A vida da NSR parece decorrer de forma normal nas décs. de 50 e 60, havendo apenas a notar um interregno em 1960. Assim, a última reunião deste ano decorreu a 23 de maio, só voltando a haver novo registo de reunião a 15 de junho de 1961. A admissão dos sócios obedecia a requisitos especiais. Estes últimos eram individualidades que, pelo mérito ou serviços prestados à NSR, adquiriam esta possibilidade mediante proposta do almirante e do Conselho do Estado Maior a apresentar em reunião deliberativa. Ouvido o Conselho de Estado Maior, o almirante podia ainda nomear os oficiais correspondentes, em qualquer país, estado ou cidade, aquelas pessoas de reconhecida categoria e idoneidade comprovada. Em assembleia geral de 11 de abril de 1959, foi criada a figura do sócio benemérito, para contemplar os que contribuíam para aumentar o património da NSR ou pelos seus relevantes serviços. Tal como refere o art.º 7.° dos estatutos, os sócios eram obrigatoriamente do sexo masculino: “Só poderão ser admitidas para sócios efectivos pessoas do sexo masculino, de comprovada idoneidade moral e civil, maiores, de qualquer profissão, independentes ou subordinadas [...]” (Id., Ibid., 73). Tirando isto, não havia qualquer exclusão na admissão de sócios por outros quaisquer motivos, estando mesmo permitido o acesso a estrangeiros, não obstante esta ser uma associação regionalista que tem como lema “da Madeira, pela Madeira”. Neste grupo, destacam-se alguns Ingleses residentes na Ilha. Todavia, o regulamento estabelece algumas limitações à presença de estrangeiros, uma vez que não podem ser almirantes, apenas vice-almirante, e ter assento no Conselho de Estado de apenas dois sócios. A tripulação da NSR, tal como se revela na lista de sócios, foi maioritariamente constituída por comerciantes da cidade, havendo entre ela advogados, jornalistas, empregados do comércio, guarda-livros, engenheiros, médicos, oficiais do exército e gerentes bancários. A Associação continua a manter esta tradição, sendo o ponto de encontro de gentes de diversas origens e profissões, juntando algumas das personalidades que mais se têm destacado no campo da política, comércio, medicina e construção civil. Estes dados revelam que a NSR não estabelecia qualquer impedimento relacionado com as convicções religiosas ou políticas dos candidatos. Todavia, uma regra fundamental do são convívio foi deixar à porta estas opções, fazendo com que o convívio fosse o mais correto, pois, tal como preceituavam os estatutos, “O respeito mútuo é obrigatório, sendo absolutamente proibidas quaisquer discussões de carácter político ou religioso [...]” (Id., Ibid., 73). Os candidatos eram apresentados por um sócio e, antes da decisão final pelo Conselho, os seus nomes publicitados no quadro durante 15 dias. Findo este prazo, se não houvesse oposição, eram discutidos e votados em reunião de Conselho do Estado Maior pelo sistema de bola branca e preta. O candidato só teria as portas franqueadas caso colhesse a totalidade de bolas brancas. Ao final da terceira tentativa, acabava a possibilidade de ser admitido, ficando na lista negra. O novo sócio, com o posto de grumete, estava obrigado ao pagamento de uma joia a estabelecer pelo Conselho. Para além disso, o candidato deveria submeter-se a uma prova de fogo, ficando em observação por algum tempo para ver se se adaptava à nova realidade e ao espírito da NSR. A primeira prova era o batismo na Associação, através de uma viagem gastronómica por sua conta. Este era um momento de grande importância, contando sempre com a presença de entidades públicas ligadas ao mar, como foi o caso do comandante do porto, convidado, em fevereiro de 1962, para a cerimónia de batismo dos novos grumetes. A partir daqui, era-lhe atribuído um número de sócio e procedia-se ao seu lançamento no livro de bordo. A entrada de novos sócios fazia-se por contágio dos amigos. É o testemunho dos sócios amigos e os eventuais convites para visitar a Associação que aliciam os novos associados. A amizade e a boémia eram contagiantes. Fala-se que, durante muito tempo, a NSR foi um importante ponto de encontro de empregados e patrões de empresas ligados às ferragens. Esta representação empresarial fazia com que a Associação fosse um lugar para se concretizar alguns negócios. A primeira lista dos sócios só foi organizada a partir de 1942. O primeiro livro de bordo, isto é, o livro de registo dos sócios, apresenta 58, sem data de entrada, sendo anteriores a 1 de outubro de 1942, data em que se registou a entrada do novo sócio, João M. F. Ribeiro, bibliotecário da Alfândega do Funchal. Apenas o sócio 178, Vergílio Pedro Rodrigues Pimenta, tem a indicação da data de admissão, 26 de abril de 1930. De acordo com o testemunho de alguns associados, a primeira lista teria sido elaborada em 1940. Os livros de registo dos sócios, disponíveis na sede da NSR, apresentam 479 associados, mas o grupo de efetivos foi sempre menor, uma vez que muitos foram forçados a desistir, por saírem da Região ou por outros motivos. Facto significativo é o número de desistências, que chega aos 50% do grupo, o que quererá dizer que muitos dos sócios não demonstraram destreza na viagem. A NSR era um espaço de amizade e camaradagem, dizem-nos os estatutos e as declarações de muitos convidados, pelo que todos aqueles que atentavam contra este espírito eram expulsos. No total, foram assinaladas 12 ordens de exclusão da Associação. Também os associados com dívidas, caso não as saldassem, se sujeitavam a serem suspensos e impedidos de entrar na sede. A 12 de abril de 1972, o Conselho deliberou suspender a admissão de novos sócios, situação que se manteve até 1974. Quanto a admissões, 1944 é o ano que regista o maior número de novos sócios. As dificuldades da Segunda Guerra Mundial não afastaram os madeirenses da NSR, que continuou a ser um dos raros espaços de encontro e diversão da cidade. Aqui, também transitaram informações, a soldo da espionagem dos beligerantes. Se excluirmos o período de 1974 a 1977, podemos afirmar que, nas últimas décadas, a NSR terá perdido o interesse e a adesão que outrora provocara na maioria dos funchalenses. Os motivos de diversão são hoje diversificados e as tertúlias gastronómicas têm proliferado. A guarnição da NSR era constituída pelos grumetes e pelo Conselho de Estado Maior. O comando era da responsabilidade deste último, sendo representado pelo almirante e vice-almirante. Sob a dependência do almirante, estavam os oficiais da guarnição, a quem competiam os serviços de bordo. Na primeira listagem dos associados anteriores a 1942, os cargos de serviço estavam assim distribuídos: capitão, imediato e capelão. Todavia, informações dos associados indicam que o primeiro almirante foi Agostinho de Freitas. Já em 1959, a estrutura é distinta: tesoureiro, secretário, restaurante e bar. A estes, juntou-se, em 1961, o responsável pelas contas correntes. Em 1963, os serviçais tinham já categorias distintas: tesoureiro, secretário, comissário e vogal. O número um da lista de sócios é o jornalista Elmano Vieira, que surge na condição de almirante. Aliás, foi ele quem teve a iniciativa de, em 1935, solicitar ao Governo Civil a aprovação dos estatutos. Note-se que o primeiro almirante terá sido, como referido, Agostinho de Freitas, a que sucedeu Elmano Vieira, que, segundo testemunhos, esteve à frente da NSR entre 1934 a 1943, sendo substituído por António Maria Fernandes Nunes. Diz a tradição que os almirantes só são depostos por morte, o que indicia uma prática de atribuir ao cargo um carácter vitalício. A eleição do almirante ocorria sempre no momento em que se procedia à do Conselho de Estado Maior, cujo mandato era anual. Este era composto por cinco sócios, eleitos a partir de uma lista proposta pelo almirante cessante. Era de entre estes que o almirante escolhia o seu braço direito, o vice-almirante. O ato eleitoral fazia-se escolhendo o Conselho uma lista de 15 associados, que era exposta no quadro. No dia assinalado, de entre estes escolhia-se os cinco mais votados para exercer as funções. Apenas uma vez, em 1995, por iniciativa de um sócio, foi decidido em assembleia geral reconduzir todo o Conselho de Estado. Concluída a eleição, o almirante procedia à escolha do vice-almirante de entre os eleitos. As eleições eram sempre um momento grande na vida da NSR. A 3 de fevereiro de 1962, o redator da ata foi profícuo na descrição da ambiência festiva que rodeou mais um ato eleitoral. Após a viagem, isto é o jantar, procedeu-se à votação e contagem dos votos, tendo sido eleito como almirante, para o triénio de 1962-1964, António F. Nunes. E remata-se: “[…] e no meio de grande euforia, foi esta viagem dada por finda, [...] fazendo todos votos, para que os destinos desta Nau Sem Rumo sejam sempre bem governados e dirigidos [...]” (Id., Ibid., 44). De acordo com o testemunho de alguns associados, o ato de posse acontecia sempre com todo o rigor, posando os membros da direção fardados com boné, jaqueta e divisas. Tudo isto à boa maneira das esquadras de navegação terrestre. Hoje, é uma tradição que se perdeu. O Conselho de Estado Maior tinha um papel fundamental no funcionamento da NSR, pois a ele competia o bom funcionamento da Associação, tomando conta do bar e restaurante, e também a iniciativa de organizar reuniões e encontros de carácter cultural e científico. O Conselho podia nomear mensalmente dois sócios, conhecidos como oficiais da guarnição, a quem competia preparar os dois repastos semanais e zelar pelo bom funcionamento do bar e pela escrituração da receita e despesa. Com a aprovação dos estatutos e respetivo registo notarial, em 1999, a NSR passava a ser regida da mesma forma que as demais associações. A obrigação legal de adequar a NSR ao regime legal das associações não quebrou a forma de funcionamento e estrutura peculiar que sempre regeu os seus destinos e que a aproxima da vivência marítima. Deste modo, a estrutura hierárquica de mando continua a manter a terminologia antiga e a tradição, fazendo da Associação uma esquadra de navegação terrestre que teima em sentar-se à mesa todas as quintas-feiras. Os encontros da guarnição na NSR eram conhecidos como viagens. Em ata de 9 de fevereiro de 1963, regista-se o seguinte: “[…] fez-se uma viagem na Nau Sem Rumo [...] fazendo parte da viagem [...] dezanove tripulantes” (Id., Ibid., 53). Era uma viagem em terra, ou melhor, utilizando os termos atuais, uma viagem virtual. Estes foram e continuam a ser os momentos cruciais da vida da Associação. Aconteciam no salão próprio do segundo andar e tinham por palco a mesa e o fiel amigo por companhia. A ementa estava a cargo dos oficiais de serviço que a preparavam, de acordo com a lista de inscritos e de convidados. As reuniões aconteciam sempre duas vezes por semana, ao almoço de quinta-feira e jantar de sábado. Esta última era conhecida como viagem e, segundo os estatutos, “destinava-se a estabelecer o convívio da Guarnição e a estreitar a amizade entre os sócios, formando um ambiente de melhor confraternização” (Id., Ibid., 54). As viagens contavam, para além da guarnição com convidados, de alguns dos associados ou convidados de honra do Conselho de Estado Maior. Os primeiros deveriam ter anuência do órgão máximo. O sócio que formulava o convite era “responsável por todos os actos do seu convidado ocorridos dentro da sede e pelo pagamento de todas as despesas que o mesmo faça” (Id., Ibid., 54). Já os convidados de honra eram da exclusiva competência do almirante e do Conselho de Estado Maior, com prévio conhecimento dos sócios. Este deveria ser “pessoa de reconhecida categoria social, ou entidade oficial, portuguesa ou estrangeira” (Id., Ibid., 54). A estes acresce a deliberação do Conselho, em 1963, em associar-se à iniciativa do dia do turista, convidando quatro estrangeiros ligados a assuntos do mar para o jantar das quartas-feiras no mês de abril. As viagens da NSR não se resumiam ao repasto, pois, por diversas vezes, aconteciam outras atividades, como conferências. O regulamento assim o estabelecia: “Organizar conferências, palestras culturais, reuniões de carácter económico, literário ou científico, trazendo à sede, sob convite e para tal fim, pessoa ou pessoas de qualquer sexo, nativa ou estranha à terra, mas, previamente, deverá comunicar ao Almirante o carácter do assunto ou assuntos a apresentar” (Id., Ibid., 55). Todavia, estas não eram usuais, pois apenas temos notícia de uma, no jantar de 7 de maio de 1960, em que o Dr. Manuel Romão Boavida foi convidado a proferir uma conferência, que depois foi editada com o apoio da Delegação de Turismo. Note-se ainda o empenho da NSR nas festas que anualmente animavam a passagem de ano. Muitos dos associados participaram ativamente na comissão, angariando as magras verbas para custear o fogo-de-artifício e as iluminações. Muita da animação e brilhantismo que deu corpo ao principal cartaz turístico teve nos obreiros da NSR a sua origem. O visconde do Porto da Cruz é testemunho disso: “As festas do Fim-do-Ano devem à ‘tripulação’ da Nau-Sem-Rumo, e muito especialmente a seu ‘Almirante’ Nunes, o empenhado esforço de lhes imprimir o máximo brilhantismo, que satisfaça os madeirenses e os visitantes que de todo o mundo fazem por ir assistir à feérica noite de São Silvestre ao Funchal” (Id., Ibid., 55). A partir de 1986, temos referência ao passeio anual de convívio dos sócios, no mês de outubro. Os testemunhos de alguns sócios evidenciam que a tradição era antiga, sendo mantida pela Associação, que organizou sempre as suas excursões a locais de interesse, como o Caniçal e as Desertas. Nos últimos anos, as escolhas recaíram na Feira do Gado, no Porto Moniz, Achada do Teixeira, Bica da Cana. O encontro da tripulação e familiares em lugares aprazíveis da Ilha tem sempre como principal motivo uma farta mesa, preparada com esmero por um dos associados. Sendo a mesa o centro de toda a atividade da NSR, é natural que a Associação apostasse, desde o início, no esmero do cardápio, através da contratação de verdadeiros mestres da culinária – a este propósito, ficou para a história da NSR o cozinheiro João Valério Gomes. A abnegada dedicação à causa da NSR, saciando o voraz apetite dos associados, persiste ainda hoje na memória de todos. E, para a história, ficam também os seus pratos especiais, como a sopa de peixe e o bacalhau empacotado. Para muitos, a continuidade da NSR, em alguns dos momentos periclitantes, deve-se à sua douta capacidade de cativar os associados com ementas especiais. O menu das quintas-feiras sempre manteve a tradição do bacalhau, enquanto ao sábado a guarnição delega nas mãos do chefe de cozinha a escolha de entre os variados produtos do mar para encontrar o repasto adequado. Sem ser uma academia do bacalhau, a NSR fez com que o fiel amigo ficasse como o inseparável companheiro dos almoços de quinta-feira. Na voz dos associados, novos e velhos, houve, repetidamente, “sempre e sempre sopa de peixe e bacalhau” (Id., Ibid., 56). As cavalas de molho de vilão e outras variedades de peixe faziam a diferença. Ao longo da história da Associação, só temos documentada uma refeição feita por cozinheiros exteriores, o que sucedeu a 27 de maio de 1974, com o jantar do 39.º aniversário, um buffet servido pelo Hotel do Carmo. A sede da Associação era também o local predileto para os associados receberem os amigos e convidados, em ameno jantar ou almoço, pois era a casa de todos e estava sempre aberta para estas ocasiões. As obras realizadas na sede, entre 1979 e 1981, quebraram o ritmo das viagens na NSR, contudo, a 15 de maio desse ano, a Associação retomou a tradição, com uma baixa de vulto, o cozinheiro Valério. A partir de então, a mesa tornou-se animada aos almoços de terça-feira, quinta-feira e sábado e aos jantares de sábado. O convívio dos sócios não se resumia aos repastos e às ocasionais receções aos convidados, sendo a sede um permanente espaço de encontro da guarnição. A NSR oferecia, desde fevereiro de 1960, a assinatura de algumas revistas e jornais. Também estavam disponíveis vários jogos, com que se entretinham os sócios ao final da tarde. Sabe-se que, em 1966, havia um diretor de jogos responsável por estas atividades lúdicas da guarnição. De entre os jogos, refere-se, em 1961, o jogo de cartas “o barato”, a canasta e a bisca de nove. No caso de “o barato”, cada jogador pagava 10$00 e, caso a sessão se prolongasse para além da 1 h, estava sujeito a uma taxa de 10$00 por cada duas horas. Quanto aos demais jogos, o pagamento era de apenas de 2$00. O jogo e o convívio eram companheiros de uma bebida e dos famosos “dentinhos”, petiscos e coisas para picar, estes estipulados pelo Conselho de 1961. De acordo com a então nova tabela de preços, aprovada em sessão de 13 de maio de 1965, sabemos que o bar era seleto, sendo preenchido com bebidas espirituosas estrangeiras. Na memória de muitos, estão ainda presentes os almoços de quinta-feira, onde a diversão se poderia prolongar até à manhã do dia seguinte. Também o jogo da bisca, as histórias e anedotas do João Teixeira, conhecido como o “malcriado”, regados com álcool, tornavam as noites curtas. A NSR não pode, de modo algum, ser considerada apenas um clube onde se bebe e come, pois as suas atividades alargavam-se à formação dos próprios associados ao propiciar momentos de lazer, como passeios na Iha e fora dela. De entre as iniciativas mais relevantes, releva-se as excursões a Tenerife, entre 28 de abril e 5 de maio de 1962 e em março de 1963. Para a primeira, foi nomeada uma comissão e solicitado ao gerente da Empresa Insular de Navegação as possíveis facilidades a bordo do Funchal, para tornar mais agradável a viagem, de facto, à tripulação da NSR. A Associação demonstrava também o espírito filantrópico através do apoio às crianças oriundas das famílias mais desfavorecidas. Uma das iniciativas de grande relevo que ainda persiste é o mercado de Natal da NSR, que tem lugar num dos sábados do mês de dezembro de cada ano, numa organização das esposas dos associados. Este mercado era e é constituído com as dádivas dos associados, amigos e comerciantes, revertendo o dinheiro do leilão em benefício das crianças do Auxílio Maternal, assim o determinava o Conselho a 30 de novembro de 1961: “o produto reverte a favor das crianças nossas protegidas, que são as do Auxílio Maternal” (Id., Ibid., 59). Outra iniciativa irregular era a colónia balnear infantil da NSR, também dedicada às crianças pobres. O regulamento refere ainda a existência de um fundo para apoio “aos pobres envergonhados, principalmente às crianças sem amparo” (Id., Ibid., 7). Este fundo era recolhido numa caixa que circulava em todos os jantares da Associação. Os estatutos posteriores a 1953 referem outro fundo destinado à concessão de uma bolsa de estudo. Em 1972, temos uma ideia da aplicação destes fundos. Assim, o mercado de Natal rendeu 72.875$10, tendo-se aplicado 63.000$00 no Auxílio Maternal, 6000$00 para donativos particulares e 8075$10 para o fundo de Assistência da NSR. De acordo com os estatutos de 1950, as insígnias da Associação consistiam num emblema de lapela e um estandarte de mastro ou vara metálica. “O emblema é representado por uma roda de leme com uma caravela amarela ao centro e entre aquela e esta uma auréola de cor azul-marinho. O estandarte é de forma triangular e nele predominam as cores da cidade – fundo amarelo, uma linha horizontal e outra vertical de cor roxa cruzadas ao centro do emblema, que é colocado no lado esquerdo do corpo do estandarte” (Id., Ibid., 60). Este último foi inaugurado, de forma festiva, no dia 1 de novembro de 1959. Alberto Vieira (atualizado a 03.03.2018)

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mouros

As populações árabes e os berberes oriundos do noroeste de África eram identificados como mouros. O termo mouriscos, por sua vez, era aplicado aos muçulmanos batizados. Ambos os grupos marcam presença na Madeira, dada a proximidade da Ilha à costa africana e os vínculos que se criaram entre o Funchal e a praças portuguesas aí estabelecidas. Palavras-chave: escravos; ataques corsários; batalhas; Norte de África.   Nome dado às populações árabes e aos berberes oriundos do noroeste de África. O termo “mouriscos”, por sua vez, era aplicado aos muçulmanos batizados. Ambos os grupos marcaram presença na Madeira, dada a proximidade da Ilha à costa africana e dos vínculos que se criaram entre o Funchal e as praças portuguesas aí estabelecidas. Perante o Tribunal do Santo Ofício, mourisco era, muitas vezes, sinónimo de professo do islão e não se confundia com a ideia de escravo, na medida em que era numeroso o grupo de mouriscos alforriados ou livres. Ao contrário, aos mouros, passou a estar associada a noção de escravo. As condições particulares da presença portuguesa no Norte de África definiram para este mercado madeirense uma forma peculiar de intervenção. Os escravos eram os presos de guerra resultantes das múltiplas pelejas em que se envolviam Portugueses e mouros. Para os madeirenses que defenderam com valentia a soberania portuguesa nessas paragens, os escravos mouros eram, ao mesmo tempo, um prémio e um testemunho dos seus feitos bélicos. Os principais obreiros do reconhecimento e ocupação da Madeira, como criados da casa do infante D. Henrique, foram impelidos para a aventura africana, destacando-se nas viagens henriquinas de 1445 e 1460 e nas aventuras bélicas nas praças norte africanas, nos sécs. XV e XVI. O capitão de Machico, Tristão Vaz Teixeira, participou pessoalmente numa das expedições de 1445, e João Gonçalves Zarco mandou duas vezes uma caravela, sob comando do sobrinho Álvaro Fernandes. Enquanto Zarco interveio apenas para bem servir o infante, Tristão Vaz fê-lo por “bom desejo para serviço do infante e muito ao seu proveito” (VIEIRA, 1991, 22). Mas Álvaro Fernandes, escudeiro da casa do mesmo senhor, armou caravela “por fazer alguma cousa de sua honra” (Id., Ibid.). Os filhos dos primeiros povoadores madeirenses evidenciaram-se, também, em diversas façanhas bélicas nas praças marroquinas e no oriente, guiados pelo ideal cavaleiresco e interesses económicos. Nas praças marroquinas, intervieram várias casas madeirenses, com especial relevo para os Câmara, os Abreu, os Correia, os Bettencourt, os Dória, os Freitas, os Lomelino, os Vasconcelos, os Ornelas, os Catanho e os Moniz, entre outros. Os Câmara, nomeadamente João Gonçalves, segundo capitão do Funchal, e Simão Gonçalves, terceiro da capitania, marcaram bem a sua presença nestas praças, empenhando nelas os seus haveres e aplicando aí as suas capacidades militares. A participação madeirense no norte de África não se resumiu ao apoio humano efetivo nas diversas campanhas de defesa das respetivas praças, mas também no provimento de cereais e materiais de construção para as diversas fortificações aí implantadas. Todas as despesas inerentes ao socorro das praças foram custeadas com as receitas dos direitos do açúcar. Só em 1508, com o envio de uma armada de socorro a Safim, despenderam-se as receitas da venda de 963 arrobas de açúcar dos direitos reais, enquanto em 1514 se gastaram 83$815 reais. A Madeira, porque próxima do continente africano e envolvida no seu processo de reconhecimento, ocupação e defesa do controlo da Coroa portuguesa, tinha as portas abertas ao comércio de escravos. Deste modo, a Ilha e os madeirenses destacaram-se, nas primeiras centúrias da ocupação da Madeira, pelo seu empenho na aquisição e no comércio desta pujante e promissora mercadoria do espaço atlântico, os escravos. À Ilha chegaram os primeiros escravos guanches (Canárias), marroquinos e africanos que contribuíram para o arranque económico do arquipélago. Este comércio entre a Ilha e os principais mercados fornecedores existiu e foi, em alguns momentos, fulgurante. Ignoramos, todavia, o número de escravos de diversas origens étnicas que entraram na Ilha: as lacunas documentais para os sécs. XV a XVII não permitem a conhecê-lo. De facto, faltam os respetivos registos de entrada da Alfândega do Funchal e as atas notariais. No séc. XIV e inícios do seguinte, o principal mercado de escravos situava-se no mar Mediterrâneo, sob a égide dos mercadores venezianos, mas, a partir de meados do séc. XV, o movimento foi orientado, por iniciativa portuguesa, para o Atlântico. A penetração portuguesa no continente africano, primeiro no norte, em Ceuta (1415) e depois ao longo da costa, a partir da passagem do Bojador (1434), contribuiu para a posição hegemónica dos Portugueses no tráfico de escravos na costa ocidental africana. Os escravos que surgiram no mercado madeirense eram, na sua quase totalidade, de origem africana, sendo reduzidas ou nulas outras proveniências. Apenas o mercado africano, onde se destacava a extensa costa ocidental em poder dos Portugueses, não foi alvo de quaisquer proibições. Aí, as únicas medidas foram no sentido de regular o tráfico, como atestam os contratos e arrendamentos de escravos. O litoral atlântico do continente africano, definido, num extremo, pelas Canárias e costa marroquina e, noutro, pela costa e golfo da Guiné e Angola, era a principal fonte de escravos. A Madeira foi buscar aí a mão de obra necessária para a cultura dos canaviais. Primeiro, foram os escravos das Canárias e de Marrocos, depois, os negros da Guiné e de Angola. Na costa africana, para lá do Bojador, os meios de abastecimento de escravos eram outros. De início, interveio-se violentamente, por meio de assaltos e razias; em seguida, estabeleceu-se um trato pacífico com as populações indígenas. Todavia, um dos meios mais importantes de aquisição de escravos era o corso marítimo nas áreas adjacentes ao mundo muçulmano. Até à definição da rota atlântica para o comércio de escravos negros, a fonte de abastecimento era quase somente as iniciativas de corso no estreito de Gibraltar, as incessantes incursões nas Canárias e os prisioneiros da guerra de cruzada contra os muçulmanos, na Península Ibérica ou em Marrocos. A guerra de corso foi uma prática comum nas primeiras décadas do séc. XV, intervindo nela homens como João Gonçalves Zarco. A tradição diz-nos que terá sido numa destas ações que ele conheceu, pela primeira vez, o arquipélago da Madeira. Aliás, desde 1433, os infantes D. Pedro e D. Henrique usufruíram da isenção do quinto do valor das capturas realizadas, devido à Coroa. Com a tomada de Ceuta, em 1415, abriu-se a possibilidade de novas fontes de abastecimento de escravos. Os cronistas do séc. XV e XVI relevam o ativo protagonismo dos madeirenses na manutenção e defesa das praças em Marrocos. A principal aristocracia da Ilha fez delas um meio para o reforço das tradições da cavalaria medieval, uma forma de serviço ao senhor e uma fonte granjeadora de títulos e honras. Essa ação tornou-se evidente e determinante para a sua presença, na primeira metade do séc. XVI, destacando-se, no contexto, diversas armadas de socorro a Arzila, Azamor, Mazagão, Santa Cruz de cabo Gué e Safim. Aí, assumiram especial função os capitães do Funchal e de Machico, bem como a aristocracia da Ribeira Brava e do Funchal. Foi também a Madeira quem abasteceu estas praças, durante algum tempo, dos cereais necessários à manutenção das gentes. O mesmo sucedeu com o tabuado e a cal para a construção ou reparo de fortalezas. Na déc. de 70 do séc. XV, num momento em que a Madeira se debatia com a quebra da produção cerealífera, este provimento às praças marroquinas e feitorias da costa da Guiné passou a ser assegurado pelos Açores, mantendo-se, no entanto, a Madeira como centro redistribuidor. A dupla intervenção da Ilha no provir das praças marroquinas e portos da costa além do Bojador terá contribuído para a abertura das rotas do comércio de escravos daí oriundos. No caso das praças de Marrocos, a presença assídua dos madeirenses na sua defesa trouxe-lhes algumas contrapartidas favoráveis em termos dos prisioneiros de guerra. Daí terão resultado os escravos mouriscos encontrados na Ilha. Gaspar Frutuoso refere, a propósito da ilha de São Miguel (Açores), que, em 1522, quando do sismo e derrocada de terras que soterraram Vila Franca do Campo, o grupo de escravos mouros que o capitão Rui Gonçalves da Câmara e acompanhantes detinham era numeroso; ora estes, anos antes, haviam ido socorrer Tânger e Arzila. Idêntico foi o comportamento dos madeirenses que participaram, com frequência, nestas campanhas. Os mouros surgiram com maior incidência no Funchal e Ribeira Brava, áreas ondes as personalidades principais mais se distinguiram nas guerras marroquinas. Eles situam-se quase que exclusivamente no séc. XVI, se excetuarmos um caso isolado no Funchal, na déc. de 30 do séc. XVII. Isto resultou das medidas restritivas à posse de escravos dessa origem estabelecidas pela Coroa a partir 1597. A intervenção madeirense nas praças marroquinas aproximou os corsários argelinos da costa do arquipélago, podendo esta ser entendida como uma ação de represália. Eles surgem com assiduidade a partir de 1566, sendo de referenciar, em 1617, o assalto às ilhas de Porto Santo e Santa Maria. Da primeira ilha, levaram como cativos 900 vizinhos, escapando apenas 18 homens e 7 mulheres. O tratamento dado a estes cativos era quase idêntico ao dos escravos da civilização ocidental. O que os diferenciava era a possibilidade que lhes era dada pelos marroquinos, de alcançarem a liberdade antes de entrarem no mercado de escravos, caso fosse possível o pagamento do resgate. A gravidade do assalto de 1617, mercê do avultado espólio, motivou uma ativa intervenção da Mesa de Consciência e Ordens. A celeridade procurada para a resolução do resgate devia-se à presença de inúmeras crianças entre os prisioneiros, temendo-se a sua conversão ao islamismo. O resgaste de cativos era feito pelos alfaqueques. No caso do assalto de 1617, eram frades, Fr. Paulino da Apresentação e Fr. André de Albuquerque. Os contactos entre as partes interessadas faziam-se em Ceuta, Argel e Valença, onde se estabeleciam as formas de resgate. Ele poderia consistir numa troca mútua de cativos ou no pagamento de uma certa quantia em dinheiro. O dinheiro para esta rendição era resultado das esmolas, legados, rendas e multas, e era reunido, pelo mamposteiro-mor dos cativos, no “cofre dos cativos”. Todavia, dos cativos do Porto Santo de 1617, 200 atingiram a liberdade por outros meios, pois o navio que os conduziu à costa da Berberia naufragou e eles foram recolhidos por embarcações portuguesas. Mas nem todos tiveram igual sorte e, em 1656, ainda se providenciava a libertação de cativos do Porto Santo. Alguns porto-santenses entregaram ao governador da Ilha o dinheiro necessário para que, em Lisboa, se providenciasse o resgaste, o que nunca aconteceu. Também as vizinhas ilhas de Lanzarote e Forteventura foram alvo de incessantes assaltos mouros que causaram inúmeros problemas às populações de ambas as ilhas. Gaspar Frutuoso descreve um assalto a Lanzarote, em 1586, mas outros tiveram lugar na centúria imediata. O mesmo autor refere que os lanzarotenhos “são leais a Portugueses e a Castelhanos, e inimigos de mouros da Berberia, aonde vão fazer muitos saltos e trazem muita presa deles, que vendem para a ilha da Madeira” (Id., Ibid., 40). Note-se que o senhorio destas ilhas usufruía do quinto das presas feitas na Berberia. A partir de 1566, estabeleceram-se entraves a estas entradas e, em 1572, ficou exarada a sua total proibição, como forma de evitar as represálias que tinham tido local nesta segunda metade da centúria. A par da organização de armadas castelhanas para saque na área da Berberia, surgiram outras, para resgate dos cativos. Situação semelhante teve lugar em Portugal, em 1461, com a proibição da posse de escravos mouros. A proximidade das ilhas das Canárias à costa africana e as incursões à Berberia para capturar escravos conduziram à valorização deste grupo étnico nas Canárias, havendo em Lanzarote e Forteventura mais de 1500 escravos oriundos daí. Também em Grã Canária e Tenerife eles eram numerosos, como levam a crer as incessantes intervenções do cabido contra a sua presença: primeiro, em Tenerife, no ano de 1530 e, depois, na Grã Canária, em 1541. Diferente foi a situação da Madeira, onde eles não ganharam expressão significativa. Este mútuo temor de represália dos mouros condicionou o comércio e a presença de escravos também mouros, na Madeira e nas Canárias. No caso madeirense, o abandono de algumas praças, no período de 1541-1550 (Alcácer Ceguer, Arzila, Azamor, Safim e Santa Cruz), será um dos fatores que contribuíram para o paulatino decréscimo do número de mouros, que, num e noutro caso, foram substituídos, em condições mais favoráveis, pelos da costa da Guiné. Facto curioso é que o desinteresse canário-madeirense pela rota marroquina de escravos coincide, precisamente, com o avolumar das investidas de represália às ilhas de Lanzarote, Forteventura, Porto Santo e Santa Maria. A partir desta data, inverte-se a situação, surgindo os ilhéus, como vimos, na condição de cativos ou escravos dos mouros. Não obstante os números sobre a presença desta população, na condição de livre ou escrava, serem escassos, são vários os vestígios que revelam a sua permanência no arquipélago. A capela de N.ª Sr.ª da Penha de França (Faial) foi instituída em 1680 por António Teixeira Dória, no local onde, segundo a tradição, terá funcionado uma mesquita clandestina dos escravos mouros. De origem tipicamente mourisca são, no vestuário, o capuz e, na alimentação, o cuscuz e o bolo do caco. Há ainda quem aponte o borracho ou odre como sendo de origem norte africana, o mesmo sucedendo com a canavieira ou roca. Todavia, ainda está por saber se esta importação derivou da presença dos escravos mouros no arquipélago ou das assíduas deslocações dos madeirenses a África, em defesa das fortalezas portuguesas aí existentes. É no Porto Santo, a exemplo do que sucede na ilha de Santa Maria, nos Açores, que se nota uma maior influência, havendo bastantes razões para que isso aconteça. Neste ponto, merecem especial referência os incessantes assaltos de corsários argelinos que, por diversas vezes, levaram como reféns os habitantes da ilha (por exemplo, em 1616). O cativeiro poderá ter sido o meio mais eficaz para a assimilação da tradição do Norte de África. Por outro lado, estes elementos etnográficos de afinidade norte africana poderão ter vindo com os primeiros colonos algarvios, também permeáveis a tais influências. Na toponímia madeirense, a presença dos mouros pode ser testemunhada através dos nomes de alguns acidentes geográficos. Assim, temos o Lombo do Mouro (Paul da Serra), a Cova do Mouro (Porto Moniz), a Cova do Moirão (Arco da Calheta e Serra de Água) e a Furna do Mouro (sítio do Pomar Novo). Já a rua da Mouraria e das Pretas, na cidade do Funchal, terá uma origem diferente: a investigação levada a cabo por Ernesto Gonçalves aponta para que este nome decorra do apelido de pessoas que aí viveram e não da existência de um bairro de “mouros” e “pretos”, coisa que nunca existiu na Madeira. Neste sentido, vale a pena indicar que persistem na tradição oral duas expressões: “há mouro na costa” e “vai-te p’ra Argel”. A primeira, dá conta da permanente insegurança dos insulares, devido às investidas de corsários, em especial, oriundos do Norte de África. O séc. XVII foi o momento mais significativo destas investidas, com os assaltos ao Porto Santo e à Fajã dos Padres, anteriormente referidos. A segunda expressão sinaliza o cativeiro de madeirenses, nomeadamente de porto-santenses, fruto das investidas feitas a esta ilha. Assim, parece existir no imaginário madeirense uma visão pouco abonatória dos mouros, definidos como violentos, o que conduziu a apertadas medidas, expressas nas posturas, quanto à sua mobilidade na sociedade madeirense. Alberto Vieira (atualizado a 01.02.2018)

História Económica e Social

meneses, rufino augusto

Rufino Augusto Meneses foi um sacerdote católico madeirense, nascido na freguesia da Ponta do Sol, a 27 de abril de 1877. Foi filho de Rufino Augusto de Meneses e de Carolina de Jesus. Quando ainda era criança, partiu para Angola com o pai, que foi para lá como colono, e estudou no Seminário de Huíla, sendo ensinado pelos padres do Espírito Santo. Regressado à Madeira, matriculou-se no Seminário Diocesano do Funchal, seguindo a vida eclesiástica. Foi ordenado sacerdote a 21 de dezembro de 1901 e foi capelão da Sé do Funchal até 1902. A 22 de fevereiro de 1902, foi nomeado pároco do Caniçal, função que exerceu durante os dois anos seguintes, passando a desempenhar, desde 20 de fevereiro de 1904, o múnus de cura de Machico. Em 1905, após o falecimento do P.e Jordão do Espírito Santo, que era vigário na freguesia de Água de Pena, foi nomeado sacerdote daquela paróquia, no dia 4 de julho, ocupando o cargo durante 48 anos. A par da sua vida clerical, Rufino Augusto Meneses foi um homem dedicado às letras, colaborando na imprensa regional e escrevendo textos literários, sobretudo poéticos. Exerceu a sua atividade jornalística no periódico O Jornal, como correspondente em Machico, e assinou, naquele jornal, algumas das suas produções poéticas sob o pseudónimo “C.”. Em 1950, publicou um volume de versos intitulado Visita da Imagem de Nossa Senhora de Fátima (a Virgem Peregrina) à Madeira, em 7 de Abril de 1948: Versos Populares. Neste livro, descreveu em verso a visita da imagem de Nossa Senhora de Fátima à Madeira, no dia 7 de abril de 1948, desde a chegada a bordo do Lima e o desembarque no cais da Pontinha até ao cortejo em direção à Sé do Funchal, onde aquela obra passou a noite. Descreveu as manifestações de regozijo da população, que aguardava a chegada da imagem acenando com lenços, dando vivas e palmas, e evocou os sinos da igreja a tocar e o lançamento de foguetes. Nos seus versos, todo o povo, as autoridades regionais, o clero e outras individualidades madeirenses de diferentes profissões manifestaram o seu contentamento e a sua fé por aquele momento da visita da imagem da Virgem Peregrina. Narrou ainda a visita da imagem a outras freguesias da Madeira, onde, nos dias 8, 9 e 10 de abril, foi sempre aguardada por uma multidão. Depois, mencionou o regresso da imagem ao Funchal, destacando a sua passagem pelas ruas da cidade até chegar à Pontinha, onde embarcaria no Guiné para prosseguir viagem até outras paragens. Estes versos constituem um testemunho de um momento importante da história religiosa da Ilha e oferecem alguns quadros representativos das manifestações de fé do povo madeirense na primeira metade do séc. XX. Rufino Augusto Meneses faleceu em Machico, a 30 de março de 1966. Obras de Rufino Augusto Meneses: Visita da Imagem de Nossa Senhora de Fátima (a Virgem Peregrina) à Madeira, em 7 de Abril de 1948: Versos Populares (1950).   Sílvia Gomes (atualizado a 01.02.2018)

Religiões Personalidades

mendonça, duarte jorge de

Duarte Jorge de Mendonça nasceu na freguesia de São Jorge, concelho de Santana, ilha da Madeira, em 2 de setembro de 1936 e faleceu em São Paulo, Brasil, a 22 de novembro de 1977. Era filho de Noé Joaquim de Mendonça e de Maria Tolentina Jardim Brazão de Mendonça, também de São Jorge. Em julho de 1947, juntamente com sua mãe e seus irmãos, emigrou para o Brasil, a fim de se juntar a seu pai, que lá se encontrava desde há alguns anos. Em janeiro de de 1948, entrou para o Seminário São Fidélis, pertencente aos Frades Capuchinhos, na cidade de Piracicaba, no interior de São Paulo. Ali se formou em Filosofia, Teologia e Pastoral. Em 25 de dezembro de 1957, na cidade de Mococa, no interior do Brasil, fez a sua profissão solene na Ordem dos Frades Capuchinhos, tomando o nome de Fr. Jorge Maria do Funchal. Com apenas 24 anos, mediante licença especial do Vaticano, foi ordenado sacerdote em 1 de julho de 1961 e, no dia seguinte, celebrou a primeira missa no Santuário da Imaculada Conceição. Detentor de uma memória privilegiada e singular inteligência, foi convidado a estudar na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, onde se doutorou em Filosofia. Paralelamente, licenciou-se em Filosofia franciscana no Studio Francesco do Collegio Internazionale S. Lorenzo da Brindisi, dos Frades Capuchinhos de Roma. Os seus conhecimentos de latim e grego permitiam-lhe o domínio das línguas francesa, espanhola, italiana, inglesa e alemã, tendo-se aperfeiçoado em cursos feitos em Bregenz, Innsbruk e Paris. Na viagem de regresso ao Brasil, em agosto de 1963, visitou a sua terra natal e celebrou a missa nova na igreja paroquial de São Jorge. Ali, foi recebido com grande entusiasmo pelos seus familiares, autoridades locais e demais conterrâneos, como atesta o Diário de Notícias do Funchal de 1 de agosto de 1963. No Brasil, foi professor de Filosofia nos seminários de Veneza e Londrina, na Pontifícia Universidade de Campinas e na Faculdade de Filosofia de Nossa Senhora Medianeira; participou ativamente em diversos congressos e encontros de Filosofia realizados no Brasil. Entre 1966 e 1968, foi guardião do Convento de São José em Mococa, onde fundou equipas de jovens e de casais. Em São Paulo, foi ecónomo dos Capuchinhos e orientador espiritual de movimentos religiosos que se estendiam às cidades de Nova Veneza Americana, Campinas e Sumaré. Filantropo e benemérito, é autor de textos e artigos publicados em várias revistas, assim como de poesias, algumas das quais se encontram reunidas em Encontros, coletânea de poemas de sua autoria. Após o Concílio Vaticano II, colaborou na implementação das novas diretrizes e passou a usar o seu nome de batismo. Um aneurisma cerebral ceifou-lhe a vida aquando da realização do capítulo da sua congregação onde seria eleito provincial da Ordem dos Capuchinhos. A missa de corpo presente foi concelebrada por 56 padres, 3 bispos e pelo Cardeal D. Evaristo Arns, o qual na homilia, relembrou “o sacerdote que frei Jorge foi, a santidade com que viveu. A ciência da vida e sabedoria que pregou a todos que puderam conhecê-lo” (MENDONÇA, 2001, 8). Em 1979, o prefeito da Cidade de São Paulo, Olavo Egydio Setúbal, pelo dec. 15.929, homenageou este “Português de nascimento e Brasileiro de coração” (MENDONÇA, 2001, 8), atribuindo o nome de Fr. Duarte Jorge de Mendonça a um logradouro situado entre a Av. Giovanni Gronchi e a Rua H14, no 29.º subdistrito de Santo Amaro. Obras de Duarte Jorge Mendonça: Encontros (2001)   Lígia Brazão (atualizado a 01.02.2018)

Religiões