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gabinetes de leitura

Cidade aberta à presença de estrangeiros, nomeadamente Ingleses, o Funchal do séc. XIX nem sempre respondia às solicitações culturais de quem visitava a cidade. O madeirense era pouco letrado e os estrangeiros queixavam-se do facto de não haver livrarias na cidade. Referiam-se, porém, à existência de gabinetes de leitura, lugares onde podiam conviver, ler jornais e revistas ingleses, em clubes onde pagavam quotas. Estes gabinetes eram, então, de acesso privado. Alguns dos estrangeiros que falam da ilha da Madeira referem-se-lhes. Em 1840, Fitch Taylor regista a sua existência no relato que faz da sua viagem à volta do mundo. O mesmo acontece no texto A Winter in Madeira, de 1850. Estes gabinetes revelam-se uma necessidade dos Ingleses e são referenciados nos guias de viagem. O Clube Inglês disponibilizava aos seus membros, para além dos jornais e das revistas, livros de tipologia diversa – desde ensaios e trabalhos científicos até “literatura ligeira da época” (DIX, 1850, 90). Nos começos do séc. XIX, a biblioteca deste clube detinha cerca de 2000 títulos – afirma-o um guia para viajantes e para “inválidos”. Este Clube Inglês, fundado em 1832, também conhecido como “english rooms”, situava-se na R. da Alfândega, entre as duas entradas do Blandy Brothers (Banqueiros Lda.), segundo consta do guia para o visitante assinado por Gordon Brown, o que evidencia a clara importância que esta estrutura teria para suprir as necessidades dos visitantes. Mediante uma quota semestral de 15 dólares, os estrangeiros poderiam conviver, jogar cartas ou bilhar, assim como consultar os mais recentes jornais, periódicos e livros ingleses. O gabinete de leitura do Clube Português não tinha livros, mas apenas jornais e revistas, em português. Não obstante verificar-se um maior interesse e uma maior divulgação dos gabinetes de leitura que servem os turistas que descobrem a Ilha, a verdade é que há referências a associações mais abrangentes, onde a preocupação com a leitura começa a fazer-se sentir. Numa nota a “Instrução pública”, relativa ao período monárquico-liberal, Álvaro Rodrigues de Azevedo remete para dois clubes recreativos, criados por associações particulares, com gabinetes de leitura: o União, criado a 10 de março de 1836, na Pr. da Constituição; e o Funchalense, estabelecido “ao Carmo, mas desde muitos anos também, no palácio da rua do Peru”. Este autor, nas notas que apõe a Saudades da Terra, faz menção de outro gabinete, inserido na Associação Comercial, que se situava à entrada da cidade, assim como “o princípio de uma biblioteca no Grémio Recreativo dos Artistas” (FRUTUOSO, 1873, 804-805). Na realidade, os estatutos de 1836 da Associação Comercial do Funchal já permitiam o acesso a periódicos, mapas, folhetos, livros e notícias, abrindo caminho para a instalação de um gabinete de leitura que, tal como o seu congénere do Clube Inglês, funcionava como um centro de encontro e convívio entre os sócios e os visitantes. No inventário de 1884 desta Associação consta a existência do mobiliário do gabinete de leitura, não havendo referência a qualquer armário, móvel ou estante para arrumação de livros e jornais, que estariam guardados fora do alcance dos utilizadores, na sala de sessões. Em 1897, é aprovado o projeto de regulamento da biblioteca e do gabinete de leitura desta Associação, clarificando as funções de cada um: o gabinete de leitura teria apenas o catálogo das obras existentes na biblioteca, e jornais, que um amanuense distribuía e recolhia diariamente e que eram facultados, mediante bilhetes de requisição, quer a sócios da Associação, quer a assinantes do gabinete. Nesse espaço, não era permitido fazer barulho, fumar, “levar para fora […], extraviar, mutilar ou danificar os jornais ali expostos” (MELLO e CARITA, 2002, 164), cabendo ao diretor da biblioteca zelar pelo bom funcionamento do gabinete. O gabinete, cujo horário era das 06.00 h às 21.00 h, permanecia aberto até mais tarde nos dias da chegada dos navios de Lisboa e dos paquetes ingleses que traziam notícias do mundo. Não temos conhecimento se as outras Associações que, entretanto, se formaram na cidade do Funchal teriam serviço semelhante. Na realidade, os gabinetes de leitura abriam as portas para a criação das bibliotecas públicas. No Funchal, à semelhança do que acontecia em outras cidades – sobretudo nas capitais dos distritos –, a Câmara fundou uma biblioteca pública, no dia 12 de janeiro de 1838, com um acervo constituído pelos 193 volumes da Encyclopedia Methodica, comprada aos herdeiros do conde de Canavial, e, em 1844, o município do Funchal solicita alguns livros do depósito das bibliotecas dos conventos extintos, tendo recebido, em 1863, 3060 volumes, em latim, português, francês, italiano e inglês. Um relatório americano dá conta dessa Biblioteca Municipal, em 1893. No começo do séc. XXI, as bibliotecas públicas oferecem serviços similares, agora gratuitos, apesar da necessidade de aquisição de um cartão de leitor/utilizador, que permite o acesso aos espaços das bibliotecas e dos centros de documentação, bem como à leitura, empréstimo e reserva de obras, à utilização de computadores e acesso à Internet, à visualização de conteúdos audiovisuais, entre outros serviços.     Graça Alves (atualizado a 01.02.2017)

História da Educação Literatura Sociedade e Comunicação Social

esoterismo

O esoterismo é o lado oculto e não revelado das doutrinas, das religiões e dos grupos espirituais, que apenas se transmite por via oral, de mestre para os discípulos. Também poderá estar associado ao misticismo, no sentido em que sinaliza a busca das leis e dos conhecimentos que regem o Universo. É a busca aprofundada do significado das coisas, naquilo que normalmente escapa à nossa perceção. Tendo em consideração a origem etimológica da palavra, pode-se dizer que o esoterismo é o contrário de exoterismo. Ou seja, esotérico é aquilo que está dentro, escondido e não pode ser revelado, em oposição ao que é exterior e é, ou pode ser, conhecido de todos. Sendo assim, reporta-se a conhecimentos teológicos, filosóficos, religiosos e teosóficos, que não podem ser publicados e revelados. Estes grupos ou ordens são definidos como iniciáticos, no sentido em que os novos membros são submetidos a um ritual de iniciação onde um dos aspetos é o juramento de guardar segredo, relativamente a diversos aspetos da ordem ou associação. Assim, no taoismo e tantra, os novos discípulos recebem um mantra secreto. A primeira utilização do conceito foi feita por Johann Gottfried Herder (1744-1803), em oposição ao racionalismo iluminista. Mas foi Eliphas Lévi (1810-1875) quem o vulgarizou, em conjunto com o ocultismo. Assim, o esoterismo pode ser entendido como ocultismo, misticismo e hermetismo. É ocultismo no sentido de que é oculto, pois há conhecimentos e realidades espirituais e sobrenaturais que não estão visíveis e que implicam o recurso a artes divinatórias, e.g., tarot, astrologia, runas, cartomância, iching, ou práticas espirituais, através da necromancia e da bruxaria. Já o misticismo, como o gnosticismo e a cabala, situa-se a um nível superior e pretende, a partir do estudo, de práticas e de rituais, estabelecer o contacto com o divino através da contemplação, enquanto o hermetismo defende uma realidade visível e invisível e o estabelecimento de contactos entre os dois mundos, estando ligado a Hermes e ao antigo Egito. Em primeiro lugar, é necessário considerar que a figura do chamado feiticeiro ou bruxo não tem qualquer significado esotérico. Aquele representa alguém que domina o conhecimento popular e que se afirma pelos dizeres e cantares, sendo uma referência para a comunidade. Destes, podemos salientar as figuras do Feiticeiro do Norte (Manuel Gonçalves, 1858-1927) e do Feiticeiro da Calheta (João Gomes de Sousa, 1895-1974). A ligação do esoterismo à Madeira começou a partir do momento em que se associou ao mito da Atlântida o próprio arquipélago, considerado como uma reminiscência daquela lendária ilha. Por outro lado, não se pode esquecer as ligações da Madeira à maçonaria, que remontam ao séc. XVIII. Todos os que foram contagiados por conhecimentos esotéricos sentem algo especial relativamente ao arquipélago da Madeira, fazendo da Ilha um local de peregrinação obrigatória na sua missão esotérica. A propensão de vários grupos esotéricos pela Madeira é reveladora dessa situação. Assim, para além do facto de a maçonaria em Portugal ter tido a sua primeira etapa na Madeira, assinalam-se múltiplas presenças pessoais e institucionais com ligações ao esoterismo, relacionadas com locais de emigração, e.g., Brasil, Venezuela e África do Sul. De entre as diversas personalidades adeptas e/ou estudiosas do esoterismo, pode-se assinalar, em primeiro lugar, a figura de Octávio José dos Santos, que assinava com o pseudónimo de Octávio de Marialva (1898-1992). Este apresentou, na sua trajetória, uma formação em escolas esotéricas e escreveu vários estudos (inéditos) sobre o esoterismo: Soluções, Sapiência, Cátedra, Polémicas, Mistérios, Cabala, Iniciação, Panaceia, Astrognose, Arcanos, Suma, Astramundo, Universo e Profecias. Referencie-se ainda o grupo Hermetismo e Nouesis, com ligações ao grupo Corpus Hermeticum, criado em 2000 na rede Facebook.     Alberto Vieira (atualizado a 23.01.2017)

Cultura e Tradições Populares Religiões

formação de professores

A formação de professores na Madeira inicia-se no ano de 1900 com a criação da Escola Distrital do Funchal, que se situava num edifício da R. dos Aranhas, e conferia a habilitação para o exercício do Magistério Primário. Nos anos seguintes, e correspondendo a diferentes reformas legislativas que ocorrem entre 1900 e 1921, a escola foi mudando de designação, passando a partir de 1904 a Escola Normal do Funchal e, a partir de 1919, a Escola Primária Superior do Funchal, designação esta que se mantem até 1921. O seu primeiro diretor foi Pedro José Lomelino, médico, nascido na ilha do Porto Santo a 19 de novembro de 1864. O primeiro curso tem a duração de dois anos e abarca as seguintes disciplinas: Aritmética e Geometria, Moral e Doutrina, Lavores, Desenho e Música, Português, Geografia, Ciências Naturais, Gramática, Caligrafia, Direitos e Deveres e História. Em 1921, inicia-se um hiato na formação de professores que se prolonga até 1943, ano em que, pelo dec.-lei n.º 33.019 de 1 de setembro, se cria a Escola do Magistério Primário do Funchal, que vem suprir a falta de professores primários no arquipélago da Madeira devido ao interregno que este período de 20 anos provocara na formação. A Escola do Magistério funciona, inicialmente, numa sala do Liceu Jaime Moniz, por determinação do art. 2.º do referido decreto, e tem, por inerência, como seu primeiro diretor o reitor do mesmo, na altura, o Dr. Ângelo Augusto da Silva. No ano letivo de 1943-1944, primeiro ano de existência da Escola, do seu corpo docente fazem parte António Marques da Silva, Lúcio Santana Bartolomeu do Rosário e Miranda, José Nunes Parro, William Edward Clode, Gustavo Augusto Coelho, Adelino dos Santos Lã, Ernesto Marçal Martins Gonçalves, Cón. Manuel Francisco Camacho e Judite Adriana Teixeira de Sousa Moniz. A frequência do curso passa pela aprovação num exame de admissão com prova escrita e oral, e a sua conclusão, após a aprovação em Exame de Estado, mais tarde Termo de Conclusão do Magistério Primário, confere habilitação para o magistério primário. Os cursos têm, inicialmente, a duração de dois anos e fazem parte do seu plano curricular as seguintes disciplinas: Pedagogia e Didática Geral; Psicologia Aplicada à Educação; Higiene Escolar; Educação Física; Desenho e Trabalhos Manuais; Educação Feminina; Música e Canto Coral; Organização Política e Administrativa da Nação; Educação Moral e Cívica; Prática Pedagógica; Didática Especial; Legislação. O plano curricular do curso sofreu alterações e, a partir de 1977, passa a ter uma duração de três anos letivos. Mais tarde, já no final dos anos 70, a Escola do Magistério Primário do Funchal alarga a sua área de ação na formação e abarca a formação inicial de educadores de infância. Assim, no ano letivo de 1977-1978, através de um protocolo com a Escola João de Deus de Lisboa, inicia esta formação. Este curso funciona nas instalações da Escola do Magistério Primário do Funchal, na altura sediada na Qt. da Ribeira, à Calç. da Cabouqueira n.º 5, em estreita colaboração com a escola mãe – que dava apoio pedagógico e científico ao curso, deslocando à Madeira pessoal docente para garantir algumas disciplinas diretamente relacionadas com aspetos técnicos e metodológicos de aplicação do método João de Deus –, mas no essencial garantido por docentes da Escola do Magistério do Funchal. A escola João de Deus apresenta a particularidade de usar um método específico de iniciação à leitura e à escrita, o método João de Deus, criado em 1920 pelo pedagogo João de Deus Ramos, filho do poeta João de Deus, patrono da escola. A turma deste curso, que é composta por 25 alunos, conclui a sua formação no ano letivo 1979-1980, vindo a responder a uma grande necessidade de profissionais na educação infantil e reforçando, assim, a resposta educativa profissionalizada na Madeira. No ano letivo 1982-1983, a Escola do Magistério Primário ganha independência da outra instituição, criando o seu próprio Curso Normal de Educadores de Infância, que funciona até à sua integração na Escola Superior de Educação da Madeira. A 21 de setembro de 1982, é criada a Escola Superior de Educação da Madeira (ESEM), pelo dec.-lei n.º 395/82, e inicia-se um longo processo de estruturação da escola, que só se efetiva após a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (lei n.º 46/86, de 14 de outubro), que tem um forte impacto na formação de professores na região autónoma. A formação de professores reforça-se, pois para além do Curso do Magistério Primário e do Curso Normal de Educadores de Infância, que transitam da Escola do Magistério, a ESEM chama, ainda, a si a formação pedagógica de professores já integrados no sistema de ensino, particularmente nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário, através da profissionalização em serviço, sistema coordenado pelo então criado Centro Integrado de Formação de Professores (CIFOP), estrutura da ESEM que abarca esta modalidade de formação, que se encontra enquadrada no dec.-lei n.º 287/88 de 19 de agosto. A partir do ano de 1982 são criados no Funchal centros de apoio de estabelecimentos de ensino superior universitário, ao abrigo do dec.-lei 205/81, de 10 de julho. O despacho normativo 262/82 cria, na Região Autónoma da Madeira, sob proposta do Governo regional e ouvida a Universidade de Lisboa, o Centro de Apoio da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa; pelo despacho normativo 182/83, é criado o Centro de Apoio da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O Centro de Apoio da Faculdade de Ciências funciona na R. Bela de Santiago, num antigo anexo do Liceu Jaime Moniz, onde já havia funcionado a Escola do Magistério Primário e o da Faculdade de Letras na R. dos Ferreiros n.º 163. Os cursos lecionados nestas extensões universitárias – de formação de professores especialistas para áreas determinadas do currículo do 3.º ciclo e do ensino secundário – reforçaram o corpo docente de muitas escolas que foram surgindo por quase todas as freguesias da Madeira, por força de uma política de expansão do parque escolar. O número de professores profissionalizados em disciplinas como a História, o Português, o Francês, o Inglês, o Alemão e a Geografia, formados pelo então Centro de Apoio da Faculdade de Letras de Lisboa, cresce significativamente, contribuindo para que a grande maioria das escolas reforce o seu corpo docente e complete os seus quadros com professores profissionalizados. O mesmo se passa com a formação de professores em Matemática, Química, Física e Ciências. Nos últimos dois anos dos seus cursos, estes Centros integram formação em Ciências de Educação e estágio integrado em escolas do 3.º ciclo e do ensino secundário, garantindo com isso a profissionalização efetiva e o ingresso na carreira docente de um corpus cada vez mais coeso de profissionais de ensino científica e pedagogicamente habilitado. Ainda em 1982, cria-se a extensão à Madeira da UCP, que assume um papel importante na formação de professores de Português do 3.º ciclo e do ensino secundário, bem como de professores de Latim e Grego para o ensino secundário. É importante destacar que todos estes cursos, que funcionavam em regime de extensão universitária, eram ministrados por professores que se deslocavam das respetivas universidades e tinham lugar ao fim de semana, de sexta-feira a domingo. Não menos importante – e por se tratar da formação de professores de nível de mestrado (formação essa que se tornava cada vez mais necessária tendo em conta a emergência do ensino superior na Região e a necessidade de docentes especialmente vocacionados para o ensino politécnico e universitário) – é o facto de em 1984 se iniciar, através de um protocolo com a Universidade do Minho, um mestrado em Análise e Organização do Ensino, que tem a duração prevista de dois anos e que forma um grupo considerável de docentes habilitados. Os anos 80 foram anos de intensa atividade no que diz respeito à preparação do terreno para o aparecimento de uma instituição que pudesse chamar a si tão variadas experiências formativas na área docente, que se revelaram importantíssimas para a evolução e garantia de qualidade do sistema educativo na Região. Toda a tradição de formação de professores que tinha vindo a ser construída desde o início do séc. xx, com a criação da Escola Distrital de Funchal e a consequente formação dos primeiros professores habilitados para o exercício do magistério, frutificou na criação da Universidade da Madeira (UMa), um espaço destinado nomeadamente a manter a continuidade desta formação. A UMa herda, como já foi referido, a tradição da formação de professores dos diferentes graus e níveis de ensino. Vinda já do CIFOP, a Universidade ganha também a profissionalização em serviço, uma modalidade de formação que não confere grau académico, e que pretende responder à necessidade de preparar os profissionais de ensino para os desafios decorrentes da aplicação da Lei de Bases. O dec.-lei n.º 287/88, de 19 de agosto, que cria a profissionalização em serviço, diz no seu preâmbulo a este respeito: “Os professores dos quadros de nomeação provisória, agora com direito à profissionalização em serviço, apresentam perfis de experiência muito diversos e, em resultado da nova conceção e organização dos concursos, realizarão a sua formação profissional numa rede de escolas caracterizada pela dispersão geográfica e pela diferenciação. As suas legítimas expectativas tornam imperioso imprimir um ritmo rápido ao processo de profissionalização. Assim, urge rendibilizar os recursos humanos e materiais disponíveis, de modo a responder, com eficiência e racionalidade, às exigências da situação no menor prazo de tempo possível, desejavelmente não superior a cinco anos.” Este modelo de formação contínua de professores nasce da necessidade de proporcionar, o mais depressa possível, a formação pedagógica adequada a um grande grupo de professores que à data exerciam a profissão com estatuto de professores provisórios devido ao facto de apenas serem portadores de formação académica mas não possuírem a necessária formação pedagógica. A inexistência deste requisito levava a um bloqueio no acesso à progressão na carreira docente. O modelo apresenta duas componentes de formação: formação na área das Ciências da Educação e Prática Supervisionada, que se efetiva pela implementação do Projeto de Formação e Ação Pedagógica. A componente de Ciências da Educação abarca áreas como a Teoria e Desenvolvimento Curricular, a Sociologia da Educação, a Gestão e Administração Escolar e a Didática Específica, que pode ser uma ou duas consoante o grupo disciplinar a que o professor pertence seja mono ou bidisciplinar. As disciplinas referidas são garantidas inicialmente pela ESEM e mais tarde pela UMa, com a criação do seu departamento de Ciências da Educação. A componente de implementação de projeto é realizada na escola à qual o professor pertence e é acompanhada, preferencialmente, por um orientador da respetiva escola, que deverá ser o delegado de disciplina e que aqui assume a função de orientador pedagógico, e por um orientador da ESEM/UMa, que assume a função de orientador científico. Estes coordenadores acompanham o trabalho do professor em formação, assistindo a aulas e reunindo-se com o objetivo de avaliar não só momentos particulares da atividade do professor, mas também o seu desempenho geral (avaliação final). A conclusão deste percurso formativo com avaliação positiva concede ao professor a possibilidade da sua integração na carreira docente, passando da figura de professor de nomeação provisória para a de nomeação definitiva. O dec.-lei n.º 287/88 de 19 de agosto prevê ainda que os professores que à data da conclusão do primeiro ano da sua profissionalização (ou seja, à data da conclusão da componente de Ciências da Educação) possuam seis ou mais anos de serviço docente fiquem dispensados da frequência do 2.º ano, podendo passar imediatamente à condição de professor de nomeação definitiva. A profissionalização em serviço, enquanto programa de formação de professores com vínculo provisório, prolongou-se até ao ano letivo de 2013-2014, ano em que este modelo de formação deixou de funcionar na UMa. Este não foi o único modelo de profissionalização que se implementou na RAM. Outra área que no final dos anos 70 apresentava grande carência de docentes capacitados era a Educação Especial, que funcionava com muito poucos professores e educadores especializados, que entretanto se iam especializando em escolas de Lisboa, sendo a grande maioria dos seus docentes somente portadora de formação inicial em professores do 1.º ciclo do ensino básico e educação de infância. Para solucionar esta situação, a RAM, através da Direção Regional de Educação Especial (DREE), abre em 1983, em colaboração com o Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, a entidade formadora nacional, sediada em Lisboa, que então centralizava toda a formação de professores especialistas para a Educação Especial, uma turma de 26 alunos. Os professores/alunos que compõem a turma são selecionados por concurso público e destacados para a frequência do curso. Esta turma funciona em regime de extensão, numa sala especialmente preparada para o efeito, no Lar do Internato da Quinta do Leme. As aulas são lecionadas por professores do referido Instituto, que se deslocam à Madeira. No primeiro ano, os estudantes frequentam a sede da Escola onde ficam a conhecer a instituição; os restantes momentos formativos funcionam no Lar do Internato da Qt. do Leme, no Funchal. O curso tem a duração de três anos letivos, dois dos quais são teóricos, sendo um de estágio na área de especialização de opção de cada formando. As áreas de especialização são as seguintes: Deficiência Auditiva, Deficiência Intelectual, Deficiência Motora e Deficiência Visual. Dos 26 professores/estudantes que iniciam a formação, 23 concluem-na com aproveitamento e passam a integrar o quadro da DREE, exercendo funções nos seus diferentes serviços técnicos: Serviço Técnico de Educação de Deficientes Auditivos; Serviço Técnico de Educação de Deficientes Intelectuais; Serviço Técnico de Educação de Deficientes Motores e Serviço Técnico de Educação de Deficientes Visuais. Após este primeiro curso, a DREE estabelece protocolos com escolas superiores de educação do continente, que tinham começado a dar resposta de formação de professores de educação especial por força da extinção do Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, que ocorre no ano de 1989. Promove formação em regime de extensão, primeiramente pela Escola Superior de Educação do Porto e, mais tarde, pela Escola Superior de Educação de Lisboa. Estes cursos são cursos de estudos superiores especializados e já proporcionam não só a obtenção de habilitação profissional para o exercício da função de professor de Educação Especial, como também a obtenção de grau académico de diploma de estudos superiores especializados, equiparado para todos os efeitos a licenciatura. Os docentes de educação especial que frequentaram cursos que não conferiam este grau deslocaram-se à Escola Superior de Educação de Lisboa, que promoveu módulos de formação adicional de modo a permitir a este grupo de docentes a referida habilitação académica e o consequente impacto na sua carreira. Esta foi a primeira etapa da formação de professores de educação especial na Madeira, a qual mais tarde foi ganhando outras formas através de cursos de formação à distância e mista, online e presencial, proporcionados por algumas escolas de formação particulares do continente. Podemos, assim, considerar que a Madeira construiu um corpo docente que permitiu responder a esta modalidade educativa de forma adequada. Por força da aplicação do dec.-lei n.º 255/98 de 11 de agosto, que operacionaliza o estabelecido na lei 115/97, que refere no seu artigo 2.º que o Governo definirá por decreto-lei as condições em que os educadores de infância e professores do ensino básico sem o grau académico de licenciatura o poderão adquirir, criam-se os cursos de complemento de formação científica e pedagógica para educadores de infância e professores do ensino básico com o grau de bacharéis. Tais cursos são organizados e funcionam em escolas superiores de educação e em estabelecimentos de ensino universitário; no caso da Madeira, centram-se na UMa. O acesso aos cursos é feito por concurso, sendo os candidatos seriados por análise curricular. A sua frequência é gratuita. As primeiras turmas são de educadores de infância, professores do 1.º ciclo do ensino básico e professores do 2.º ciclo dos grupos bidisciplinares de Matemática e Ciências, e Português e História. Esgotada a formação dos professores bacharéis do 2.º ciclo, a formação continua agora exclusivamente dirigida a educadores de infância e professores do 1.º ciclo. Estes cursos têm a duração de três semestres e funcionam nas instalações da UMa, ao Campus da Penteada, em horário pós-laboral, de segunda a sexta-feira e aos sábados de manhã. Os professores que os concluem com aproveitamento adquirem o grau de licenciatura e o seu tempo de serviço é recontado para efeitos de carreira docente como se tivessem iniciado a carreira como licenciados. Isto provoca um acréscimo salarial de todos estes docentes na ordem de um ou dois escalões, consoante o seu tempo de serviço docente e o escalão onde se encontravam. Estamos perante um processo de formação que influi simultaneamente na carreira e na habilitação académica dos professores que a ele se sujeitam. Nos anos 80 do séc. XX, situações de formação idênticas a estas, que permitiram a obtenção de grau académico de licenciatura, foram também proporcionadas aos professores de Educação Tecnológica e Trabalhos Manuais pela Universidade Aberta e a professores de Educação Física pela UMa. Todas estas respostas de formação de professores se encaminham para a construção de um corpo docente com uma habilitação académica do mesmo nível, acabando assim com a grande variação de habilitações presente na carreira docente, que implicava, logo à partida, diferenças salariais significativas. Entre os anos 80 do séc. XX e os primeiros cinco anos do séc. XXI a formação de professores viveu um período de grande efervescência, que agitou a classe e a envolveu em processos formativos que trouxeram grandes benefícios para os professores em particular, e para as escolas em geral, enquanto espaços onde essa formação tinha impacto real. O Estatuto da Carreira Docente pode ser considerado o motor na procura de formação de nível de mestrado e doutoramento por parte dos professores e na sua consequente oferta pelas universidades, dado o reconhecimento que tal Estatuto lhes confere na carreira docente. A UMa não foge à regra e em 2001 abre o seu primeiro curso de mestrado destinado, fundamentalmente, a professores e educadores. O mestrado é da responsabilidade do Departamento de Ciências da Educação; enquadra-se na área das Ciências da Educação/Supervisão Pedagógica e tem lugar em colaboração com a Faculdade de Ciências de Educação da Universidade de Lisboa e da Universidade do Porto. Todos os mestrandos concluem o curso com aproveitamento e as dissertações apresentadas fornecem uma perspetiva crítica e reflexiva sobre diferentes âmbitos da realidade educativa regional. Seguiram-se mestrados em Inovação Pedagógica e Administração e Gestão Escolar, que devolvem às escolas professores mais aptos e capazes para o exercício de outras funções educativas, como a gestão dos estabelecimentos de ensino, a avaliação docente e a implementação de estudos centrados em problemáticas que emergem da situação das escolas e do sistema educativo. Aos cursos de mestrado seguem-se os doutoramentos em educação na área do Currículo e da Inovação Pedagógica, que também são procurados pelos professores. A par da formação inicial e por força da implementação do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, introduzido pelo dec.-lei n.º 139-A/90 de 28 de abril, em conjugação com o dec.-lei 409/89, de 18 de novembro – que aprova a estrutura da carreira do pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário e no art. 9.º estabelece as normas relativas ao seu estatuto remuneratório, definindo como um dos critérios para a progressão nos escalões da carreira docente a frequência com aproveitamento de módulos de formação –, a questão da formação contínua dos professores adquire uma grande dimensão, dada a importância que assume na garantia da sua progressão remuneratória. A formação contínua de professores, que durante muitos anos foi regularmente promovida pelas entidades com responsabilidades na educação na Madeira (desde a Secretaria da Educação às escolas, passando pelas diferentes associações profissionais de professores) através de ações de formação pontuais e de jornadas pedagógicas (com destaque para as jornadas organizadas pelo Sindicato dos Professores da Madeira), ganha estatuto legal em 1992, ano em que foi aprovado o 1.º regime jurídico da formação contínua de professores, pelo dec.-lei n.º 249/92, de 9 de novembro. Nele se definem os princípios a que deve obedecer esta modalidade de formação, as áreas sobre as quais deve incidir e as várias modalidades e níveis que deve assumir. Definem-se igualmente as instituições e as entidades vocacionadas para a formação de professores. É assim que, ao lado das instituições de ensino superior, surgem os Centros de Formação de Associações de Professores. As primeiras instituições que chamam a si a formação contínua de professores já nos moldes previstos no seu regime jurídico – formação creditada e acreditada pelo Conselho Coordenador da Formação Contínua de Professores, depois Conselho Científico-Pedagógico – são a Secretaria Regional de Educação, o Centro Integrado de Formação de Professores da UMa e o Centro de Formação do Sindicato dos Professores da Madeira. Sendo uma associação profissional, o Sindicato dos Professores da Madeira, no cumprimento da legislação em vigor, submete-se a um processo de acreditação que culmina a 14 de agosto de 1993 com a aquisição do 1.º certificado de acreditação do seu Centro. Este é o único Centro de Formação que, no plano regional, atinge tal objetivo. A sua primeira diretora foi a Prof.ª Isabel Sena Lino. Mais tarde, outras organizações profissionais de professores, através de protocolos com centros de formação do continente, promovem também ações de formação contínua – o que vem alargar o leque de formação, bem como o número de ações disponíveis. Surgem também as comissões de formação nas escolas, órgãos que dependem dos Conselhos Pedagógicos e que têm como missão divulgar e organizar formação para os professores da sua escola, em primeiro lugar, e de outras escolas, caso o número de vagas o permita. As várias revisões do Estatuto da Carreira Docente, do regime jurídico da formação contínua e de outros documentos legais que configuram a carreira docente, bem como a recessão económica que teve efeitos mais evidentes na economia no início de 2010, colocaram um travão à quantidade de oferta formativa disponível para a formação contínua de professores, que se tornou cada vez mais escassa e sujeita a apertados controlos financeiros. A oferta formativa da UMa, em cursos de mestrado e doutoramento em educação, manteve-se, mas a sua procura baixou significativamente nestes anos.     Fernando Luís de Sousa Correia (atualizado 31.01.2017)

Educação História da Educação

cem – construindo o êxito em matemática

No final da déc. de 90 do séc. XX, a Associação de Professores de Matemática (APM) realizou um estudo, Matemática 2001 – Diagnóstico e Recomendações sobre o Ensino e Aprendizagem da Matemática, “com o propósito de elaborar um diagnóstico e um conjunto de recomendações sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática no nosso país” (ASSOCIAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA, 1998, 1). Este estudo tinha a preocupação de contribuir para a melhoria do ensino da matemática no início do séc. XXI. Dele emergiram recomendações específicas para uma reorganização curricular, repensando as finalidades do ensino da disciplina para as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula e para a formação de professores, entre outras. Em 2001, seguindo as recomendações advindas do estudo supracitado, o Ministério da Educação lançou o Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências Essenciais, definindo as aptidões fundamentais que um aluno deveria ter desenvolvido no final de cada ciclo (1.º, 2.º e 3.º ciclos). Esta finalidade do ensino da matemática implicava mudanças nas práticas dos professores. Visando ir ao encontro das necessidades de formação para implementar tais mudanças, realizou-se na Madeira uma formação para professores de matemática. Em 2005, no âmbito do Plano de Ação para a Matemática, iniciou-se em todo o país uma formação de professores que teve como propósito melhorar a preparação para uma mais profícua implementação do novo programa da disciplina, então em experimentação, e que veio a ser homologado em 2007. Esta formação decorreu entre 2005 e 2011 e alcançou milhares de professores. O projeto CEM O CEM – Construindo o Êxito em Matemática é um projeto de formação contínua de professores de matemática do ensino básico que teve início no ano letivo 2006-2007, no âmbito do Plano Regional de Ação para a Matemática, e que conta com o apoio da referida Direção Regional e da Universidade da Madeira (UMa). Com uma visão ampla do que é a aprendizagem no geral e a aprendizagem da matemática em especial, foram adotadas três teorias sociais de aprendizagem que seriam o suporte teórico de toda a conceção e implementação do projeto. A teoria da aprendizagem situada, que vê a aprendizagem como participação, defende que, para aprender, as pessoas têm de se empenhar conjuntamente, sendo igualmente necessário que participem nas práticas e tenham uma meta a alcançar. Outra das teorias que sustentam o projeto é a teoria da atividade, que entende a aprendizagem como transformação, seja das práticas em que as pessoas (professores e alunos) se envolvem, seja das pessoas que aprendem (professores e alunos). O terceiro pilar teórico do projeto é a educação matemática crítica, que discute a aprendizagem como ação dialógica, defendendo que para aprender é preciso existir intencionalidade por parte de quem aprende, o que envolve ação e reflexão sobre essa ação. A partir destas três ferramentas teóricas, idealizou-se um projeto com cenários de aprendizagem para os professores e para os alunos. O projeto criado visou melhorar as aprendizagens e desenvolver as competências matemáticas nos alunos, trabalhando com os professores do ensino básico da Região Autónoma da Madeira (RAM) com os seguintes objetivos: a) promover um aprofundamento dos conhecimentos matemáticos e didáticos dos professores; b) favorecer a realização de experiências de desenvolvimento curricular que contemplem a planificação e a implementação de aulas, e posterior reflexão; c) promover o trabalho cooperativo entre docentes (intra e inter escolas). Com estes objetivos, foi promovida uma formação que teve em conta os conhecimentos matemático, didático e curricular, de acordo com os conteúdos matemáticos a abordar, e procurando atender às necessidades e solicitações dos professores. A realização de experiências de desenvolvimento curricular contemplou a planificação de aulas, a sua condução e posterior reflexão por parte dos professores envolvidos, apoiados pelos pares e pelas formadoras que integravam a equipa do projeto. No ano letivo de 2006-2007, iniciou-se o projeto CEM para professores do 3.º ano do 1.º ciclo. Cada equipa de formação era constituída por uma professora do 1º ciclo e por uma professora de matemática do 3.º ciclo e do secundário. Esta exigência prendeu-se com a procura de assegurar que tanto o conhecimento matemático quanto o didático e curricular estavam salvaguardados. Metodologia de trabalho do projeto CEM As equipas de professores destacados pela DRE prepararam a formação construindo propostas de trabalho adequadas ao tipo pretendido e criaram materiais visando o trabalho dos alunos na sala de aula e considerando a sua adequação a uma metodologia de atuação onde o discente é o elemento central do seu processo de aprendizagem. Quinzenalmente, as equipas de formação reuniam com os docentes, organizados em pequenos grupos (de não mais de 12), apresentavam e discutiam com os professores em formação as propostas de trabalho e os materiais construídos, refletindo sobre as metodologias de trabalho e as consequências das mesmas para a implementação das propostas. Finalmente, prestavam apoio aos professores, em contexto de sala de aula, na execução das propostas de trabalho construídas e amplamente discutidas nas reuniões. Cada professor envolvido na formação tinha a liberdade de adaptar à(s) sua(s) turma(s) a proposta construída pelo CEM, sendo essa adaptação apresentada e discutida com as equipas de formação. Os cenários de aprendizagem dos professores também tinham momentos de discussão e reflexão conjunta (professor, equipa formadora, restantes professores em formação) acerca da prática pedagógica resultante da implementação das propostas de trabalho na sala de aula. Os formandos tinham ainda de refletir sobre o processo e apresentar ao grupo de trabalho, com base em artigos científicos fornecidos pela equipa de formadores, diversas temáticas, como sejam, a avaliação das aprendizagens matemáticas e a comunicação matemática. Como estratégia complementar, os professores envolvidos no projeto dinamizavam, com o apoio da respetiva equipa formadora, seminários trimestrais nos estabelecimentos de ensino a que pertenciam, como meio de troca e partilha de experiências com os restantes colegas da escola. Dos cenários de aprendizagem criados para os docentes faziam também parte a análise e interpretação (por parte dos professores, apoiados pelas equipas de formação) dos documentos curriculares que foram emergindo ao longo de todos os anos de projeto. Este aspeto do trabalho é bastante apreciado pelos professores. A evolução do CEM Em 2006-2007, 57 professores do 3.º ano de escolaridade aderiram voluntariamente ao projeto. Em 2007-2008, entraram 119 novos professores, também do 3.º ano, e deu-se continuidade ao trabalho realizado com 49 dos docentes que integraram o projeto no ano anterior, na altura lecionando 4.º ano de escolaridade. Em 2008-2009, o projeto funcionou com 106 professores do 4.º ano (dos que tinham entrado para o projeto no ano antecedente) e entraram cerca de 100 novos professores do 3.º ano. Ainda em 2008-2009, foram preparadas propostas para o 1.º ano de escolaridade, disponibilizadas numa plataforma Moodle, introduzida nesse ano letivo como mais um meio de comunicação entre a equipa de formação e os professores em formação. A preparação das propostas para o 1.º ano foi a forma de garantir o elo de ligação aos professores que tinham terminado a formação presencial. No mesmo ano letivo, chegaram ao 2.º ciclo os primeiros alunos do projeto CEM. O CEM, para o 2.º ciclo do ensino básico (CEM2), surgiu como a continuidade natural e desejável a dar ao trabalho realizado por esses alunos no 1.º ciclo do ensino básico (CEB). Aderiram ao projeto 65 professores de matemática que estavam a lecionar ao 5.º ano de escolaridade e entraram para o projeto mais duas equipas de formação, cada uma delas constituída por duas professoras de matemática (uma do 2.º e outra do 3.º ciclo). Em 2009-2010, o projeto CEM (1.º ciclo) funcionou com cerca de 70 professores do 4.º ano. Foram preparadas propostas para o 2.º ano de escolaridade, disponibilizadas na plataforma Moodle. No CEM2, deu-se continuidade ao trabalho realizado no ano anterior com os professores de matemática do 5.º ano que se encontravam já a lecionar ao 6.º ano. Em 2010-2011, chegaram os primeiros alunos do projeto CEM (1.º e 2.º ciclos) ao 3.º ciclo. Assim, como forma de dar continuidade ao trabalho realizado nos ciclos anteriores, o projeto CEM estendeu-se ao 3.º ciclo do ensino básico (CEM3). Os objetivos do CEM3 são, basicamente, semelhantes aos que tínhamos para o 1.º e 2.º ciclos. Neste ano letivo, foi feita a generalização dos novos programas de matemática do ensino básico. Todo o trabalho desenvolvido teve em conta as orientações do novo programa, até então em experimentação. Iniciou-se o CEM3 com 56 professores do 7.º ano de escolaridade e com três formadoras licenciadas em matemática destacadas pela DRE. Entretanto, nesse ano letivo (2010-2011), a DRE quis alargar o projeto a um maior número de professores. Estreou-se assim uma nova modalidade do CEM para o 1.º CEB (CEM1): formação de formadores. As equipas do CEM1 prepararam 30 professores para fazerem formação a outros docentes por toda a RAM. Cada um destes formadores seria responsável por dinamizar a formação de um grupo de 12 professores. Esta modalidade perdeu a componente de trabalho conjunto na sala de aula. Seguiu-se um esquema semelhante para os professores do 5.º ano. 40 docentes das diferentes escolas da RAM receberam formação com a equipa do CEM2 e depois deram-na aos colegas da sua escola que lecionavam ao 5.º ano. Em 2011-2012, foram 48 os professores do 8.º ano que estiveram envolvidos na formação na sua modalidade original, sendo que muitos deles já tinham tido formação no âmbito do projeto CEM3 no ano anterior, quando lecionavam ao 7.º ano. Ao longo deste ano letivo, 19 professores do 1.º CEB receberam formação e replicaram-na a grupos de 12 professores. Também 33 professores do 6.º ano receberam formação e dinamizaram-na nas suas escolas para os colegas que lecionavam no mesmo ano de escolaridade. Em 2012-2013, o projeto CEM3 atingiu o último ano de escolaridade do 3.º ciclo, trabalhando na sua modalidade original (com acompanhamento na sala de aula). Foram 60 os professores do 9.º ano que frequentaram a formação. Para esse ano letivo (2012-2013), a DRE propôs que se adotasse uma metodologia semelhante à dos 1.º e 2.º ciclos para os 7.º e 8.º anos. Ou seja, professores dos 7.º e 8.º anos indicados pelas próprias escolas fariam formação com as equipas do CEM3 e depois dinamizariam a mesma formação nos seus estabelecimentos de ensino para os colegas que lecionavam ao 7.º ou 8.º ano, respetivamente. Mas esta formação para os 7.º e 8.º anos não teve o sucesso esperado, nomeadamente, devido à obrigatoriedade da mesma e à falta de critérios adequados para a seleção dos professores que iriam receber a formação com as equipas do CEM3 e replicá-la nas escolas. Em relação ao 1.º CEB, nesse ano, fez-se formação para todos professores da RAM que se encontravam a lecionar ao 4.º ano de escolaridade: 153 frequentaram essa formação. Note-se que muitos destes docentes já tinham frequentado o projeto CEM na sua modalidade original e, portanto, conheciam muito bem as metodologias de trabalho em questão. Este aspeto foi uma mais-valia para a formação e refletiu-se na profundidade das reflexões elaboradas pelos professores, quer sobre as propostas apresentadas, quer sobre a implementação das mesmas na sala de aula, e também no aproveitamento dos alunos. No que concerne ao 2.º CEB, no mesmo ano letivo, 26 professores do 5.º ano e 27 do 6.º ano participaram na formação. Muitos já tinham frequentado o CEM2 na sua modalidade original. Em 2013-2014, estando a DRE muito agradada com os resultados dos exames nacionais de matemática do ano anterior, solicitou novamente formação para todos os professores do 4.º ano da RAM e para os professores do 1.º e do 3.º (anos em que o novo programa de matemática, definido em 2013, estava a ser implementado). Iniciou-se com os professores destes 1.º e 3.º anos uma nova modalidade do CEM e apostou-se no b-learning, uma vez que muitos destes professores já tinham participado no projeto, numa das outras modalidades. No 2.º e 3.º ciclo, a formação foi para os professores que lecionavam aos 5.º e 7.º anos, respetivamente, uma vez que eram anos de implementação do novo programa de matemática (2013), como se disse. No 7.º ano, na modalidade original e no 5.º, sem acompanhamento na sala de aula. Os números do CEM  Ao longo destas linhas foi indicado o número de professores que participaram na formação do CEM nos três níveis de ensino. Quanto aos discentes, cada professor que participou no CEM tinha mais do que uma turma e terá trabalhado com uma metodologia semelhante nas várias turmas que tinha e pelas quais foi passando ao longo dos anos pós-projeto CEM. Não se consideram esses valores no quadro da fig. 1, mas somente o número de alunos no ano e turma com que o professor participou no projeto. Muitos destes discentes foram “alunos do CEM” durante diversos anos e ciclos de escolaridade. Também vários professores dos diferentes ciclos participaram no CEM durante vários anos. Ano letivo N.º de professores por ciclo N.º de alunos por ciclo 1.º  2.º 3.º 1.º 2.º 3.º 2006-2007 57 - - 1140 - - 2007-2008 168 - - 3360 - - 2008-2009 206 65 - 4012 1625 - 2009-2010 70 31 - 140 775 - 2010-2011 15 40 56 1920 1000 1046 2011-2012 19 33 48 2400 825 772 2012-2013 153 53 113 3060 1300 2418 2013-2014 235 36 29 4700 900 658 Fig. 1 – Quadro com o número de docentes e discentes que participaram no projeto CEM entre os anos letivos de 2006-2007 e 2013-2014. Os resultados do projeto CEM Os resultados obtidos são, em termos gerais, semelhantes para o CEM1 e para os CEM2 e CEM3. Podemos avaliar o projeto tendo em conta: as aprendizagens matemáticas dos alunos e as transformações nas práticas dos professores. Para avaliar as aprendizagens matemáticas dos alunos, temos disponíveis os seguintes elementos: resultados das provas de aferição e dos exames nacionais; observação do trabalho dos alunos aquando da participação das equipas de formação nas aulas dos professores em formação; partilha feita pelos professores nas reuniões quinzenais sobre o desempenho dos alunos nas aulas; inquéritos realizados aos alunos; portefólios elaborados pelos professores; múltiplas teses de mestrado realizadas na UMa. No que diz respeito aos resultados das provas de aferição dos alunos do projeto CEM1, CEM2 e CEM3, podemos constatar, ao longo dos anos, que estes são ligeiramente melhores do que os resultados globais dos alunos da RAM. A grande diferença está na ausência da classificação mais baixa (nível E) nos alunos do projeto e de uma percentagem maior de alunos com classificação superior (nível C). No ano 2012-2013, a média dos resultados dos exames nacionais dos alunos da RAM foi superior à média dos resultados dos exames nacionais dos alunos de Portugal continental. Da observação direta do trabalho dos alunos, denota-se aprendizagens significativas ao nível dos conteúdos matemáticos, maior interesse e empenho para com a aprendizagem da matemática, mudança de atitude em relação a esta disciplina, mais competência na resolução de problemas matemáticos e utilização da matemática de forma crítica. Os professores que recebem “os alunos do CEM” referem que estes aprenderam a discutir ideias matemáticas e a comunicar matematicamente, quer por escrito, quer oralmente; têm um forte poder de argumentação; sabem trabalhar cooperativamente, com materiais manipulativos e com software informático, mantendo uma postura crítica face à aprendizagem da matemática; têm muita facilidade em discutir estratégias e procedimentos, bem como em fundamentar as suas opiniões. Estes resultados são também corroborados pelos autores das várias teses e relatórios de mestrado em ensino da matemática no 3.º CEB e no secundário elaboradas na UMa, por professores que frequentaram o CEM. Para avaliar as transformações nas práticas dos professores, dispomos dos seguintes meios: reuniões quinzenais, idas às escolas, reflexões; planificação e execução das aulas, escolha dos materiais e seleção de estratégias; portefólios elaborados pelos docentes; inquéritos realizados aos mesmos; e a dissertação de doutoramento da Eva Gouveia. Da análise de todos estes instrumentos de avaliação podemos afirmar que houve mudanças ao nível dos conhecimentos científicos e didáticos dos professores envolvidos no projeto, visíveis através de um maior rigor científico-matemático e de uma maior necessidade de aprofundamento dos conhecimentos matemáticos. Houve também mudanças no que diz respeito à planificação e condução das aulas, bem como à reflexão que passaram a fazer sobre as aulas participadas. As planificações tornaram-se mais sistematizadas e fundamentadas; as aulas, menos expositivas e mais centradas no aluno; os conteúdos matemáticos, tratados com maior rigor científico; os professores, mais críticos em relação ao seu desempenho. No geral, ao final de um ano de projeto, a prática pedagógica dos professores envolvidos no mesmo sofreu transformações, quer na diversificação de estratégias, quer na crescente inclusão de materiais manipulativos nas suas planificações e nas suas práticas, bem como na segurança com que passaram a trabalhar a matemática. No que diz respeito ao trabalho cooperativo entre os docentes, houve alguns casos de sucesso, mas, de um modo geral, os professores ainda resistem ao trabalho cooperativo intra e inter escolas. As formadoras do projeto As formadoras do CEM são uma parte fundamental do projeto. Para que tudo decorra da melhor forma possível, quando em contacto direto com os professores em formação, é necessário um forte trabalho de bastidores que também merece ser destacado. Semanalmente, houve reuniões de trabalho entre as formadoras do projeto e a sua coordenadora. Foi nessas reuniões que se definiram ou redefiniram estratégias de trabalho, se discutiram as propostas apresentadas e debatidas com e pelos professores, e se consideraram artigos científicos sobre a aprendizagem da matemática, a avaliação das aprendizagens matemáticas, a utilização de materiais manipuláveis e softwares educativos e applets na aula de matemática, entre outros.   Elsa Fernandes (atualizado a 29.12.2016) 

Educação História da Educação

casal, gaspar do

Após a morte de D. Martinho de Portugal, primeiro e único arcebispo do Funchal, ocorrida em 1547, ficou a administração eclesiástica insular entregue aos cuidados de alguns provisores, nomeadamente do arcediago Amador Afonso, do tesoureiro Pedro da Cunha e do cónego Lopo Barreiros, os quais, em função do seu estatuto, não gozavam da amplitude de poderes de que desfruta um bispo. Esta questão da vacatura da cadeira episcopal teria de ser, em breve, resolvida e a decisão da indigitação do novo titular acompanhou o fim do arcebispado, bem como a correspondente redução da Madeira à categoria de simples bispado sufragâneo de Lisboa. Com efeito, na segunda metade de 1551, o Rei, D. João III, designou para a cátedra insular o sucessor de D. Martinho, tendo a escolha recaído, desta vez, no seu confessor, conselheiro e pregador da capela real, D. Fr. Gaspar do Casal, que ocupou o cargo entre 1551 e 1556. Era o novo prelado natural de Santarém, onde nascera em 1510, de pais até agora desconhecidos. Muito jovem ainda, ingressara na ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, onde professou em 1526. Da sua carreira académica sabe-se que frequentou a universidade em Lisboa, onde adquiriu o grau de doutor em teologia, tendo acompanhado a mudança da instituição para Coimbra, já na qualidade de professor. Em 1532, tornou-se o primeiro presidente da Mesa de Consciência e Ordens, instituição criada nesse mesmo ano com o propósito de tratar dos assuntos relativos aos mestrados das ordens religiosas.  A opção por D. Fr. Gaspar para ocupar os altos cargos referidos dá bem a medida da confiança que o rei nele depositava e não surpreende, portanto, que D. João III tenha decidido confiar-lhe, também, os destinos da diocese do Funchal. Mas é essa mesma confiança real que explica que o novo prelado não tenha vindo, pessoalmente, ocupar o lugar destinado, uma vez que o rei continuava a precisar dos seus serviços no reino. Apesar de a sua indigitação ser um sinal da mudança do paradigma dos bispos palacianos, que, por ação de Trento, se começaram a preterir em favor de antístites mais vocacionados para pastores de almas, a verdade é que a imposição do dever de residência ainda não se fazia sentir com o peso que depois ganharia, e, por isso, pôde D. Fr. Gaspar assumir a mitra sem a correspondente deslocação. Tendo tomado posse do lugar em 1552, designou D. Fr. Gaspar como seu provisor e vigário geral o licenciado António Costa, que já fora deão da sé de Angra, sendo, portanto, experiente nos assuntos respeitantes ao governo eclesiástico. Dele diz Frutuoso que foi igualmente visitador do bispado, tendo pautado a sua ação por um rigor que o fez ser muito temido, mantendo-se, assim, para as visitas, o pendor de aspereza já assinalado para os seus predecessores, Jordão Jorge e Álvaro Dias. Tendo vindo a ocupar, mais tarde, os lugares de chantre e deão da sé, António Costa acabou por falecer na Madeira. Apesar da boa conta que deu do seu recado, António Costa não era, de facto, bispo, pelo que estava impedido de proceder à execução de funções que só aos prelados competem, o que justifica a decisão do cabido e do convento de S. Francisco de aproveitar a passagem pela Madeira de D. Sancho, um bispo castelhano que desembarcara na Ilha, vindo das Canárias, e solicitar ao reino autorização para que o prelado castelhano pudesse ordenar, crismar e benzer a igreja do convento. Obtida a licença, pôde, então, D. Sancho prover aos sacramentos em falta, após o que, agradado da terra e das gentes, rumou ao continente para pedir ao rei a titularidade do bispado. Sabendo-se que a igreja de S. Francisco foi benzida a 14 de março de 1554, o pedido do castelhano só se poderia entender se houvesse razão para supor uma vacatura iminente da cátedra do Funchal, encontrando-se, de facto, intenções régias nesse sentido numa carta que, a 7 de julho do mesmo ano, o cardeal D. Henrique enviava ao monarca, tentando demovê-lo de enviar para o Funchal, como bispo, D. Fr. Gaspar dos Reis, alegando a falta que o clérigo lhe fazia ao serviço da Inquisição (Arquivo Histórico Português, vol. IV, p. 236). Esta intenção do rei indiciava que, já nesse momento, o monarca considerava outras funções para o ainda bispo do Funchal, provavelmente aquelas que acabou por materializar em 1556, quando indigitou D. frei Gaspar do Casal para a mitra de Leiria, vaga desde 1553. Assim, em 1556, foi frei Gaspar nomeado bispo daquela cidade, de onde, após uma permanência de 22 anos, saiu para ocupar a prelazia de Coimbra. Em Coimbra se conservou até à sua morte, ocorrida a 9 de agosto de 1584. No período em que se encontrava à frente dos destinos de Leiria, D. frei Gaspar ausentou-se também, mas desta vez por ter sido enviado a Trento, a fim de participar nos trabalhos da terceira parte do concílio. A escolha que sobre ele recaiu para representar o reino naquela reunião magna, a produção de uma obra teológica de algum vulto, materializada na publicação de diversas obras em latim, e o bom trabalho que desenvolveu nas dioceses que lhe foram cometidas, tornaram-se importantes contributos para que o seu nome esteja, hoje, posto ao lado de figuras maiores da nossa história religiosa do séc. XVI, como D. frei Bartolomeu dos Mártires ou D. frei Baltazar Limpo.   Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 20.12.2016)

Religiões

clero e conflito

Ao longo da história da Madeira, as manifestações de conflito entre as instâncias religiosas e as detentoras dos poderes civis foram uma constante. A oposição que caracterizou o relacionamento institucional surge a propósito dos mais variados motivos, que englobam a necessidade de se demarcarem jurisdições, problemas do foro económico ou político e, até, questões de índole mais pessoal. Mas a realidade do enfrentamento manifesta-se, ainda, no próprio interior da hierarquia católica, opondo seculares a regulares, bispos a confrarias e cabidos, congregações a congregações, pois todos os intervenientes têm interesses cuja defesa impõe o confronto. Palavras-chave: conflitos; jurisdição; bispos; poder civil; ordens religiosas. O clero, primeiro estado da sociedade do Antigo Regime, representava o patamar superior do escalonamento social, estando-lhe atribuído esse lugar cimeiro por lhe competir a mais nobre de todas as tarefas deste mundo – a de velar por que todos os cristãos tivessem a possibilidade de aceder à salvação eterna. Para esse efeito, devia realizar todos os atos de culto, além de apoiar os fiéis no quotidiano, dando-lhes o superior exemplo de uma vida imaculada. Apesar de este ser o quadro teórico em que os seus elementos teriam de operar, o facto de os eclesiásticos serem seres humanos, com virtudes e defeitos, e de o grupo, enquanto tal, ter de interagir com a sociedade em geral, percorrida pelos mais variados interesses e motivações, levava a que, em muitos momentos, ocorressem situações em que o conflito se tornava inevitável, provocado quer pela personalidade dos próprios intervenientes, quer pela necessidade de disciplinar comportamentos, quer, ainda, pelo choque de jurisdições, que, por vezes, implicava uma luta mais acesa pela definição dos campos em que os diversos agentes se movimentavam. Com efeito, nem do lado dos poderes do Estado nem do lado das instituições eclesiásticas existiam corpos perfeitamente homogéneos, mas antes organismos compostos de pessoas com variadas motivações, que conflituavam não só dentro das suas próprias hierarquias mas também um com o outro, o que obrigava a um esforço permanente para dirimir as diferenças. As situações de desentendimento, mais ou menos relevantes, entre elementos do clero ou entre eclesiásticos e entidades civis declararam-se, na Madeira, logo a partir dos inícios do povoamento, registando-se ao longo dos tempos choques entre os diferentes atores religiosos e laicos. O necessário exercício de apaziguamento, que implicava muitas vezes o recurso a instâncias superiores de um e outro foro, é, em si mesmo, sinal da permanência de uma conflitualidade que se traduzia em queixas e apelações, em agravos e capítulos, em ataques e atropelos que opunham os clérigos entre si ou a instâncias civis variadas, como governadores, provedores da Fazenda, câmaras municipais ou outros. É sabido que a acompanhar os primeiros povoadores se estabeleceram na Ilha alguns Franciscanos, a quem esteve cometida, durante algum tempo em exclusividade, a responsabilidade da prestação dos cuidados religiosos a diversos núcleos populacionais que se foram constituindo sobretudo ao longo da costa sul da Madeira. Em 1459, porém, o infante D. Henrique, mestre da Ordem de Cristo, à qual estava atribuída, desde 1433, a tutela sobre o espiritual do arquipélago, expulsou da Madeira os Franciscanos por estes, tendo ligações à comunidade seráfica das Canárias, poderem fazer perigar o domínio da Ordem de Cristo no território madeirense, sendo este o contexto em que se registou o primeiro episódio documentado de conflito envolvendo membros do clero. Sanado esse diferendo, os Franciscanos regressaram à Ilha. Assim, por volta de 1464, Fr. Francisco de Arruda e outros quatro religiosos, todos portugueses, reinstalam-se na Ilha, estando na origem da fundação do Convento de S. Francisco, no Funchal, que, de ora em diante, será um importante centro de prestação de serviços à comunidade, servindo, depois, designadamente, de panteão à nobreza madeirense, mas também de última morada a elementos do povo em geral. Aos Franciscanos, não só aos radicados no Funchal, como em outros pontos do território – Câmara de Lobos, Calheta, Santa Cruz –, serão, também, incumbidas funções de pregação, no desempenho das quais se registaram situações que determinaram graves atritos com diversos bispos. Logo em tempo de D. Luís de Figueiredo Lemos (1586-1608), o prelado se viu obrigado a reprovar o comportamento de alguns frades seráficos, que usavam o púlpito para fins impróprios, e uma situação semelhante volta a acontecer no episcopado de D. Fr. Gabriel de Almeida (1671-1674), que teve de proibir estes religiosos de confessar e pregar, o que, segundo Fernando Augusto da Silva, lhe teria inclusivamente precipitado a morte. A questão pôs-se, neste último caso, a propósito de dois Franciscanos que usaram o púlpito para se descomporem um ao outro, o que motivou a respetiva suspensão e uma advertência ao comissário da ordem no sentido de ter mais cuidado na escolha dos oradores, sob pena de ver inibida a presença dos seus correligionários em funções de parenética. Esta não foi a única razão de divergências entre Franciscanos e o bispo D. Fr. Gabriel de Almeida, uma vez que o prelado procurou intervir para normalizar o diferendo que então opunha os Franciscanos às suas irmãs de S.ta Clara, os quais se traduziam em “censuras de parte a parte” que perturbavam o povo, “com menos exemplo do que uns e outros haviam de dar aos moradores” (VERÍSSIMO, 2000, 381-382). A envolver as duas ordens registou-se também um incidente, reportado para o reino pela Câmara do Funchal, relativo a subornos perpetrados pelos frades que tinham viciado o processo de eleição da abadessa. A razão da intervenção do Senado neste processo explica-se pelo facto de, sendo o Convento um dos grandes empresários insulares, e sendo as freiras parentes próximas dos homens da governança, não lhes ser indiferente a identidade da vigária, responsável pela gestão do património e pela configuração da rede de interesses a ela conexa. A possibilidade de os membros da Ordem Seráfica servirem de confessores no bispado foi, também, severamente questionada por D. José de Castelo Branco (1698-1721), que, em 1706, os inibiu dessa tarefa, fazendo depender o retorno à função de uma submissão a exame. A réplica do custódio, segundo a qual assim ficaria a Ordem quase sem confessores, não demoveu o prelado, que argumentava ser a confissão mais melindrosa que a pregação, pois no segredo do confessionário se poderiam veicular as mais erróneas teorias, pelo que nunca eram demais as precauções a tomar sobre aqueles a quem se deveria entregar o múnus (DGARQ, Cabido da Sé, mç. 12, n.º 34, fls. 9-9v.). Outros focos de conflito que se abriram envolvendo os Franciscanos diziam respeito ao temor com que os frades seráficos encaravam a presença de membros de outras ordens religiosas que eles consideravam ameaçadoras das suas prerrogativas. A ida dos Jesuítas para o Funchal configurou um desses momentos, pois os Franciscanos “entraram em zelos e delírios que lhes faltaria com a nossa assistência as esmolas com que os socorriam e sustentavam aqueles cidadãos”, segundo informava um cronista da Companhia (CARITA, 1991, 111). Este receio esteve na origem de prédicas seráficas, primeiro nas suas casas e, depois, publicamente, nas quais imperava um discurso antijesuítico, prontamente contrariado pela parenética da Companhia, que passou a exortar os fiéis no sentido de não descurarem as esmolas devidas a S. Francisco, “encarecendo e louvando com os maiores encómios as suas extremadas e observantes pobrezas” (Id., Ibid., 111). Ultrapassada esta questão, uma outra semelhante se volta a colocar quando, em finais do séc. XVII, uns frades capuchinhos tentaram, incentivados pelo bispo D. Fr. José de Santa Maria, ele próprio capucho, instalar-se de forma mais permanente no Funchal. A intenção acabou por desencadear a apresentação, em 1701, de uma reclamação à Câmara do Funchal por parte da comunidade seráfica, acabando o processo por ser inviabilizado. Pouco tempo depois, entre 1730 e 1732, foi a vez dos Carmelitas, que igualmente pretendiam estabelecer na Madeira uma comunidade mais expressiva. Os frades do Carmelo haviam chegado à Madeira nos meados do séc. XVII, e tinham-se agasalhado num modesto hospício que habitualmente abrigava um frade, e, de vez em quando, alguns outros irmãos de passagem pela Ilha. Acontece que, em 1730, os Carmelitas iniciaram umas obras nas suas instalações, o que os Franciscanos interpretaram como uma tentativa de melhorar as condições de estadia, com o intuito de trazerem para a terra um maior contingente de frades. O temor da Ordem Seráfica continuava a ser o de ter de repartir recursos, já escassos, com um maior número de religiosos, bem como o de perderem a preferência de alguns madeirenses na hora de escolherem a sepultura, pois aos enterramentos iam buscar não poucos dividendos, traduzidos em missas que se mandavam celebrar pela alma do falecido. O diferendo subiu a tribunal eclesiástico, e a sentença foi favorável aos frades seráficos que bem esgrimiram o argumento de ser seu direito exclusivo a posse de conventos na Madeira, com base no facto de terem sido os primeiros que a ela tinham chegado. No que respeitava ao comportamento dos frades a título individual, também se registavam anomalias, como a que foi reportada, logo em 1603, por Filipe III ao geral da Província. Queixava-se o Rei do comissário dos Franciscanos na Madeira, acusando-o de não cumprir as suas obrigações, de estar envolvido em desordens e excessos e de impedir as visitações. A opinião que os próprios visitadores manifestavam em relação aos frades era, frequentemente, a de serem “relaxados”, o que se comprova, e.g., pela expulsão, em 1755, do Fr. João de S. José e do Fr. João do Rosário. Pouco antes, em 1753, o problema fora de sinal contrário, como se atesta pela petição do custódio provincial no sentido de lhe serem reenviados três frades ausentes em Lisboa, cujo prazo de licença se encontrava largamente ultrapassado. O seu envolvimento em negócios encontra-se igualmente comprovado na pessoa do guardião do Convento, Fr. António de S. Guilherme, que, em 1768, se viu enredado em práticas de contrabando. Por outro lado, e extramuros, frades havia que não cumpriam com o que deles se esperava, como aconteceu, e.g., em Santa Cruz, quando, em 1790, Fr. Francisco de N.ª Sr.ª das Dores foi apanhado na devassa por ter dois filhos de uma jovem, em cuja casa vivia “encaixado” (ABM, APEF, doc. 92, fl. 76). Alguns anos depois, foi a vez de o religioso responsável pelos serviços divinos na capela de São Pedro ser referenciado por não doutrinar o povo, como era sua obrigação, sendo a responsabilidade da punição, em qualquer dos casos, cometida ao guardião do Convento de N.ª Sr.ª da Piedade, a quem pertencia a tutela dos frades daquela instituição. Mas não só os Franciscanos homens foram protagonistas de eventos marcados pelo conflito, pois, nos conventos femininos, também nem sempre se conseguiu evitar o despoletar de situações de atrito que mancharam o relacionamento das comunidades monásticas com o mundo que as rodeava e do qual, à partida, deveriam estar isoladas. Assim, no caso específico do Convento de S.ta Clara, emergem os problemas decorrentes do abastecimento de água à instituição, que, não estando dotada de nascente dentro dos muros do edifício, dependia do exterior para esse efeito. Esta circunstância explica graves desentendimentos ocorridos com os Jesuítas, por cuja propriedade da Qt. dos Frias passava o cano abastecedor e que nem sempre respeitavam a porção que deveria derivar para as freiras de S.ta Clara, o que determinou diversas queixas destas, inclusivamente para o juiz de fora, e implicou, no limite, o rompimento da clausura, suprema forma de protesto para uma comunidade obrigada à reclusão. As questões com a água não foram, no entanto, as únicas que opuseram as freiras aos Jesuítas, pois que em 1639 há registo de outro foco de tensão, desta vez respeitante à cobrança de uns dízimos da Ribeira Brava e de outras freguesias que os padres queriam cobrar às irmãs. Estas alegavam isenção desse pagamento, mas os padres contrapunham que, sendo-lhes devidos os dízimos cobrados em tais localidades, a mesma obrigação impendia sobre as terras conventuais. O pleito arrastou-se por diversos anos, até que, em 1644, a razão foi dada à pretensão das freiras. Comportamentos menos abonatórios das irmãs de S.ta Clara estão, por outro lado, identificados numa denúncia para o Tribunal do Santo Ofício relativa a uma procissão de troça realizada dentro dos muros do Convento, conforme consta do estudo realizado por Maria do Carmo D. Farinha, “A Inquisição na Madeira no Período de Transição entre os Séculos XVII e XVIII (1690-1719)”. No tocante ao Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação, a ocorrência mais destacada a provar severos desentendimentos entre as freiras e a tutela, neste caso pertencente ao bispo, deu-se em tempo do rigoroso D. Fr. Manuel Coutinho, que, desagradado com as frequentes intrusões no Convento por parte de visitantes e familiares muito ligados à Câmara Municipal do Funchal, então também envolvida em graves litígios com o prelado, determinou mudar-se a porteira do mosteiro, como forma de minimizar os contactos. As freiras, indignadas com a atitude, irromperam para fora dos muros do Convento e desceram rua abaixo em direção ao paço episcopal, onde pretendiam confrontar-se com o antístite. Só a pronta intervenção do desembargador conseguiu evitar o agudizar de uma situação que muito escandalizava os funchalenses, convencendo as irmãs a recolher ao Convento. A opinião que sobre esta irmandade se foi recolhendo a partir do exterior continuou a não ser elogiosa, uma vez que, em 1757, dois visitadores consideravam as freiras demasiado tomadas de mundanismo, acusando-as de seguirem, no vestuário, as modas do século. Em tempo de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1757-1785), um novo episódio envolvendo as freiras da Encarnacão veio a público, desta feita relativo a afirmações proferidas, dentro do Convento, contra o prelado por parte do médico Manuel Caetano Tavares, irmão de um cónego que também se malquistara com D. Gaspar. Dos insultos proferidos contra o bispo resultara o cerco do Convento, ordenado pelo governador que saíra em auxílio do antístite, o qual visava impedir que no edifício não entrasse nem saísse “carta ou papel”. A reação das freiras tomou a forma de “grande tumulto” pois queriam “sair fora do convento e vir libertar o dito médico”, que entretanto fora preso (CARITA, 1996, 325). Em consequência de todos estes desmandos, surge, com D. José da Costa Torres (1786-1796), uma nova expressão de desagrado relativo àquela casa monástica, e, em 1788, o prelado, invocando o parecer de D. Fr. Manuel Coutinho (1725-1741) sobre o Convento proferido 40 anos antes, segundo o qual “melhor seria se não o houvera”, seguia-lhe as pisadas, declarando fazer-se surdo aos apelos da abadessa para que se aumentasse o número de freiras. Testemunhava, então, o bispo, em missiva enviada ao ministro Martinho de Melo e Castro, que, em vez de consentir no aumento, se não fossem “certas considerações” que o embaraçavam, “já teria mandado pôr fora do convento uma grande parte delas” (AHU, Madeira, pasta 5, doc. 842). À margem da agitação que, episodicamente, afetava a vida destes dois conventos, há que registar o clima de paz que normalmente reinava sobre o de N.ª Sr.ª das Mercês, o qual, por abrigar professas de mais baixa extração social e pertencer à primeira regra de S.ta Clara, não sofria tanto a influência do mundo exterior como os seus congéneres da segunda regra – S.ta Clara e Encarnação. Os registos de sobressaltos que se verificam nas Mercês não são atribuíveis às freiras nem ao seu modo de vida, ficando antes a dever-se a fatores extrínsecos. Assim acontece com a grande desavença registada entre D. Fr. Manuel Coutinho e o protetor do Convento, Agostinho Berenguer, suspeito de má gestão e suspenso de funções pelo prelado, ou com o recurso a tribunal motivado por questões relacionadas com o padroado do Convento, questão que suscitou grandes cisões na família Berenguer, ou ainda com o caso insólito da M.e Isabel Filipa de Santo António, uma jovem de boas famílias obrigada a ingressar no mosteiro que lutou contra essa situação com todas as suas forças, chegando, até, a admitir pacto com o demónio. A ida da Companhia de Jesus para o Funchal, registada na sequência do grande saque de corsários franceses que vitimou a cidade em 1566, não foi, também, um processo isento de algum conflito, consubstanciado, desde logo, na má receção de que foram objeto por parte dos Franciscanos e nos problemas surgidos a propósito do abastecimento de água a S.ta Clara, como se viu. Mas, mesmo no interior da própria Ordem Jesuítica, se registou alguma turbulência provocada pela atuação do P.e Manuel Guerreiro, que, por ser de personalidade pouco afável, gerou um mal-estar na comunidade que acabou por ser responsável pelo atraso nas obras da edificação do Colégio. Este padre esteve, ainda, ligado a problemas na atribuição dos cargos de reitor e vice-reitor, na sequência dos quais se levantou uma contestação tal que obrigou à intervenção do Gov. António Pereira de Macedo. Para apaziguar os ânimos foi, então, nomeado outro reitor, Pantaleão da Ponte, que, em 1593, escrevia para Roma a informar que “os padres e irmãos procedem [agora] bem, ainda que alguns desgostos tenha havido entre eles e o padre vice-reitor”. Não deixava, porém, de alertar para as consequências nefastas que os desentendimentos tinham provocado, e que se haviam traduzido no sentimento do povo que, informado das desavenças, se “desedificava, dizendo alguns principais que também entre os nossos havia semelhantes paixões”. Ultrapassada a questão, registava o novo reitor, com agrado, que, cessado esse rumor, as pessoas vinham, agora, “aos nossos sermões com muito concurso” (CARITA, 1991, 277). Os Jesuítas haveriam de se ver novamente ameaçados quando, em 1669, na sequência da sedição liderada pelo deão Pedro Moreira, que, em 1668, prendera o Gov. D. Francisco de Mascarenhas, tomaram partido pelo governante deposto, com quem sempre tinham mantido as melhores relações. Como do afastamento forçado de D. Francisco de Mascarenhas resultara uma carta, enviada para o reino, contra o governador, a qual os Jesuítas, ao contrário dos Franciscanos, se recusaram a assinar, os promotores da queixa haviam “feito grandes ameaças” à Companhia, “dizendo que nos haviam de botar fora da Ilha”, conforme se pode ler em missiva enviada para Roma pelo então reitor do Colégio, o P.e Pereira (Id., 1987, 158). A posição dos Franciscanos não fora, porém, sancionada pelo provincial da Ordem Seráfica, que depusera do cargo o superior do Convento de S. Francisco e castigara os frades que tinham subscrito o documento, pelo que, e também graças à ação do novo governador da Madeira, Aires de Saldanha, tudo se ia “pondo em paz”, voltando a abrir-se os portos que haviam estado fechados para que se impedisse a comunicação com o reino (Id., Ibid., 158-159). Mas o grande desaire sofrido pela Companhia de Jesus estava por vir, e chegou em tempo do marquês de Pombal, que, por um vasto conjunto de circunstâncias que não cabe aqui invocar, tomou a decisão de expulsar os Jesuítas do país. A nível regional esse desígnio será cumprido pela mão do bispo D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1757-1785), um iluminista sintonizado com o marquês, que, a 27 de junho de 1759, mandou publicar a pastoral em que apodava os Jesuítas de “religiosos pervertidos da Companhia de Jesus” e fazia suspender do “ministério de pregar e confessar nesta nossa diocese” os mesmos religiosos (ACDF, cx. 45, doc. 25, fl. n. n.). As acusações contra os Jesuítas baseavam-se no atentado perpetrado contra D. José, no qual se consideravam implicados aqueles religiosos, que eram igualmente acusados de promover “antievangélicas doutrinas que, como ímpias, sediciosas e destrutivas da caridade cristã”, não poderiam deixar de ser condenadas (Ibid.). Assim, logo após estas determinações, os Jesuítas foram cercados nas suas instalações e deu-se início ao processo de sequestro de todos os seus bens, ao mesmo tempo que a tutela da igreja e do Colégio passava para o prelado. No dia 3 de setembro de 1760, o bispo, em nova pastoral, dava conta de ter recebido de Lisboa instruções contidas na lei de 3 de setembro do ano anterior, na qual o Rei mandava “exterminar, desnaturalizar e expulsar de todos os seus reinos e domínios aos religiosos da Companhia de Jesus”, o que implicou o embarque dos religiosos para Lisboa, ocorrido a 16 de julho de 1760 (SILVA, 1984, II, 188). Apesar da consumação da expulsão dos padres da Companhia do território madeirense, as autoridades mantiveram-se alerta, o que explica que, em 1767, o Gov. José Correia de Sá informasse Lisboa das diligências empreendidas para evitar um hipotético regresso de qualquer Jesuíta, ou que o Corr. Francisco Moreira de Matos comunicasse ter recebido do reino instruções para proceder à devassa das confrarias da igreja do Colégio. Nesse mesmo ano de 1767, ainda se mantinha sob supervisão o escrivão da Câmara Eclesiástica, P.e Manuel de Oliveira, antigo Jesuíta expulso da Ordem em 1749, e o governador dava conta da passagem pela Ilha, a bordo de um barco inglês, de um membro da Companhia, originário das Canárias, que fora absolutamente proibido de ir a terra e de contactar com pessoa alguma. De regresso, agora, aos tempos do povoamento da Madeira, poder-se-ão analisar outro tipo de conflitos que terão como protagonistas já não membros de ordens religiosas, mas outros eclesiásticos com intervenção relevante na realidade regional e local. Com a crescente complexificação da sociedade madeirense, e em resposta a sucessivas solicitações para que se aumentasse o efetivo de clérigos na Ilha, a Ordem de Cristo esforçou-se por corresponder, enviando, em 1476, Fr. Nuno Gonçalves, que foi para a Madeira como vigário do Funchal. A estadia de Fr. Nuno Gonçalves foi, no entanto, pontuada por desentendimentos com a população, ainda que se ignore a sua razão de ser, pelo que, em 1485, mandava-se o vigário regressar ao reino. Em sua substituição foi, mais tarde, em 1490, designado Fr. Nuno Cão para servir no Funchal. Ao contrário do antecessor, este foi tão bem acolhido que permaneceu na Madeira até à sua morte (c. 1531). No intervalo de tempo que mediou entre a chegada de Fr. Nuno Cão e o seu falecimento, fundou-se, em 1514, a Diocese do Funchal, sendo cometida ao antigo vigário do Funchal a função de deão, o que evidencia a sua aceitação. Com a criação da Sé do Funchal, tem de forçosamente surgir o cabido, o qual rapidamente se torna fonte de desavenças, algumas severas. Entre 1526, data da morte do primeiro bispo do Funchal, D. Diogo Pinheiro (1514-1525), e 1533, momento em que é apresentado o seu sucessor na pessoa de D. Martinho de Portugal (1533-1547), várias são as ocasiões em que os capitulares se enfrentam, sobretudo a partir do momento em que, por morte do titular, ficou vago o deado. Os “capítulos” apresentados ao Rei sucediam-se, pelo que o Monarca, “por ver estas desordens”, informou que mandaria um provisor para tomar conta da Diocese, o que acabou por se materializar no envio de Afonso Mexia, que por pouco tempo se incumbiu da função (COSTA, 2001, 28). Nesta contenda teria desempenhado papel de relevo o arcediago Amador Afonso, que, segundo Noronha, seria mesmo “o motor” das desinteligências, o que é confirmado por dois documentos em que se referenciam queixas relativas à sua pessoa, uma por ter gravemente ofendido o deão Filipe Rebelo, e outra, oriunda da Câmara da Calheta, por causa da sua conduta (PEREIRA, 1990, II, 425). Deve, no entanto, registar-se opinião abonatória que sobre este clérigo foi deixada em carta da muito provável autoria de Jordão Jorge, que, em 1538, visitava a Madeira a mando do arcebispo D. Martinho de Portugal. Registava, então, o visitador, num contexto em que se queixava do povo da Ilha, tanto dos leigos como dos eclesiásticos, por todos deverem dinheiro à chancelaria e serem todos “gente de menos verdade”, que de tais reclamações se devia excetuar o arcediago Amador Afonso, por até ao momento o não ter achado falso (COSTA, 1987, 9). Já do cabido não poderia Jordão Jorge ter pior opinião, na medida em que o achava “acostumado” a faltar à pregação em todos os domingos ou ocasiões de sermão, altura em que saíam todos os cónegos da igreja, e, se algum ficasse no coro, não fazia mais que “palrar”. Interpelados os capitulares, responderam que não ficavam no coro porque não conseguiam ouvir nada, e, quando se lhes propôs porem-se os bancos na entrada da capela, para que ficassem mais cómodos, retorquiram que dali lhes viam as pernas as mulheres e outras “mil parvoíces” (Id., Ibid.). O referido visitador, que, na companhia de outro, Álvaro Dias, percorreu toda a Ilha em visitação, deixou também más recordações entre os insulares, de quem se “fizeram malquistos […] com sua aspereza”, o que se poderia explicar, segundo Noronha, pela vontade de empreender a reforma que se encontra bem documentada na carta referida (NORONHA, 1996, 83). O cabido, órgão colegial composto, na generalidade dos casos, por clérigos oriundos das melhores famílias regionais, virá, por mais de uma vez, a assumir-se como promotor de algumas das situações em que a conflitualidade emerge, não só por lhe ser cometido o governo da Diocese em períodos de Sé vacante, o que, por vezes, faz com que lhe seja difícil aceitar a autoridade do bispo seguinte, como pelo facto de dissensões entre as famílias de origem dos capitulares, ou, pelo contrário, a existência de solidariedades de sangue, se verem, ocasionalmente, transportadas para o exercício das funções do canonicato. A ilustrar uma situação em que a Sé se achava sem bispo, estando o governo do bispado cometido ao deão, Pedro Moreira, ocorreu aquele que será, porventura, o mais grave incidente que opôs parte do cabido a um governador, neste caso D. Francisco de Mascarenhas. O problema prendia-se com a forma de atuar do governador, que pretendia pôr cobro a algumas arbitrariedades, designadamente cometidas por clérigos, tendo chegado a queixar-se ao cabido de lhe estarem a ser cerceadas possibilidades de administrar a justiça, “pelas insolências com que os eclesiásticos violentamente e absolutos encontram as suas ordens e lhas impedem quebrando as leis e perturbando a república” (VERÍSSIMO, 2000, 159). A sua conduta, mais ativa que o habitual, contra o estado eclesiástico terá desagradado ao deão, o qual, segundo declarações dos sublevados, foi o promotor de uma surtida, integrada por, entre outros, sete clérigos, que surpreendeu o governador a caminho da quinta dos Jesuítas, no Pico dos Frias, conseguindo prendê-lo. Em sua substituição, foi nomeado Aires de Ornelas Vasconcelos, sendo soltos os presos do presídio e eleitos novos vereadores. Todos estes insólitos eventos seriam comunicados à corte, que deliberou o envio de um desembargador com a missão de apurar os reais contornos da situação. Da atuação deste magistrado resultou uma sentença do Tribunal da Relação, de acordo com a qual foram condenados os intervenientes seculares, acompanhada de uma outra, com origem em Tribunal Eclesiástico, que igualmente punia os sete clérigos e o próprio deão, Pedro Moreira. Situações de atrito que envolviam diretamente bispos, ou seus representantes, e membros do cabido encontram-se, e.g., no episcopado de D. Fr. Manuel Coutinho, que, por se ter incompatibilizado com o protetor das Capuchas, Agostinho Berenguer, parente do Cón. Bartolomeu César de Andrade, acabou se ver envolvido num conflito com o cónego, o qual, por solidariedade familiar, cortou relações não só com o prelado, como com o restante cabido. Daqui resultou a prisão do capitular e uma posterior devassa ao cabido que visava sanar a conflitualidade existente, o que foi conseguido. Uns anos antes, no episcopado de D. Jerónimo Fernando, dois capitulares desentenderam-se gravemente em pleno coro, tendo chegado a agredir-se e a ferir-se mutuamente, com grande escândalo do povo. Na origem do conflito estaria uma dívida contraída por um dos intervenientes junto do outro, tendo sido as dificuldades de pagamento que ditaram a desavença. Neste caso, o bispo, em face do arrependimento manifestado pelos contentores, acabou por sancioná-los apenas com multa e alguns dias de prisão. Outras questões mantidas entre prelados e cónegos estão vertidas nas Memórias dos Acontecimentos Ocorridos no Episcopado do Bispo D. Frei Manuel Coutinho, 1725-1738 (ABM, APEF, doc. 270, fls. 27-27v.), nas quais se reportam prisões de capitulares às ordens de outros prelados ou governadores do bispado, como acontecera com o Cón. João de Freitas, mandado prender por Pedro Álvares Uzel, na altura governador do bispado, ou, durante o episcopado de D. José de Sousa de Castelo Branco, com dois capitulares aprisionados por autorizarem uma procissão sem consentimento do antístite. A situação de instabilidade nacional provocada pelas invasões francesas e pela retirada da corte para o Brasil repercutiu-se na vida eclesiástica da Madeira, onde, por estar a Sé vacante, decidiu o cabido nomear não um vigário capitular, como mandava Trento, mas sim um provisor e um vigário-geral, em claro desrespeito pelo preceituado. Avisado o Rei, logo este ordenou que se repusesse a normalidade, ao que resistiu parte do cabido, que assim se cindiu entre os que se propunham acatar as regras e os que persistiam na divisão. Designado para assumir os destinos da Diocese, o bispo de Meliapor, D. Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde (1811-1821) (D. Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde), procurou pacificar o cabido desavindo, precisando para isso de assumir uma postura tão dura que o levou até a questionar a sua capacidade de dar “conta do lugar” (AZEVEDO, 2015, II, 564). O advento do liberalismo, com o seu pendor anticlerical, ocasionou um terreno fértil para a eclosão de conflitos, que foram emergindo sob a forma de críticas visando bispos e capitulares. Uma destas críticas recaiu sobre D. Francisco de Andrade (1821-1834) (D. Francisco Rodrigues de Andrade), que foi interpelado na imprensa sobre a fraca qualidade de dois cónegos que o aconselhavam, os quais não tinham “letras nem virtudes”, salientando o periódico em causa – O Patriota Funchalense –  as vantagens de o prelado os trocar por liberais, com quem faria “a mais excelentíssima reforma na sua casa” (SOUSA, 1991, 183). A receção dispensada a D. Manuel Martins Manso (1850-1858) foi, também, perturbada por um cabido dividido, muito por causa de questões pessoais e políticas, do qual se salientava a pessoa do Cón. Vicente Nery, que rapidamente assumiu uma forte contestação à atuação quer do bispo, quer de parte do capítulo, acusados de práticas pouco favoráveis ao liberalismo (D. Manuel Martins Manso). O Cón. Nery viria, porém, a ser tão destratado pelo prelado seguinte, D. Patrício Xavier de Moura (1858-1872), que se chegou a imputar a esse tratamento a morte do capitular. Todas estas dissidências eram, agora, em pleno séc. XIX, muito amplificadas pela imprensa que se multiplicava em periódicos, uns contra e outros a favor das posições da Igreja, de que constituem bons exemplos o já referido O Patriota Funchalense, de pendor claramente liberal, e o Pregador Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei, dirigido pelo truculento Cón. João Crisóstomo Spínola de Macedo e publicado entre 1823 e 1824, que se assumia como porta-voz de uma fação bem mais conservadora. Voltando agora, e uma vez mais, aos inícios da estruturação da presença da Igreja na Diocese do Funchal, cumpre lembrar que o facto de os três primeiros bispos não terem chegado a ocupar presencialmente o seu lugar acabou por criar ao quarto, D. Fr. Jorge de Lemos (1556-1569), um ambiente mais tenso para governar, pois a prolongada situação de Sé vacante deixara que se instalasse um clima de certa relaxação que o novo prelado entendeu dever corrigir. A sua atuação nesse sentido não poderia deixar de ser estranhada e registada como “áspera”, oferecendo ao prelado ocasião para alguns “atritos e dificuldades” (SILVA, 1946, 106), o que pode, inclusivamente, explicar as cartas régias de D. Sebastião no sentido de as justiças seculares se disponibilizarem para acudir ao poder eclesiástico sempre que este o solicitasse. Depois de mais um episcopado com bispo ausente, ocupou, em 1574, a mitra do Funchal D. Jerónimo Barreto (1574-1585), um homem já tridentino que procurará implantar na Madeira as diretrizes conciliares. A prová-lo está, e.g., a reunião de um sínodo do qual resultará a publicação das primeiras Constituições Sinodais especificamente desenhadas para o arquipélago, às quais ficará o prelado a dever o primeiro grande enfrentamento entre a autoridade do bispo e a jurisdição camarária. De facto, entendeu o Senado do Funchal não serem aceitáveis alguns pontos do texto constitucional por serem lesivos das suas prerrogativas, da mesma forma que, em 1593, já no episcopado de D. Luís de Figueiredo Lemos, a Câmara do Funchal se queixava para o reino da intolerável intromissão do poder eclesiástico no secular, tendo obtido decisão favorável às suas pretensões, registada no fl. 168 do tomo III do arquivo da referida Câmara. O episcopado deste bispo ficou, de resto, marcado por outras dissensões com o Senado, nomeadamente por causa da nomeação de um capelão para a igreja de S. Sebastião, de jurisdição camarária, bem como da pretensão de opinar sobre o destino a dar à residência daquele clérigo, situações em que a posição do prelado viria a sair perdedora. Os episódios de carácter protocolar revestiam-se de grande importância numa sociedade em que a hierarquização se traduzia na rigorosa observância do local que a cada um pertencia em cerimónias, públicas ou não, sendo essa a razão que subjaz a mais uma questão que opôs este bispo ao governador.  Tratava-se, agora, de uma disputa sobre o tipo de precedências a respeitar quando o governador estivesse presente na Sé, diferendo que foi apresentado ao Monarca, que o resolveu a favor do prelado. O protocolo voltou a estar no centro de uma desinteligência que opôs, desta vez, o Senado do Funchal ao bispo D. Fr. Lourenço de Távora (1610-1617), que entendeu fazer a sua entrada solene na Diocese a cavalo debaixo do pálio, o que motivou queixa da Câmara para a corte (D. Fr. Lourenço de Távora). Embora, aparentemente, o bispo só estivesse a pôr em prática o novo cerimonial romano publicado em 1600, os camaristas entenderam ter sido lesada a sua jurisdição, e, mais uma vez, obtiveram decisão que legitimava o seu protesto. As colisões entre os poderes eclesiástico e camarário são um topos ao longo da história da Madeira, ocorrendo a propósito das mais diversas matérias. Em 1603, por ocasião da procissão de Corpus Christi, o vigário-geral pretendeu interferir com a organização do cortejo, competência que o município entendia ser sua. De novo, após apresentação de reclamação para o Rei, este deliberou a favor dos camaristas. Em 1680, foi a vez de o Senado questionar a posição do caudatário do prelado, argumentando que imediatamente atrás do bispo deviam ir os oficiais camarários, e não o clérigo que sustinha as vestes episcopais. Desta feita, porém, a questão resolveu-se a favor do poder eclesiástico, pois a própria posição de caudatário obrigava a que aquele religioso precedesse a vereação. Outro incidente registado envolvendo a mesma procissão ocorreu no episcopado de D. Fr. Manuel Coutinho (1725-1741), sendo motivado pela publicação de um edital de origem episcopal, em que o bispo mandava que se arranjassem as ruas da cidade para a solenidade. Entendeu a Câmara que a supervisão das ruas era prerrogativa sua, assumindo-se, assim, o cortejo como o catalisador ideal da crispação que já vinha de trás. A coroar o episódio, acabou por ser preso um vereador, António Carvalhal Esmeraldo, que se havia refugiado no edifício da sede municipal, cuja porta foi derrubada à machadada. Outro dos motivos recorrentemente presentes nos diferendos que opuseram Câmara e bispos tinha a ver com a questão do provimento dos benefícios, o que, por legislação várias vezes reiterada, deveria ser preferencialmente de clérigos naturais da Madeira. Como isto nem sempre se verificava, por preferirem os prelados nomear para os apetecidos lugares remunerados pessoas da sua confiança oriundas de outras partes do reino, o conflito encontrava aqui, de novo, razão para eclodir. O motivo pelo qual o Senado interferia neste assunto era o da defesa dos interesses regionais materializáveis na nomeação de parentes dos edis, o que, para além da não negligenciável componente remuneratória, ainda apresentava as vantagens de favorecer uma maior ligação entre os párocos e os seus fregueses. Um exemplo ilustrativo desta situação pode colher-se no episcopado de D. Jerónimo Fernando (1618-1650), que, por ter insistido no provimento de alguns indivíduos não naturais da Madeira, “contra a observância das provisões reais que dispõem a favor dos naturais”, se viu objeto de queixa por parte do Senado (NORONHA, 1986, 112). O mesmo volta a acontecer com D. Fr. Manuel Coutinho, que, além de ser contestado pela Câmara pelas mesmas razões, viu alastrar o conflito à provedoria da Fazenda, entidade pagadora que igualmente se imiscuía em tais assuntos. Com efeito, sendo o clero local pago a partir da Fazenda régia, representada pelo provedor da Fazenda, também com este magistrado se registarão diferendos envolvendo as autoridades eclesiásticas. Apesar das determinações, repetidamente confirmadas, de que os clérigos deveriam ser os primeiros a ver satisfeitos os seus pagamentos, a verdade é que nem sempre isto se verificava, pelo que as reclamações pela falta da pronta satisfação das quantias em dívida se vão sucedendo. Isto mesmo se pode concluir da produção de numerosos alvarás em que os reis insistem na forma de remunerar o clero, salientando sempre o carácter prioritário que tais remunerações devem assumir na sua folha de pagamentos. Apesar disto, o sínodo de 1615 teve como preocupação deliberar no sentido de se apresentar queixa ao Papa do mau cumprimento pela Coroa portuguesa das obrigações remuneratórias a que o padroado da Ordem de Cristo a obrigava, sendo igualmente de destacar o facto de, pouco tempo depois, D. Jerónimo Fernando, ainda antes de chegar à Diocese, excomungar o provedor em virtude de falta de pagamentos, tendo de registar-se a intervenção do Monarca para que o bispo revertesse a censura. As questões que envolviam dinheiro constituíam outro foco de desentendimento entre prelados e comunidade insular, manifestando-se tanto a propósito da não satisfação dos encargos resultantes de testamentos, como até da contabilidade das confrarias. No primeiro caso, o hábito de se vincularem os rendimentos de partes de propriedades à celebração de ofícios divinos por alma dos instituidores de capelas levava a que, por desvalorização do património ou por aumento do preço das missas, alguns anos depois o montante disponível se mostrasse insuficiente para honrar os compromissos. Como isto implicava o fim dos sufrágios tidos como indispensáveis à salvação das almas, os bispos não podiam deixar de reagir, e, ao pugnarem pelo cumprimento dos desejos testamentários, acabavam por ter de se confrontar com os executores faltosos. A agravar esta situação, acontecia ainda que a maioria dos testamenteiros pertencia às elites insulares, que, pouco recetivas a ingerências, toleravam mal as observações, originando-se aqui pleitos intermináveis que se iam arrastando pelos tribunais (Doações). No que respeitava às confrarias, a gestão dos bens por que cada uma era responsável, e nos quais se incluíam, muitas vezes, legados testamentários, nem sempre se pautava por grande clareza, dando origem a interpelações pouco cordiais por parte do poder episcopal. Sendo este um problema que atravessou todos os episcopados dos bispos do Funchal, podem, no entanto, adiantar-se situações que, a título de exemplo, melhor ilustram as circunstâncias do conflito. Uma delas aconteceu com D. Fr. Manuel Coutinho, que determinou a execução de um formulário que normalizasse a tomada de contas e ameaçou com o encerramento aquelas irmandades que persistissem na omissão dos resultados financeiros, argumentando rispidamente, quando confrontado com o deficit frequente justificado pela celebração de festas, que “quem é pobre não faz festas” (TRINDADE, 2012, 246). Outra situação que ajuda a ilustrar este problema verificou-se em 1774, quando D. Afonso da Costa Brandão ameaçou de prisão os tesoureiros que lhe não apresentassem as contas, ordenando mesmo aos párocos que recolhessem os livros de contabilidade. A figura do governador militar, responsável pela defesa do arquipélago mas também magistrado politicamente influente, foi das que mais chocou com a dos prelados, pelo que era frequente que, por razões de jurisdição ou outras, se registassem embates e atropelos. Enfrentamentos entre as duas figuras de topo da sociedade insular ocorreram com D. Fr. Gabriel de Almeida e com o Gov. João de Saldanha, acusado pelo primeiro de ter desrespeitado a autoridade eclesiástica quando mandara prender o deão Pedro Moreira, já referido. Em tempo de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1757-1785), um incidente de sinal contrário, ocorrido com a prisão do bacharel António Xavier Pimentel às ordens do juízo eclesiástico, deu início a grave contenda entre o prelado e o governador, João Gonçalves da Câmara. Este episódio fez correr muita tinta, nomeadamente porque envolveu a troca abundante de correspondência entre os dois intervenientes e o envio de cartas também para o reino. Em resposta a uma das missivas, remetida pelo governador para um ministro, muito provavelmente Martinho de Melo e Castro, o ministro, incomodado pela insistência, responde ao governante que na Ilha “há um bispo respeitável, não só pela qualidade de prelado, mas também pelas virtudes e proveta idade”, pelo que não competia ao governador pronunciar-se sobre o desempenho do antístite, dado essa ser prerrogativa dos ministros régios (AHU, Madeira, cx. 2, doc. 74). Apesar das tentativas de apaziguamento da questão, a tensão continuou a crescer, tendo mesmo o bispo desrespeitado uma ordem de libertação do prisioneiro, impondo-lhe uma caução que o bacharel não podia pagar. O séc. XIX será, igualmente, palco de severos contenciosos entre prelados e governadores, traduzidos, e.g., no desterro do bispo D. Luís Rodrigues Vilares (1797-1810) para o Santo da Serra a mando do governador ([Símbolo] D. LUÍS RODRIGUES VILARES) ou, no caso de D. Fr. Joaquim de Ataíde (1811-1821), no enfrentamento a Sebastião Xavier Botelho, governador cuja autoridade foi bastante contestada pelo prelado (D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde). No início do séc. XX, a implantação do regime republicano, com as suas extremadas posições anticlericais, veio, uma vez mais, oferecer a ocasião para o despoletar de situações de conflito entre o clero e as instituições políticas que, também no caso da Madeira, se traduziram em punições para os padres que desobedeceram às leis da República. Assim, logo a 4 de maio de 1911, o padre do Estreito de Câmara de Lobos, Miguel Pestana Reis, foi intimado a comparecer perante o Governo Civil, para responder às acusações de ofensas ao Governo provisório e às leis da República, para o que se teria servido do púlpito. Esta determinação causou grande comoção na população, que seguiu no encalço do pároco e, armada de paus e de foices, conseguiu deter o clérigo e os seus acompanhantes ainda na freguesia de São Martinho. Momentaneamente impedido de obedecer à convocatória, o padre viu-se na iminência de ser preso, pelo que acabou por voltar ao Funchal no dia seguinte, tendo sido proibido de voltar à paróquia até ao cabal esclarecimento dos factos. Paralelamente, muitos dos populares sublevados acabaram, esses sim, por serem remetidos à prisão. Nas freguesias de Santana e Machico, os párocos também se distinguiram pelos apelos feitos à população, no sentido da resistência à aceitação das novas determinações republicanas, sendo, portanto, também parcialmente responsáveis pelos motins que daí decorreram. No Funchal, o vigário do Monte, João Vicente de Faria e Sousa, acabou por ser expulso da Ilha por um ano, na sequência da acusação de ter aconselhado um amigo a não aceitar o cargo de homem-bom, que o faria participar do arrolamento dos bens da Igreja implicado na Lei de Separação das Igrejas do Estado. Por sua vez, em Santa Luzia, o P.e Júlio António do Vale foi preso por incitar o sacristão a distribuir aos paroquianos exemplares do “Protesto Colectivo dos Bispos Portugueses contra o Decreto de 20 de Abril de 1911 que Separa o Estado da Igreja”, o mesmo acontecendo com o vigário de São Gonçalo. Em virtude da insistência em usar o hábito talar, outra das proibições contidas na Lei da Separação, foram também condenados os párocos do Jardim do Mar e de São Vicente. A Revolução de 28 de Maio de 1926 e a consequente instalação da ditadura militar e, depois, do Estado Novo, ao acarretarem a supressão de muitas liberdades individuais, tornaram mais difícil a manifestação de opiniões divergentes, diminuindo, portanto, a possibilidade de conflito expresso. Isto não obstou, no entanto, a que, mesmo em tempos em que o silêncio se impunha como a mais prudente das posições, surgisse a figura do P.e César Teixeira da Fonte, cuja postura de solidariedade com o povo durante a Revolta do Leite – movimento que mobilizou o povo contra um decreto-lei que instalava o monopólio na indústria de laticínios, em 1936 – lhe valeu o encarceramento, primeiro na Madeira e depois em Caxias. Com a Revolução do 25 de Abril, e a profunda turbulência que o novo regime democrático imprimiu à sociedade, de novo avultaram conflitos que, desta feita, opuseram o bispo D. Francisco Santana (1974-1982) a alguns elementos do clero local. De destacar a figura do P.e José Martins Júnior, cuja assunção frontal de posições que contrariavam a hierarquia lhe valeu uma suspensão ad divinis (D. Francisco Santana). As situações de conflito que acabam de ser apresentadas, e que mais não pretendem ser que um elencar necessariamente breve dos diferendos que foram opondo os protagonistas religiosos da história da Madeira entre si ou em relação aos poderes civis, retratam uma realidade que, não sendo exclusiva do território insular, o marcaram de forma indelével. Enquanto elementos indispensáveis à vivência do quotidiano em tempos absolutamente marcados pela Igreja, que registava os momentos decisivos da vida dos fregueses – nascimento, casamento, morte, festas, lutos, alimentação, comportamentos e calendário –, os clérigos, em geral, e os bispos, em particular, não podiam escusar-se de lutar pelo que entendiam ser os seus direitos, quer dentro quer fora da instituição a que pertenciam. Não admira, assim, que o conflito fosse um elemento constitutivo da sua existência e se manifestasse ao longo dos tempos, respondendo a cada momento à alteração das circunstâncias, à posição dos adversários ou até à vontade de protagonismo e características dos diversos intervenientes.    Cristina Trindade (atualizado a 30.12.2016)

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