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guiana inglesa

A emigração madeirense para Demerara iniciou-se em 1835, por iniciativa do cônsul inglês residente na Madeira, que contratou trabalhadores para as plantações da Guiana. Nessa época, na Ilha, existia uma grave crise na produção de vinho e de cana sacarina, o que provocou uma situação de extrema pobreza na população rural. O primeiro grupo de contratados chegou a Demerara em maio de 1835, no navio Luísa Ballie, após 78 dias de viagem via Londres. A impressão causada por estes trabalhadores foi excelente. Sensibilizados com a qualidade do seu trabalho, muitos proprietários contrataram os agentes dos navios para recrutamento de mais madeirenses. Estes conheciam os procedimentos do cultivo da cana sacarina, pois eram oriundos de uma zona produtora, e, após a rebelião dos escravos da plantação Le Ressouvenir, os plantadores precisavam com urgência de substituir a mão de obra por outra. Nesse mesmo ano de 1835, chegaram mais 429 madeirenses com as famílias, tendo o seu trabalho sido apreciado. No entanto, em consequência das grandes dificuldades alimentares que se verificavam na Madeira, os madeirenses que chegaram entre 1838 e 1853 adoeceram e um grande número morreu. As doenças dos emigrantes portugueses não eram só originadas pelo clima, mas também pelas más condições de alojamento, informação dada em 1843 pelo governador civil Domingos Olavo Correa d’Azevedo e registada no livro de correspondência para o reino, existente no Arquivo Regional da Madeira (ARM). Um inquérito de 1839, feito pelo comissioner dos assuntos de imigração da Guiana, revelou que, nas plantações de Lima, Windsor Castle, Zelandis, La Penitence e Anandale, as condições de vida eram razoáveis; mas, em Vreed-en-Hoop e Sparta, a alimentação era fraca e pior ainda o alojamento. Quando os madeirenses chegavam a Demerara, sonhavam com um mundo melhor. Porém, eram mal acomodados nas plantações, colocados em casas que não estavam preparadas ou alojados em antigos hospitais adaptados com compartimentos para famílias. Alguns recusaram-se a seguir as recomendações do commissioner no que dizia respeito ao alojamento e à higiene, vivendo em autênticos bairros de lata. Ao decidirem viver deste modo, os madeirenses sofreram as consequências, contraindo doenças e, muitas vezes, morrendo: estranho clima, estranha comida, estranhas doenças. As casas onde viviam não tinham camas, cadeiras nem bancos. Na época das chuvas, o chão das casas transformava-se num autêntico mar de lama. Homens, mulheres e crianças adoeceram com febres por dormirem no chão. Para além disso, a ânsia de ganhar dinheiro muito rapidamente levou os madeirenses a um excesso de trabalho num clima tropical insalubre, sendo essa uma das causas de mortalidade. Os madeirenses mais pobres já saíam da Ilha com doenças, como a tuberculose, o catarro e a pneumonia. Verificando-se a grande religiosidade dos madeirenses, procurou-se que fossem acompanhados espiritualmente por padres. A mortalidade entre os madeirenses era de tal forma alarmante, que o governador Light nomeou uma comissão para analisar o assunto; esta comissão era composta pelo padre de Georgetown, o Rev. W. Bates, por cinco médicos, dois magistrados e por William Humphrey, secretário, que cumpriam mensalmente com zelo a sua tarefa. O relatório da comissão dizia que era necessário exigir aos Portugueses limpeza, quartos arejados, quartos de dormir separados, um trabalho moderado e uma alimentação de boa qualidade. A emigração oficial parou entre 1842 a 1846, altura em que os Ingleses usaram mão de obra originária da Serra Leoa e da Índia. No entanto, não tendo estes trabalhadores correspondido tão bem às exigências do trabalho, os Ingleses sugeriram que, na Madeira, fosse nomeado um agente para contratar imigrantes. A emigração dos madeirenses nem sempre foi pacífica. Em 1850, um relatório da comissão antiescravatura censurava o processo de imigração. Porém, em 1852, verificou-se um novo fluxo; em 1856, na consequência de um surto de cólera, também se contrataram novos emigrantes; em 1859, reatou-se a imigração, que continuaria até o final do séc. XIX, como se pode ver pela tabela da fig. 1, com o número de passaportes emitidos no Funchal por esses anos. [table id=98 /] Em 1840 o governo civil emitiu 46 passaportes, que em 1841 subiram para 4045. Paralelamente, iniciou-se uma emigração clandestina, mais cruel e arriscada, que preocupou muito os governadores civis da época. A primeira referência a esse facto na correspondência dos governadores civis para o reino que encontramos no ARM é um ofício do governador Domingos Olavo Correa d’Azevedo informando o conde de Tomar de que mandara proceder a uma vistoria ao bergantim inglês Claudino, onde encontrara 92 passageiros com passaporte e 5 sem ele. Exigiu, assim, ao comandante do navio o pagamento de uma multa de 400 mil réis, que ele de imediato pagou. Este mesmo governador alertou os administradores dos concelhos, através de várias circulares, para o papel dos aliciadores de emigração clandestina, pedindo que lhes levantassem autos. O emigrante clandestino ia com a passagem paga e um contrato de cinco anos para uma zona climaticamente difícil, sem direito a assistência médica, nem apoio na velhice. Num edital de 30 de abril de 1841, refere que certos especuladores continuavam a promover a emigração clandestina, mandando os clandestinos para uma vida de escravidão, visto que os proprietários que os contratavam se negavam a socorrê-los na doença e na velhice, exigindo o cumprimento escrupuloso do contrato, e os despediam no final dos cinco anos, mesmo que estivessem doentes e sem forças para reiniciar a vida. A exploração da cana sacarina na Guiana era dominada por companhias capitalistas, protegidas discretamente pelo governo inglês. A Madeira funcionava como uma zona de apoio às navegações inglesas em direção às colónias do Império. O primeiro cônsul inglês nomeado pela coroa britânica foi John Carter, em 1658. Alguns madeirenses escolarizados que emigravam fixavam-se em Georgetown, onde havia um melhor clima que nas plantações, e onde exerciam atividades comerciais, conseguindo fazer pequenas fortunas. A visão do demerarista afortunado animava muitos indecisos a darem o salto. Neste contexto, os governadores civis observavam que muitos dos que regressavam com sinais exteriores de riqueza o faziam com a tarefa de exercer o papel de aliciadores dos plantadores. A situação da emigração legal e clandestina continuou no período de governo do conselheiro José Silvestre Ribeiro, entre 1846 e 1852. Num relatório que enviou para o reino, este governador informava que, até 1835, a preferência da emigração apontava para o Brasil e os EUA. Após 1835, Demerara, na Guiana Inglesa, era o destino preferido, sendo relevante o facto de o governo inglês pagar o transporte. Analisando a correspondência deste governador, verificamos que quem emigra com passaporte são os bons operários e os lavradores que vendiam ou abandonavam tudo para procurar melhor sorte em terras estranhas, que tinham a noção de viver em situação precária e não vislumbravam uma saída. Por outro lado, os que emigravam como clandestinos eram os que não tinham recursos económicos, o que significava que seriam traficados como escravos ou como mercadoria de contrabando. Num ofício de 1850, dirigido ao Ministério do Reino, José Silvestre Ribeiro refere que desde 1840 tinham saído da Ilha entre 30 mil e 40 mil emigrantes para Demerara. Se tivermos em conta que, até 1846, foram emitidos 7445 passaportes – e ainda que um passaporte englobasse a família inteira –, podemos concluir que muitos clandestinos chegaram a Demerara. Indica ainda, na correspondência para o reino, os processos utilizados no embarque: os clandestinos escondiam-se em vários pontos da costa sul, sendo daí levados em barcos costeiros até às Desertas, aonde os navios estrangeiros e portugueses ligados a este tráfico os iam buscar, embarcando-os no porão, sem condições sanitárias nem mantimentos suficientes. O governador achava que esses navios eram autênticos navios negreiros, como podemos ler num ofício de 1847, no qual também apela ao Ministro do Reino para que se acautelassem os Direitos do Homem e do Cidadão. Noutro ofício para o Reino, transcreve uma alocução feita pelo bispo católico de Georgetown, de nacionalidade irlandesa, na qual este fala com desassombro da vida dos Portugueses na colónia, pedindo aos católicos apoio económico e moral, pois, no hospital colonial, encontrara 770 madeirenses sofrendo de doenças tropicais e sem qualquer tipo de assistência médica. O bispo calculava que vivessem na colónia 12.000 madeirenses. Segundo Vítor Teixeira, os registos britânicos referem que, no período de 1843 a 1866, existiam 22.212 madeirenses residentes na Guiana e que, no período de 1835 a 1846, emigraram para Demerara e ilhas do Caribe 6872 madeirenses, entre homens e mulheres (TEIXEIRA, 2009, 76). No período de 1880 a 1890, através dos índices de passaportes do ARM, verificamos que emigraram para a Guiana cerca de 3482 madeirenses. Quando saiu da Ilha, nos finais de 1851, o governador saiu desiludido porque uma proposta de lei que tinha enviado às cortes reunidas nesse ano, com o intuito de proteger os madeirenses dos aliciadores, não foi atendida. No entanto, mais tarde foi publicada uma legislação segundo a qual os comandantes dos navios com emigrantes eram obrigados a deixar uma fiança. Assim, no governo do conde de Farrobo, entre 1859 e 1863, encontramos registados 65 navios com destino a Demerara. Nos livros de registos de passaportes do ARM, podemos verificar que foram emitidos, entre 1853 e 1899, 7710 passaportes para Demerara, enquanto para outros países foram emitidos 14.482, o que nos permite concluir que o fluxo de emigrantes para a Guiana, iniciado em 1835, durou até fins do séc. XIX – tendo mesmo continuado no início do séc. XX, pelo menos até 1915. No livro dos índices dos passaportes de 1901 a 1915, publicado pelo ARM em 2005 (fig. 2), podemos constatar que, nesses anos, foram emitidos 214 passaportes, tendo sido nos anos de 1904, 1905 e 1906 que se emitiu o maior número deles: 112. Verificamos também que há descendentes de madeirenses nascidos na Guiana inglesa que visitam a Madeira e solicitam passaporte para regressar a Demerara. Entre os que solicitaram passaportes, encontramos naturais de concelhos rurais, de Câmara de Lobos, Estreito de Câmara de Lobos, Calheta, Estreito da Calheta, Arco da Calheta, entre outros. [table id=99 /]   Muitos jovens optaram pela ida como clandestinos para fugir do país, pois a lei de recrutamento militar era muito dura. A lei de 20 de julho de 1855, que exigia termos de fiança aos comandantes de navios que levassem passageiros, não surtiu grande efeito, mesmo com o patrulhamento pela escuna de guerra que o reino tinha enviado para fiscalizar a costa. O Gov. José Silvestre Ribeiro fez vários alertas, evocando o camponês analfabeto que só tinha para vender a sua força de trabalho, e que continuava a ser explorado em terras estranhas, tendo inclusivamente, em termos contratuais, de pagar a sua passagem. Numa carta enviada para o reino, José Silvestre Ribeiro afirmava que emigrar se tinha tornado uma mania coletiva, pior que uma doença contagiosa, seguindo nessa leva os melhores camponeses, os melhores operários, os melhores artífices e até homens afazendados. São reflexo desta longa relação os lusodescendentes que vivem na Guiana, mantendo contatos com a Madeira.   Ana Isabel Spranger (atualizado a 13.12.2017)

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greef, richard

Médico e zoólogo, especializado na estrutura e reprodução dos seres unicelulares, particularmente dos rizópodes, Richard Greeff nasceu em Elberfeld, a 14 de março de 1829, e faleceu em Marburg, a 30 de agosto de 1892. Era filho de Peter Greef, fabricante em Elberfeld e em Nova Iorque, e de Sophie Greef. Casou-se com Maria Esch, nascida em 1806 e falecida em 1863. Estudou em Würzburg, Heidelberg e em Berlim, tendo concluído, em 1857, os estudos em Medicina. De seguida, trabalhou como médico assistente do Hospital Municipal de Danzig. Em 1859, voltou para Elberfeld, onde exerceu a função de médico de clínica geral. Pouco tempo depois, em 1863, abandonou a medicina e doutorou-se em Zoologia na Universidade de Bona, prosseguindo a sua carreira como professor. A partir de 1871, foi professor catedrático de Zoologia e de Anatomia Comparada, e diretor do Instituto Zoológico-Zootómico da Universidade de Marburgo. Enquanto investigador de Ciências Naturais, realizou diversas expedições desde 1866-1867, entre as quais se incluem as viagens pelas seguintes regiões: costa Adriática, África, Suíça, ilhas Canárias e Portugal. Greef esteve na Madeira por duas vezes. A primeira vez foi em 1866, chegando de Lisboa a bordo do vapor Lusitânia, integrado numa expedição científica com Ernst Haeckel (1834-1919) e outros companheiros. Após uma curta estadia, de 17 a 19 de novembro, instalado no Hotel de Paris, no Funchal, seguiu para as Canárias no Niobe, um navio de guerra prussiano. A segunda passagem pela Madeira foi em outubro de 1879, escalando o Funchal a bordo do navio português Zaire. Saliente-se que, a partir do séc. XVIII, numerosas expedições científicas escalaram o Funchal, atraídas pelo interesse que a Madeira despertava na comunidade científica europeia de então. O arquipélago madeirense tornou-se um destino exótico dos naturalistas europeus, nos sécs. XVIII-XIX, sobretudo após as publicações das viagens comandadas por James Cook (1728-1779), que passou pela Madeira por duas vezes, em 1768 e em 1772. Especialistas em diversas áreas das ciências naturais arrimaram o porto do Funchal e permaneceram na Ilha durante algum tempo, realizando investigações no domínio da geologia, botânica, flora e fauna. Os seus estudos foram depois divulgados em várias publicações e colocaram a Madeira na rota científica internacional. Richard Greeff também realizou, no âmbito das expedições científicas, na Ilha, investigações acerca de animais invertebrados. Greeff mencionou a sua primeira passagem pela Madeira no livro Reise nach den Canarischen Inseln (1868). Mais tarde, publica Madeira und die Canarischen Inseln em besonders Naturwissenschaftlicher Zoologischer Beziehung (1872), no qual refere aspetos zoológicos das ilhas da Madeira e das Canárias.   Obras de Richard Greef: Untersuchungen über den Bau und die Naturgeschichte von Echinorhynchus miliarius Zenker (E. polymorphus) (1864); Reise nach den Canarischen Inseln (1868); Madeira und die Canarischen Inseln em besonders Naturwissenschaftlicher Zoologischer Beziehung (1872); Ueber Pelagische Anneliden von der Küste der Canarischen Inseln (1879); Studien über Protozoen (1888).   Sílvia Gomes (atualizado a 13.12.2017)  

Biologia Terrestre Madeira Global

gramáticas

As primeiras gramáticas da língua portuguesa de autores portugueses e publicadas em Portugal foram editadas em 1536 e 1540 e elaboradas, respetivamente, por Fernão de Oliveira (1507-1580) e João de Barros (1496-1570). Estes livros marcaram o início do estudo da língua portuguesa como pertença a uma comunidade linguística distinta. Em sentido estrito, não há “gramáticas madeirenses”, uma vez que o dialeto da Madeira é uma variação diatópica do português europeu e que o conceito de “gramática” se enquadra na normalização da língua portuguesa, iniciada no séc. XVI com as gramáticas normativas de João de Barros e de Fernão Oliveira. Há, no entanto, autores madeirenses e personalidades residentes no arquipélago que publicaram gramáticas (de várias línguas), obras de teor linguístico diverso e apontamentos sobre formas dialetais madeirenses. Na maior parte dos casos, as gramáticas em questão serviram o imperativo de assistir os estudantes no estudo de cadeiras ligadas ao português e ao latim. Os títulos das principais obras de cariz linguístico são os seguintes: De Institutione Grammatica Libri Tres (1572, de Manuel Álvares); Principios de Grammatica Portugueza (1844, de Francisco Andrade Júnior); Grammatica Portugueza das Escholas Primarias de Primeiro Grau (1849, do mesmo autor); Grammatica das Grammaticas da Lingua Portugueza, (1850, do mesmo autor); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacção (1869, de Álvaro Rodrigues de Azevedo); Gramática Portuguêsa, em harmonia com a Reforma Ortográfica ultimamente Publicada (1912, de Alfredo Bettencourt da Câmara); Methodo Michaelense para o Ensino da Lingua Franceza (1861, de Hector Clairouin); O Nec Plus Ultra das Grammaticas Methodicas para o Ensino da Lingua Franceza (1874, do mesmo autor); Colloquial Portuguese or Words and Phrases of Every Day Life (1854, de Alexander J. D. D’Orsey); Estudos de Lingüística, em dois volumes (1939, de Ivo Xavier Fernandes); Questões de Língua Pátria, em dois volumes (1947-1949, do mesmo autor); Topónimos e Gentílicos, volumes I e II (1941 e 1943, do mesmo autor); Apontamentos de Grammatica e Conjugação de Verbos (1905, de Francisco José de Brito Figueiroa); Subsidios para a Bibliographia Portugueza Relativa ao Estudo da Lingua Japoneza e para a Biographia de Fernão Mendes Pinto. Grammaticas, Vocabularios, Diccionários (1905, de João Apolinário de Freitas); Regras Elementares Sobre a Pontuação (1831, de António Gil Gomes); Principios de Grammatica Geral Aplicados á Lingua Latina (1835, de Marceliano Ribeiro de Mendonça); Principios Elementares da Lingua Ingleza, Methodicamente Tratados para Facilitar aos Principiantes o Perfeito Reconhecimento desta Lingua, Tão Util aos Portuguezes (1809, de Francico Manuel de Oliveira); Principios de Grammatica Geral Applicados à Língua Portugueza Publicados e Offerecidos á Mocidade de Goa (1849, de Daniel Ferreira Pestana). O sucesso da primeira gramática madeirense, elaborada pelo P.e Manuel Álvares, manifesta-se no facto de ter sido adotada, até ao início do séc.XIX, por todas as escolas da Companhia de Jesus, não só em Portugal, como por toda a Europa. Esta gramática latina, constituída por três livros (De Etymologia, De Syntaxi e De Prosodia), foi editada 530 vezes, em 22 países, e traduzida para francês, inglês, alemão, espanhol, italiano, boémio, croata, flamengo, húngaro, polaco, chinês e japonês, não havendo contudo qualquer tradução sua para português. Após esta publicação de referência do séc. XVI, os estudos gramaticais foram evoluindo, e passou-se do modelo da gramática especulativa da época medieval para um novo paradigma do estudo da língua, a gramática geral, que se baseia na ideia de que a linguagem é regida por princípios gerais e racionais. De acordo com este pressuposto, a gramática foi descrita como a arte de analisar o pensamento: uma vez que a estrutura da língua é um produto da razão, o pensamento deverá ser expresso de forma precisa e transparente (nesse sentido, passa a exigir-se aos falantes clareza e precisão na forma como se exprimem). A gramática geral deveria funcionar de modo a distinguir, processual e infalivelmente, as ideias válidas das que não o são; levada à perfeição, conduziria à produção de uma língua ideal, universal e lógica, sem equívocos nem ambiguidades, e capaz de assegurar a unidade da comunicação humana. A obra marcante desta tendência do pensamento é a Gramática de Port-Royal (Grammaire Générale et Raisonnée Contenant les Fondements de l’Art de Parler, Expliqués d'une Manière Claire et Naturelle), dos Franceses Arnauld e Lancelot, onde se explicita a noção de signo como meio através do qual os homens expressam os seus pensamentos. A Portugal, a influência desta gramática chegou no séc. XIX, com a Gramática Filosófica da Língua Portuguesa de Jerónimo Soares Barbosa (1822). Nessa época, como consequência da reforma pombalina e da criação do Liceu do Funchal, associadas à perspetiva da gramática geral importada por Jerónimo Soares Barbosa, surgem gramáticas escritas por autores madeirenses e por residentes no arquipélago. Em 1835, é pela primeira vez editada uma gramática na Madeira, Principios da Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina, de Marceliano Ribeiro de Mendonça, na sequência de a Madeira ter sido o primeiro território lusófono, à exceção do continente, a ter imprensa. O primeiro estudioso madeirense a debruçar-se sobre a língua portuguesa é Francisco Andrade Júnior, professor de gramática portuguesa e latina no Liceu do Funchal; graças ao exercício da lecionação, o autor concebeu uma gramática que se tornasse útil à aprendizagem dessas disciplinas. Embora tivesse publicado, em 1844, os Principios de Grammatica Portugueza, com 296 páginas, foi a sua Grammatica Portugueza das Escholas Primarias, que se enquadra no movimento da gramática geral ou filosófica, que representou um caso de sucesso, sendo editada cinco vezes entre 1849 e 1879. Este autor manifestava grande admiração não só pela Gramática Filosófica da Língua Portuguesa, obra que lhe serviu de referência, como também pelo sistema gramatical preconizado por Marceliano Ribeiro de Mendonça em Principios de Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina. De facto, o gramático organiza a sua obra de modo análogo ao da Gramática Filosófica de Jerónimo Soares Barbosa, embora a ordenação dos capítulos não corresponda à do modelo: etimologia, sintaxe, ortoépia e ortografia. Na obra, distinguem-se os dois primeiros capítulos (sobre a etimologia e a sintaxe), cuja extensão reflete a importância dada aos temas de que tratam. Em relação à primeira edição de Principios de Grammatica Portugueza (1844), a primeira parte é dedicada ao estudo da etimologia, com breves referências aos seus objetos de estudo. O Livro 1.º, “Da Etimologia”, está subdividido em sete capítulos que dão a conhecer as principais classes de palavras da língua portuguesa, a sua natureza e variações, cujos títulos são: “Dos Nomes Comuns”, “Dos Adjetivos”, “Dos Acidentes dos Nomes”, “Do Verbo”, “Das Palavras Conexivas ou Preposições”, “Do Advérbio” e “Da Interjeição”. A segunda parte refere-se à sintaxe e tem quatro subdivisões: “Da Sintaxe propriamente dita”, “Da Sintaxe Figurada”, “Da Construção” e “Do Mecanismo do Discurso”. Nesta parte, são apresentadas as principais noções sintáticas (discurso, construção, proposição), e explica-se que a proposição é a enunciação de um juízo, ou seja, é o ato pelo qual se afirma que uma pessoa ou coisa existe de certo modo. Na terceira parte, volta a definir-se o conceito de ortoépia e reflete-se sobre diversas questões relativas à correta pronúncia dos vocábulos, em oito capítulos: “Da Ortoépia em geral”, “Do Tom”, “Da Duração”, “Da Articulação”, “Da Voz”, “Do Acento”, “Das Figuras da Ortoépia ou do Metaplasmo” e “Dos Vícios de Pronúncia”. Na última parte, constituída por seis subcapítulos, o método de apresentação é o que foi seguido nas partes anteriores; contém uma proposta de definição de ortografia como análise da maneira adequada de representar as palavras por meio da escrita alfabética, a qual, por sua vez, regula a ortografia etimológica. Os títulos das seis subdivisões são: “Da Ortografia em geral”, “Do Alfabeto”, “Das Letras”, “Das Sílabas”, “Das Palavras”, e “Dos Sinais Ortográficos”. O autor aproveita, de igual modo, para dar uma definição de alfabeto, que entende ser um complexo de sinais gráficos representantes de cada um dos elementos das palavras – estes sinais chamam-se letras. As letras dividem-se em vogais e consoantes: as vogais representam as vozes, as consoantes soam com as vozes. Há também considerações em relação a outras matérias gramaticais: a função modificadora dos adjetivos, o papel determinativo dos artigos definidos, o valor circunstancial do gerúndio, a diferença entre voz ativa e voz passiva, a definição de locução prepositiva. Analisando a obra Principios de Grammatica Portugueza, conclui-se que se trata de um manual composto segundo o modelo da gramática filosófica, repleto de claras noções gramaticais, com exemplos apropriados às matérias apresentadas, o que se adequa à sua finalidade de auxiliar os alunos do ensino primário. É uma gramática bem fundamentada e abrangente em relação aos conceitos linguísticos abordados. Ao ser uma gramática normativa da língua portuguesa, centra-se na explanação de conteúdos morfossintáticos. A terceira parte da obra, dedicada à ortoépia (“Dos Vícios de Pronúncia”, pp. 263-264), faz também referência às formas dialetais madeirenses. Em primeiro lugar, alude ao facto de o falante ilhéu acrescentar sons ou articulações à etimologia das palavras, v.g., ao pronunciar um a- antes de algumas formas verbais (substituição de voar por avoar); em segundo lugar, faz menção do acrescento, contra o uso elegante da língua, de um -â- antes de alguns ditongos como -ôa, -ôe e -ôo (bâoa em substituição de bôa, sâoe em vez de sôe e mâoo em lugar de môo); por fim, há uma referência à troca de um som por outro, como nos casos da troca de um -e- grave acentuado por -a- grave, antes de uma articulação chiante ou de uma molhada, e do -e- agudo, antes das mesmas articulações, por -ei- (pâjo por pêjo, meicha por mécha, tânho por tenho, tâlha por têlha, hireige por herege, seige por sege). A edição de 1849 de Principios de Grammatica Portugueza expõe as mesmas definições que a de 1844: a gramática é apresentada como a arte de analisar e enunciar o pensamento; a etimologia ensina as palavras com que se faz a análise; a relação das palavras entre si é a sintaxe; a correta enunciação do pensamento pela língua falada é a ortoépia; e a enunciação pela palavra escrita é a ortografia. A obra propõe ser uma exposição sistemática, uma vez que os conhecimentos sobre a língua portuguesa estão espalhados “pelos livros que tratam desta matéria” (ANDRADE JÚNIOR, 1849, 1). O livro é composto por 293 páginas, e está dividido do seguinte modo: “Parte 1.ª Da Etimologia”, “Livro 1.º Da Etimologia”, “Parte 2.ª Da Sintaxe”, “Livro 2.º Da Sintaxe”, “Livro 3.º Da Ortoépia”, “Livro 4.º Da Ortografia”. A etimologia e a sintaxe ocupam grande parte do volume. Fig. 1 – Fotografia da folha de rosto do livro Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacção, de Álvaro Rodrigues de Azevedo, 1869. Outro autor, Álvaro Rodrigues de Azevedo, apesar de não ser um gramático (formou-se em Direito), destaca-se por ter procurado preservar a identidade do povo que se serve da língua portuguesa para comunicar. Deste modo, a pretensão maior da sua obra será desenvolver as competências na produção linguística, na fala (recitação) e na escrita (redação). Na introdução, Azevedo destaca que “a palavra é o objeto comum destas três partes do curso, vista por três diferentes faces. A recitação enuncia-a, a filologia explica-a, a redação emprega-a” (AZEVEDO, 1869, 2). No prólogo, o autor faz a apologia de um povo e uma língua, defendendo que “Portugal ainda pode, se quiser, sob qualquer forma política ou social, o que agora não importa averiguar, viver como povo e como língua” (Id., Ibid., VI e VII). O propósito da edição de Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacção é suprir a falta de um manual auxiliar ao ensino da cadeira cuja regência competia a Álvaro Rodrigues: “A cadeira foi criada há seis anos. De então até hoje, nem programa, nem compêndio para ela” (Id., Ibid., VIII). Esta obra está dividida em três partes (recitação, análise filológica e redação). Apesar de, no final do 1.º volume, se publicitarem os restantes volumes desta obra através de sumários, há indícios de que aqueles não terão sido publicados. O volume que se conhece, o qual trata da recitação, aparece organizado em três partes: “Noções Gerais” (pp. 11-32), “Leitura em voz alta” (pp. 33-54) e “Recitação propriamente Dita” (pp. 55-170). No fim do Curso Elementar de Recitação, Azevedo esquematiza os outros dois volumes. Na 2.ª parte, o tema seria a filologia, o qual seria tratado em sete partes: linguística, lexiologia, fonologia, sinonímia, homonímia, ortografia e lexicologia. A 3.ª parte, sobre a redação filológica, distinta da gramatical e da literária, seria apresentada em quatro livros, correspondentes aos seguintes temas: pureza, propriedade, correção e clareza. O manual aparenta ter sido um apoio efetivo à cadeira lecionada por Álvaro Rodrigues. Fig. 2 – Fotografia da folha de rosto da Grammatica da Lingua Portugueza, de João de Nóbrega Soares, 1884. A Grammatica da Lingua Portugueza de João de Nóbrega Soares é, a nível pedagógico, uma das gramáticas mais bem concebidas de autoria madeirense. Segue as diretrizes teóricas da época e apresenta as matérias com simplicidade e de forma esclarecedora. Na introdução, o autor faz questão de mencionar os dois principais tipos de gramática, “a ciência da palavra” (SOARES, 1884, 3): a geral, “que trata dos princípios fundamentais comuns a todas as línguas” (Id., Ibid., 3), e a particular, “que se ocupa das leis e preceitos concernentes a cada língua em especial” (Id., Ibid., 3). Em seguida, define a gramática portuguesa como “a arte de exprimir corretamente o nosso pensamento na língua portuguesa” (Id., Ibid., 3), o que, nos termos da gramática filosófica, resulta em que o estudante associe o funcionamento de uma língua concreta e da linguagem à concretização do pensamento humano. João de Nóbrega Soares dividiu a sua gramática em três partes: a fonologia, que “ensina os sons elementares das palavras” (Id., Ibid., 4) e se subdivide em ortoépia e em ortografia, ocupa as pp. 4 a 6; a morfologia, que “ensina a natureza, a classificação, e a inflexão das palavras” (Id., Ibid., 7), preenche as pp. 7 a 47; e a sintaxe, que “estuda o modo de reunir as palavras em proposições e as proposições em discurso” (Id., Ibid., 48), é tratada nas pp. 48 a 65. Nota-se a tendência descritiva da gramática, pelo facto de se apresentar, essencialmente, como um tratado de morfologia e de sintaxe, bastando, para o constatar, reparar na extensão que cada uma das temáticas ocupa no corpo da obra. Na fonologia, será explicado o que se entende por palavra, sílaba, som, letra, vogal, consoante, acentuação, ditongo. É um capítulo pouco extenso, cuja função é a de oferecer um esclarecimento sobre os sons da língua portuguesa. No segundo capítulo, dedicado à morfologia, o estudo recairá sobre as oito classes de palavras, as quatro variáveis (substantivo, adjetivo, pronome, verbo) e as invariáveis (advérbio, preposição, conjunção, interjeição). Na 1.ª parte deste capítulo, são analisados os substantivos próprios e comuns e a sua flexão em género e em número. No subcapítulo seguinte, referenciam-se os adjetivos: atributivos, determinativos e quantitativos. É na subclasse dos adjetivos determinativos que o gramático inclui o artigo, não considerado pelo autor como uma classe de palavras distinta, visto que “por si nada significa, mas que, juntando-se a um nome, serve para lhe individualizar ou determinar mais ou menos a sua significação” (Id., Ibid., 17). A classe dos numerais não é considerada como independente, pelo que é integrada na subclasse dos adjetivos quantitativos, os quais, quando junto do substantivo, exprimem a ideia de quantidade. Os pronomes, “palavra usada em lugar do nome” (Id., Ibid., 20), são estudados em sete subclasses: pessoais, possessivos, demonstrativos, relativos, interrogativos, reflexos e recíprocos. O verbo, “a principal palavra do discurso” (Id., Ibid., 22), ocupa uma parte considerável do capítulo da morfologia, por ser o tema mais complexo. A abordagem orienta-se pela necessidade de estudar, em primeiro lugar, as suas flexões em modo, tempo, número e pessoa, e, em seguida, as suas três conjugações (em -ar, em -er, em -ir). Como auxílio deste método de aprendizagem, são apresentadas algumas tábuas de conjugação dos verbos auxiliares (“ser”, “estar”, “ter”, “haver”), regulares (“falar”, “vender”, “unir”) e irregulares. No final do estudo da morfologia, há referência às palavras invariáveis: a preposição, que “liga duas palavras” (Id., Ibid., 45); as conjunções, que “unem palavras ou proposições” (Id., Ibid., 45); os advérbios (de tempo, lugar, modo, quantidade), que “aparecem juntos aos verbos, aos adjetivos e algumas vezes a outros advérbios para modificar ou qualificar o sentido da palavra ou palavras a que se unem” (Id., Ibid., 45); e a interjeição, que “é uma exclamação ou grito articulado, para exprimir algum sentimento em uma fórmula abreviada” (Id., Ibid., 46). O capítulo da sintaxe, no qual se explica como se forma o discurso, através da conjugação das palavras e da relação das orações, subdivide-se em dois subcapítulos: o da sintaxe das palavras e o da sintaxe das orações. O subcapítulo sobre a sintaxe das palavras aborda as relações de identidade e de regência (regras de concordância e de determinação, respetivamente), com exemplos relativos aos diversos tipos de complemento (terminativo, restritivo, objetivo e circunstancial), bem como a definição dos termos essenciais da oração (sujeito e atributo ou predicado) e a exemplificação das espécies de proposição. Quanto à sintaxe das orações, explicam-se a relação de coordenação (identidade e exclusão) e a relação de subordinação (determinação, ampliação e restrição). O capítulo da sintaxe conclui com uma definição de discurso, entendido como pensamento enunciado por uma série de proposições, com a breve explicação do funcionamento de nove sinais de pontuação e a exploração de figuras sintáticas da sintaxe irregular (elipse, pleonasmo e enálage). No séc. XX, há a registar o aparecimento de duas figuras notáveis na produção de gramáticas na Madeira, Francisco José de Brito Figueiroa Júnior e Alfredo Bettencourt da Câmara. O primeiro publicou os Apontamentos de Grammatica e Conjugação de Verbos para Uso dos Alumnos que Frequentam a 4.ª Classe das Escolas Primarias, em harmonia com o Respectivo Programma Oficial (Funchal, 1906), com um total de 48 páginas, e o segundo escreveu a Gramática Portuguêsa em harmonia com a Reforma Ortográfica ultimamente Publicada (Funchal, 1912), com 241 páginas. Apontamentos de Grammatica e Conjugação de Verbos… apresenta, na primeira página, uma definição de gramática e a estrutura da obra com as suas partes. É de notar que se exclui implicitamente a noção de que se deve falar e escrever corretamente, uma vez que se admite como possível o uso da língua com eficácia, mesmo se distante do rigor formal. É a apologia da linguística moderna: mais importante do que a correção é a comunicação. O autor divide a gramática em três partes: a fonologia, que trata dos sons das palavras; a morfologia, que estuda as diferentes formas que as palavras podem apresentar; e a sintaxe, que indica a colocação das palavras no discurso. Com as três páginas da fonologia, inicia-se o estudo da gramática, com três parágrafos sobre a ortografia e a pontuação. Deste modo, a fonologia resume-se à apresentação do alfabeto ou das letras, vogais e consoantes, e dos sinais fonéticos (sons). O capítulo da morfologia é o mais extenso (tem 38 pp.), formando o corpo principal do texto. Deduz-se, assim, que a gramática é, à data, mais um tratado sobre as palavras do que um estudo acerca dos sons ou sobre a construção de frases. Este capítulo, onde se analisam mais as palavras variáveis (substantivos, adjetivos, verbos, artigos e pronomes) do que as invariáveis (advérbios, preposições, conjunções e interjeições), é nomeadamente dedicado à flexão dos substantivos, dos artigos, dos adjetivos e dos pronomes. As restantes páginas ocupam-se da flexão verbal (pp. 16-41). Embora lhe faltem rigor científico e um método minimamente abrangente, de modo a constituir-se como uma gramática completa, a obra cumpre o propósito de ser um pequeno e prático tratado sobre a flexão de substantivos, artigos, pronomes, adjetivos e verbos. Alfredo Bettencourt da Câmara – professor primário, tal como Francisco José de Brito Figueiroa Júnior –, produziu a Gramática Portuguêsa em harmonia com a Reforma Ortográfica ultimamente Publicada, onde apresenta, como capítulos estruturantes, a fonologia, a morfologia e a sintaxe. Em anexo à Gramática Portuguêsa…, Alfredo Bettencourt da Câmara publicou um livro de Exercícios sobre a Conjugação dos Verbos Regulares e Irregulares (Funchal, 1915), a parte da gramática mais desenvolvida por Francisco Figueiroa Júnior. Para o autor da , a gramática é o tratado de tipo pedagógico cuja finalidade é o ensino. Bettencourt escreve que a sua gramática ensina a falar e a escrever corretamente, o que significa a adoção de uma atitude normativa no ensino da língua, reforçando a ideia de que os alunos devem aprender a língua-padrão. De acordo com os pressupostos em vigor à época, a morfologia domina a extensão da gramática e a sintaxe também tem um valor acrescido. No entanto, a fonologia apresenta aqui uma definição mais completa – ensina a pronunciar todos os sons e a representá-los por sinais a que chamamos letras – e o seu tratamento comporta a subdivisão do respetivo capítulo em duas partes: a ortoépia, que faculta ao estudante a correta pronunciação das palavras, e a ortografia, que ensina a representar as palavras por letras. O capítulo da fonologia encarrega-se de apresentar o alfabeto português e os sons correspondentes a cada vogal. A apresentação de cada matéria faz-se acompanhar de exercícios de consolidação, denotando uma preocupação do autor com a vertente prática, componente importante para a consolidação do estudo de uma língua. As nove classes de palavras, tipificadas como variáveis ou invariáveis, são descritas no capítulo dedicado à morfologia: substantivos, adjetivos, numerais, pronomes e verbos (variáveis); advérbios, preposições, conjunções e interjeições (invariáveis). Este capítulo procede à exposição exaustiva da flexão de cada uma das palavras variáveis. A consideração dos verbos, que ocupa 78 páginas, é feita através da apreciação das suas desinências (sistematização) e em quadros de conjugação (exemplificação). As restantes páginas da morfologia são preenchidas com estudos sobre a formação (composição) de palavras e sobre as palavras invariáveis. São facultadas definições de sinonímia, homonímia, antonímia e paronímia (com exemplos), passíveis de ser consideradas como embrião de um estudo semântico. A sintaxe – a subdivisão da gramática que ensina a composição das partes da oração entre si, de modo a que tenham um sentido completo –, consiste numa exposição teórica e prática das partes da oração e dos tipos de orações, servindo os muitos exercícios disponibilizados para que o aluno compreenda a construção sintática por meio da análise sintática. O autor inclui um apêndice à morfologia, onde explica a utilização sintática e o emprego de certas palavras, e que é um subcapítulo de morfossintaxe; explica ainda o seu modelo de análise sintática e apresenta alguns exercícios de pontuação. Esta gramática, apesar de editada uma única vez, tem um grande valor científico e pedagógico. Daniel Ferreira Pestana (nascido na Madeira, tendo passado a vida quase por completo fora da Madeira) editou, em 1849, Principios de Grammatica Geral Applicados á Lingua Portugueza Publicados e Offerecidos á Mocidade de Goa, em Nova Goa, Índia Portuguesa. Esta gramática encerra a curiosidade de ter sido editada por um madeirense fora do território português europeu. Esta gramática tem uma ligação estrutural a duas obras anteriores, Principios de Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina, de Marceliano Ribeiro de Mendonça, e Principios de Grammatica Portugueza, de Francisco Andrade, a ponto de o Elucidário Madeirense afirmar que há um plágio evidente em relação à primeira destas obras e, mais tarde, António Cunha Silva considerar havê-lo em relação às duas. Ao seguirmos estas indicações, deparamos com uma umbilical ligação às referidas gramáticas, não só pela semelhança com elas a nível de título, mas também através do paralelismo dos respetivos índices. Assim, ao tomar conhecimento do índice do livro de Daniel Ferreira Pestana e ao compará-lo com o de Principios de Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina, o leitor apercebe-se imediatamente da evidente aproximação à obra de Marceliano Ribeiro de Mendonça. A título exemplificativo, é de mencionar a parte dedicada à classificação dos nomes, cuja coincidência com as referidas obras é, a nível dos títulos, notória. Assim, o capítulo da etimologia faz menção “Dos Nomes em geral”: “Nome em geral é qualquer palavra com que designamos – ou ideias que existem per si, – ou ideias que existem naquelas, fazendo parte delas” (PESTANA, 1849, 2). Este capítulo está subdividido em duas partes, “Dos Substantivos” – “nome substantivo designa ideia que existe per si” (Id., Ibid., 2) – e “Dos Adjetivos” – “os adjetivos designam ideias que existem noutras, cuja parte fazem: por consequência – todo o nome que junto a um substantivo faz parte dele, é adjetivo” (Id., Ibid., 4). A gramática de Daniel Pestana está dividida em cinco partes: “Etimologia”, a mais extensa (pp. 1-73), “Sintaxe” (pp. 75-133), “Ortoépia” (pp. 134-176), “Ortografia” (pp. 177-185) e “Parte Acessória” (pp. 187-196). Desta breve abordagem, há algumas conclusões a tirar: regra geral, as gramáticas de língua portuguesa referidas seguem a doutrina da gramática geral ou filosófica; por se tratar de gramáticas normativas e escolares, o dialeto madeirense é praticamente inexistente nas análises destes gramáticos. Mais do que apontar os regionalismos ou os nichos de identidade numa pátria linguisticamente homogénea, parece-lhes importante defender a língua portuguesa como símbolo de um povo: os gramáticos em questão procuram, assim, dar conta da norma-padrão, não fazendo qualquer referência, direta ou indireta, à variante linguística da Madeira (ou fazendo muito poucas). Passando a outro tipo de gramáticas, as de língua latina, Marceliano Ribeiro de Mendonça publica, em 1835, uma obra de iniciação ao latim, Principios de Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina, integrando-a no movimento da gramática geral ou filosófica, como é percetível pelo título. Principios da Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina proporciona um manancial de observações no mínimo curiosas. E.g., em relação aos nomes próprios, Marceliano Ribeiro de Mendonça opina que não devem constar da gramática, porque, ao serem uma classe invariável, não há necessidade de serem estudados pela morfologia. No capítulo “Doutros Pretendidos Elementos da Proposição”, o autor defende a inexistência do advérbio e da interjeição, sendo que o primeiro deve ser considerado “uma locução elíptica que equivale a uma proposição com um nome” (MENDONÇA, 1835, 82), e a segunda “é a palavra mais ou menos inarticulada, per meio da qual exprimimos sentimentos e paixões da alma, – palavra que equivale a proposições inteiras” (Id., Ibid., 83); assim, ao não exprimirem o pensamento, estes elementos não devem ser matéria gramatical. Em relação ao método de aprendizagem da língua latina, deverá optar-se por memorizar as desinências, a parte lógica que “nos dá conhecimento dos sinais que entram nessa análise, e se diz etimologia – ou as diferentes relações que os ligam, e denominamo-la sintaxe” (Id., Ibid., 3) e, a posteriori, por declinar os nomes, a parte mecânica que ensina “a enunciar o pensamento – ou per meio da palavra falada, e constitui a prosódia, - ou per meio da palavra escrita, e é a ortografia” (Id., Ibid., 3). Quanto à organização interna, esta gramática latina compõe-se de duas partes: sobre a etimologia/a morfologia e sobre a sintaxe. O gramático começa por definir a etimologia como a parte secundária da gramática, a qual nos dá a conhecer as diferentes espécies de palavras, a sua natureza e as suas variações, segundo o aspeto por que se contemplam e os objetos que designam. Ao estudar a etimologia em geral, Ribeiro de Mendonça considera que todas as palavras de uma língua são redutíveis a duas classes gerais: a das palavras nominativas (nomes) e a das conexivas (preposições). O capítulo sobre a etimologia/a morfologia está dividido em vários subcapítulos. Ao abordar os nomes em geral, o gramático explica que os nomes se agrupam em substantivos, se “designam ideias de objeto” (Id., Ibid., 5), e em adjetivos, “se designam ideias de qualidades, sejam estas físicas ou morais, sejam abstratas ou metafísicas” (Id., Ibid., 6). Por sua vez, os primeiros compõem duas subclasses, substantivos próprios e substantivos comuns, sucedendo o mesmo com os adjetivos, os quais são designados de articulares, quando modificam a “extensão” do substantivo, ou de atributivos, quando alteram a “compreensão” dele. No cap. V, o autor refere os acidentes do nome aplicáveis à língua latina: o género (masculino, feminino, neutro), o número (singular, plural), o caso (nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo) e as cinco declinações. Quanto às tábuas de declinação, Ribeiro de Mendonça sugere a consulta de António Verney. O verbo, de que se trata no cap. VI, é a “palavra por excelência: assim denominamos o atributivo per meio do qual enunciamos a existência real ou abstrata do sujeito da proposição” (Id., Ibid., 16). Nestas páginas, explica-se o que são “pessoas” e “tempos”, e são expostas questões relativas às formas verbais (ativa, passiva e neutra) e aos auxiliares. No que respeita à análise das palavras conexivas ou preposições (cap. VII), refere-se que estas “significam relações” (Id., Ibid., 27); subdividem-se em “preposições propriamente ditas”, pelas quais “significamos certas das relações per que os vocábulos se ligam em preposição como sinais de nossas ideias” (Id., Ibid., 27) e em “conjunções”, “a palavra per meio da qual significamos as relações das proposições no discurso, como sinais de nossos juízos” (Id., Ibid., 29). O último capítulo da 1.ª parte (cap. VIII), sobre a etimologia da língua latina, aborda a questão da existência da classe dos advérbios e da das interjeições. Marceliano adota, aqui, uma das suas posições polémicas em matéria gramatical, nomeadamente no que toca às interjeições: como estas não analisam o pensamento, são apenas um meio pelo qual “exprimimos sentimentos e paixões da alma” (Id., Ibid., 33). Para o advérbio, são indicadas as circunstâncias que este pode sugerir (lugar, tempo, quantidade). A 2.ª parte, sobre a sintaxe, constitui “a parte secundária da gramática que pelos acidentes das palavras, seu lugar em contexto, e pausas que as separam, determina as relações que umas têm para com as outras, em ordem a exprimir um sentido” (Id., Ibid., 33). Deste modo, a sintaxe divide-se em construção e em mecanismo do discurso. As relações sintáticas podem ser de identidade ou de determinação e são estudadas pela sintaxe de concordância e pela de regência, dividida em terminativa, objetiva, restritiva e circunstancial. Na sintaxe figurada, são exploradas figuras gramaticais como a elipse, o pleonasmo, o grecismo e a enálage (cap. IV). No cap. V, sobre a construção, definida como “a disposição que damos às palavras em contexto, segundo o génio de cada língua” (Id., Ibid., 54), expõem-se os seus três modos: direto, inverso, interrupto. No cap. VI, Marceliano Ribeiro de Mendonça apresenta questões relativas ao mecanismo do discurso, definido como “a parte da sintaxe que nos dá conhecimento dos diferentes grupos de ideias, pelas pausas que os separam” (Id., Ibid., 64); as pausas são determinadas pelos sinais de pontuação e organizam os textos em grupos. Para terminar, a obra apresenta uma tábua das conjugações regulares de verbos. Esta gramática revela um cariz marcadamente filosófico, transmitido pela ideia de que a linguagem serve para analisar e enunciar o pensamento. À descrição gramatical está subjacente uma teoria geral, na medida em que a definição das classes e das subclasses de palavras, das funções sintáticas e das figuras gramaticais precede a descrição e a exemplificação propriamente ditas do latim. Quanto às gramáticas de línguas estrangeiras editadas por autores madeirenses ou por residentes na Madeira, recordam-se as já mencionadas: de Hector Clairouin, Methodo Michaelense para o Ensino da Lingua Franceza e O Nec Plus Ultra das Grammaticas Methodicas para o Ensino da Lingua Franceza; de Francisco Manuel de Oliveira, Princípios Elementares da Língua Inglesa; e de Alexander J. D. D’Orsey, Colloquial Portuguese Or Words And Phrases of Every Day Life. Fig. 3 – Fotografia da folha de rosto de O Nec Plus Ultra das Grammaticas Methodicas para o Ensino da Lingua Franceza, 2.ª ed., de Hector Clairouin, 1874. O Methodo Michaelense para o Ensino da Lingua Franceza começa com uma crítica aos manuais de francês publicados em Portugal, cuja essência não favoreceu a aprendizagem do francês pelos Portugueses. Hector Clairouin faz a apologia do seu método, criticando claramente os já conhecidos; afirma, em relação ao “método micaelense”, que o fim do “método é ensinar a teoria, base fundamental da língua, e sem a qual todos os esforços serão baldados” (CLAIROUIN, 1861, V), e defende, como pontos fortes, o facto de que este método “não só torna o estudo fácil para o educando, senão também diminui o trabalho que hoje tem qualquer professor, especialmente nas primeiras lições; acontecendo muitas vezes não ter este em que empregar convenientemente os seus discípulos” (Id., Ibid., VI). Na 1.ª parte da gramática, o autor utiliza o português, com vista à exposição dos conteúdos da gramática francesa, e fá-lo a dois níveis: o da pronúncia e o da sintaxe/das partes da oração. As palavras e as frases dos exercícios e dos diálogos são por norma apresentadas nas duas línguas – o português e o francês –, para que o estudante as compare. Na 2.ª parte da gramática, fazendo fé que o estudante já domina o francês, os conteúdos são expostos nessa língua. Os exercícios auxiliares compõem-se de questionários, de diálogos e de ditados. A outra gramática da autoria de Hector Clairouin, O Nec Plus Ultra das Grammaticas Methodicas para o Ensino da Lingua Franceza (1874), é uma 2.ª edição do Methodo Michaelense…, como atesta uma breve nota na folha de rosto: “inteiramente refundida do Methodo Michaelense, aprovado pelo Conselho Superior de Instrução Pública”. Apesar de o autor ter um novo procedimento de ensino, esta gramática é um manual tradicional, cujo objetivo é o domínio da arte de falar e de escrever corretamente. Fig. 4 – Fotografia da folha de rosto de Principios Elementares da Lingua Ingleza, de Francisco Manuel de Oliveira, 1809. Quanto às gramáticas de língua inglesa, há que registar o trabalho de Francisco Manuel de Oliveira, Principios Elementares da Lingua Ingleza (1809). Na folha de rosto, encontra-se a especificação das três partes em que foi dividido este manual: Na 1.ª Parte Se Trata das Principaes Regras da Grammatica: na 2.ª dos Exercicios, e Elementos da Conversação: na 3.ª das Frases, e Idiotismos, ou seja, das frases feitas e das expressões idiomáticas. Pode dizer-se desta obra que é um guia de conversação, embora a 1.ª parte analise muitos conteúdos gramaticais. Apetrechada de exercícios que exigem atenção e algum conhecimento adquirido por parte do estudante (é necessário o preenchimento de lacunas com verbos, preposições, artigos, pronomes), esta obra configura-se como um manual prático. Ao longo do livro, o texto em inglês é seguido do seu equivalente em português, permitindo a comparação das duas línguas. A vantagem da obra de Francisco Manuel de Oliveira reside no facto de conseguir conjugar estudo gramatical, exercícios e o tópico da conversação num único livro, sendo um bom compêndio de língua inglesa. Alexander J. D. D’Orsey escreveu Colloquial Portuguese or Words and Phrases of Every Day Life, cujo objetivo era ser um guia de conversação para os cada vez mais comuns visitantes ingleses da Ilha. Não sendo propriamente uma gramática de língua portuguesa, a obra constituiu um sucesso editorial, ao ser editada por seis vezes entre 1854 e 1891. A obra de D’Orsey é um léxico composto de palavras e de expressões da língua inglesa, às quais se fazem corresponder frases e vocábulos do português. O autor menciona quatro marcas distintivas dos desvios lexicais madeirenses (Dialetologia): a mudança dos sons vocálicos – hômem em vez de hómem, men-íne-o em vez de menino, bow-a em vez de bô-a, sou, estou, etc. – rimando com o inglês too – em vez de so, stow, Jo-zé-ah em vez de Jo-zé, tânho em vez de tênho, meicha em vez de mécha, fazeer em vez de fazer, etc.; o transporte de consoantes – prove em vez de póbre, trocida em vez de torcida, frol em vez de flor, prantar em vez de plantar; a omissão, ’tá em vez de está, minha em vez de minhas, cavall em vez de cavalo; e o s final como sh, em vez de s (D’ORSEY, 1891, 1). Noutro âmbito, há que referir obras interessantes, como a separata de João Apolinário de Freitas, Subsidios para a Bibliographia Portugueza Relativa ao Estudo da Lingua Japoneza e para a Biographia de Fernão Mendes Pinto. Grammaticas, Vocabularios, Diccionários. No prólogo, declara-se que um dos pretextos para a elaboração do documento foi a guerra russo-nipónica, que fez com que o mundo ocidental se debruçasse sobre a Rússia e sobre o Japão, em particular sobre este. Na 1.ª parte, o autor fala das gramáticas de língua japonesa e dos respetivos autores, como a Arte da Lingua Japoneza, de Duarte da Silva, a Grammatica da Lingua Japoneza, de João Fernandez, a Arte da Lingua Japonica, de autor desconhecido, a Conjugação dos Verbos Regulares em Latim, Japonez e Portuguez, que, segundo Apolinário de Freitas, “é a chamada gramática japonesa do P.e Manoel Alvares, mas que propriamente não passa de uma nova edição da celebrada gramática latina deste não menos afamado jesuíta” (FREITAS, 1905, 38), a Arte da Lingoa Iapam, de João Rodriguez, a Arte Breve da Lingoa Iapoa Tirada da Arte Grande da Mesma Lingoa, pera os Que Começam a Aprender os Primeiros Principios della, de João Rodriguez, e a Ars Grammatica Japonicae Linguae, de Diogo Collado. Na 2.ª parte, João Apolinário de Freitas descreve outro tipo de livros, “Vocabulários e Dicionários”, e apresenta títulos e autores. Na 3.ª parte, “Notas Adicionais”, discute-se a língua materna de S. Francisco Xavier, se o português, se o castelhano, concluindo-se que o seu idioma materno deveria ser o vasconço, uma vez que o santo jesuíta nasceu na cidade de Xavier, na província de Navarra. Nesta parte, há também anotações sobre a origem de alguns vocábulos (topónimos e outros), como é o caso de “Macau”, proveniente de “Amacao” (Id., Ibid., 76). Fig. 5 – Fotografia da folha de rosto de Questões de Língua Pátria, vol. II, de Ivo Xavier Fernandes, 1949. Outra obra digna de nota são os dois volumes de Questões de Língua Pátria, de Ivo Xavier Fernandes. A obra tem o particular interesse de tratar de questões cuja atualidade se prolongou para além do seu tempo, como o Acordo Ortográfico de 1911. No cap. I, o autor começa por falar na “Questão Ortográfica”: expõe diferentes pontos de vista sobre o Acordo Ortográfico de 1911 e salienta o facto de os seus detratores terem caído por terra. No final do capítulo, há um subcapítulo dedicado a “O Idioma Brasileiro” (pp. 49 e 50), que, na opinião de Ivo Xavier, “por só existir em cérebros visionários, dominados sem dúvida por um excessivo ou mal compreendido patriotismo” (FERNANDES, 1947-1949, I, 50), não será tão cedo uma realidade. Segue-se, no cap. II, a apologia da “Língua Nacional” . No cap. III, fala-se de “Anomalias de Gramáticas”, dando-se conta de impropriedades em denominações, e.g., quanto aos graus dos adjetivos. No cap. IV, “Coisas da Língua”, abordam-se os galicismos e encontra-se uma crítica explícita aos meios de comunicação brasileiros, pelo uso excessivo de expressões francesas; referem-se curiosidades sobre a grafia de nomes de pessoas e outras – como a grafia de “indemnização”, e de “vasa” e “vaza” –, e trata-se o tema do imperativo negativo. No vol. II, Ivo Xavier aborda a questão d’“A Unidade Gráfica Luso-Brasileira” tendo como pano de fundo o Acordo Ortográfico de 1911: “Não nos esqueçamos de que a língua portuguesa é só uma e que só uma também tem de ser a sua ortografia!” (Id., Ibid., II, 6). Na parte intitulada “Acertando o Que não Está Certo” (a partir da p. 8), aborda os “Casos de Morfologia”. Há considerações sobre “Casos de Sintaxe” (a partir da p. 23), bem como sobre outras temáticas pertinentes: “Alotropismo, Polimorfismo e Sincretismo” (pp. 38 a 49), “Homotropismo” (pp. 50 a 94), “Casos da Fonética” (pp. 95 e 96) e “Verbos em ‘-izar’ e ‘-isar’” (pp. 97 a 99). Este volume finaliza com os seguintes temas: o “Pretoguês Jornalês…” (pp. 218 a 229) e “Étimos Curiosos” (pp. 230 a 240). Apesar de as gramáticas da língua portuguesa elaboradas por autores madeirenses denotarem grande apego a aspetos normativos, é de referir uma evolução em publicações posteriores às referidas que, não sendo gramáticas, acompanham o interesse, nascido no final do séc. XIX, pelas variações dialetais do português, o qual foi desenvolvido por estudiosos como Leite Vasconcellos, considerado o fundador da dialetologia portuguesa, e por académicos como o Prof. Paiva Boléo, em meados do séc. XX. Entre estas obras, encontram-se: Palavras do Arquipélago da Madeira, de Emanuel Ribeiro (1929); Vocabulário Madeirense, de Fernando Augusto da Silva (1950); Porto Santo. Monografia Linguística, Etnográfica e Folclórica, de Maria de Lourdes de Oliveira Monteiro dos Santos Costa; Peixes da Madeira, de Adão de Abreu Nunes (1953); e Falares da Ilha, de Abel Caldeira (1961). Neste domínio, são de destacar as obras de Emanuel Ribeiro, Fernando Augusto da Silva e Abel Caldeira, que, não se constituindo como gramáticas, não deixam de ser importantes nos campos da dialetologia e da lexicologia, por terem sido os primeiros trabalhos a abordar, de uma maneira profunda, os desvios dialetais da Madeira, isto é, as expressões e as denominações usadas pelas populações do arquipélago.   Paulo Figueira (atualizado a 13.12.2017)

História da Educação Linguística

guanches

Guanches é a designação que mais se vulgarizou para os indígenas das Canárias, mas, na documentação camarária, são conhecidos como escravos «canarios». Na Madeira, estes aborígenes estão testemunhados, pelo menos, como escravos provenientes das ilhas Tenerife, La Palma, La Gomera e Gran Canária. Palavras-chave: Canárias; Escravos; Guanches.   Nas Canárias, os guanches são entendidos como os habitantes oriundos da ilha de Tenerife, mas tal designação foi a que mais se vulgarizou para os indígenas das Canárias, sendo também testemunhada por Gaspar Frutuoso quando se refere à população daquelas ilhas de uma forma global. Mas, na documentação camarária do Funchal, são conhecidos como escravos canarios. Também preferimos esta designação à de canários, por forma a não se confundir com o pássaro do mesmo nome. Na Madeira, a presença destes aborígenes das ilhas Canárias está testemunhada, pelo menos, como escravos provenientes das ilhas Tenerife, La Palma, La Gomera e Gran Canária. A informação que sobre estes é possível reunir na documentação é escassa e muito esparsa. A presença dos guanches na Madeira, na condição de escravos, é um dos principais resultados da intromissão dos madeirenses na pretensão portuguesa de conquistar as Canárias. Decorridos apenas 26 anos desde o início do povoamento da Madeira, os madeirenses embrenharam-se na complexa disputa pela posse das Canárias, ao serviço do infante D. Henrique. Desta forma, já na primeira metade do séc. XV, surgiram algumas incursões com partida da Madeira, existindo notícia de três (1425, 1427, 1434), das quais resultou o aprisionamento de escravos. Com a expedição à costa africana de 1445, o madeirense Álvaro de Ornelas fez um desvio à ilha de La Palma, onde tomou alguns indígenas que conduziu à Madeira. Nas inúmeras viagens organizadas por Portugueses, entre 1424 e 1446, surgem escravos como mercadoria que, depois, era vendida na Madeira ou em Lagos. Nos anos de 1445 e 1446, estão também documentadas diversas expedições às Canárias, que contribuíram para o aumento da presa de escravos no arquipélago na Madeira. Em 1445, os dois capitães da ilha – Tristão Vaz e Gonçalves Zarco – enviaram caravelas de reconhecimento à costa africana, mas o fracasso da viagem levou-os, no retorno a procurar presa em La Gomera. Álvaro Fernandes fez dois assaltos em La Gomera e, em 1446, foi enviado por João Gonçalves Zarco, segundo Zurara, com a intenção de realizar alguma presa. É a partir daqui que devemos situar a importância que assumiram os escravos das Canárias na sociedade madeirense. A partir de meados do séc. XV, são assíduas as referências a tais servos na ilha da Madeira, identificados como pastores e mestres de engenho. Estranhamente, nos testamentos do séc. XV, não encontramos nenhuma indicação que abone a sua presença. Para além dos dois que possuía o capitão Simão Gonçalves da Câmara, sabe-se que João Esmeraldo, na Lombada da Ponta do Sol, era também detentor de escravos daquela origem, sem ser referido o número. Cadamosto, na primeira passagem pelo Funchal em 1455, fala-nos de um guanche cristão que se dedicava a fazer apostas sobre o arremesso de pedras. O principal estigma da sociedade madeirense para com este grupo estava relacionado com os fugitivos, que são apresentados como violentos e ladrões. E mesmo entre os demais, as relações não deveriam ser muito boas, uma vez que o senhorio da Madeira determinou, em 1483, uma devassa, seguida de ordem de expulsão, em 1490. De acordo com este último documento, todos os escravos canarios, oriundos de Tenerife, La Palma, La Gomera e Gran Canaria, excetuando-se os mestres de açúcar, as mulheres e as crianças, deveriam ser expulsos do arquipélago. Mas, neste caso, o infante apenas considerou os escravos forros. A 4 de dezembro de 1491, houve uma reunião extraordinária da Câmara para deliberar sobre o assunto. A ela assistiram o capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, os oficiais concelhios e os homens bons. Ao todo eram 25, e destes, 11 votaram a favor da saída de todos, 9 votaram apenas pela saída dos escravos forros, e 4, pela sua continuidade na Ilha. Dos primeiros, registe-se a opinião de João de Freitas e Martim Lopes, que justificam a sua opção afirmando que todos os guanches, livres ou escravos eram ladrões. Para Mendo Afonso, não era assim que se castigava tais atropelos, pois existia a forca como solução. Em 1503, o problema ainda persistia, ordenando o Rei que todos eles fossem expulsos num prazo de 10 meses. Posteriormente, a Coroa retrocedeu, abrindo uma exceção para aqueles que eram mestres de açúcar e para dois escravos do capitão – Bastiam Rodrigues e Catarina –, por nunca terem sido pastores. As evidências da documentação, complementadas pelos usos e costumes, técnicas de construção e produção e, ainda, pela toponímia, são a expressão de uma relação histórica que abraçou ambos os arquipélagos. De facto, na Madeira, da presença dos canarios, muitas vezes identificados como mouros e índios, ficaram rastos evidentes na documentação, toponímia e tradição oral. No caso da toponímia, que identifica acidentes geográficos e grutas, é de salientar a sua localização no interior da Ilha, o que os relaciona com os fugitivos ou pastores, maioritariamente guanches. Assim, temos alguns vestígios de guanchismo em nomes como pico do Canario, Garachico, Massapez, ilhéu do Guincho; o primeiro parece associar-se à população em causa, e os outros são palavras com origem no dialeto dos guanches. Deste modo, associa-se-lhes a tradição relacionada com a construção de furnas para habitação no concelho da Ribeira Brava e também certos locais de culto religioso, como sucede com a capela cristã do séc. XVII na freguesia de S. Roque do Faial, que teria sido construída no local de um templo associado a estes, ditos mouros. Não é certo se o pico Canário (Santana) e o lugar do Canário (Ponta de Sol) se referem ao escravo ou ao pássaro, comum nestes arquipélagos. Note-se que, em abono do último caso, temos a referência de que João Esmeraldo era possuidor de escravos desta origem na sua Lombada que, não obstante estar perto da vila, pertencia à jurisdição do município do Funchal. Estão referenciadas grutas nos seguintes locais: cais do Campanário, Calhau da Pesqueira (Ponta do Pargo), Furna do Negro (Ribeira Seca), Ribeira da Tabua, Lapa do Castelhano (Paul da Serra), Eira da Moira (Serra de Água), Furna da Moira (Lugar da Serra). Todas as grutas do litoral e do interior denotam uma atualização recente, tornando-se difícil saber a autoria e o início do seu funcionamento. Nos casos das do Campanário e Ponta do Pargo, ligam-se à atividade do mar, enquanto as do interior, se estiverem próximas de terrenos agrícolas, são consideradas armazéns de guarda dos utensílios agrícolas e palheiros para o gado; por seu lado, as da zona de floresta denotam utilização por carvoeiros, pastores e viajantes. Estas estruturas são associadas a túmulos, identificados como originários de mouros, seguindo uma tradição peninsular em que tudo o que não é cristão é merecedor deste epíteto. A par disso, existem no interior da Ilha, nomeadamente na zona do Paul da Serra, diversas estruturas escavadas na rocha que poderão estar associadas à presença destes ou doutros grupos. A influência dos guanches, na condição ou não de escravos, não se fica pelos lugares recônditos da Ilha, pois também chegou ao meio social madeirense. Há ainda outras situações que testemunham esta mútua influência cultural, nomeadamente a generalização do consumo do gofio, que assumiu um papel fundamental na dieta das populações do Porto Santo, com a designação de “gofé”, mas que também surge na Madeira, e.g. na Camacha. Outra aportação desde as Canárias para a Madeira deverá estar nas técnicas ligadas aos meios de transporte do vinho. Assim, o uso de odres – os borrachos na nomenclatura madeirense – para transportar o vinho deverá estar relacionado com esta influência berbere, não obstante o seu uso peninsular, sendo referenciado em Lisboa para o transporte de mel e azeite. Em relação a esta influência canária, na generalização deste meio de transporte do vinho tenha-se em consideração a tradição dos guanches no tratamento dos couros, nomeadamente do gado caprino, que usavam como vestuário ou bota para transporte de líquidos (leite, vinho). O povoamento cinegético das ilhas Desertas com cabras das Canárias, por determinação da Câmara do Funchal de 28 de julho de 1481, poderá ser mais um elemento a corroborar esta situação, tendo em conta o uso preferencial, nos dois espaços, da pele de cabra com a mesma finalidade. Finalmente, tenha-se em conta que, quer os guanches (em Mesquer, na ilha de Fuerteventura) quer os berberes em Marrocos (em Marrakech), tinham instalações para o curtume de peles, cujas estruturas se apresentam semelhantes às que conhecemos na Serra de Água e Tabua, na ilha da Madeira. A situação destas estruturas da Ribeira da Serra da Água e Ribeira da Tabua, em pleno leito da ribeira, indicia, em hipótese, a sua relação com uma indústria de curtumes que deverá ter existido e a que não deverá ser alheia a presença de escravos canarios e mouriscos.   Alberto Vieira (atualizado a 13.12.2017)

Antropologia e Cultura Material Madeira Global

fortes

A defesa e a fortificação da Madeira foram várias vezes revistas ao longo da sua história, tendo ficado, das inúmeras edificações levantadas, grande parte do sistema construído na área do Funchal, com várias fortalezas e com pequenos apontamentos das muralhas e fortes de apoio, tanto para nascente como para poente. Do vasto conjunto de fortes, fortins ou redutos levantados ao longo das costas, dependentes das estruturas militares ali levantadas, como eram as companhias de ordenanças, também subsistem muitas construções. Palavras-chave: arquitetura militar; defesa; ordenanças; património edificado.   Fortaleza do Ilhéu A defesa e a fortificação da Madeira foram várias vezes revistas ao longo da história (Defesa), tendo ficado, das inúmeras edificações levantadas, grande parte do sistema construído na área do Funchal, com várias fortalezas – i.e., sistemas defensivos quase autónomos –, tal como pequenos apontamentos das muralhas e fortes de apoio às mesmas e à defesa geral da cidade, tanto para nascente como para poente, nem todos guarnecidos em permanência. Do vasto conjunto de fortes, fortins ou redutos levantados ao longo da costa, dependentes das estruturas militares ali levantadas (Guarnição Militar) (Ordenanças), subsistem muitas construções. De uma forma geral, o sistema defensivo fixo ao longo da costa da Madeira, representado pela rede de fortes e fortins, nasceu do “Regimento de vigias”, emitido a 22 de abril de 1567 e enviado na sequência do ataque corsário francês de 1566. Este regimento mandava montar vigias em todos os portos, “calhetas, praias ou pedras, em que parecesse que os inimigos poderiam desembarcar” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 3, f. 142v.), avançando ainda com outras diretivas que diziam respeito à montagem de artilharia nesses locais em caso de perigo, tendo assim sido a base de muitos, senão de quase todos os pequenos fortes ou fortins levantados pela Ilha (Arquitetura Militar).   A defesa do Funchal envolvia, para além das fortalezas, que tinham autonomia própria, alguns fortes de apoio ao conjunto das muralhas do Funchal, como os pequenos fortes de S.ta Catarina ou de S. Lázaro, que deram depois lugar à bateria das Fontes (Muralhas do Funchal), articulando-se ainda com a defesa das praias e desembarcadouros para poente e para nascente. Com o prolongamento da muralha para nascente, surgiram ainda fortificações no remate da mesma e depois um pequeno forte na foz da ribeira de Gonçalo Aires, o forte dos Louros, tal como, mais tarde, ao meio da praia do calhau de Santa Maria Maior, o forte Novo de S. Pedro. Desde os primeiros anos do povoamento, quando Zarco se abrigou nos dois ilhéus da baía, ao executar o primeiro grande reconhecimento à volta da Ilha, que se reconheceu o interesse desses ilhéus para a defesa do porto do Funchal (Fortaleza do Ilhéu). Com o desenvolvimento do porto e, principalmente, depois da passagem do Funchal a cidade (20 de agosto de 1508), esse interesse terá sido ainda mais notório, estendendo-se aos arrifes fronteiros. A primeira fortificação a surgir fora do perímetro da cidade, quase contemporânea da nova fortaleza de S. Lourenço, senão mesmo anterior a ela, terá sido levantada nestes arrifes, sendo depois devotada a N.ª Sr.ª da Penha de França, e articulando-se depois com outra levantada no chamado ilhéu Pequeno, quando nos meados do séc. XVIII se fez o molhe da Pontinha, o forte de S. José. As praias e desembarcadouros da área do Funchal também vieram a ser dotados de pequenos fortes, muitas vezes de iniciativa particular, como o referido forte dos Louros, na foz da ribeira de Gonçalo Aires, mas já antes tinha sido levantado o forte do Gorgulho e fortificada a praia Formosa, que chegou a ter uma rede de 5 fortes (Fortes da Praia Formosa), o mesmo vindo a acontecer com a foz da ribeira dos Socorridos (Fortes da Ribeira dos Socorridos). Com o desenvolvimento das vilas da capitania do Funchal, também as mesmas vieram a construir pequenos fortes, como Câmara de Lobos (Fortes de Câmara de Lobos), Ribeira Brava (Fortes da Ribeira Brava), Ponta do Sol (Fortes da Ponta do Sol) e Calheta (Fortes da Calheta). Escavações da Fortaleza de São Filipe do Pelourinho Idêntica situação se passou na capitania de Machico, cuja vila, tal como o Funchal, chegou a possuir uma muralha ao longo da praia e também a ser dotada de um conjunto de fortes (Fortes de Machico), à semelhança da vila de Santa Cruz (Fortes de Santa Cruz), embora somente um deles tenha chegado até nós. Os portos e ancoradouros entre Santa Cruz e o Funchal também tiveram pequenos fortes, como os que subsistem nas praias e arribas dos Reis Magos, no Caniço, e na foz da ribeira do Porto Novo (Fortes do Porto Novo e Caniço), o mesmo acontecendo pontualmente na costa norte da Madeira, como na baía do Porto da Cruz, no calhau de S. Jorge e na praia do Porto Moniz. Como mirante romântico, ainda será de referir o forte do Faial (Fortes do Norte da Ilha), que, embora não tenha sido uma construção militar, veio a ser dotado de um largo conjunto de bocas-de-fogo de ferro inglesas, entretanto abandonadas nas praias do Funchal (Artilharia), que tradicionalmente salvam nas festas religiosas locais. A situação do Porto Santo foi mais complexa, dado o abandono a que a ilha foi votada pelos seus capitães-donatários e o isolamento a que sempre esteve sujeita, chegando a sofrer vários assédios corsários, alguns de graves consequências. Esta ilha não deixou, no entanto, de ter os seus fortes (Fortes do Porto Santo), mas estes não obstaram aos assédios sofridos. A definição da superintendência sobre a capitania arrastou-se ao longo do séc. XVIII, pelo que somente com a vigência do gabinete pombalino a situação foi ultrapassada e se pôde organizar a defesa e construir uma fortificação moderna. Se, ao longo do séc. XVIII, se assistiu ao aumento quase exponencial destas pequenas construções defensivas, o interesse militar da maior parte dessas construções, algumas muito precárias, decaiu francamente ao longo de todo o séc. XIX. Acresce que a importância do antigo património militar foi logo reconhecida por parte das câmaras municipais no início do liberalismo, como forma de ampliação das suas áreas de interesse, de expansão do tecido edificado e de reformulação das acessibilidades, sendo então muito do mesmo património militar edificado demolido na Ilha, o que igualmente aconteceu nos grandes centros urbanos continentais. Situação diferente voltou a ocorrer na Madeira com o advento da autonomia, mas já num quadro mais informado, sendo a arquitetura militar objeto de várias exposições, como a de 10 de junho de 1981 – ano em que o Dia de Portugal foi comemorado no Funchal –, exposição remontada em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1982, bem como no Porto e em Vila Viçosa. Foi depois solicitada a sua passagem à tutela da Região Autónoma da Madeira, com vista à instalação de instituições culturais e de apoio às atividades do turismo, nomeadamente os fortes do Ilhéu, de S. Tiago e do Pico, no Funchal, e o Amparo de S. João, no Machico (Arquitetura militar).   Rui Carita (atualizado a 07.12.2017)

Arquitetura História Militar Património

forte dos louros

Deve datar da primeira metade do séc. XVII a construção da pequena fortificação particular que o comerciante Diogo Fernandes Branco mandou levantar nas suas propriedades dos Louros e que o capitão Diogo Fernandes Branco, seu filho homónimo, ampliou ao longo da segunda metade do século. Para proteger o desembarcadouro particular das propriedades dos Louros, construiu-se uma pequena fortaleza retangular com uma esplanada capaz de cinco peças de artilharia ligeiras. A construção deve ter tido a direção do mestre das obras reais Bartolomeu João. Palavras-chave: fortes; arquitetura militar; comércio internacional; defesa.   Mateus Fernandes (c. 1520-1597), de acordo com apontamentos que deixou em Lisboa, ainda nos finais do séc. XVI realizara obras na foz da Ribeira Gonçalo Aires. As primeiras obras nesse local, que Mateus Fernandes refere terem sido feitas no governo do conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598), eram para “levante”, constando de uma série de trincheiras e traveses, nas quais se fazia “vigia todas as noites” e que “têm casa”. O mestre Mateus Fernandes pedia, então, que fossem reforçados, dada a força da ribeira no inverno, com “um espigão”, ou seja, um baluarte, rebocado a cal por dentro e por fora (ANTT, Antigo Regime, Arquivo da Casa da Coroa, Cartas Missivas, mç. 2, n.º 53). A opção tomada para o que que ficaria com o nome de forte dos Louros, cerca de 50 anos depois, foi no sentido da construção, na margem oposta, de uma nova estrutura muito mais elevada, composta por um baluarte quadrangular, rematado nos cunhais por elegantes guaritas e com casa da guarda e paiol para norte. A construção deve datar da primeira metade do séc. XVII e talvez tenha continuado ainda durante o período filipino na encosta que domina a pequena praia de desembarque, mandada levantar por Diogo Fernandes Branco (c. 1600-1652), pai, como uma pequena fortificação particular. Este comerciante e armador construiu um pequeno empório comercial ao longo da primeira metade do século, que o Cap. Diogo Fernandes Branco, seu filho homónimo, ampliou ao longo da segunda metade, com a montagem de armadas para comércio geral e, especificamente, de escravos, que circulavam entre as costas de África, os arquipélagos atlânticos e o Brasil (Pernambuco). Esta família tornou-se uma das mais poderosas casas comerciais da Madeira da segunda metade do séc. XVII. Para proteger o desembarcadouro particular nas suas propriedades dos Louros, cruzando fogos com a fortaleza de S. Tiago, construiu-se, então, uma pequena fortaleza retangular, com uma esplanada capaz de 5 peças de artilharia ligeiras, em que, por carta de 9 de dezembro de 1649, afirma, para um dos seus correspondentes, ter de gastar mais 2$000 cruzados, “além de 1$580 que nele estão gastos” (VIEIRA, 1996, 133-134). Com a construção da bateria da Alfândega (Reduto da Alfândega) e as medidas de controlo do contrabando determinadas por D. João IV, a família Fernandes Branco oficializou a situação da sua fortaleza, colocando-a sob as ordens do Rei, mas pedindo a sua capitania. O Rei, por portaria de 4 de setembro de 1647, concedeu a capitania do forte dos Louros a Diogo Fernandes Branco, pai, enquanto fosse vivo, e determinou que, por sua morte, nela sucederia o seu filho (ANTT, Chancelaria de D. João IV, Portarias do Reino, liv. 2, fl. 245). Não temos informações sobre a construção do forte dos Louros, por certo sob direção do então mestre das obras reais Bartolomeu João (c. 1590-1658), pois, embora muito simples como construção de defesa, possui as mais bonitas e elegantes guaritas que existem na Ilha. Perto dos finais do séc. XVII e falecido o Cap. Diogo Fernandes Branco sem herdeiros diretos, o controlo passou para o governador e a sua guarnição foi constituída com base em reservistas, assim sendo os seus artilheiros. Temos informações de artilheiros na situação de reserva, se assim se pode dizer, a transitarem dos fortes de primeira linha, como o do ilhéu, nos finais do séc. XVII a fortaleza mais importante, para o então denominado fortim dos Louros. Aconteceu assim, em 1690, com o velho tanoeiro Manuel Martins, que chegou depois a ser condestável do ilhéu, honorário, com certeza, pelo falecimento do seu irmão Simão Fernandes Forte, em 1698. A nomeação de 1690 de Manuel Martins para o fortim dos Louros especifica que havia servido mais de 20 anos na fortaleza de N.ª Sr.ª da Conceição do Ilhéu, pelo que se lhe dava mais uma pipa de vinho por ano. Atendia-se ainda ao facto de “se dar incapaz”, “já velho”, com “falta de vista” (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 966, fls. 139v. e 284). A capitania do forte dos Louros, no entanto, deve ter continuado na família, e a sua propriedade efetiva também, pois tanto os tenentes-coronéis Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em 1817, como António Pedro de Azevedo (1812-1889), entre 1841 e 1860, nas suas “descrições”, quase não referem este forte. No final do séc. XIX, o procurador-geral da Fazenda pública do Funchal, António Leite Monteiro, no tombo deste forte, datado de 7 de outubro de 1892, cita a sua construção pelo morgado e capitão Nicolau Geraldo de Atouguia Freitas Barreto, “que o ofereceu para poder obter a patente de capitão da sua guarnição auxiliar” (ABM, Arquivos Particulares, Tombo Militar n.º 11, n.º 109), o que não é verdade, pois a construção é anterior. O Cap. Nicolau Geraldo de Freitas Barreto foi escudeiro e fidalgo da Casa Real, com mercê do hábito da Ordem de Cristo, e foi capitão do forte de N.ª Sr.ª da Encarnação dos Louros, por nomeação de 28 de maio de 1715, tendo tido armas concedidas em 1731, registadas na Câmara do Funchal (VERÍSSIMO, 1992, 152), que mandou pintar nas suas casas à rua do Esmeraldo, palacete onde se encontra instalado o Tribunal de Contas do Funchal (Arquitetura Senhorial). Nos inícios do séc. XVIII, segundo o Livro de Carga da Fortificação, era condestável deste forte António de Freitas, que recebeu, em 1724, cinco peças de artilharia de ferro montadas, de pequeno calibre, uma teria até oito libras, e alguns apetrechos de artilharia. Em 1729, era condestável do forte Bernardo de Sousa e, em 1730, Paulo Pereira de Lordelo. No final do século, o Gov. Diogo Pereira de Forjaz Coutinho, reconhecendo o pouco valor militar do forte dos Louros, pretendeu ali instalar uma fábrica de seda, mas a ideia não passou da documentação oficial. No entanto, todos os documentos seguintes são unânimes na necessidade da sua alienação, a tal ponto que Paulo Dias de Almeida já não o refere na sua descrição de 1817. No já citado Tombo Militar, onde o forte dos Louros tem o n.º 109, não consta a descrição de 1862, quando foi levantado pelo Ten.-Cor. António Pedro de Azevedo, que desenhou o forte e a área envolvente; e, em 1892, o forte é descrito como “insignificante”, situado a 1 km da cidade, para leste, junto à estrada geral de Santa Cruz e Machico. Encontrava-se levantado sobre a escarpa da ribeira de Gonçalo Aires, a 61 m de altura sobre o nível do mar e o Lazareto do Funchal. Havia então duas casas à carga do forte: uma dentro, com quatro quartos ladrilhados, um assoalhado e uma cozinha; outra fora, encostada ao muro do forte, mas totalmente em ruínas, e de que nada restou. São interessantes as confrontações do forte: pelo norte, com terras das freiras de S.ta Clara, “benfeitorizadas” por M.ª Rosa e Manuel de Gouveia; pelo sul, com a rocha sobranceira ao Lazareto; a leste e oeste, outra vez com terras das freiras de S.ta Clara. Saliente-se que os conventos haviam sido extintos em 1834; no entanto, as propriedades em causa não eram do convento, mas das freiras de S.ta Clara. António Leite Monteiro refere, em nota à descrição do tombo, que o forte dos Louros não tinha qualquer valor como defesa militar e, em face da sua má situação, já tinha sido proposta a sua venda, de que se poderia obter 200$000 réis, calculados pelo aluguer que a casa poderia alcançar. A sua alta localização não permitia bater-lhe o mar, o que aumentava o seu valor comercial e, dado que se encontrava dominado por toda a parte, quer de oriente, ocidente, ou norte, o seu valor militar era quase nulo, pelo que o melhor era vendê-lo. Por outro lado, com a situação do Lazareto na sua parte baixa, se se quisesse mantê-lo “naquela mal escolhida localidade”, teria o governo de despender algum dinheiro com o forte, pois não poderia, para o policiamento interno do Lazareto, deixar-se de incluir nele o mesmo forte. Haveria, então, que se estudar a localização da estrada para Santa Cruz e Machico, que teria de passar acima do forte e assim construir-se a nova ponte. A estrada passou efetivamente para cima da escarpa e o Lazareto fechou-se com um portão de ferro ao largo, encimado com as armas reais, hoje no jardim da Q.ta das Cruzes. Mas o forte acabou por ser entregue pelo Exército ao Ministério das Finanças, embora com inquilinos descendentes do antigo guarda-fiscal Henrique Marcelino de Nóbrega, de família ali residente há quase 100 anos e que somente dali saiu em 2014. O tombo seguinte, com o n.º 110, corresponde à “Casa da guarda da foz da ribeira de Gonçalo Aires” e é assinado por António Pedro de Azevedo, a 17 de setembro de 1862, data em que procedeu ao levantamento da área. A casa é descrita como ocupando uma superfície de 29 ca, com 7 x 4 m, tendo porta e janelas com grades. António Pedro de Azevedo cita que foi “primitivamente destinada a alojar a guarda noturna encarregada de vigiar o contrabando neste porto”. Acrescenta que confrontava em todos os lados com terrenos do Lazareto do Funchal e o seu valor seria de 1000 réis, em virtude de a sua proximidade com o mar tornar insegura a sua situação. Em 1892, António Leite Monteiro reitera que o prédio “devia ser vendido”, parecendo que a venda se processou a 31 de janeiro de 1896, mas parte do documento encontra-se ilegível (ABM, Arquivos Particulares, Tombo Militar n.º 11, n.º 110). A localização alcantilada do forte dos Louros inspirou inúmeros artistas, desde Andrew Picken (1815-1845), Funchal from the East, em 1840 e 1842, a William Gore Ouseley (1766-1866), por volta de 1850, Isabella de França (1795-1880), em 1853, etc., assim como o lazareto depois instalado no porto, por debaixo do forte, e onde era a antiga casa da guarda da foz da ribeira, que foi utilizado também como prisão militar, v.g., dos monárquicos da Revolta de Monsanto, em 1918, e dos elementos envolvidos na Revolta da Madeira, em 1931. Vista do Funchal com Forte dos Louros. Andrew Picken. 1840.   Imagens Arquivo Rui Carita. Rui Carita (atualizado a 07.12.2017)

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