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camacha moldadora do vime

A partir de finais do século XIX a indústria do vime desenvolveu-se na Camacha até ocupar lugar central na economia local e ao ponto de, a par do folclore, se tornar um dos embaixadores da localidade serrana. Atualmente, o setor perdeu a importância detida outrora, muito por força das transformações sociais e económicas de uma região especializada nos serviços, com o turismo a desempenhar o papel que antes cabia ao setor primário. E é neste contexto que urge conhecer, não só os modos tradicionais de produção, mas também os processos inovadores. Bazar Flor da Achada Este bazar é atualmente mantido pelas filhas do proprietário, as quais têm outra ocupação profissional. Fazem-no dado ser uma tradição familiar. Para além de através desta relação familiar e da decisão das filhas em manter o negócio, é igualmente demonstrativo da importância da indústria na Camacha e do estatuto social detido. Entre algumas peças importadas do exterior é possível encontrar alguns trabalhos dos artesãos locais. A cobertura interior do teto em vimes é um pormenor que não nos escapa dada a sua particularidade. Café Relógio Um dos espaços que facilmente se associa ao vime, o Café Relógio está de forma directa relacionado com a história do vime, dado que para além de comerciar vimes alberga uma oficina onde se pode ver a execução do trabalho pelos artesãos. Para além desta facto, a torre do edifício alberga um relógio, originário da Igreja Paroquial de Walton, em Liverpool, e é um símbolo da presença inglesa na freguesia, tendo sido mandada construir pelo Drº Michael Graham no que era, na época, a Quinta da Camacha, sua propriedade. Realce-se que a comunidade inglesa na ilha da Madeira desempenhou um papel importante no desenvolvimento de algumas artes tradicionais da freguesia, casos do bordado e do próprio vime. José de Jesus Fernandes Aprendeu com um tio quando tinha 12 anos a arte da obra de vime e aos 19 anos instalou-se por conta própria. Os intermediários traziam o vime do Porto da Cruz, de Santana e de Boaventura. Contribuindo na criação de modelos, chegou a empregar 200 pessoas. Hoje, ocupa sozinho a sua fábrica onde ainda guarda os moldes e as máquinas rudimentares usadas. Cada artesão tendia a especializar-se em determinadas peças. O mestre José Fernandes especializou-se na cestaria. José Pedro O artesão José Pedro, que começou a trabalhar na obra de vime com 8 anos, é um exemplo da inovação e criatividade que os artesãos colocam no seu trabalho. Se a reprodução a partir de outras peças está presente, a inovação surge como reflexo do desejo de aperfeiçoamento da peça segundo a perspetiva individual. Resultam daqui peças funcionais. Para lá chegar, contudo, é necessário várias etapas de confeção. Esta afirmação aplica-se aos trabalhos em que não recorre aos moldes, de dimensão média e grande, como móveis. Nesse caso faz-se o desenho da peça, moldando-se o ferro para o cobrir e ligar nas diversas partes com vime. José Fernandes da Silva Junto à Levada da Meia Serra, José Fernandes da Silva tem o seu pequeno atelier onde tece a arte do vime para com ela fazer cestaria em vime da Camacha. Ocorre também que José Fernandes da Silva é um dos artesãos que mais tem contribuindo para a perpetuação da arte da obra em vime, dando cursos de formação e participando em ações de divulgação. Plantação de Vimes Segundo registos, o início da produção e do uso na confeções de cestaria em vime data do século XIX, embora outras fontes apontem para um período bem anterior, isto é, no século XVI. Em todo o caso, foi no século XIX que o vime, primeiro introduzido na Camacha, veio a desempenhar um papel fundamental na freguesia, sendo sustento de parte significativa da população. Os campos deste pequeno vale eram ocupados na totalidade com vimeiros, restando uma pequena parcela na margem direita da ribeira. Cuidar dos vimeiros requer a execução de tarefas simples, sendo a principal a poda.   Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho

Património História Económica e Social Rotas Madeira Cultural

do ouro branco e pela vinha às quintas

Desde o Século XV, a Madeira recebeu comerciantes e turistas de diversas nacionalidades. Pela Madeira passaram, por exemplo, comerciantes venezianos e flamengos no contexto do afamado período do “ouro branco” deixando a sua marca na toponímia da cidade do Funchal e no sobrenome de famílias madeirenses, mas a partir do século XVII, com a paulatina substituição da cultura do açúcar pela da vinha, os comerciantes britânicos tornaram-se a comunidade estrangeira mais importante no arquipélago. A influência desta comunidade manifestou-se em alguns de setores económicos e na edificação, entre as quais se contam as tão conhecidas quintas da Camacha e do Santo da Serra.     Quinta do Jardim da Serra Esta Quinta, construída no século XIX pelo Cônsul Inglês Henry Veitch, tem importância fulcral na história da própria freguesia. Foi o nome desta propriedade que deu origem à denominação da freguesia: Jardim da Serra. Adaptada em 2010 numa excelente unidade hoteleira, preserva um edifício com arquitetura tradicional. É ainda possível contactar com as práticas de agricultura biológica e alguns exemplares de flores madeirenses nos amplos jardins da propriedade. Realce para o facto da quinta ter sido fonte de inspiração para Max Römer, e estar representada numa gravura do século XIX, patente na reitoria da Universidade da Madeira, no Funchal. Quinta das Romeiras Esta quinta foi desenhada pelo conhecido arquiteto português Raul Lino e foi mandada construir pelo Drº Alberto Araújo, como residência de férias. Foi construída no ano de 1933, ano em que a 14 de Abril o Diário da Madeira noticiava que se estava “trabalhando afanosamente na construção de uma opulenta vivenda de campo, no sítio das Romeiras, desta freguesia, donde se desfruta um largo e aprazível panorama. O povo já a baptizou de Quinta dos Penedos”. A escritora Maria Lamas em 1956 descrevia assim seus jardins: “Do branco de neve ao salmão, ao carmesim, ao amarelo-oiro e ao roxo, passando por todas as escalas de tons - quem poderá imaginar, sem a ter visto, aquela sinfonia de cores?” Quinta do Vale Paraíso Constituída por um edifício principal, construído em meados do século XIX, e por outros 9 de dimensões mais reduzidas, transformadas em pequenas residências de férias, as quais mantêm de um modo geral o nome da sua função original. Este espaço oferece ainda amplos jardins compostos por plantas endémicas e exóticas pertencentes a cerca de 220 espécies. A partir desta quinta acedemos, através de uma vereda, à Levada da Serra do Faial. fonte: ariscaropatrimonio.wordpress.com Quinta do Revoredo Esta propriedade foi mandada construir por John Blandy, em 1840, que depois de conhecer a Madeira como marinheiro de um navio inglês nas guerras napoleónicas viria a tornar-se no mais importante homem de negócios da ilha e cuja família ainda é uma das mais influentes na Região. Hoje a quinta é propriedade da edilidade e é nela que se encontra a sede da orquestra filarmónica de Santa Cruz, sendo utilizada também como Casa da Cultura do município. Quinta de São Cristóvão Esta quinta com caraterísticas da arquitetura portuguesa, foi mandada construir em 1692 pelo morgado Cristóvão Moniz de Menezes e manteve-se como propriedade da família até que recentemente Carlos Cristóvão da Câmara Leme Escórcio de Bettencourt, sem descendentes, o cedeu ao Governo Regional da Madeira. Chegou a albergar o Conservatório de Música e actualmente funciona como casa do artista. Este solar está ainda relacionado com a Paróquia do Piquinho, uma vez que foi aqui erigida a Capela de São Cristóvão, a qual recebe em Maio a festa religiosa de São Cristóvão. Também aqui funcionou uma escola fundada pela irmã Mary Jane Wilson, entre 1904 e 1910.   Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho

Arquitetura Património História Económica e Social Rotas

vínculos (morgadios e capelas)

Surgidos em Portugal no séc. XIII e consolidados na Baixa Idade Média, os morgadios – ou morgados – foram instituições características da península Ibérica e da nobreza, servindo como instrumentos jurídicos para salvaguardar e conservar os alicerces materiais dos grupos sociais nobres. Desta forma, através dos morgadios, prescrevia-se a inalienabilidade e indivisibilidade dos bens da família ou da casa, impedindo-se assim a sua fragmentação, por partilhas, após o falecimento do instituidor. A propriedade era transmitida, preferencialmente por ramo varonil, ao primogénito, de modo a alcançar uma sucessão perpétua no seio da família. Estas instituições acabaram, afinal, por contribuir para a manutenção de uma agricultura de natureza feudal. Em íntima relação com a questão económica, os vínculos tinham ainda por objetivo a manutenção de um estatuto social baseado na conservação de privilégios e de uma memória coletiva partilhada pelos membros da linhagem. No cômputo geral, uma propriedade vinculada – ao invés de uma propriedade livre ou alodial – implicava a prerrogativa da apropriação de uma porção dos seus rendimentos. Por vezes, nos documentos (testamentos, geralmente) que instituíam vínculos – morgadios ou capelas –, não era clara ou fácil de destrinçar a tipologia do vínculo criado, além de que ambas as palavras chegavam a ser usadas indiferentemente. O articulado das Ordenações Manuelinas, no parágrafo 49 do título 35 do livro II, estabelece a distinção entre morgadios e capelas, diferença que se passa a apresentar. Existe um morgadio quando, após cumpridos os encargos estipulados por vontade do fundador – comummente, missas pela sua alma –, o remanescente do rendimento dos bens do vínculo pertencer aos administradores ou quando o instituidor legar os bens com a condição de os herdeiros realizarem ou mandarem realizar missas e outras obras pias; existe uma capela, por outro lado, quando ficar estabelecido que, da totalidade dos rendimentos dos bens vinculados, os administradores terão direito a uma parte – 1/3, 1/4 ou 1/5 –, e o restante será usado em missas e outras obras de cariz piedoso. Pode dizer-se que, no primeiro caso, o que estava em causa, sobretudo, era uma dimensão secular – os bens materiais e a perpetuação do capital social e simbólico da linhagem –; no que concerne à capela, o mais importante era a dimensão espiritual – traduzida nos encargos pios. Tem sido apontado que, no quadro português, a ilha da Madeira foi uma das regiões onde a existência de instituições vinculares atingiu maior expressão. Cabral do Nascimento, no seu estudo “Capelas e morgados da Madeira” (1935), asseverou que, na Ilha, as capelas tiveram preponderância sobre os morgadios. Assim, na história deste espaço insular, o fenómeno da vinculação da propriedade assume uma importância de tal ordem que o seu desconhecimento compromete uma compreensão cabal do passado e do presente. Porém, a sua história global ainda está por fazer. Os vínculos foram precedidos pelas sesmarias – ou tiveram, na sua maior parte, origem nestas –, surgindo a partir de finais do séc. XV e, mormente, do séc. XVI. Instituídos no séc. XV, houve, e.g., os vínculos de Água de Mel, na freguesia de Santo António, que foi agregado à casa Carvalhal; de Consolação, na freguesia do Caniço, da família Ornelas e Vasconcelos; de João Afonso, em Câmara de Lobos, incorporado na casa Torre Bela; e de Vasco Moniz, em Machico, do qual José Bettencourt e Freitas foi o derradeiro representante. Na primeira metade da centúria quinhentista, foram criados vários vínculos de relevo na história da Madeira, de entre os quais se referenciam (em conjunto com os instituidores e as localidades) os seguintes: o da Lombada dos Esmeraldos, fundado por João Esmeraldo, na Ponta do Sol; o dos Lomelinos, por Urbano Lomelino, em Santa Cruz; o dos Franças, por João de França, na freguesia do Estreito da Calheta; o de São João de Latrão, por Nuno Fernandes Cardoso, em Gaula; o da Penha de Águia, por António Teixeira, na freguesia do Porto da Cruz; e o de São Gil, por D. Brites Escórcio, em Santa Cruz. Será útil fornecer ainda um exemplo pormenorizado de um vínculo que apresenta algumas das características gerais já apontadas e outras de índole diversa: o morgadio das Desertas, instituído no início da segunda metade do séc. XVI. Luís Gonçalves de Ataíde, filho do segundo casamento do 3.º capitão do donatário do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, celebrado com Isabel de Ataíde, era proprietário da ilha Deserta e recebeu de sesmaria, a 24 de março de 1546, o ilhéu Chão. Obedecendo a uma determinação de sua mãe, instituiu, por uma escritura de compromisso de 3 de setembro de 1552, os referidos bens em morgado perpétuo, obrigando a sua terça. Um alvará régio de 28 de janeiro de 1576 confirmou e aprovou este morgadio. Por vontade do instituidor, ficou estabelecido que: depois do seu falecimento e do da sua consorte, a sucessão recairia no filho varão mais velho ou no neto ou bisneto – seguindo, no plano geral e em regra, a primogenitura varonil legítima, em detrimento das linhas secundogénita e feminina; todos os herdeiros sucessores ficavam obrigados a ampliar os bens vinculados, mediante a inserção no morgadio de metade da sua terça; de igual modo, era-lhes imposto o uso dos apelidos e das armas das linhagens; era-lhes ainda interdita a venda, a troca, o escambo ou a alienação dos bens do morgadio; e teriam de ser cumpridos vários encargos pios – quatro missas anuais pela alma dos pais do instituidor. As duas pequenas ilhas nomeadas – Deserta e ilhéu Chão – fizeram parte do património dos descendentes de Luís Gonçalves de Ataíde até 1864. Tradicionalmente considerados como instrumentos jurídicos usados pela fidalguia ou pequena nobreza da Madeira, diga-se, no entanto, que indivíduos houve, de outros grupos sociais menos privilegiados, que também instituíram vínculos. A tutela judicial sobre estas instituições pertencia, desde o séc. XV até ao final do Antigo Regime, ao Juízo dos Resíduos e Provedoria das Capelas. O primeiro juiz de que há menção, João do Porto, foi indigitado no ano de 1486. As atribuições deste organismo incluíam, nomeadamente, a fiscalização da observância dos encargos pios. Desta incumbência ficaram, posteriormente, encarregados o corregedor da comarca do Funchal (de 1820 a 1837), a comissão da Santa Casa da Misericórdia do Funchal e, finalmente, os administradores dos concelhos (consoante o que foi estabelecido no Código Administrativo de 1842). O desenvolvimento económico e a riqueza criados pela transformação e comercialização do açúcar, desde o séc. XV, conduziram a um fenómeno alargado de vinculação de propriedades e ao absentismo dos proprietários. Diz Álvaro Rodrigues de Azevedo (em palavras sobejamente conhecidas e amiudadas vezes citadas) que “O sesmeiro, rico, enfastiou-se da vida campesina, ufanou-se de sua originária fidalguia, e apeteceu vivenda de mais aparato e bulício; desprezou, por isso, a terra; vinculou-a, na mira de assegurar-se dos réditos dela; contratou-lhe a cultura com os colonos livres” (FRUTUOSO, 1873, 678). Como seria de esperar, as conjunturas económicas de crise também tinham influência nas instituições vinculares. Na primeira metade do séc. XVII, devido ao decréscimo da produção açucareira e dos movimentos comerciais, vários administradores de capelas viram-se incapazes de cumprir os encargos pios nos moldes em que haviam sido instituídos e solicitaram a sua diminuição. Outro tempo de crise, em meados do séc. XIX, por causa do declínio do comércio e da produção de vinho, e de uma carestia de víveres, foi o contexto no qual eclodiram propostas atinentes à abolição dos vínculos, como se verá adiante. Vários documentos – de teor algo crítico quanto à existência e às consequências dos vínculos, ressalve-se – fazem alusão à proliferação destas instituições na Madeira. O Gov. Luís Beltrão de Gouveia, em ofício datado de 22 de abril de 1814, a propósito do imposto de sisa, faz uma série de considerações sobre a propriedade. Nesse sentido, refere que a Madeira “é verdadeiramente a Pátria dos Morgados” e divide o espaço insular em quatro partes, de molde a demonstrar que as transações de propriedades seriam de pouco relevo, não justificando a existência de um imposto: uma parte “de rochedos escarpados improdutivos”; duas “possuídas, administradas, e amortizadas nos grandes e pequenos Proprietários” (em que se inseriam os vínculos); e a última composta de bens alodiais (ALMEIDA,1907, 244). Em 1847, o governador civil José Silvestre Ribeiro, ao arrolar as várias razões que obrigavam os madeirenses à emigração – para ele, um fenómeno deveras nefasto –, referencia, no domínio da propriedade, os vínculos e o contrato de colonia. Neste sentido, calcula, porventura com algum exagero, que 2/3 das terras agricultáveis da ilha da Madeira estavam vinculadas. Esta realidade, ao manter muitas propriedades inalienáveis, imunes a reformas e fora do mercado, constituía um fator de bloqueio do mundo agrícola, beneficiando os proprietários absentistas e prejudicando os colonos. O cálculo de José Silvestre Ribeiro tem sido mencionado em vários trabalhos posteriores sobre a história da Madeira para demonstrar a grande disseminação, neste espaço insular, das instituições vinculares. O juiz de direito José Pereira Sanches e Castro, em 1856, ao pronunciar-se sobre as perversidades que tinham lugar com o contrato de colonia e sobre a relação deste com a instituição vincular, afirma que “a maior parte dos terrenos aproveitáveis para a cultura são vinculados” e que era imperativo extinguir os vínculos (CASTRO, 1986, 232 e 236). Com o marquês de Pombal, principiou uma vaga, que durou quase um século, de normas que restringiram a existência e a criação de vínculos. Este foi um processo gradual e de longo prazo que começou por visar as instituições vinculares de menor valor ou rendimento e que culminou, finalmente, na sua extinção completa, em 1863. Apontem-se os diplomas mais relevantes. Assim, por intermédio de legislação datada de 9 de setembro de 1769 e de 3 de agosto de 1770, estabeleceu-se a abolição ou anexação de vínculos que não chegassem a 200$000 réis de rendimento nas províncias da Estremadura e do Alentejo, e a 100$000 réis nas restantes; acresce que a instituição de morgadios ficou dependente de licença régia. Posteriormente, o decreto de 4 de abril de 1832, de Mouzinho da Silveira, aboliu os vínculos cujos rendimentos não montassem a pelo menos 200$000 réis. A carta de lei de 30 de julho de 1860 – em articulação com o decreto regulamentar de 19 de janeiro de 1861 – suprimiu os morgadios que não tivessem, no mínimo, 400$000 réis de rendimento líquido anual e tornou, ainda, a extinção facultativa para os conjuntos de vínculos que, anexados e sob o mesmo administrador, totalizassem 600$000 réis de rendimento por ano; ademais, sob pena de abolição, estabeleceu a obrigatoriedade, num período de dois anos, do registo de morgadios e capelas existentes e a existir. No fim deste processo histórico está a carta de lei de 19 de maio de 1863, a qual estabeleceu, no art. 1.º, que ficavam “abolidos todos os morgados e capelas atualmente existentes no continente do reino, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas, e declarados alodiais os bens de que se compõem” (VASCONCELLOS, 1864, 200), com exceção da casa de Bragança. É muito significativo que, no séc. XIX, várias propostas para a completa supressão de vínculos tenham provido das ilhas (Madeira e Açores) – terras onde havia uma maior proliferação destas instituições e onde, conexamente, os seus efeitos estruturais perniciosos para a economia e sociedade eram mais prementes (ou como tal sentidos). Logo na sessão de 8 de março de 1822 das Cortes Constituintes, o deputado João Bento de Medeiros Mântua, de São Miguel, apresentou um projeto para a extinção dos vínculos nos Açores. Outras iniciativas se seguiram. Aquelas que aqui interessa explorar diretamente, por serem relativas à Madeira, são as de António Correia Herédia e do barão de São Pedro, em época de profunda crise. O barão de São Pedro, Daniel de Ornelas de Vasconcelos, apresentou, na sessão de 15 de fevereiro de 1850, na Câmara dos Pares do Reino, um projeto de lei com o propósito de abolir todos os vínculos no arquipélago da Madeira. Esta proposta foi antecedida pela defesa, em 1847, na imprensa do Funchal, por António Correia Herédia, da extinção destas instituições. Herédia redigiu ainda um manifesto, datado de 1849, intitulado Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, que encontrou uma viva oposição de vários morgados e administradores da Madeira, os quais responderam com um outro panfleto – Resposta ao Folheto Intitulado Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, de 1850. Esta guerra panfletária teve ainda mais desenvolvimentos, com novas publicações de António Correia Herédia: As Contradições Vinculadas pelo A. das Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira e Duas Palavras sobre a Representação ou Exposição dos Morgados e Immediatos Successores, ambas igualmente de 1850. O barão de São Pedro, no seu projeto legislativo, referenciava o estado de crise que imperava na Madeira e defendia, como medida necessária e salutar, a supressão dos vínculos, considerados ineficazes e prejudiciais, porquanto não permitiam o progresso da agricultura e o incremento financeiro e comercial. A iniciativa foi muito bem aceite na Madeira e originou uma grande vaga de apoio em órgãos de imprensa e por parte de organismos de poder local (várias câmaras municipais e juntas de paróquia) e inclusive de vários indivíduos (proprietários e membros da elite) – organismos e indivíduos que redigiram petições com argumentos a defender a extinção. Entre os defensores desta medida estavam, como seria de esperar, proprietários de bens livres, lavradores ricos, comerciantes, funcionários públicos, clérigos seculares e ainda diversos administradores de vínculos. Por outro lado, vários morgados opositores, em exposição remetida à Câmara dos Pares do Reino, pretendiam contraditar os argumentos do barão de São Pedro. A realidade, todavia, é que o projeto não chegou a ser aprovado em sede parlamentar. Foi necessário esperar por 1863, ano em que foram abolidos os vínculos em Portugal, como se viu. Na sequência da lei de 30 de julho de 1860 e do decreto regulamentar de 19 de janeiro de 1861, foi redigido o Tombo do Registo Vincular do Funchal, em três volumes. Esta fonte documental apresenta, em virtude do que foi prescrito nas duas normas, somente uma amostra dos vínculos que existiram na Madeira; ainda assim, contém informações relevantes que não devem ser ignoradas. A partir das análises de Cabral do Nascimento, no seu estudo já referido, e sobretudo de Miguel Jasmins Rodrigues, em “Abolição dos morgadios: o caso da Madeira” (2013), fica-se a conhecer um tanto do seu conteúdo. Foram registados, deste modo, de 1862 a 1865, os bens de vínculo de 15 casas, através de traslados de documentos que suportavam juridicamente a existência das instituições vinculares (títulos de instituições, anexações, desanexações, hipotecas, sub-rogações ou expropriações, sentenças de supressão, descrições de valores e encargos). Neste âmbito, foram inscritas as seguintes informações: as várias parcelas que compunham cada vínculo; o rendimento anual das mesmas; a identidade e a situação – foreiro ou colono – de quem as cultivava; os produtos agricultados; e o usufruto de água por direito. Os administradores e representantes das 15 casas, preponderantemente absentistas, eram João José de Bettencourt e Freitas, o marquês de Castelo Melhor, João Cabral de Noronha, o visconde de Torre Bela, Urbano Egídio da Costa Campos, Sebastião Francisco Falcão de Melo Trigoso, João Facundo Alves Spínola de Freitas, João de Bettencourt Baptista, o visconde do Amparo, Agostinho de Ornelas Vasconcelos Rolim de Moura, Luís da Câmara Leme, José Cupertino da Câmara, Remígio António da Silva Barreto, Laureano Francisco da Câmara Falcão e Manuel Raimundo Telo de Meneses Torresão. Os vínculos criados nos dois primeiros séculos da história da Madeira – sécs. XV e XVI – perfazem 67% dos vínculos inventariados; os restantes – 33% – representam obviamente os que foram instituídos em época subsequente. A importância das duas centúrias mais remotas sai reforçada quando se apura que 85% do rendimento anual da totalidade dos vínculos registados pertence aos que foram fundados em Quatrocentos e em Quinhentos. É percetível também uma ligação estreita entre a instituição vincular e o contrato de colonia, porquanto a maioria dos morgados – i.e., detentores ou administradores de morgadios – referidos no Registo Vincular faz explorar as suas terras recorrendo a colonos. Três categorias de morgadios podem ainda ser percecionadas nesta fonte: a que consistiu na transformação de um senhorio banal em propriedade, facto que ocorreu com o morgadio dos marqueses de Castelo Melhor; a dos morgadios compostos por propriedades dispersas por toda a ilha da Madeira, como os de Agostinho de Ornelas Rolim de Moura, do visconde de Torre Bela e de Luís da Câmara Leme; e, enfim, os morgadios que abarcavam propriedades somente em uma ou duas freguesias, e.g., os de João de Bettencourt Baptista (no Porto da Cruz e em Santa Cruz) e João Facundo Spínola de Freitas (na Ponta do Pargo e Calheta). Os morgados que detêm um maior número de vínculos e de parcelas são os intervenientes finais num processo transecular de concentração de propriedade, quer por via de heranças, quer através de estratégias matrimoniais. Sirvam de exemplo João José de Bettencourt e Freitas (com pouco mais de 140 parcelas) e, de novo, os viscondes de Torre Bela (com mais de 170) e Agostinho de Ornelas Rolim de Moura (com quase 140). Na sequência, ainda, das normas de 1860 e 1861, foram depositados na Torre do Tombo processos de registo vincular provenientes de vários distritos, entre eles o do Funchal (10 processos). Alfredo Pimenta, na sua obra Vínculos Portugueses. Catálogo dos Registros Vinculares Feitos em obediência às Prescrições da Lei de 30 de Julho de 1860, e Existentes no Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo, catalogou essa documentação. Partindo desse trabalho, dá-se aqui nota de um processo constituído pela cópia de registos de vários vínculos criados na ilha da Madeira e administrados por João Correia Brandão Henriques de Noronha, 2.º visconde de Torre Bela. Pretende-se ilustrar a confluência de várias instituições vinculares nas mãos de um mesmo administrador. Mencionem-se, assim, os seguintes instituidores de vínculos (acompanhados das datas dos documentos de criação, quando conhecidas): João Afonso Correia, a 11 de maio de 1490; António Correia, o Grande, a 29 de dezembro de 1572; D. Isabel de Bettencourt, a 2 de dezembro de 1561; D. Maria Vieira, a 23 de julho de 1592; António Correia Bettencourt e primeira mulher, D. Joana Henriques, a 21 de abril de 1624 e a 21 de julho de 1643, e ainda pelo dito e sua segunda consorte, D. Maria da Câmara, a 10 de dezembro de 1670; D. Mécia da Câmara, a 2 de outubro de 1676; D. Guiomar Correia; D. Isabel Abreu, a 29 de outubro de 1545; D. Maria Pestana, a 2 de janeiro de 1566; António Gonçalves da Câmara, a 2 de novembro de 1545; D. João Henriques e mulher, D. Joana; D. Isabel Fernandes, a 27 de novembro de 1546; Pedro de Brito, a 2 de dezembro de 1586; D. Isabel Afonso, anteriormente a 1561; D. Joana Cabral, a 12 de junho de 1598; D. Ana Murante, a 2 de novembro de 1569 até 29 de fevereiro de 1570; Pedro de Bettencourt Henriques, a 27 de dezembro de 1688; António Correia Bettencourt Henriques e mulher, D. Antónia Joana Francisca Henriques, e Henrique Henriques de Noronha e mulher, a 17 de fevereiro de 1706; D. Antónia Joana Francisca Henriques, a 20 de maio de 1746; João de Bettencourt Henriques, a 27 de novembro de 1649; António da Silva Barreto; Fr. Francisco Bettencourt e Fr. Pedro de Noronha; D. Beatriz Chamorra, a 27 de abril de 1565; Inácio da Câmara Leme e mulher, D. Isabel de Castelbranco; Filipe Gentil de Limoges e mulher, D. Isabel Achiaioli de Vasconcelos, a 23 de novembro de 1674 e em datas posteriores. De 1834 até 1878, prolongando um fenómeno que vinha do Antigo Regime, no conjunto das elites municipais do Funchal, continuava a avultar o grupo dos proprietários – morgados e administradores de morgadios e capelas. A título de exemplo, podemos nomear Aires de Ornelas e Vasconcelos, António Caetano Aragão, Tristão Joaquim da Câmara Júnior, António Bettencourt da Silva Favila, Francisco Araújo Bettencourt Esmeraldo, João de Freitas Correia e Silva, João José Bettencourt e Freitas, João José de Ornelas Cabral, Manuel de Gouveia Rego, Nuno de Freitas Lomelino, António de Carvalhal Esmeraldo (2.º conde de Carvalhal, tido como o homem mais abastado na sua época), Diogo França Neto (visconde de São João) e Diogo Frazão Figueiroa (visconde da Calçada).   Filipe dos Santos     artigos relacionados colonia documentário "Colonia e Vilões" capelas morgado dos piornais elites madeirenses e sua reprodução

História Económica e Social

atlântico, revista

Revista Atlântico O primeiro número da Atlântico. Revista de Temas Culturais, publicação periódica de cariz cultural e científico, veio a lume na primavera de 1985. A revista, de assinatura anual, teve uma vigência temporal de cinco anos e uma periodicidade trimestral – deste modo, cada edição, com cerca de 80 páginas, correspondia a uma estação do ano. Saíram do prelo 20 números, à razão de quatro por ano, sendo o último o do inverno de 1989. As suas dimensões eram de 24 x 17 cm e a paginação iniciava-se a cada novo ano. A redação e administração da publicação estavam sediadas no Funchal e a fotocomposição, o fotolito, a montagem, a impressão e o acabamento processavam-se em Lisboa. O editor e diretor foi António E. F. Loja, que assinou os editoriais de todas as edições (e, inclusive, diversos artigos). As fichas técnicas apresentam um elenco de colaboradores cujos nomes e número (37 na 1.ª edição, 41 na 20.ª) não variaram substancialmente ao longo do tempo. Alguns destes colaboradores elaboraram artigos e providenciaram ilustrações. Na contracapa e no interior – mormente no início, no fim e na separação dos artigos – de todas as revistas podem ser encontradas páginas com anúncios publicitários a produtos e serviços do arquipélago da Madeira. O número inaugural, publicado em 1985, nascia, segundo o editorial do mesmo, “como tentativa sincera de criar na Madeira um local de encontro de ideias, um ponto de confluência de opiniões”. Através de uma análise breve, não exaustiva, dos editoriais, no sentido de apreender os propósitos e a filosofia da revista Atlântico, percebe-se que por meio dela se propunha instaurar um espaço de comunicação aberto e livre, informado pela relevância do conhecimento do passado e do presente, com vista a edificar o futuro. Era veiculada a esperança de que esta publicação fosse considerada útil e, assim, usada amiúde. Desde cedo, foram acolhidos colaboradores de outras geografias, de modo a estreitar as relações com o exterior. Usavam-se igualmente estas páginas para denunciar o clima de mediocridade e para defender maior fulgor e riqueza culturais, afirmando a ligação recíproca e necessária entre cultura e liberdade. A necessidade do conhecimento do passado passava por respeitar e preservar o património – cultural e natural; nesse sentido, foi denunciada e criticada a indiferença, a falta de proteção, o desaparecimento e a intervenção desadequada no mesmo por parte de entidades públicas. A este respeito, afirmava-se a premência da recuperação dos centros históricos e a relevância da inventariação do património natural e construído (criticou-se, e.g., a ação de instituições governamentais no que tocava ao lobo-marinho). A revista era composta de artigos – estudos e ensaios – sobre múltiplas temáticas atinentes, principalmente, ao arquipélago da Madeira; repertórios de literatura (poesia, crónicas, etc.) e de fotografia; e antologias de fontes históricas de diversa índole, reproduzidas no final de cada número (em certos casos, anotadas, traduzidas e com considerações introdutórias e críticas). Contribuíram para a revista os seguintes autores (com estudos e ensaios sobretudo relativos à Madeira): Manuel José Biscoito (mares); Maria dos Remédios Castelo Branco (viajantes estrangeiros – Jean Mocquet); Teresa Brazão Câmara (empedrados, bonecas de “maçapão”, mobiliário); Celso Caires (fotografia); Zita Cardoso (expostos); Rui Carita (litografia – Andrew Picken, defesas de Santa Cruz, embutidos, remates de teto, arquitetura religiosa); Fátima Maria Fernandes Machado de Castro (literatura – Raul Brandão); Jorge de Castro (natureza); Luísa Clode (pintura flamenga, bordado); Marcelo Costa (habitação, arquitetura ); João Couto (escultura – Francisco Franco); Sérgio António Correia (literatura – Bernardo Soares); Silvano Porto da Cruz (museologia e património); Fátima Pitta Dionísio (literatura – Camões e análise de soneto, Revolta da Madeira); João Ferreira Duarte (filosofia); Pedro M. P. Ferreira (eleições no século XIX); António Luís Alves Ferronha (Revolta da Madeira, republicanismo); Paulo Fragoso Freitas (cultura, fontes históricas, azulejos); Maurício Fernandes (escultura – Francisco Franco, fotografia, vídeo); José Luís de Brito Gomes (a Madeira e a Rússia); Fátima Freitas Gomes (comércio interno no Funchal, hotéis e hospedarias); Maria de Fátima Gomes (festas – romarias); José Laurindo de Góis (Ateneu Comercial do Funchal, indumentária e indústria, imprensa); David Ferreira de Gouveia (madeirenses no Brasil, história do açúcar); Emanuel Janes (implantação da Primeira República); Luís Sena Lino (função social do corpo); João Lizardo (arte do renascimento, arte mudéjar); António Loja (história social, económica e política, arquitetura); Castro Lourdes (pintura); Armando de Lucena (escultura – Francisco Franco); Irene Lucília (poesia, ruas); Diogo de Macedo (Francisco Franco); Maria Elisa Basto Machado (filatelia e maximafilia); João Medina (história cultural – Zé Povinho, arte – I República); Luís Francisco de Sousa Melo (teatro, o texto “Alcoforado”), com a colaboração de Maurício Fernandes num dos seus artigos; Anabela Mendes (cultura e museologia); Mary Noel Menezes (madeirenses na Guiana britânica); António Montês (escultura – Francisco Franco); Teresa Pais (Visconde da Ribeira Brava); Jaime Azevedo Pereira (vimes, o Jardim Botânico da Ajuda e a Madeira, Padre Eduardo Clemente Nunes Pereira, João Fernandes Vieira); António Jorge Pestana (história militar); Fernando Pessoa (serras); Gabriel de Jesus Pita (decadência e queda da I República); Raimundo Quintal (turismo, paisagem, ambiente, jardins, quintas, património natural, geografia); Adriano Ribeiro (tratado de Utrecht); Miguel Rodrigues (Madeira nos finais do século XV); José de Sainz-Trueva (heráldica, ex-librística, quintas, arte, arquitetura civil e religiosa); Joel Serrão (cultura e filosofia – Antero de Quental); António Ribeiro Marques da Silva (viajantes estrangeiros, imprensa, quotidiano das freiras de Santa Clara, arquitetura doméstica, ecologia, política e literatura – o Conde de Abranhos e o desembargador José Caetano); Jorge Marques da Silva (arqueologia industrial, computador e arte, arte naïve); Amândio de Sousa (museologia, ourivesaria); João José Abreu de Sousa (povoamento, emigração, história político-institucional, social e económica, rural e urbana, capitania de Machico, rua da Carreira, convento de Santa Clara, escravos, corsários, levadas); Maria José Soares (madeirenses no Curaçau); Francisco Clode de Sousa (Francisco Franco); Luís de Sousa (Quirino de Jesus); Manuel Rufino Teixeira (numismática); Ana Paula Marques Trindade e Teresa Maria Florença Martins (administração nos séculos XV e XVI); Nelson Veríssimo (história da autonomia, festa do Espírito Santo, o Funchal e a aluvião de 1803, presépios e Meninos Jesus, literatura – Bulhão Pato e a Madeira); Maria Francisca Favila Vieira (mito no discurso platónico sobre a alma, ética em Verney); Rui Vieira (Jardim Botânico da Madeira, Carlos Azevedo de Menezes); Eberhard Axel Wilhelm (alemães na Madeira, Max Römer); Manuel Zimbro (cultura). No que concerne a repertórios literários, encontram-se: crónicas (algumas de pendor evocativo e memorialístico) de Amaro Amarante, António Ribeiro Marques da Silva, Jorge Sumares e José Pereira da Costa; poemas de Edmundo Bettencourt, Manuel Vilhena de Carvalho, Fátima Pitta Dionísio, Carlos Alberto Fernandes, Carlos Fino, São Moniz Gouveia, Irene Lucília, João Cabral do Nascimento, António Manuel Neves, Gualdino Avelino Rodrigues e José de Sainz-Trueva; prosa poética de Ângela Varela. Vários artigos e repertórios beneficiaram de ilustrações (fotografias e desenhos) dos próprios autores. Outros foram acompanhados de fotografias de Rui Camacho, Mota Pimenta, Photographia – Museu Vicentes, Maurício Barros, Carmo Marques, Perestrellos, João Pestana, Sanches Almendra, Gilberta Caires, José Ivo Correia, João Vasconcelos, Teresa Brazão, Celso Caires, Manuel Valle e Vicentes e José de Sainz-Trueva. Outros, ainda, apresentaram desenhos de Maurício Fernandes, Sá Braz e Vieira da Silva. O início da publicação de Atlântico inaugurou, em meados da década de 80 do século XX, tempos de mudança e de renovação no panorama cultural, científico e historiográfico da Madeira. Esta transformação foi também corporizada pela criação, em 1985, do Centro de Estudos de História do Atlântico, pela realização, em 1986, do I Colóquio Internacional de História do Atlântico, e pelo aparecimento, em 1987, da revista Islenha.   Filipe dos Santos   artigos relacionados revistas sobre arte revistas de tradições populares periódicos literários poetas  

Cultura e Tradições Populares História Económica e Social

ioga

A origem do ioga é tão antiga que é imemorável, como prova a descoberta de um selo de argila com uma figura a meditar numa postura de pernas cruzadas da chamada civilização não violenta, talvez já da religião jaina ou jainismo, no vale do rio Indo, muito antes de os povos indo-iranianos chegarem ao subcontinente indiano. A palavra “ioga” vem do sânscrito (da raiz verbal “yuj”, que significa juntar, unir), significando união (esta raiz está presente, e.g., nas palavras “cônjuge” e “conjugar”, na forma de “jug”, com o mesmo significado). Ioga é uma ciência e filosofia de vida que tem origem nos Vedas, a literatura mais antiga até hoje conhecida da humanidade, estando associada à medicina aiurvédica (de “ayur”, vida, e “veda”, conhecimento, da raiz “vid”, que significa conhecimento, verdade, ciência). O nome “ioga” é usado frequentemente nos textos filosóficos védicos no seu sentido mais profundo de estar em sintonia, conexão com o divino absoluto, mas também de agir de forma correta. O ioga surge nos Vedas (Upanishads), nos Shastra (compêndios) tântricos mais antigos e no Bhagavad-Gita, sistema filosófico indiano que constitui a base do ioga, originando o jainismo, o hinduísmo e, mais tarde, o budismo. O Bhagavad-Gita situa-se no período pré-clássico do ioga, enquanto Patanjali é considerado o autor do texto fundamental do ioga clássico, conhecido como os Ioga Sutra de Patanjali, codificação da ciência do ioga original, datado do fim do séc. III a.C.. Patanjali diz no cap I, versículo I do Ioga-Sutra que a sua tarefa foi editar e corrigir as tradições doutrinárias e as técnicas do ioga. Foi graças a ele que o ioga passou a ser um sistema filosófico na Índia e no mundo. Com o tempo, formaram-se quatro tipos principais de ioga: karma ioga (ações realizadas com sacrifício pessoal), bhakti ioga (amor espiritual à Consciência Suprema e Una, Deus), raja ioga (de Patanjali, domínio da mente para revelação e união ao espírito ou eu espiritual) e jnana ioga (conhecimento ou identificação com a realidade suprema). Outros processos subsidiários desenvolveram-se também como iogas, designadamente o hatha ioga (posturas e respirações para maior autoconsciência), o japa ou mantra (repetição consciente de frases e sons sagrados) e a kundalini (despertar da energia ígnea espiritual interna). A prática espiritual do ioga é chamada sadhana e começa com o princípio básico de disciplinar a mente para o praticante poder elevar a consciência, o que só acontece se este tiver um propósito ou aspiração devocional forte a um estado sattva (termos sânscrito que significa pureza, mas também existência, realidade), libertando-se da ignorância do mundo ilusório (maya). Posto isto, o objetivo do Ioga é conduzir o praticante à iluminação da consciência (samádhi), através de puja (reverência e transmissão de energia), asanas (posições psicofísicas), mudras (gestos simbólicos), pranayamas (técnicas respiratórias), bandhas (ações físicas com efeitos no corpo prânico ou energético, retendo o prana ou energia subtil em áreas particulares e redirecionando o seu fluxo pela nadi sushuma, canal subtil central que passa pela base da coluna), ioganidra (relaxamento neuro-psíquico), samyama (concentração e meditação, através do controle da mente, para despertar a consciência espiritual), mantras (sons iniciáticos), kriyas (purificação do organismo) e muitas outras técnicas que propiciam o autoconhecimento e a transformação pessoal. Apesar da existência de vários tipos de ioga e de várias técnicas praticadas, na sua essência, todo o ioga é o mesmo porque tem os mesmos objetivos e benefícios. Na Madeira, dos diversos tipos de ioga existentes, as primeiras aulas de hatha ioga (prática de posturas e exercícios de respiração) terão surgido no início da déc. de 80 do séc. XX. Seguiram-se aulas de swásthya ioga (método do mestre DeRose) e de vidya ioga (práticas respiratórias, posições psicofísicas, relaxamento profundo e técnicas de meditação e concentração). Posteriormente, foi criada a Escola de Ioga do Funchal com prática de ioga integral e começaram aulas de: ayur ioga (prática associada ao conhecimento da milenar medicina aiurvédica); iantra ioga (prática baseada na antiga filosofia indiana de natureza comportamental, matriarcal, sensorial e naturalista, centrando-se no dualismo da energia masculina passiva de Shiva e feminina ativa de Shakti); chakra ioga (prática centrada nos chacras); e ioga dinâmico (método criado por Godfrey Devereux, que deu aulas de ioga na Região em 2012), entre outros tipos de ioga. Foram também criadas associações como a Ananda Marga Ioga Madeira (organização sem fins lucrativos, também chamada na Madeira Associação Prabháta “Novo Amanhecer”), cuja primeira atividade realizada na Madeira foi em setembro de 2004, oferecendo aulas de ioga, com meditação e mantras, entre outras atividades. A Brahma Kumaris, Academia para um Mundo Melhor, associação internacional sem fins lucrativos com presença em Portugal, começou a deslocar-se à Madeira em 2003, para dar palestras e cursos de raja ioga (práticas de controle mental e meditação). A Organização Internacional Bhaktimarga de Sri Swami Vishwananda (que junta a sabedoria da espiritualidade da Índia com a religião cristã) começou a deslocar-se à Madeira em maio de 2008, para fazer workshops temáticos, cursos de mudras e de atma kriya ioga, retiros e círculos de om healing ou om chanting (técnica de cura em grupo, através do canto do mantra Om). A Associação Europeia de Terapias Orientais também se deslocou várias vezes à Madeira para dar pequenas formações de ioga, tendo iniciado na Ilha um curso de formação de professores de ioga e iogaterapeutas aiurvédicos em 2009. Do mesmo modo, a Escola de Ioga Integral foi à Madeira dar várias formações e um curso de professores de ioga. Ficaram assim formados muitos professores de ioga certificados, que criaram os seus próprios espaços e escolas ou academias, e.g. a Academia Nova Era e a Escola da Felicidade, além de muitos outros instrutores de ioga que dão aulas por toda a Ilha em escolas públicas e privadas. Programas como o iogalates (ioga e Pilates), o body balance e os alongamentos, que tonificam o corpo, aumentam a flexibilidade e melhoram o equilíbrio entre o corpo e a mente, assim como a meditação, que faz o centramento da consciência corporal e espiritual, têm por base o ioga.   Naidea Nunes (atualizado a 14.11.2018) artigos relacionados: budismo hinduismo clero e conflito ordens e congregações religiosas

Religiões

ovington, john

Nascido em Melsonby, Yorkshire, em 1653, entrou aos 15 anos para o Trinity College de Dublin, obtendo o bacharelato em 1675 e a licenciatura em 1678. Finalizou a sua formação no John’s College de Cambridge, onde ingressou em 1779. Não se sabe quando foi ordenado, mas muito provavelmente terá sido no mesmo ano de ingresso no John’s College. Integrou a Companhia das Índias Orientais 10 anos depois, partindo a 11 de abril de 1689 do porto de Gravesend, no navio inglês Benjamim daquela Companhia, como capelão de bordo, dentro do costume dos navios ingleses, de guerra ou mercantes, de contratar um capelão. Foi nessa viagem que passou pelo Funchal, tendo como destino Surat, na província de Guzerate, na Índia, onde aquela Companhia inglesa se havia instalado em 1608 e consolidado a sua presença após a batalha de Swally, a 29 e 30 de novembro de 1612, contra uma armada portuguesa enviada de Goa para os desalojar. O Rev. John Ovington domiciliou-se em Surat durante dois anos e meio, mas a cidade entrava em decadência com a transferência da sede da Companhia para Bombaim, em 1687, cidade que entrara para a Coroa inglesa em 1662 no dote de casamento de D. Catarina de Bragança (1638-1701) com Carlos II (1630-1685). A Rainha D. Catarina de Bragança introduzira o chá na corte inglesa, pelo que essa bebida passou a gozar de certa divulgação, sendo um dos principais negócios da Companhia das Índias Orientais. Regressado John Ovington a Inglaterra por volta de 1692, veio a editar as memórias da sua viagem em 1696, sendo estas, posteriormente, sucessivamente reeditadas e traduzidas. No entanto, à época, foi o folheto que escreveu a divulgar o chá, editado em 1699, que lhe deu renome, para o bem e para o mal. Até essa data, o chá era considerado uma bebida somente de senhoras, o que lhe veio a causar alguns problemas, tendo sido o seu principal delator um capitão de navio concorrente da Companhia, Alexander Hamilton, que não se escusou de o apelidar de “fêmea Ovington” e “mole hermafrodita” (SILVA, 1981, 177-178). No entanto, os trabalhos de Ovington já haviam sido reconhecidos antes de 1696, tendo sido nomeado capelão do Rei Guilherme III (1650-1702), ensinando na Universidade de Dublin e acabando os seus dias, solteiro, como reitor de St. Margaret, Lee, no condado de Kent e Diocese de Rochester, em finais de junho de 1731. Alguns anos depois, especialmente após a tradução francesa de Jean-Pierre Niceron (1685-1738), editada como Voyages Faits à Surate & en d'Autres Lieux de l'Asie & de l'Afrique (Paris, 1725), a sua obra passa a ser conhecida como apresentando franca influência mongol e aspetos do ascetismo indiano e persa deveras interessante. Seguiremos a tradução de António Ribeiro Marques da Silva, feita a partir da edição da responsabilidade da Oxford University Press, editada em Londres em 1929 e incluída em A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700. A sua descrição da ilha da Madeira começa pela habitual abordagem histórica inglesa, na base da mítica viagem de Machim e Ana de Arfet, a que, com alguns anacronismos, se segue a viagem dos primeiros capitães, não nomeados, que, desembarcados depois para o povoamento, “em pouco tempo, transformaram a região num paraíso” (OVINGTON, 1981, 196). Ovington deve ter consultado a descrição de Cadamosto (1432-1488), pois utiliza termos e medidas iguais, elogiando a fertilidade do solo da Ilha e ressaltando “que todos os seus produtos, pela notável beleza e abundância, fizeram-na ganhar o título de ‘Rainha das Ilhas’” (Id., Ibid.). O capelão refere também que dali se exportava vinho e açúcar, sendo este “considerado o melhor do mundo” (Id., Ibid., 197). No entanto, o principal produto de exportação da Ilha era o vinho, tendo as videiras vindo de Creta e sendo então três ou quatro castas, com as quais aquele era produzido. Um, menos apreciado, era da cor do champanhe; outro, mais forte e de cor mais clara, era semelhante ao vinho branco; a terceira espécie, rica e deliciosa, era designada por Malvasia; a quarta espécie era o tinto, mas era muito inferior em gosto. O texto de Ovington é um dos primeiros textos a descrever o tratamento do vinho madeirense: “Para fermentar e tratar o vinho, trituram e cozem uma pedra chamada gesso, da qual atiram nove ou dez libras para dentro de cada pipa”. O reverendo cita igualmente que, por aquela data, se começou a perceber as qualidades da fermentação ao calor do sol, informando que se desviava o batoque “da abertura da pipa e, desta maneira, o vinho ficar exposto ao ar” (Id., Ibid., 197-198). John Ovington refere que eram “muito vulgares os citrinos, dos quais os nativos fazem um doce delicioso” (Id., Ibid., 198) chamado sucket, que era anualmente exportado para França, em dois ou três pequenos barcos. O açúcar com que realizavam a cristalização de frutos, “muitas vezes receitado como remédio para a tuberculose pulmonar”, raramente era exportado devido à sua escassez, pois mal chegava para as necessidades da Ilha (Id., Ibid.). O termo “sucket” utilizado por Ovington deve corresponder a qualquer doce que se chupava, a uma espécie de rebuçado de funcho que deve ter visto apenas na Ilha, pois, na época, os doces de exportação seriam chamados de compotas, doces e casquinha, uma conserva feita com cidra cristalizada, conforme consta da documentação local. No entanto, este negócio de doces era mais importante do que Ovington pensava, exportando-se muito mais do que os três citados pequenos barcos para França. O informador de António Jorge de Melo (c. 1640-1704) afirmava mesmo que poderiam estar envolvidos nos cômputos gerais anuais cerca de 20 embarcações só de um tipo destes doces. As bananas devem ter estarrecido o puritano reverendo, que refere: “são tão apreciadas e até veneradas que ganharam, entre os nativos, a crença de serem o fruto proibido. E parecendo confirmar esta crença, as plantas exibem as vastas folhas que sendo tão grandes os levaram a dar crédito à sua utilidade na proteção da nudez de Adão e Eva. É considerado quase crime sem perdão cortar com uma faca este fruto que, depois do corte, apresenta leve semelhança com o Nosso Salvador crucificado; e isto, segundo dizem, é ferir a sua sagrada imagem” (Id., Ibid., 199). Seguindo a descrição de Ovington, lemos igualmente: “os negociantes ingleses, que se calcula não ultrapassarem uma dúzia, seguem a maneira de viver inglesa característica das suas cidades e da casa de campo. Enfastiados da cidade, recreiam-se nas suas propriedades rurais, para as quais nos convidaram solenemente levando-nos a nós, forasteiros, a um fresco lugar onde borbulhavam fontes à sombra da ramagem de laranjeiras e limoeiros. A Natureza aqui oferecia-nos um quadro de alegria e amor e esperava-nos com toda a pompa, amenidade e beleza de paisagem campestre. As colinas e vales abafados de vinha, ofereciam-nos o penetrante odor das uvas maduras” (Id., Ibid., 199). O vinho da Madeira ocupa uma boa parte do texto referente à Ilha, escrevendo com certo espanto Ovington que os madeirenses “quando bebem em companhia não impõem aos outros o vinho que devem beber. O criado empunha a garrafa entregando ao convidado o copo e lentamente verte a quantidade que aquele deseja. Deste modo, cada um toma a quantidade que lhe apetece, não sendo, por isso, os mais sóbrios forçados a beber de mais contra sua vontade” (Id., Ibid., 200). Acrescenta ainda que urinar na rua é considerado indecente e pode fazer com que “as pessoas sejam censuradas por embriaguez” (Id., Ibid.). Esta passagem de Ovington leva-nos a pensar que os excessos de consumo de álcool vigentes na Madeira nos séculos seguintes não eram então notórios. As apreciações mais complexas do reverendo anglicano vão para a forma de viver e vestir dos madeirenses, que lhe deve ter inspirado algum receio e que, a par de informações vinculadas provavelmente pelos comerciantes ingleses, o fez esboçar um quadro quase tenebroso da Madeira daquele tempo, a que é necessário dar o desconto devido à sua condição de puritano e estrangeiro. Escreveu, assim, que as pessoas optavam por uma maneira de vestir extremamente solene, trajando todas de negro, à semelhança, segundo entendeu, dos elementos eclesiásticos, “para melhor captarem as boas graças dessa classe que disfruta de tanta autoridade entre eles” (Id., Ibid.). Acrescenta ainda que não conseguiam deixar de viver sem “a galhardia que atribuem ao uso de uma espada ou punhal. Esses apêndices inseparáveis são até usados pelos criados que servem à mesa e que orgulhosamente se pavoneiam com os pratos, naqueles trajes solenes, com os punhos de uma espada de, pelo menos, uma jarda de comprimento (quase um metro) e isto em pleno verão” (Id., Ibid.). Esse e outros pormenores levaram o capelão anglicano a escrever que “o execrável pecado do homicídio ganhou também, não apenas impunidade, mas até reputação. Mergulhar as mãos em sangue tornou-se característica de qualquer cavalheiro de posição social e distinção” (Id., Ibid., 203), acrescentando: “são muito propensos a este crime, caindo frequentemente nele, devido ao fácil acolhimento das igrejas que os resguardam de qualquer ação judicial e aonde acorrem sempre que se lhes ofereça oportunidade” (Id., Ibid.), o que, embora fosse verdade, não era assim tão linear (Alçadas). O capelão anglicano atribuía esta situação à Igreja Católica, dizendo que “o número de clérigos aumenta aqui, assim como em outros países papistas, até para opressão de leigos com os quais parecem rivalizar em quantidade. Custa a crer como tantos ricos eclesiásticos podem ser sustentados com o labor de tão escassa população” (Id., Ibid.). Acrescentava ainda: “reduz-se este espanto sabendo que – segundo nos dizem – com o fim de evitar uma sobrecarga para a igreja, ninguém neste país é admitido na clerezia, se não conseguir possuir algum património” (Id., Ibid.). As apreciações mais difíceis de Ovington apontam para uma certa promiscuidade sexual que encontrou na Ilha e que, mais tarde, também apontará a Bombaim. Embora seja de colocar algumas reservas às suas observação, parece não haver dúvidas quanto à existência de uma certa libertinagem na Ilha, já confirmada, e.g., com Giulio Landi (c. 1510-1578) nos anos 30 do século anterior. Ovington cita que “a inconstância do marido encoraja (embora sem o direito de desculpar) a mesma leviandade da esposa, cujo sexo é dotado de uma fraqueza que não lhe dá resistência contra os encantos de sedutoras tentações. Portanto, são aqui as mulheres tão capazes de enganar os maridos como estes de enganar as mulheres, uns aos outros igualmente acessíveis a forasteiros, especialmente as mulheres, cuja disposição nesse sentido é mais excitada pelo facto de viverem enclausuradas, guardadas e afastadas de qualquer convívio” (Id., Ibid., 202). Ovington aponta como uma das principais razões de tal situação os arranjos matrimoniais efetuados pelas famílias, à semelhança, e.g., do que era praticado na Índia, onde as crianças de tenra idade se comprometiam, através de contrato, aos cinco ou seis anos. Ao preparar-se um casamento, as primeiras informações procuradas eram sobre a ascendência e posição económica do pendente, procurando-se evitar a “detestada afinidade com os mouros e judeus, entre eles muito numerosos” (Id., Ibid.). No âmbito deste tema, ressalta ainda que uma das atitudes que mais o “surpreendeu foi a proibição que uma certa velha dama levantou às pretensões de um jovem candidato à mão de sua filha, informada da saúde e vigor da constituição do jovem, assim como da moderação e castidade nos seus costumes dos quais constava nunca ter sofrido qualquer doença venérea” (Id., Ibid., 203), concluindo a senhora que tal se devia à fraqueza da constituição física do jovem, pois “pensava não haver necessidade de objeções de consciência para pecados tão veniais cuja prática, em sua opinião, era meritória” (Id., Ibid.). As apreciações gerais sobre a cidade são sumárias, registando Ovington que “as casas são feitas sem grande dispêndio ou esplendor, nem se distinguem pelo embelezamento artístico nem interiormente se apresentam ricas de ornamentos e mobiliários. Algumas atingem uma razoável altura” – por certo as típicas torres do Funchal para se ver o mar – “mas sem outra característica de grandeza. Geralmente são de telhados baixos, permitindo todas a ventilação através de janelas que, sem vidros, ficam abertas durante o dia e fechadas com postigos de madeira, à noite” (Id., Ibid., 200-201). No entanto, o reverendo deixou-se extasiar perante a igreja dos Jesuítas, que considerou “de longe o mais belo de todos os seus templos” (Id., Ibid., 204), descrevendo principalmente as iluminações e festas por ocasião do dia de S.to Inácio. Informa, então, que se cantou “uma série das mais escolhidas antífonas com o acompanhamento melodioso de instrumentos e música coral, suficientes, se a sua doutrina lhes correspondesse, para nos cativar e levar à conversão” (Id., Ibid.). Conta, por último, que “algumas capelas, assim como as casas, são construídas sobre colinas tão íngremes que parecem ameaçar de quedas graves os que saem delas, os quais certamente não deixarão de invocar a proteção dos santos, para afastamento desses perigos” (Id., Ibid.). O texto de John Ovington encontra-se logicamente eivado de referências anticatólicas, dada a época em que foi escrito, na qual não havia, e.g., nenhum cemitério ou igreja anglicana. Para tal também concorreu um problema que terá havido com alguns marinheiros do navio da Companhia inglesa, que Ovington e os companheiros entenderam que teriam sido presos em terra pelos padres do Colégio dos Jesuítas, que serão acusados pelo reverendo de serem profundamente incultos, “de grande incapacidade cultural, facilmente denunciada na sua ignorância”, de tal forma que apenas um em cada três com quem conversou “compreendia o latim” (Id., Ibid., 204). Isto não pode, no entanto, ser verdade, salvo se, em vez de padres, tivesse estado à conversa com leigos. Também acusa os cónegos da Sé de profunda indolência e de atrasarem o relógio da torre uma hora para não rezarem as matinas às 4 h da manhã. Como o “levantar-se cedo representa uma grande maçada, especialmente para homens corpulentos, decidiram que o relógio, de manhã, nunca bateria as quatro horas senão quando fossem realmente cinco” (Id., Ibid., 206), o que era explicado como uma pontual avaria. Para resolver o assunto dos seus homens presos em terra, o capitão do navio optou por sequestrar uma embarcação vinda das zonas rurais para o Funchal, que transportava um abade e um vigário. O capitão escreveu então uma carta ao cônsul britânico, que pensamos ser John Carter, para interceder junto do governador, então Lourenço de Almada (1645-1729), propondo a troca dos prisioneiros. Ao contrário do que esperava, recebeu a bordo alguns dos comerciantes britânicos, “trazendo consigo dinheiro para uma viagem” (Id., Ibid., 208), tal era a situação de insegurança sentida em terra com o sequestro dos eclesiásticos. Face à situação, o capitão optou por enviar todos para terra, incluindo o abade e o vigário, “até porque pensava que os padres seriam tão inúteis para ele no mar, como geralmente o são em terra, constituindo um pesado fardo em terra como no mar” (Id., Ibid.), esquecendo-se John Ovington que também era padre, pelo que o mesmo, em princípio, também se aplicava a ele. Esta memória terá sido escrita algum tempo depois do referido acontecimento, pois acrescenta que, dia e meio depois da partida do navio, chegavam ao Funchal dois navios de guerra franceses e que, mal tinham deitado a âncora, a tornavam a levantar, seguindo para as Canárias, informados de ter sido esse o destino do navio inglês. O Benjamim, no entanto, torneou a ilha da La Palma, a leste, e seguiu diretamente para a ilha de Santiago, em Cabo Verde, malogrando assim a perseguição francesa (Id., Ibid., 209). Na sequência do texto sobre a Madeira, descreve ainda os peixes-voadores que observou a bordo e um tornado que sofreram. Obras de John Ovington: A Voyage to Suratt, in The Year 1689 (1696); An Essay upon the Nature and Qualities of Tea (1699).   Rui Carita (atualizado a 15.12.2017) artigos relacionados: açúcar banana vinho

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