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O mais importante da ligação da Madeira com as Antilhas, a partir do séc. XVII, prende-se com as ilhas subordinadas ao império britânico. A partir de meados do séc. XIX, acontece uma importante vaga migratória diretamente da Ilha para as Antilhas inglesas para substituir os escravos nas plantações, onde se definira uma política de abolição do trabalho escravo. Esta rota emigratória manteve-se entre a Madeira e Antigua, Demerara, Guiana, Grenada, Jamaica, Nevis, Saint Kitts, Saint Vincents e Trinidad. Para o vinho, teremos as ilhas de Antigua, Barbados, Berbice, Bermudas, Dominica, Curazau, Dominicana, Honduras, Jamaica, Martinica, Montserrat, Nevis, Saint Thomas, Saint Christopher, Anguilla, Saint Vincent e Trinidad. Palavras-chave: comércio; emigração; vinho; Caribe; Antilhas. Por esta designação se entende todas as ilhas da América Central que, a partir do séc. XVII, entram na esfera de domínio e controlo do império britânico, com quem a Madeira teve fortes laços comerciais, baseados, de forma especial, no vinho e na emigração de populações para suprir a falta de mão-de-obra ou por força da perseguição aos seguidores do Rev. Robert Kalley. Esta mobilidade humana e comercial concretiza-se pelo facto de a Madeira manter uma relação direta com todo o mundo atlântico, desde o séc. XV, por ter sido o primeiro espaço de ocupação europeia, o ponto de partida em termos da ocupação de novos espaços e ilhas, e, por fim, pela sua situação geográfica como base de apoio e de afirmação do império colonial britânico. Aliás, a Ilha serviu de modelo para Portugueses e Castelhanos neste afã povoador dos espaços insulares atlânticos e das Antilhas. Assim, os Castelhanos viram na Ilha a resposta para as dificuldades da sua ação institucional nas pequenas ilhas do Atlântico, como se depreende do desejo manifestado, em 1518, pelas autoridades das Antilhas em resolver a difícil situação das ilhas de Curaçao, Aruba e Isla Margarita, com o recurso ao modelo madeirense de povoamento. Há uma ligação direta da Ilha às Antilhas, que se perpetua no tempo, por diversas razões. A primeira situação de proximidade é provocada pela expansão da cultura da cana-de-açúcar. Os madeirenses intervêm na sua expansão em Santo Domingo, Cuba e Jamaica. Em 1647, encontramos referência a um capitão francês que pretendia contratar um mestre de açúcar madeirense para a ilha de Saint Kitts. Esta desusada intervenção da Madeira, a partir do séc. XVII, resulta ainda do facto de a sua posição geográfica o permitir, sendo considerada a última etapa antes da chegada às Antilhas. A Madeira estava às portas deste novo mundo e abria-as aos europeus desta rota, o que implicava e facilitava também uma intervenção ativa neste processo, estabelecendo-se pontos entre a Ilha e as Antilhas, em termos comerciais e de movimentos emigratórios. As Antilhas serão, a partir de meados do séc. XIX, a solução fácil para os excedentes populacionais da Ilha que, a partir de então, atuam como emigrantes, muitas vezes com a função de substituir a mão de obra negra, quando, no passado, haviam assumido a posição de negreiros, de lavradores e de técnicos experimentados nas indústrias ligadas à atividade agrícola. Estes madeirenses que partem na última vaga do séc. XIX são obreiros da situação das Antilhas nos sécs. XX e XXI, tornando-se a sua presença notória em muitas ilhas, expressa através de múltiplas manifestações culturais, donde se destaca a terminologia e a culinária. Por outro lado, parece existir, na maioria destes madeirenses que partem neste século, uma forte consciência da identidade ilhoa, que os mesmos pretendem seja diferenciadora dos demais Portugueses, afirmando-se como madeirenses e não gostando de ser considerados Portugueses. As Antilhas: séculos XVII-XIX São diversas as designações deste grupo de ilhas da América Central. Primeiro, por equívoco de Colombo, ficaram conhecidas por Índias Ocidentais (West Indies); depois, atribuiu-se-lhes a designação indígena, daí Antilhas. Este grupo insular é composto por várias ilhas. O processo europeu de reconhecimento e ocupação destas ilhas começou em 1492, com as três viagens organizadas por Cristóvão Colombo, entre 1492-1493, 1493-1496 e 1496-1500, com o reconhecimento das Baaamas, Cuba e Haiti, Jamaica, Trindade e Porto Rico. Todas estas ilhas começaram por ser, em 1492, de domínio espanhol, daí a designação de Antilhas Espanholas, permanecendo algumas nesta situação até à sua independência, a partir de 1865: República Dominicana (1865), Cuba (1898) e Porto Rico (1898). A partir dos princípios do séc. XVII, começou a disputa pela sua posse, sendo partilhadas com os Franceses, Holandeses e Ingleses. As Antilhas Francesas compreendem Martinica, Guadalupe (arquipélago composto por Grande-Terre e Bassse-Terre, La Désirade, Marie-Galante e as Îles Les Saintes), Saint-Barthélemy e São Martinho (lado francês). As Antilhas Neerlandesas, ou Holandesas, que surgem a partir de 1634, são formadas por dois grupos de ilhas, ficando um a norte das Pequenas Antilhas (Saba, Santo Eustáquio e São Martinho) e o outro ao largo da costa da Venezuela (Aruba, Bonaire e Curaçau). A presença britânica regista-se aqui a partir de 1612 e afirma-se na segunda metade da centúria. A ocupação das ilhas obedece a interesses estratégicos, comerciais e agrícolas, pois são estes que dão um novo impulso à produção açucareira. Quanto às Antilhas Britânicas, estas incluem: Bermudas, Saint Kitts, Barbados, Jamaica, Baamas, British Virgin Islands, Montserrat, Nevis, Angula, Tortola, Saint Croix, São Vicente, Saint Thomas, Dominica, Cartagena, Honduras, Trindade. Neste conjunto de Antilhas pequenas e grandes, regista-se, desde o séc. XVI, o estabelecimento de relações comerciais, relacionadas com o vinho e a emigração, que se processam em duas etapas: no decurso dos sécs.XVI e XVII, onde se destacam técnicos açucareiros para Cuba e Santo Domingo, bem como judeus, vindos da Ilha ou a partir de Pernambuco, e a partir de meados do séc. XIX, período em que se regista outra vaga migratória diretamente da Ilha para as Antilhas Inglesas, com o intuito de substituir os escravos nas plantações, onde se definira uma política de abolição do trabalho escravo, numa forma especial conhecida como indentured labour. Esta rota migratória manteve-se entre a Madeira e Antígua, Demerara, Guiana, Granada, Jamaica, Nevis, Saint Kitts, São Vicente e Trindade. Para o vinho, as ilhas de Antígua, Barbados, Berbice, Bermudas, Dominica, Curaçau, Dominicana, Honduras, Jamaica, Martinica, Montserrat, Nevis, Saint Thomas, Saint Kitts, São Vicente e Trindade. Na costa atlântica da América do Sul, temos ainda a considerar a Guiana, partilhada por Ingleses, Franceses e Holandeses, que se enquadra neste grupo das Antilhas. Originalmente, a Guiana Holandesa consistia em três colónias: Essequibo, Demerara e Berbice. Em 1814, os Holandeses entregaram esta região aos Ingleses, que, a partir de 1831, lhe atribuíram a designação de Guiana Inglesa. Entretanto, os Holandeses mantiveram o Curaçau e Suriname. Esta última área, também conhecida como Guiana Holandesa, ficou subordinada aos Neerlandeses desde 1667, com o chamado Tratado de Breda, realizado entre a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos e o Reino da Grã-Bretanha, a 31 de julho de 1667, o qual pôs fim à Segunda Guerra Anglo-Holandesa através do controlo de rotas marítimas e do comércio, que decorreu entre março de 1665 e julho de 1667. Relativamente à Guiana Francesa, esta começou por ser um centro de negócios de comerciantes franceses, criado em Sinnamary (1624) e Caiena (1637). Esta última cidade foi ocupada por duas vezes pelos Holandeses (1664 e 1676), sendo legitimada a posse francesa pelo já referido Tratado de Breda. O comércio do vinho com as Antilhas deve-se a vários fatores. Primeiro, pelo facto de, a partir de meados do séc. XVII, os Ingleses terem escolhido a Madeira como base avançada para os seus interesses expansionistas no Atlântico, funcionando a Ilha como base de apoio e de reorganização das frotas militares e comerciais. Depois, pelo facto de ser um dos poucos vinhos europeus a suportar muito bem as mudanças de temperatura, atuando o efeito do calor como meio de envelhecimento do mesmo. Não deverá ser esquecido que um dos principais problemas da dieta de bordo das tripulações era a falta de vitamina C, que provocava o escorbuto, sendo o vinho um dos antídotos utilizados. Em relação às Antilhas, diz-se que o nome de Curaçau está relacionado com este facto, pois foi aqui que os Portugueses encontraram a cura do escorbuto, dando o nome à ilha. Comércio Uma das primeiras intervenções comerciais dos madeirenses nas Antilhas está relacionada com o comércio de escravos. Alguns ilhéus usufruíram de uma posição destacada nos entrepostos do tráfico negreiro em Santiago, São Tomé ou Angola, gozando mesmo, desde 1562, de privilégios especiais na captura de escravos para as suas fazendas ou para venda aos compatrícios que as possuíam. Outros procuravam intervir no rendoso contrabando, alargando os seus negócios até ao Brasil ou às Antilhas. Fascinados pela aventura destas paragens, muitos decidiram-se por uma intervenção direta, fixando-se em Santiago ou na costa da Guiné, pois que a situação de vizinho era condição obrigatória para participar neste tráfico negreiro. A comunidade madeirense residente em Santiago deveria ser numerosa, a avaliar pelos testamentos que chegaram às nossas mãos. Destes, merece especial referência o de Francisco Dias, morador na Ribeira Grande, que, pelo testamento de 1599, é apresentando como sendo um dos mais importantes mercadores de escravos empenhados no tráfico com a Madeira e as Antilhas. A permuta baseava-se, pelo lado africano, em escravos, a que se vieram juntar os produtos da terra, como o algodão, milho, cuscuz, chacinas, courama e sal, recebidos a troco de vinho, cereais e artefactos. Francisco Dias foi um, de entre muitos, dos que se lançaram na aventura, fixando morada na Ribeira Grande. Aí, foi escrivão do almoxarifado e memposteiro-mor da rendição dos cativos, atuando como um ativo agente do tráfico negreiro da costa africana próxima. Todo o empenho de Francisco Dias estava no tráfico com a vizinha costa da Guiné, sendo os cargos de memposteiro-mor dos cativos e de escrivão do almoxarife mais um meio para reforçar a sua posição. Era mercador e armador com uma rede de negócios, tendo como principais eixos as ilhas (Açores, Cabo Verde e Madeira), a costa da Guiné e as Antilhas Espanholas. Aqui, estávamos perante uma empresa de tipo familiar, onde atuavam, por exemplo, Álvaro, Diogo, João, Jorge e Lopo Fernandes. Este João Fernandes, filho de Álvaro Fernandes, morreu, ainda jovem, quando se encontrava em missão comercial na costa da Guiné, deixando os seus negócios entregues ao tio. Do outro lado do Atlântico, nos contactos com os mercados negreiros das Antilhas, representavam-no Manuel Diogo Cavalheiro, Álvaro Dias, Mariscal e Diogo Cavalheiro das Honduras. A partir da Madeira, o estreitamento das relações comerciais com as Antilhas inicia-se na segunda metade do séc. XVII, mas com a intervenção dos Ingleses. A política mercantilista inglesa definiu a hegemonia da burguesia comercial britânica, consolidada, na Madeira, com frequentes tratados luso-britânicos. A par disso, a afirmação do império colonial britânico nas Antilhas, com a ocupação da Jamaica (1654) e das demais ilhas, veio a valorizar a posição da Madeira como porto de escala e fornecedor de vinho e, mais tarde, de emigrantes. Com Oliver Cromwell, definiu-se um mercado de monopólio para a burguesia comercial inglesa, no qual a Madeira será um das pedras-base do processo. As leis inglesas de navegação de 1651, 1660, 1663 e 1665 definiram os contornos desta política mercantilista ao estabelecerem que todos os produtos entrados nos portos das colónias britânicas deveriam ser feitos sob pavilhão inglês. Assim, de acordo com a ordenança de 1663, as ilhas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores detinham o exclusivo do fornecimento de vinho às colónias inglesas na América, África e Ásia. Foi assim que Barbados suplantou os portos brasileiros e angolanos no consumo do vinho Madeira, ainda no séc. XVII. Os dados da exportação para o ano de 1699 são esclarecedores desta mudança. Num total de 4987 pipas, temos as Antilhas em primeiro lugar, com 1303. Aqui, o protagonista deste tráfico é o comerciante inglês, sendo William Bolton o primeiro a definir os contornos desta realidade. Note-se que, de acordo com os registos de saída da Alfândega do Funchal entre 1650 e 1699, as embarcações inglesas dominam, de uma forma esmagadora, o comércio. A correspondência comercial de William Bolton para o período de 1696 a 171 é o testemunho do porto do Funchal como entreposto nas ligações e atividade com as Antilhas Inglesas. Ao vinho que seguia para Lisboa, junta-se outro, de embarque direto no Funchal pelos navios ou armadas. Em 1664, uma armada francesa com destino às Antilhas foi provida de 40 pipas. O vinho era conhecido como de beberagem, pelo que, segundo a tradição, estava isento de direitos. Ao longo do séc. XVIII, vários comboios que se dirigiam às Antilhas passavam pela Madeira, onde tomavam grandes quantidades de vinho, destacando-se o de dezembro de 1744, com 33 navios, e o de 1788, com 70 navios, que carregou 2000 pipas de vinho, a que se juntou outro, em outubro de 1799, com 60 navios, que carregou 3041 pipas. Em 1788, um comboio de 70 navios carregou 2000 pipas e outro, no ano seguinte, saído de Portsmouth com destino às Índias Ocidentais, comandado por Roger Curtis, com 96 navios, carregou 3041 pipas e meia pipa. Entre 16 e 21 de setembro de 1805, a frota das Antilhas, composta por 52 navios, lançou âncora. Depois, de 29 de setembro a 3 de outubro, atracaram no porto do Funchal as 60 embarcações da frota das Índias (17 navios mercantes e numerosos transportes). Os registos de saída da Alfândega do Funchal no séc. XIX assinalam a saída de vinho para gasto de embarcações estrangeiras. As colónias inglesas das Antilhas e da América do Norte foram o objetivo e o vinho o principal negócio. O vinho, que até então tinha como destino exclusivo o Brasil, passou também a ser conduzido para os novos mercados, que assumiram um lugar dominante a partir de finais da centúria. Aos portos de Pernambuco, Rio de Janeiro e Baía vieram juntar-se os de Nova Inglaterra, Nova Iorque, Pensilvânia, Virgínia, Maryland, Bermudas, Barbados, Jamaica, Antígua e Curaçau. No período de 1686 a 1688, das 688 pipas entradas em Boston, registam-se 266 da Madeira e 421 do Pico. Esta situação espelha uma realidade que marcará o comércio nas centúrias seguintes: os açorianos abasteciam, preferencialmente, os portos da América do Norte, levados pelo rumo dos baleeiros, enquanto os madeirenses faziam incidir os seus contactos nas Antilhas Inglesas e Francesas. Para a Madeira, a já referida correspondência comercial de William Bolton para o período de 1696 a 1714 permite reconstituir parte desse circuito comercial que dominou no séc. XVIII. Aqui, é evidente a definição de um circuito comercial hegemónico, delimitado pelos portos ingleses e das colónias da América Central e do Norte. As Antilhas (Curaçau, Barbados, Antígua, Nevis, Jamaica e Bermudas) surgem com uma posição destacada na importação de vinho, com 5005 pipas. William Bolton é o primeiro mercador inglês a enquadrar-se neste espírito, podendo a sua atividade comercial ser acompanhada através das cartas que nos deixou. Para as colónias inglesas das Antilhas, o vinho era o seu objetivo e principal negócio. O inglês John Ovington, que visitou a Madeira em 1689, afirma que “num cálculo modesto, a produção anual de vinho pode ser calculada em vinte mil pipas, sendo este número totalmente gasto. Pensa-se que oito mil serão bebidas na ilha, três ou quatro despendidas no tratamento ou melhoramento (através de aguardente destilada) e o restante exportado, principalmente para as Índias Ocidentais, especialmente Barbados, onde tem mais aceitação que os outros vinhos europeus” (ARAGÃO, 1981, 198). Um dos primeiros intervenientes neste negócio foi precisamente William Bolton. Sabemos da sua ação comercial com estas Índias através das já referidas cartas comerciais disponíveis, para o período de 1696 a 1714. Os navios saíam de Bristol, Dublin e Londres e, após escala no Funchal, seguiam para Antígua e Barbados. [table id=68 /] Para o período de 1780 a 1801, destaca-se a Jamaica como centro de redistribuição nas Antilhas: [table id=69 /] O momento de apogeu da exportação do vinho da Madeira para estes mercados situa-se entre finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, altura em que a saída atingiu a média de 20.000 pipas. Mais de dois terços do vinho exportado destinavam-se ao mercado colonial americano, de que se destacam as Antilhas. Para o período de 1780-1799, a Ilha exportou 210.057 pipas, sendo 103.703 para as Antilhas. Duarte Sodré Pereira, governador e capitão da Madeira, comprometido com o comércio atlântico, dá-nos conta da situação do mercado no séc. XVIII. De acordo com o copista da sua correspondência, aquele esteve envolvido no comércio com Inglaterra, Lisboa, Estados Unidos da América, América Central (Barbados, Jamaica e Curaçau) e Brasil. As várias casas de vinhos inglesas mantinham laços estreitos com estas ilhas. Assim, por exemplo, a casa Phelps Page & Co. tinha uma rede de agentes, com especial incidência na Jamaica. Do mesmo modo, D. Guiomar de Sá de Vilhena troca vinho por cereais na Jamaica, Suriname e Santo Eustáquio. A firma Cossart Gordon & Co. manteve igualmente um comércio ativo com estas ilhas, de forma que, entre 1823 e 1834, regista-se: [table id=70 /] Muitas vezes, o retorno destas ilhas resumia-se a pipas vazias da Jamaica ou a carne de vaca, manteiga e farinha de Barbados. Entre 1831 e 1850, estas ilhas continuaram a receber importantes quantidades de vinho Madeira, o que significa igualmente que funcionariam como centros de redistribuição no Caribe. Só assim se justificam as 3464 pipas da Jamaica e as 2179 de Trindade. [table id=71 /] Para o séc. XIX, continuam a afirmar-se esta posição e interesse pelo vinho Madeira, no vasto universo insular das Antilhas. Assim, para o ano de 1843, temos: [table id=72 /] É evidente a afirmação do mercado das Caraíbas, dominado pelas colónias inglesas, com especial destaque para a Jamaica e Barbados. O centro de consumo estava nas Antilhas: o vinho Madeira era a bebida alcoolizada mais difundida. Bebia-se geralmente no sangaree, mistura de vinho, água e sumo de limão. Para os Ingleses, se o Porto é o vinho da metrópole, o Madeira é o vinho das Antilhas, mas também o das Índias. Este vinho corria nos serões de quase todas as ilhas, mas, em especial, na Jamaica, Barbados, Martinica, Santa Cruz, Santo Eustáquio e São Vicente. Emigração Desde o séc. XVI que notamos a presença de madeirenses nestas ilhas, seja como técnicos açucareiros, seja como agentes do tráfico negreiro. Contudo, a sua presença torna-se mais evidente numa segunda fase, quando a emigração madeirense atingiu o seu auge, na déc. de 40 do séc. XIX, tendo, para isso, em muito contribuído a perseguição aos protestantes (1844-1846), a crise do comércio do vinho Madeira, principal sustento das populações, a partir de 1830, e a fome que alastrou a toda a Ilha, em 1847. Entre 1834 e 1872, saíram da Ilha mais de 30.000 madeirenses, com destino ao Brasil e às Antilhas. Só a ilha de Demerara recebeu, entre 1841 e 1889, cerca de 40.000, enquanto o Havai, entre 1878 e 1913, atraiu mais de 20.000, na primeira grande leva da emigração madeirense para este destino, sendo, na centúria oitocentista, o principal motivo a questão religiosa em torno do Rev. Robert Kalley, pastor protestante e distinto médico que se fixara na Madeira em 1838, com o intuito de encontrar cura para a tuberculose da sua mulher, e que se tornou no principal chefe do movimento anglicano, arrastando consigo as gentes de Santa Cruz e Machico. As hostilidades, originadas pelo clero tradicional do Funchal, levaram à sua saída forçada em 1846, acompanhado de perto de 3000 madeirenses: 945 em navios portugueses e 2054 em ingleses. A 23 de agosto, 200 embarcaram no navio William. Primeiro, dirigiram-se às Antilhas menores (Trindade, Antígua e Saint Kitts) e daqui alguns passaram a Illinois, na América do Norte. Esta situação ia ao encontro dos interesses britânicos, uma vez que a abolição da escravatura tornava imprescindível o recrutamento de mão-de-obra livre. A segunda fase desta diáspora, mais importante do que a primeira, surge a partir de 1847, como resultado da grave crise vitivinícola. Perdidas as esperanças de uma imediata recuperação do mercado do vinho, o colono ou lavrador deixou-se aliciar pelas propostas enganosas de trabalho e bem-estar nas colónias britânicas. Um facto interessante, nesta conjuntura de fuga à fome, é que o movimento se retrai na época das vindimas, entre agosto e outubro, isto é, no momento em que era maior a procura de mão-de-obra na Ilha. Na déc. de 50, irremediavelmente perdida esta única fonte geradora de trabalho, o madeirense só tinha uma saída: a emigração. As gentes do norte abandonaram as terras e os seus miseráveis casebres, dirigindo-se à cidade, onde esperavam uma oportunidade para o salto até às promissoras Antilhas. Em 1854, dá-se uma paragem no movimento, nomeadamente de clandestinos, mercê de uma melhoria das condições da Ilha, propiciada pela iniciativa dos governadores civis. O fim do tráfico negreiro obrigava à procura de novas soluções e esta era uma delas, certamente a mais eficaz. Na déc. de 70, o fenómeno emigratório ganha novo vigor. Para isso, contribuíram o acelerar da crise económica e o reforço das promessas aliciadoras. Também as doenças que atacaram a cultura da vinha (o oídio, em 1852, e a filoxera, em 1872) deitaram por terra a única esperança económica dos madeirenses. Desta vez, o rumo é diferente: as Kanaka Islands (Sandwich ou Havai). Entre 1841 e 1889, Demerara manteve uma posição dominante enquanto destino da emigração madeirense, tendo recebido 36.724 emigrantes. Tais números dão conta de dois momentos da emigração para Demerara, a déc. de 40 e as de 70 e 80, coincidindo o último com o aparecimento de um novo destino, o Havai. Uma relação dos navios saídos com os emigrantes, no período de 11 de maio de 1854 a 11 de janeiro de 1855, reforça, mais uma vez, a posição dominante de Demerara, registando-se 88 navios para Antígua e 376 para Demerara. Devemos aqui realçar a iniciativa de alguns proprietários e consignatários de navios, como Diogo Taylor e João de Freitas Martins, este último proprietário de três embarcações: Christina, Divina Providência e Funchal. Demerara é, com efeito, nas décs. de 40 e 50, o “Eldorado do madeirense”, disputando esta posição nas décs. de 70 e 80 com o então recém-descoberto paraíso havaiano. Assim, só em 1841 terão partido mais de 4000 madeirenses para Demerara, chegando a comunidade portuguesa a representar mais de 30.000 residentes, maioritariamente da Madeira. A emigração clandestina é um fator determinante neste movimento para as Américas, dominadas pelas Antilhas e pelo Brasil, que assumem uma posição ímpar. Deste modo, torna-se difícil abalizar o valor numérico desta sangria na população da Ilha. Os números apontados pela imprensa madeirense da época são assaz elucidativos. Assim, de setembro de 1834 a junho de 1852, apontava-se que as saídas clandestinas correspondiam ao dobro das legais, que representavam 18.346 emigrantes. Depois, em 1845-1846, são referenciados 6000 clandestinos. Ainda na Ponta do Sol, no período compreendido entre abril de 1841 e outubro de 1852, outros 500. Note-se que, entre 1851 e 1853, regista-se apenas a saída de 1593 madeirenses com passaporte, quando os dados apontam a chegada de 2299 a Demerara, 281 a Antígua e 16 com a designação Índias Ocidentais, o que prova a importância da emigração clandestina. Para o período de 1843 a 1866, é possível acompanhar os destinos destes migrantes. Temos, portanto: [table id=73 /] Noutro registo de informação de 1846 a 1847, época de forte emigração madeirense, os destinos são parecidos. [table id=74 /] Mais uma vez, Demerara mantém-se como o principal destino desta emigração legal e clandestina. Em outubro de 1846, dos 16.297 emigrados, 5548 (54%) viajaram sem passaporte. No mesmo ano, aportaram em Demerara três embarcações com 547 passageiros clandestinos: a embarcação inglesa Palmira conduziu 160, enquanto o brigue português Visconde de Bruges, que saíra do Funchal com 25 passageiros, desembarcou 410 e outro bergantim português, Duas Anas, 171, quando, no Funchal, nele haviam embarcado apenas 71 com passaporte. Esta última embarcação, sete anos mais tarde, rumou ao mesmo destino, levando a bordo 173 passageiros clandestinos. Tais números são suficientemente elucidativos para demarcar a importância que assumiu na Madeira a emigração clandestina, ao mesmo tempo que demonstram a ineficácia da intervenção das autoridades locais no seu controlo. A disponibilidade de passaportes entre 1872 e 1915 permite acompanhar o movimento para estas ilhas, de forma legal, e, ao mesmo tempo, documentar a sua incidência geográfica. Apenas encontramos dados para as ilhas de Demerara, Antígua, Barbados, Trindade, Granada e São Vicente, sendo a maior incidência em Demerara, com 3732 pedidos de emigração. Pelo contrário, a ilha de Trindade regista apenas 539. A maior incidência registou-se no último quartel do séc. XIX, com 3312 pedidos. Por alvará de 4 de julho de 1758, fica estabelecida a obrigatoriedade do uso do passaporte, como forma de coibir a saída anómala de gentes da Ilha. Todavia, estavam longe os tempos da grande emigração e de afirmação desta forma de êxodo. Com o alvorecer da emigração para as colónias britânicas, o Governo Civil reclama esta medida moderadora do movimento emigratório. Em 1841, o governador civil chama a atenção ao oficial de visitas do porto para que não permitisse a saída de qualquer embarcação para Demerara, sem antes verificar se os seus passageiros eram portadores do passaporte e da licença respetiva da freguesia que os isentava de qualquer serviço ou encargo. Contudo, só em outubro de 1845 surge o primeiro caso, com o aprisionamento de 31 indivíduos no Porto Moniz, quando estes se preparavam para embarcar no iate Glória de Portugal, com destino a Demerara. Perante esta situação, o governador civil mandou publicar um edital sobre a emigração clandestina, alertando os intervenientes e cúmplices para as penas em que incorriam, de acordo com a portaria de 19 de agosto de 1842. Pela lei de 25 de maio de 1825, o capitão do navio incorria na pena de 400.000 réis, enquanto os passageiros, de acordo com a lei de 9 de janeiro de 1792, sujeitavam-se a 100.000 réis de multa. Estas medidas não alteraram em nada os planos da emigração clandestina, apenas aumentaram o risco dos seus intervenientes. Um exemplo disso é testemunhado em janeiro de 1846, quando o oficial do registo da Alfândega encontrou, a bordo do bergantim Claudine, com destino a Demerara, cinco passageiros sem passaporte. Passados dois meses, também o administrador do concelho do Funchal surpreendeu, nos Piornais, 88 pessoas que pretendiam embarcar clandestinamente para a barca inglesa Newilla. Até 1866, são frequentes as referências à intervenção de embarcações de cabotagem no apoio a este tráfico clandestino. A costa do Caniço, à Ponta do Pargo, oferecia enseadas adequadas a tal tipo de abordagem. O contacto com as embarcações de saída fazia-se, habitualmente, a partir do Caniço, Praia Formosa, Paul do Mar e Ponta do Pargo. Na última localidade, foram apresadas, por diversas vezes, embarcações saídas do Funchal com destino a Demerara. Destas, destaca-se, em 1847, o bergantim português Mariana, que, após 15 dias de saída do Funchal, ainda se encontrava na Ponta do Pargo, com o pretexto de fazer aguada. Numa inspeção a bordo, foram encontrados 187 passageiros, dos quais apenas 34 apresentavam passaporte. As Desertas surgem também como local de apoio a este tráfico clandestino. Aí foram encontrados, por diversas vezes, barcos costeiros a aguardar a passagem dos navios para Demerara. Entre fevereiro de 1845 e abril de 1847, foram aí apresadas duas embarcações que conduziam clandestinos do Caniço para a escuna portuguesa Eugénia. O recurso às Desertas e à Ponta do Pargo como locais de receção de clandestinos foi resultado da acentuada vigilância estabelecida para o porto do Funchal e para as áreas circunvizinhas. No início, este serviço de recrutamento de clandestinos para embarque era realizado no Funchal, sendo os emigrantes reunidos num armazém, à R. do Sabão, e, depois, embarcados, pela noite, para bordo das embarcações, porém, a apertada vigilância da Alfândega e a administração do concelho condicionaram a sua dispersão pela costa sul da Ilha. A intervenção das autoridades desdobrava-se entre um apertado controlo às embarcações que saíam do porto do Funchal e o estabelecimento de um sistema de vigilância de toda a costa e ilhas Desertas. Primeiro, usou-se o barco do contrato do tabaco, depois, estabeleceu-se um serviço de barcos para rondar a costa nas datas próximas da saída de qualquer embarcação. Por outro lado, o administrador do concelho tinha ao seu dispor 12 baionetas para a ronda noturna do litoral da cidade e, em toda a costa da Ilha, contava com o apoio dos cabos da polícia e artilheiros. Em julho de 1846, a saída dum bergantim elucida-nos sobre a forma como era ativado este plano de vigilância. O administrador do concelho montava, por seis dias, um serviço de vigilância em toda a costa, contando com o apoio dos regedores, cabos da polícia e de duas embarcações de ronda. A cabal intervenção das autoridades dependia do apoio de uma embarcação de guerra, daí a solicitação, em 1847, de uma escuna de guerra, o que veio a suceder com o envio do brigue de guerra Douro. Porém, a falta de dinheiro levou à sua substituição por uma escuna, retomando, em 1853, o anterior tipo de embarcações. A permanência e a insistência da prática clandestina da emigração atestam a pouca eficácia das medidas proibitivas ou de vigilância e a grande determinação do madeirense, bem como o empenho dos engajadores e seus acólitos. Deste modo, a quebra acentuada do movimento, a partir de 1863, deverá ser apontada não como uma consequência da intervenção repressiva, mas sim como resultado da diminuição da procura de mão-de-obra nos tradicionais destinos. Daí que, em 1885, estas medidas se tornem necessárias, uma vez que a emigração clandestina começa a fazer-se notar. Fator determinante no surto da emigração clandestina foi a ação destes engajadores, os principais sustentáculos do movimento. Desde o séc. XVIII que estes atuam na Ilha, pelo que, em 1779, o governador intervém junto do corregedor do Funchal, no sentido de se estabelecer medidas punitivas, sendo preso Álvaro de Ornelas Sisneiro, um desses engajadores. Todavia, só a partir da déc. de 30 do século seguinte, a ação destes agentes se torna preocupante, uma vez que atacam em todas as frentes, com particular incidência na vertente norte. Para dissimular a sua real intervenção, surgem como adelos ou compradores de vinho. Por meio de cartazes afixados na porta das igrejas, e com a conivência de algumas figuras importantes dos sítios, conseguem aliciar muitos lavradores com a promessa de enriquecimento no Brasil, Antilhas ou Havai. O transporte era, muitas vezes, gratuito e o ilhéu deveria desembolsar apenas 5000 réis para os custos do passaporte, quando, na realidade, a lei previa 4000 réis. Nas décs. de 40 e 50, surgem documentados 15 aliciadores no Funchal, Caniço, São Vicente, Ribeira da Janela, Arco de São Jorge e Ribeira Brava. Para coibir a sua ação, o Governo Civil adotara medidas repressivas, como a prisão e o julgamento, podendo a pena ir até quatro meses de cadeia. Em 1846, por exemplo, foi preso em São Vicente Manuel José Moniz, que aliciava emigrantes para Demerara. Nesta freguesia, sabemos que atuavam outros, como João Teixeira, Jorge Oliveira e Perpétua de Jesus. A ação dos aliciadores assumia, por vezes, situações rocambolescas: em julho de 1851, João Pestana, sapateiro, movera um auto contra Francisco, o poeta, por induzir e aliciar a mulher e o filho a emigrarem para Demerara; em agosto do mesmo ano, João Vieira ignora a mulher e filhos e entrega-se às promessas aliciadoras de Demerara; em 1853, uma mãe abandona duas crianças em São Jorge, enquanto uma rapariga de Boaventura foge para o Funchal, aliciada por Joaquim A. dos Reis. A política de emigração das autoridades locais define-se por duas formas de intervenção: o combate à emigração clandestina e a ação perniciosa dos engajadores, com medidas severas aplicadas a todos os infratores. Neste caso, incluía-se, ainda, o reforço de vigilância da costa madeirense. Depois, foi a procura de soluções conjunturais, capazes de travar o movimento de fuga, com a fixação das gentes à terra ou com a tentativa de desvio para regiões do Reino e colónias em vias de colonização. Estas medidas não foram suficientes para frenar o movimento emigratório, tanto legal como clandestino. A situação da Ilha continuava a ser difícil, pelo que ninguém estava capacitado para resistir às propostas risonhas dos aliciadores. Deste modo, houve necessidade de declarar guerra a este movimento, procurando atacá-lo em todas as frentes. Desde 1758, ficara estabelecido que nenhum madeirense poderia sair da Ilha sem o respetivo passaporte. Havia uma tradição de medidas limitativas, raramente recordadas e postas em prática. A elas recorria a Câmara do Funchal, em 1847, respondendo a uma circular de José Silvestre Ribeiro. Aí se recorda que a melhor providência estava na vinculação do povo à terra que o viu nascer. Na verdade, foi com este governador que se estabeleceu uma política pragmática de combate à emigração. O seu aspeto mais interessante não é o apelo a medidas punitivas à saída dos emigrantes, como reclamava o município funchalense, mas sim a definição de medidas capazes de inibir as gentes a esta fuga desesperada. Era preciso encontrar soluções para debelar a fome e empregar o máximo de força de trabalho inativa. Neste último caso, tivemos o plano de obras de construção civil, de acordo com o novo plano viário. A ação psicológica foi outra das armas utilizadas pelo governador para convencer os madeirenses a permanecerem na Ilha. Através de manifestos, divulgados pelos administradores do concelho e afixados nas portas das igrejas ou impressos em folhas volantes nos jornais, o governador fazia uso dos seus dotes literários para apelar ao sentimento dos seus súbditos. Num manifesto distribuído em agosto de 1852 pelo Clamor Público, é bastante evidente este apelo heroico: “Moradores das freguesias rurais! Não abandonais a vossa terra! Não fujais desses campos que vossos pais regaram com o seu suor! Não deixeis o teto das vossas moradas, onde nasceram vossos filhos! Não volteis as costas à vossa risonha ilha! Lembrai-vos que perdeis Pátria! Trazei à lembrança que muitas vezes tendes recolhido abundantes frutos, em recompensa às Vossas fadigas! E que não convém ceder aos primeiros golpes de adversidade” (VIEIRA, 1993, 122). Foram poucos os que entenderam a oratória do governador, secundados pelos incessantes apelos dos administradores do concelho ou pelos vigários das freguesias no sermão dominical. Aliás, é o mesmo governador o primeiro a reconhecer a necessidade de medidas práticas e eficazes: “A fatal tendência dos madeirenses para a emigração deve ser atalhada, principalmente por meios indiretos. Se os proprietários se lembrarem um dia de ir residir entre os seus caseiros, para os guiarem com ilustrados conselhos [...] a infeliz sorte dos habitantes dos campos melhorará consideravelmente, e eles ganharão afeição à terra do seu país, repetindo indignados as pérfidas sugestões de impios e desalmados embusteiros que os arrasta hoje para países longínquos” (Ibid.). Uma das suas grandes preocupações era o combate à política de engajamento feito por estranhos. O combate aos engajadores é antigo, sendo documentado desde 1780, altura em que foi processado o comandante de um navio inglês que havia levado clandestinamente a bordo 12 portugueses. Esta política implacável contra os engajadores continuou na centúria seguinte. Assim, em 1842, face à saída massiva de madeirenses, ficou estabelecido, por portarias de 19 de agosto e de dezembro de 1842, avançar com medidas de vigilância e de penalização dos mestres de navios. Ainda de acordo com a lei de 20 de julho de 1855 e a portaria de 27 de julho de 1857, o comandante do navio era obrigado a prestar uma fiança de 400 réis e a apresentar, no prazo de seis meses, um documento das autoridades ou do cônsul do porto de destino, tendo igualmente de indicar o número de passageiros desembarcados. O passaporte era uma das exigências obrigatórias para todos os que desejassem sair, contudo, nem todos tinham direito a ele, sendo negado a menores e mancebos. Desde 25 de setembro de 1841, deveria juntar-se a este um documento de freguesia referindo que o possuidor estava livre de encargos e serviços. É dentro desta opção que deverá ser entendida a guerra, sem tréguas, das autoridades aos agentes da emigração e aos seus colaboradores, como sejam os mestres de navio e barqueiros. A saída de qualquer emigrante só podia ser feita com passaporte, concedido a todos de maior idade, ficando excluídos os de 13 a 25 anos, abrangidos pela lei do recrutamento militar, e os mancebos. Todavia, era grande a apetência para o recurso à emigração clandestina, sujeitando-se os interessados a inúmeras privações para alcançarem o barco que os levaria a promissoras terras do outro lado do Atlântico. A grande preocupação das autoridades centrava-se no combate à emigração clandestina, que se desenvolvia em duas frentes: por um lado, a condenação dos engajadores e seus colaboradores e, por outro, a definição de um plano de vigilância em toda a costa da Ilha, procurando evitar-se a fuga dos clandestinos. O grande movimento de combate ficou reservado para as décs. de 40 e 50 do séc. XIX. Os casos sucedem-se com frequência e a atenção das autoridades foi reforçada, no sentido de evitar a fuga generalizada das gentes. Durante estas duas décadas, sucederam-se medidas repressivas, bem como o aprisionamento dos intervenientes, fossem engajadores ou mestres de navios. O cerco aos navios que entravam e saíam no porto do Funchal era permanente. Assim, para além do constante patrulhamento do mar madeirense e do alerta passado a todas as freguesias costeiras, as embarcações sujeitavam-se a um controlo apertado. Deste modo, estava proibido o contacto com qualquer navio mercante ou de guerra fora do porto. Além disso, em 1879, recomendava-se às embarcações com emigrantes que saíssem do porto durante o dia. As embarcações inglesas, que tocavam, com assiduidade, o porto do Funchal com destino aos locais de emigração, eram os alvos preferenciais para a saída dos clandestinos. Por essa razão, em 1845, o governador civil deu conhecimento ao cônsul inglês de tais medidas proibitivas. Todavia, em 1848, foi apresado na Ponta do Pargo o bergantim inglês Rowlay, com 16 clandestinos a bordo, correndo, por isso, um litígio entre o Governo Civil e o Consulado. O primeiro, através da administração do concelho e com o apoio dos cabos de polícia, regedores e forças militares, estabelecera um plano de vigilância da costa e do mar circunvizinho, até às Desertas, a ser ativado no momento de embarque no Funchal, através de uma visita a bordo, sendo depois reforçado a partir do momento da saída da embarcação do porto. Entre março e julho de 1846, foram gastos 86$695 réis com os barcos de ronda da costa. Por todo o ano de 1847, os barcos mantiveram-se em ação, tendo-se afirmado como um freio à emigração clandestina, o que levou a solicitar-se a presença de nova embarcação, não se sabendo, porém, ao certo se veio a concretizar-se. Não obstante estas medidas, a emigração clandestina continuava a ser uma realidade, não se esgotando aqui as oportunidades para controlar a saída dos madeirenses. Assim, a uma propaganda aliciadora por parte dos agentes, nomeadamente os cônsules brasileiro e inglês, contrapunha-se outra de alguns jornais e das autoridades que desmitificavam as esperanças do Eldorado. O debate teve início em 1841, resultado de uma proclamação do administrador geral, Domingos Olavo Correia de Azevedo, que, a determinado passo, referia que “Demerara [...] é uma possessão inglesa, cujo clima por extremo ardente e doentio, terminara em pouco tempo, com a existência da maior parte dos emigrantes que para ali vão, e onde estes infelizes, reduzidos, durante sua vida, a uma situação desesperada, vendo-se em total desamparo, e privados de meios de regressarem, se sujeitam a uma sorte tão cruel como a que em outro tempo ali experimentavam escravos negros” (Ibid., 126). A isto juntaram-se cartas de alguns emigrantes nas quais estes testemunham a ilusão das promessas feitas, apontando as condições difíceis em que viviam os madeirenses em Demerara. A todos responde Diogo Taylor, cônsul inglês e agente da emigração para estes destinos. À campanha, associaram-se outros jornais, sendo de realçar o Echo da Revolução, o Correio da Madeira e o Progressista, onde este movimento emigratório surge sob o epíteto de “escravatura branca”. De acordo com o cônsul português em Demerara, os emigrantes “são tratados como verdadeiros escravos, e mesmo pior do que são os negros da costa d’África” (Ibid.). A resposta a esta carta não se fez esperar pela voz do cônsul inglês Diogo Taylor, que realça os mútuos benefícios da emigração. A isso adicionava-se o testemunho abonatório de um grupo de portugueses residentes na Guiana Inglesa. Em oposição a este último testemunho, há registos de cartas de Demerara a dar conta da dura realidade da vida dos emigrantes. No primeiro destino, muitos madeirenses sucumbiram com febre-amarela. Para combater esta campanha contra a emigração, os agentes do Brasil e as colónias inglesas travaram uma luta sem tréguas. Para além dos desmentidos constantes, não se cansavam de anunciar os seus projetos aliciantes, devendo-se incluir, neste caso, a propaganda feita n’O Imparcial e na Revista Semanal. A esta situação, acresciam ainda os folhetos de promoção da emigração. Na segunda metade do séc. XIX, a imprensa insular deu desmesurado realce às consequências do surto emigratório. Sob a forma de notícia ou de trabalho de opinião, esta é uma preocupação central nas suas colunas, que se situa a dois níveis distintos: de um lado, os anúncios e descrições ou testemunhos laudatórios dos principais destinos de emigração; do outro, a opinião e os testemunhos reprovativos, apelando a uma intervenção das autoridades. Adensa-se o número de colunas dos periódicos O Progressista (1852-1854) e A Ordem (1852-1856). Neste contexto, a problemática da emigração para as terras ocidentais, no período de 1833 a 1873, marcou acesa discussão pública nos jornais que então se publicavam, ou nas Cortes, pela voz dos madeirenses aí representados. O Progressista, porta-voz do Partido Regenerador, é o periódico que dedica maior atenção à problemática da emigração, considerando Demerara e o Brasil como matadouros. Para os seus editores, o importante era travar o movimento emigratório, pelo que são frequentes os trabalhos de opinião, sob pseudónimo, a apelar a uma intervenção eficaz das autoridades locais, usando como ponto de referência a intervenção de 1847. Na déc. de 50, testemunhos de vária índole atestam a ineficácia das autoridades locais em coibir essa prática de emigração clandestina, acusando quer o administrador do concelho, quer o juiz eleito da Ribeira Brava, por não corresponderem ao estipulado nas leis de 1839, 1842, 1843 e 1849. O julgamento de 29 de fevereiro de 1852 de alguns aliciadores e barqueiros, comprometidos com a emigração clandestina, é motivo de regozijo no jornal. O ano de 1854 terá sido terrível para os madeirenses, permanentemente ameaçados pelo espectro da fome, pelo que a emigração, de acordo com o mesmo periódico, não resulta de ambição, mas da miséria dos colonos e da ineficácia do Governo. Em 1855, por iniciativa de três madeirenses, a embarcação Charles Keen conduziu 300 colonos a Demerara. Entre 1841 e 1846, O Defensor faz eco da intervenção do administrador geral do Funchal, Domingos Olavo Correia Azevedo. A reação dos principais interessados neste movimento promotor da emigração não se faz esperar. Assim, intervém Diogo Taylor, agente de emigração para a Guiana Inglesa. O primeiro refere, a propósito, que “Parece que a cidade do Funchal se converteu de repente numa grande feira de escravos brancos, destinados a irem perecer no clima mais infecto dos domínios britânicos – Demerara” (Ibid., 129), alertando mais adiante que “A emigração para Demerara é uma infame lotaria cujos bilhetes contendo raríssimas sortes em preto são comprados com as vidas dos nossos concidadãos” (Ibid.). Um dos aspetos que podemos assinalar com a emigração para Demerara, certamente o principal destino nesta época, é a questão do retorno, com forte impacto na sociedade local. O madeirense retornado deste destino passava a ficar conhecido como “o demerarista”, porque emigrante em visita ou regressado de Demerara. Assim, em 1853-1854, Isabella de França registava alguns casos de sucesso nessa vaga migratória. Numa das suas visitas à freguesia do Monte, descreve, a certa altura, ter visto “uma bela casa construída por um vilão que havia emigrado para Demerara e voltou rico, como tantos: deixam a terra natal sem outra coisa mais que uma camisa e calças, e carapuça na cabeça, e descalços, e regressam com seu colete de cetim e corrente de ouro, chapéu alto e botas de verniz” (FRANÇA, 1970, 9). Também o médico inglês Dr. Dennis Embleton, que visitou e testemunhou a Madeira entre 1880 e 1881, afirma que “Many country people have been abroad, made money, and returning, have bought land and settled” (EMBLETON, 1882, 31). Por fim, registe-se que os madeirenses levaram para estas ilhas muitas das suas tradições e hábitos alimentares. O facto de a Madeira exportar cebolas, por exemplo, deve-se ao facto de estas serem solicitadas pelos madeirenses para a sua dieta alimentar, que, segundo os registos de alguns observadores ingleses, se baseava em semilhas e cebola. Em 1843 e 1845, sabemos da chegada a Demerara de 162 caixas de batata comum e de 1000 arrobas de cebola, contando-se já 100 milheiros em 1851. Esta situação persiste em 1904 e 1910, com novo envio de cebola para Barbados. Não podemos igualmente esquecer as relações que se estabeleceram em torno da cana-de-açúcar. Em 1855, a Madeira recebeu, de Antígua, 294 barris de açúcar. Demerara, em finais do séc. XIX, e Barbados, de 1902 a 1905, abastecem com melaço o engenho do Hinton, no Funchal, acompanhando as diversas variedades de cana, quando se pretende restabelecer a cultura na Ilha. Em 1847, temos a variedade Bourbon de Caiena e, em 1903, outras variedades de cana (B208 e B147) de Barbados e a cristalina do Haiti.   Alberto Vieira (atualizado a 28.09.2016)

História Económica e Social Madeira Global

andrade júnior, francisco de

Francisco de Andrade Júnior nasceu em 1806, no dia 6 de junho, no Funchal, cidade onde recebeu a sua instrução inicial, cursando os estudos que então aí existiam, e onde morreria a 23 de fevereiro de 1881. Após a criação, em 1836, do ensino liceal, por decreto de 17 de novembro desse ano, que determinava a existência de um liceu na capital de cada distrito do continente e das ilhas, terminando assim a dispersão da lecionação das aulas pelo país, Francisco de Andrade Júnior foi nomeado, por decreto de 4 de setembro de 1838, professor de Gramática Portuguesa e Latina e de Clássicos Portugueses e Latinos no Liceu Nacional do Funchal (fundado em setembro de 1837 no edifício das antigas Aulas do Pátio), cargo que exercia já interinamente, por carta do Conselho Provincial de Instrução Pública de 23 de março do mesmo ano. Professor respeitado, considerado um dos mais distintos do Liceu do Funchal (posteriormente, a Escola Secundária Jaime Moniz), aí desempenhou também a função de reitor, de 1866 – sucedendo a Marceliano Ribeiro de Mendonça, autor da obra Principios da Grammatica Applicada á Lingua Latina (1835) – até ao ano da sua morte, sendo também, e por inerência do cargo de reitor que exercia, comissário dos estudos do distrito do Funchal, com responsabilidades de vigilância e direção das escolas do ensino primário e secundário com subordinação ao Conselho Superior de Instrução Pública. Neste âmbito, é da sua autoria o Relatorio sôbre as Escholas Municipaes de Instrucção Primaria do Concelho do Funchal, Seguido de um Projecto de Lei ácerca da Creação e Frequência das Escholas (1849). Além de desempenhar estes cargos, Francisco de Andrade Júnior, que foi também vereador na Câmara Municipal do Funchal, dedicou-se ao estudo da gramática da língua portuguesa, sendo autor das obras Principios de Grammatica Portuguesa, editada em 1844, Grammatica Portuguesa das Escholas Primarias, cuja primeira edição data de 1849, sendo reeditada cinco vezes até 1879, e Grammatica das Grammaticas da Lingua Portuguesa…, publicada em 1850.   Aida Sampaio Lemos (atualizado a 22.09.2016)

Educação História da Educação Personalidades

adelaide de inglaterra

Adelaide foi a rainha consorte do Reino Unido e de Hanover pelo seu casamento com Guilherme IV de Inglaterra em 1818, do qual enviuvou em 1837. Nasceu a 13 de agosto de 1792 em Meiningen, na Turíngia, Alemanha, filha de Jorge I, duque de Saxe-Meiningen, e de Luísa Leonor de Hohenlohe-Langenburg. A 11 de julho de 1818, casou-se com Guilherme, duque de Clarence, filho de Jorge II de Inglaterra, tornando-se rainha consorte após a ascensão de Guilherme ao trono em 1830, sucedendo a seu irmão mais velho, Jorge IV. As tentativas de Adelaide produzir um herdeiro ao trono foram sempre complicadas, culminando em abortos ou crianças que pouco sobreviveram depois do parto. Ao contrário do marido, que desprezava as cerimónias religiosas, Adelaide levava-as muito a sério, sendo louvada pela dignidade, a serenidade e a graciosidade com que participava nelas. Era amada pelo povo britânico pela sua piedade, modéstia, caridade e pelo seu trágico historial de gravidez. Apesar da sua própria incapacidade de gerar um herdeiro, e da manifesta hostilidade entre o rei e a cunhada, a duquesa viúva de Kent, Adelaide foi sempre bondosa e gentil para com a sobrinha, a futura rainha Vitória. Adelaide era também descrita como puritana e moralista, recusando-se a ter na corte mulheres de duvidosa virtude, e proibindo os decotes, que haviam estado muito em voga nos tempos de Jorge IV. Embora em público fosse discreta e não se manifestasse politicamente, tentou por vezes influenciar o marido, sendo declaradamente conservadora. Com a morte de Guilherme IV, a 20 de junho de 1837, Adelaide tornou-se a primeira rainha viúva desde Catarina de Bragança, sobrevivendo ao marido durante 12 anos. Em 1847, em atenção ao seu precário estado de saúde, foi aconselhada pelos médicos, como último recurso, a passar o inverno num clima temperado, e escolheu a Madeira. Era então governador civil do distrito do Funchal José Silvestre Ribeiro, que preparou à visitante uma brilhante receção. A fragata da marinha de guerra britânica Howe ancorou no porto do Funchal na tarde do dia 1 de novembro de 1847, sendo recebida por salvas de canhão do forte e da cidade, assim como de um brigue português que se encontrava ao largo. A comitiva real, composta por sua irmã, a duquesa Ida, pelo príncipe Eduardo e pelas princesas de Saxe-Weimar, seus sobrinhos, foi recebida na praia, pelas 14.00 h, por cerca de 4000 pessoas em ambiente festivo. O caminho por onde passariam foi coberto de flores e ramos de mirtilo, sendo cumprimentados pela população com o maior respeito. Após visitar o aposento que lhe havia sido preparado, a cerca de meia milha da praia, a rainha voltou para o Howe, jantando e dormindo a bordo. No dia seguinte, desembarcou na Pontinha, e ali recebeu a homenagem de todas as autoridades locais, que a acompanharam à sua residência, para onde foi de liteira e as outras senhoras em palanquins. A comitiva compunha-se da dama de honor Miss Seymour, dos camaristas Cor. Cornawall e esposa, do capelão, o Rev. G. F. Hudson, do médico, o Dr. David Davis, do secretário e esmoler, T. T. Bedford, do secretário do duque, M. Hartey, e de 32 criados. O seu cunhado Bernardo, duque de Saxe-Weimar, e o sobrinho Gustavo juntar-se-lhe-iam em meados desse mês. A rainha instalou-se na Qt. das Angústias, então propriedade da família Monteiro, transformada temporariamente em paço real. Apesar de se encontrar num estado de total invalidez, levando uma vida de absoluto retiro, a sua caridade não cessou. A 4 de janeiro de 1848, ofereceu ao governador civil do Funchal um cheque de 100 libras para ajudar os pobres, sendo por várias vezes contactada durante a sua estadia com vista à obtenção de contributos monetários e doações. José Silvestre Ribeiro alertou-a, com sucesso, para a importância da ponte do Ribeiro Seco, que então se encontrava em construção na Estrada Monumental. A rainha pretendeu mesmo custear a conclusão da ponte, mas a importância era tão grande, que acabou por renunciar ao seu primitivo desejo, limitando-se a conceder um subsídio avultado por intermédio do cônsul britânico, Henry Veitch. Foi igualmente contactada pela comunidade presbiteriana da Ilha, com vista à obtenção de fundos para a construção da sua igreja, vendo-se, neste caso, impedida de ajudar devido à adesão desta comunidade à Igreja Livre Escocesa em 1843. A rainha e a real comitiva contam-se ainda entre os beneméritos da escola Lancasteriana de Raparigas, fundada no Funchal pela família Phelps. Após cinco meses de permanência na Ilha, embarcou no dia 11 de abril de 1848 no mesmo navio que a conduzira à Madeira, conservando as mais gratas recordações dos dias que passara, como atesta a peça de prata em forma de serpentina, primorosamente lavrada, que enviou ao conselheiro José Silvestre em 1849, tendo gravada a inscrição: “Presented to his Excellency Senhor José Silvestre Ribeiro H. M. Majesty's Counsellor and Civil Governor of the Province of Madeira. In grateful recollection of his civility and kind attention during her residence in Madeira by A. R..” [Oferecida a S. Ex.cia o Sr. José Silvestre Ribeiro, conselheiro de Sua Majestade e governador civil da província da Madeira, em grata recordação da sua cordialidade e amabilidades durante a sua residência na Madeira, por A. R.]. A peça apresenta, num dos lados, a coroa real inglesa e, no outro, o nome da rainha Adelaide. A estadia na Madeira não parece ter surtido qualquer efeito na saúde de Adelaide e, no outono de 1849, era evidente que a rainha estava a morrer, nunca abandonando o seu quarto do priorado de Bentley, num estado de saúde extremamente debilitado. Adelaide expirou a 2 de dezembro desse mesmo ano, sendo sepultada na capela de São Jorge em Windsor. A cidade de Adelaide, capital da Austrália do Sul, foi nomeada em sua honra aquando da sua fundação em 1836.   Paulo Perneta (atualizado a 14.09.2016)

Madeira Global Personalidades

autonomia e finanças

A autonomia é um conceito muito amplo em termos políticos e jurisdicionais. Para entender a sua ligação às finanças, deve-se acompanhar a sua evolução, tendo em consideração as implicações que apresenta em termos da estrutura e da gestão dos recursos financeiros. Neste quadro, torna-se necessário diferenciar alguns momentos: o período inicial de ocupação do território da Ilha, de 1433 a 1497, com a definição do sistema de senhorio, e o período de autonomia limitada das juntas gerais, a partir de 1901, que deu lugar ao Governo regional da Madeira e a um novo sistema político administrativo em 1976. Palavras-chave: autonomia; conflitos; contas; finanças; orçamento. A autonomia é um conceito amplo em termos políticos e jurisdicionais. Para se entender a sua ligação às finanças, deve-se acompanhar a sua evolução, tendo em conta as implicações que apresenta em termos da estrutura e gestão dos recursos financeiros. Neste quadro, torna-se necessário diferenciar dois momentos. O período inicial de ocupação do território da Ilha, que ocorreu entre 1433 e 1497, tendo-se definido o sistema de senhorio que sucedeu à plena afirmação das instituições régias, e, depois, o período a partir de 1901, com a autonomia limitada das juntas gerais, que deu lugar, em 1976, ao Governo regional da Madeira e a um novo sistema político e administrativo.  Por lei de 20 de março de 1907, existiam dois tipos de contas do Estado para a receita e a despesa: a conta do ano económico, que ficava aberta por cinco anos, e a conta de gerência, encerrada anualmente, que seria o registo das operações contabilísticas e financeiras do ano económico. Pelo dec. n.º 3519, de 8 de maio de 1919, estes prazos foram alterados, tendo a conta da receita e da despesa do ano de 1918 ficado aberta apenas durante dois anos. Posteriormente, o dec. n.º 18.381, de 24 de maio de 1930, determinou com força de lei que estas deveriam ser encerradas 45 dias após o fim do ano económico. Esta situação conduziu a que os valores apresentados em distintos documentos fossem diferenciados, estando a informação organizada com base em diferentes critérios, impedindo uma adequada valorização a partir das regras contabilísticas posteriores. Mesmo assim, não é justificável a existência de algumas disparidades (aliás muito frequentes) que podem ser encontradas na apresentação dos dados contabilísticos. O facto foi devidamente referenciado, nomeadamente na imprensa, sem se compreender a razão de tão evidentes diferenças numéricas. Uma deficiente informação contabilística deu origem a incorreções na apresentação de certos dados da receita e da despesa da Madeira, divulgados na imprensa e em algumas publicações, durante os sécs. XIX e XX. De acordo com a receita e a despesa do Tesouro na Madeira, entre os anos económicos de 1874-1875 e 1913-1914, a Ilha apresentaria um saldo negativo nos anos económicos de 1888-1889 a 1891-1892. Esta situação, porém, não corresponde à realidade dos dados apurados em informação paralela. Na verdade, a Madeira nunca apresentou qualquer saldo negativo. A riqueza gerada pelas pesadas e inúmeras tributações sempre suplantou a magra despesa ou o investimento do senhorio, da Coroa ou do Estado. Em muitas situações, aparecem dados de acordo com o ano civil, impedindo a sua contabilização por ano económico. A isto, junta-se a dificuldade, comum na documentação oficial do continente, em diferenciar os dois arquipélagos na escrituração contabilística de receitas e de despesas, o que impede, em muitas situações, de saber qual a importância atribuída à Madeira. É típica a ideia de que a informação contabilística disponível é muito dispersa, impossibilitando, muitas vezes, o estabelecimento de séries e uma avaliação real das contas. Por conseguinte, a tarefa de reconstituir e de conhecer o movimento das finanças da Região não é fácil. As informações estatísticas oficiais e a organização contabilística do orçamento e das contas surgem apenas a partir da década de 30 do séc. XIX, mas, mesmo nesta centúria, os dados são, muitas vezes, escassos. Relativamente aos séculos anteriores, os dados são avulsos e não permitem, em algumas situações, as necessárias seriações. Faltam os livros dos contadores da Provedoria da Fazenda, os registos completos da Alfândega, assim como os dos diversos tributos e impostos. Mesmo assim, foi possível recolher, em diversas publicação, dados que apontam para uma realidade diferente da que é geralmente aceite. Nem sempre os números apresentados revelam devidamente o retrato da realidade, nomeadamente da despesa. Há várias situações que determinam o recurso a variáveis e a realidade, que permitem descobrir que a despesa foi superior ao normal e que o arquipélago teve de assumir encargos que não lhe pertenciam. Assim, e.g., instabilidade política do séc. XIX transformou a Madeira num espaço de desterro para os militares opositores, servindo como uma forma de desafogar os quartéis do continente. Entre 1823 e 1919, estiveram estacionados na Ilha diversos batalhões de Caçadores e de Infantaria, alguns deles com mais de 400 praças, cuja manutenção seria assegurada e paga pelos cofres do Tesouro da Ilha; e.g., o Batalhão de Infantaria n.º 12 esteve no Funchal entre os anos de 1837 e 1847, período durante o qual a despesa efetiva da Madeira foi superior, pois necessitava de assegurar a manutenção deste gasto. A despesa do Ministério da Guerra na Madeira, a partir do orçamento de 1833, foi a mais elevada de todas as rubricas ministeriais na Ilha, chegando a representar mais de metade do dispêndio total da Ilha. Em março de 1824, e apenas neste mês, existe uma referência ao desembolso de 10.183$381, que representou, então, 55 % da despesa da Madeira. A isto, deve-se juntar a consideração referente a outra realidade muito comum nos espaços insulares, que se prende com o contrabando de mercadorias proibidas e o descaminho dos direitos. A informação sobre estas atividades ilícitas é proveniente do séc. XV e é contínua. Tais atividades seriam os meios habituais dos insulares para se furtarem aos direitos, em sua opinião excessivos, que penalizavam alguns produtos de importação e de exportação; eram também modos de combate ao regime de monopólio de produção e de venda de alguns produtos, como o sal, o tabaco, a urzela e o sabão. Para alguns produtos com peso especial nas exportações, é possível estabelecer uma estimativa das situações de descaminho aos direitos, através de análises comparadas dos valores da produção e de consumo com os da exportação. Assim, para as ilhas, algumas mercadorias, como o sal, o sabão e a urzela, que estavam sujeitas ao regime de monopólio de produção e de comércio, foram alvo de múltiplas situações de contrabando, que em muitas situações é considerado como superior a um quarto do total das transações. A autonomia, concedida, em 1895, a alguns dos distritos dos Açores e, em 1901, à Madeira, poderá muitas vezes ser entendida como uma possibilidade de avanço e de afirmação dos espaços insulares, dando-lhe os meios para o seu autodesenvolvimento. No entanto, tudo isso teve parca expressão nos diplomas oficiais. Recorde-se o debate e a intervenção de diversos políticos insulares, entre os finais do séc. XIX e o findar do primeiro quartel da centúria seguinte, em que se reivindicaram e apresentaram propostas de autonomia política e financeira que tardaram a concretizar-se. Insulares e continentais enfrentaram-se, frequentemente, sobre estas questões, tendo, talvez, existido medo dos primeiros em cortar este laço umbilical e, dos outros, em perder o domínio e o controlo político e financeiro. Estas condições nunca satisfizeram os madeirenses e os açorianos e, ao longo do tempo, foram surgindo sugestões de alargamento da autonomia financeira. Com efeito, desde o séc. XIX que a principal questão no debate e na reivindicação da autonomia se prende com as finanças. A cobrança dos impostos e a aplicação do produto líquido não revertia em benefício da Região. Esta ideia persistia e dominava o debate. Em 1882, lia-se no Distrito do Funchal que o governo “só se lembra desta terra para levantar do seu cofre central o produto de tanto sacrifício” (VIEIRA, 2014g, 51). Esta reclamação chegou à Assembleia pela voz de Manuel José Vieira, numa intervenção de 7 de maio de 1883: “sabemos que fazemos parte do reino de Portugal única e exclusivamente para quinhoarmos nos encargos que se renovam ou batizam com nomes diferentes mas que sempre se acrescentam” (Id., Ibid., 45). Em 1887, no Diário de Notícias, surge o apelo à união e à luta “por todos os meios e incessantemente a fim de se conseguir dos poderes públicos a reparação que nos é devida por meio de obras e providências legislativas que nos assegurem um futuro, não diremos brilhante, mas de modesta prosperidade” (VIEIRA, 2014, 37). No mesmo jornal, surge em 1924, uma acusação semelhante, de forma clara: “é preciso que os madeirenses unidos pelo mesmo pensamento façam ver de um modo irrecusável aos governos de Lisboa, que são mais alguma coisa do que matéria coletável [...] o povo da Madeira é um povo livre [...] não é escravo nem burro de carga” (Id., Ibid.). Em 1931, em plena euforia da revolta da Madeira, o discurso dos cabecilhas ia ao encontro desta aspiração dos madeirenses de administrarem as suas receitas para benefício próprio. Num manifesto aos madeirenses, datado de 21 de abril, apelava-se à sua adesão à revolta, pois o seu triunfo “permitirá falar com liberdade e firmeza, para pedir, para exigir do governo que as suas receitas próprias cá fiquem durante largos anos, a fim de com elas serem executadas obras importantes e de grande necessidade, há largos anos, reclamadas, mas sempre postas de parte, para satisfação de caprichos pessoais e de ódios políticos” (VIEIRA, 2014g, 69).   No diferendo entre a metrópole e as ilhas sobre as questões financeiras e tributárias, há dois momentos de grande debate: com o Estado Novo e, a partir de 1974, com o Estado democrático. A intervenção de Oliveira Salazar, no sentido do saneamento das finanças públicas, aconteceu num momento de grande efervescência nos espaços insulares, onde surgiram, em 1931 e 1936, duas convulsões populares que geraram neste governante alguma antipatia em relação à Madeira e aos madeirenses. A Revolução de 25 de abril de 1974 abriu o caminho para uma nova realidade nas relações entre a Ilha e o continente, que culminaria, em 1976, com a criação da região autónoma, com Parlamento e Governo regionais. Surgiu uma realidade política diferente, mas nem por isso as questões financeiras deixariam de revelar o desacordo entre a Região e a metrópole. Por parte desta, estava sempre latente a pretensa ingratidão das ilhas e a ideia de que as mesmas não se mostravam disponíveis para o esforço nacional de recuperação financeira, estando, permanentemente, a reivindicar apoios financeiros.  Expressões da autonomia financeira  O infante D. Henrique, por carta da doação de D. Duarte, de 26 de setembro de 1433, tornou-se o senhorio das ilhas, tendo recebido, por isso, o pleno direito à sua posse, usufruto e administração, que passava pela distribuição das terras, pelo estabelecimento de regimentos para o governo das capitanias, em termos de administração económica, fiscal e judicial, e pela definição das culturas mais adequadas aos seus objetivos e com maior rentabilidade, tais como os cereais, a vinha, o pastel e os canaviais. Desde muito cedo, estabeleceram-se mecanismos de controlo e de arrecadação dos chamados direitos senhoriais, com a criação de estruturas adequadas. Surgiu assim a figura do almoxarife, que já está testemunhada em 1452, e em 1477 foi criada a Alfândega. A quantificação deste contributo financeiro da Madeira e do Porto Santo é impossível, por falta de registos documentais, mas a informação avulsa permite afirmar que estas ilhas foram, desde o início, contribuintes ativos. Nas finanças da Ordem de Cristo e da Casa do Infante, o tributo madeirense era de 1.500.000 reais, correspondendo a 40,54 % do total dos rendimentos da sua casa senhorial. João de Barros refere ainda que o mestrado da Ordem de Cristo auferia anualmente mais de 60.000 arrobas de açúcar da Ilha, confirmando-se que esta tinha um peso significativo nas finanças das referidas instituições. Uma das primeiras medidas alcançadas pelo senhorio foi a isenção, por parte da Coroa, da dízima das exportações que se fizessem para o reino. Era um incentivo à fixação de colonos na Ilha, que se manteve durante muito tempo e de que os madeirenses nunca abdicaram, considerando-a, certamente, como um privilégio perpétuo para a sociedade. Tenha-se em conta que esta política de isenção da dízima, no movimento de exportações e de importações entre o arquipélago e o continente português, para além de favorecer as ligações aos portos do reino e o consumo dos produtos nacionais, contribuiu para estabelecer vínculos de dependência com a metrópole em termos do comércio externo da Ilha, situação que se tornaria desfavorável em muitos casos. Por outro lado, levaria a que uma importante e significativa receita local, nomeadamente a da exportação do açúcar, ficasse nas Alfândegas de Lisboa, do Porto e de Viana do Castelo, a partir de onde se exportava uma grande quantidade daquele produto para os principais mercados europeus.  Não temos conhecimento de que o Senhorio tenha feito qualquer investimento produtivo, por exemplo, em infraestruturas, à exceção das muito rudimentares alçapremas do infante, nos primórdios da exploração açucareira. Pelo contrário, temos de referir as insistentes queixas relativas à falta de investimento para a modernização e a adequação das infraestruturas aos serviços que prestavam. Aos moradores, ficou reservada a tarefa de preparar os terrenos para o arroteamento imediato, com a construção de muros de sustentação das terras e da abertura de levadas para o regadio, pelo que, inicialmente, a concessão de terras só seria possível àqueles que tivessem posses para tamanho investimento.   A Madeira encontrava-se ocupada desde há pouco mais de 50 anos e a cultura dos canaviais entrava no seu momento de apogeu. Daqui resulta a importância e a valorização em que era tida no património financeiro do reino. A construção dos paços do concelho foi feita com o financiamento próprio do concelho através dos rendimentos da imposição do vinho. O projeto de construção de cerca e de muros, concretizado mais tarde, partiu, também, de fontes de financiamento próprias que oneravam, de novo, as populações. Os apoios substanciais que se esperariam por parte do senhorio não existiram. Depois desta fase, surgiu a plena afirmação das estruturas de poder régio, com particular incidência nas que se encontravam ligadas às finanças. A Coroa apostou ainda na regulamentação rigorosa das estruturas fiscais, através dos forais do almoxarifado das Alfândegas (1499) do Funchal, de Machico e de Santa Cruz (1515). Esta medida foi antecedida, em 1497, da abolição do senhorio, fazendo reverter para a Coroa todo o património madeirense de forma durável e reservando-se esta o direito de reforma dos arcaicos forais que regulamentavam a fiscalidade, pela necessidade de adequar os regimentos à nova realidade socioeconómica. A presença da Coroa e das instituições que a representam ao nível da justiça e da fiscalidade consolidaram-se nos anos seguintes, pois esta Ilha era uma das suas primeiras e principais fontes de riqueza.  A partir de então, a Fazenda Real nunca prescindiu do contributo madeirense e continuou a usar todos os meios para usufruir da riqueza gerada no arquipélago através dos tributos existentes, sendo alguns deles específicos da Ilha, assim como por meio do apelo a permanentes empréstimos e fintas. Esta política de constante solicitação do esforço tributário dos madeirenses foi prejudicial à Madeira, gerando laços de cada vez maior dependência e um atraso secular, manifesto aos mais diversos níveis, mas acima de tudo no estado de degradação dos edifícios das instituições da Coroa, das igrejas e das capelas. O direito de padroado era um compromisso e um encargo assumidos pelo Rei, que raras vezes o honrou. A Coroa atuou de todas as formas, no sentido de evitar o chamado açúcar cativo, i.e., o açúcar subtraído ao pagamento dos tributos régios, nomeadamente aos quintos e às dízimas de saída. Para isso, foi estabelecido um apertado sistema de controlo que começava nos canaviais, continuava no engenho e terminava à saída do porto. Assim, como forma de controlar e de prever a receita, determinou-se a regra do estimo da produção de açúcar dos diversos proprietários de canaviais.   A pressão fiscal sobre os produtos de alta rentabilidade poderá ter muitas vezes efeitos negativos, em situação de livre concorrência com outros mercados e com outros produtos. Em princípios do séc. XVI, a concorrência dos açúcares dos mercados da Madeira e das Canárias esteve sujeita a esta situação, criando circunstâncias desfavoráveis para a Ilha. Na época senhorial, o donatário considerava-se o proprietário do espaço da Ilha e, portanto, tudo o que recebia dos povoadores que haviam aceitado dádivas de terras era um tributo, fruto do direito de posse. Nestas circunstâncias, estabelece-se a ideia dos direitos senhoriais, que está longe da ideia do imposto ou tributo que se impõe com uma determinada função social, económica e cultural, ou em troca de serviços. Mas esta ideia medieval dos direitos senhoriais continuará presente até à época liberal. Esta forma de encarar a situação tributária não implicava uma atitude retributiva que, quando acontecia, era apenas a título de dádiva ou de esmola. Existem inúmeros testemunhos destas situações no reinado de D. Manuel, que foi certamente, de entre todos os monarcas, o que mais lucro obteve com a economia madeirense, mas também aquele que se mostrou mais magnânimo para com os habitantes da Ilha. A contrapartida a este contributo dos madeirenses estará quase só na política de ofertas estabelecida pelo mesmo Rei, que aumentou, em muito, o património artístico da Madeira. Em diversas circunstâncias, é manifesta uma tradição não retributiva por parte da Coroa, mesmo nas suas obrigações. As grandes obras de construção da praça, dos paços do concelho, da cadeia e da igreja fazem-se, em princípio, à custa dos moradores, através de taxas, do seu trabalho braçal e de algumas das chamadas esmolas da Coroa. Assim sucedeu com as obras do Hospital da Misericórdia do Funchal, com as da Sé do Funchal e com as das cadeias. O mesmo aconteceu com as obras de fortificação, tão importantes para segurança dos moradores e para a salvaguarda da soberania e dos interesses financeiros da Coroa. Até, na verdade, a imposição do vinho, criada em 1485 para acudir às principais despesas do município, acabou por ser usada pela Coroa com outras finalidades. Portanto, como já se disse, a Madeira foi um contribuinte ativo para os cofres da Coroa, mas poucas vezes sentiu o retorno útil da sua riqueza. As ocasiões em que o saldo das contas foi negativo foram raras: quando foi necessário um apoio da Coroa, este foi feito através de um empréstimo com retorno. Os encargos definidos pela despesa fixa da Coroa na Ilha eram, por norma, muito reduzidos. Considere-se, e.g., os dados disponíveis para o período de 1501 a 1537, durante o qual a despesa de funcionamento com o almoxarifado começou por ser apenas de 20$000, para subir, na década de 30, para cerca de 90$000 réis. Depois, para os anos de 1581 e entre 1602 e 1618, existiu, de novo, uma situação semelhante; pois, de uma despesa global com os ordenados do clero e dos funcionários, superior a 7 contos, apenas 2 contos se referem aos funcionários da justiça e da Fazenda Real, sendo o demais para o clero e o funcionamento das igrejas. O projeto de expansão e de afirmação colonial portuguesa teve custos elevados, que foram sendo suportados com financiamentos estrangeiros e com a riqueza gerada nos novos espaços de ocupação, como foi o caso da Madeira. Assim, na primeira metade do séc. XVI, as despesas relacionadas com o socorro e a manutenção das praças africanas são mais um encargo que os madeirenses assumem em razão da proximidade. Algumas destas praças, como Mogador e Safim, estavam na dependência quase direta da Madeira, de forma que, em 1506, o Monarca ordena aos almoxarifes e aos recebedores na Ilha que satisfaçam todos os pedidos de Diogo de Azambuja para as obras da fortaleza de Mogador. E a participação e o investimento dos madeirenses nas campanhas africanas não se ficaram apenas pelo séc. XV; nos séculos seguintes, a Ilha participou de forma assídua, com mantimentos e com homens, na defesa das praças, face às investidas muçulmanas. Mais tarde, haverá uma intervenção de vulto dos madeirenses no Brasil, tendo vários homens e meios financeiros acudido ao resgate dessa colónia e ajudado à luta contra a ocupação holandesa. A Coroa, a exemplo do que havia sucedido com o senhorio, tinha o direito ao usufruto da riqueza gerada pelos madeirenses. Desde os primórdios, estabeleceu-se uma espécie de contrato de colónia entre o senhor (mais tarde, a Coroa) e os madeirenses, obrigando-os a realizar todo o tipo de benfeitorias e ao pagamento ao dito proprietário da Madeira de muito mais que a demidia (metade) das suas produções e da sua riqueza. Os primeiros colonos fizeram um esforço enorme para adaptar a orografia da Ilha às condições das distintas práticas agrícolas, um trabalho raras vezes devidamente compensado com a parte que sobrava das suas colheitas. Os madeirenses, ao longo desta época, sentiam que estavam a ser saqueados pela Coroa, um sentimento manifestado em distintas situações e momentos, a exemplo do que sucedera, em 1566, com o assalto dos corsários franceses – em que a Fazenda Real foi a menos prejudicada, pois os cofres foram postos a salvo no Caniço a tempo. As rendas da Madeira não atuavam apenas como fator de relevo nas finanças dos cofres nacionais: foram também usadas como moeda de troca no quadro das relações diplomáticas internacionais, durante as primeiras décadas do séc. XIX. A Madeira foi entregue a forças ocupantes, serviu de garantia a empréstimos, e foi apontada como solução para a dívida nacional através da sua venda. Isto prova e reforça o papel da Madeira, no quadro das finanças nacionais. E.g., em 1801, foi realizado um empréstimo de 9.000.000 de cruzados, feito com a garantia dos dízimos e demais rendas reais da Madeira. Depois, em 1809, relativamente a um empréstimo de 600.000 libras, os Ingleses receberam como garantia os rendimentos das Alfândegas da Madeira e dos Açores, e, em 1832, a concretização de um empréstimo de 300.000 libras esterlinas designou, de novo, os rendimentos da Madeira como uma forma de hipoteca. É problemático o estabelecimento de impostos e de adicionais com finalidades específicas que, por serem gerais do país, nunca chegam à Madeira. Nesta época, houve momentos de esplendor, mas também de grandes dificuldades, como as aluviões de 1803 e de 1842, em que o Estado não se mostrou tão magnânimo quanto deveria ser na sua intervenção e no seu apoio, como provam os orçamentos e as contas do Estado a partir de 1833. Os 30 contos enviados em 1842, para acudir as despesas associadas à aluvião, de pouco serviram. Por lei de 1761, a Madeira uniformizou o seu sistema tributário com o do continente, deixando de existir situações específicas relativamente a este aspeto. Isto gerou dificuldades de administração financeira devido às diferentes realidades do continente e das ilhas que, no caso das Pautas Aduaneiras, tornaram mais real a expressão dos problemas de uma lei definida com o desconhecimento da realidade das distintas e diferenciadas regiões. A ideia de associar as ilhas e os arquipélagos à metrópole através da designação de adjacentes foi uma medida fatal, com consequências inevitáveis na economia e no sistema tributário. A possibilidade de intervenção dos insulares na Câmara dos Deputados, através de deputados eleitos, foi uma oportunidade de afirmação desta diferença e da identidade, mas não um reconhecimento, de facto, das divergências que a lei procurava a todo o custo combater. Em 1895, surgiu a autonomia, primeiro para alguns distritos dos Açores, sob a forma de restauração das antigas juntas gerais, com intervenção específica em termos administrativos e financeiros. Depois, em 1901, a Madeira acompanhou o processo. Mas tudo ainda estava em aberto em termos de uma plena valorização dos espaços insulares, tendo em vista a capacidade de autogoverno. Após a reforma tributária da década de 40 do séc. XIX, surgiram outras em 1911 e em 1922, porém, as alterações mais significativas no sistema só aconteceriam a partir de 1928, com a intervenção de Oliveira Salazar. Mais uma vez, o compasso do tempo político não se coaduna com o do sistema tributário. A República, em 1910, não representou uma rutura com as finanças e a contabilidade vigentes, a exemplo do que havia sucedido com a Revolução Liberal de 1820. A viragem no sistema acontece, a partir da década de 30, com as reformas de Mouzinho da Silveira, que tiveram apenas uma expressão prática e constitucional, com a reforma da Fazenda de 1843. Entretanto, na década de 30, na sequência das reformas realizadas pelo Governo provisório da ilha Terceira, houve, em 1832, a substituição do Tribunal do Erário Régio pelo Tribunal do Tesouro, e, em 1833, algumas reformas da Fazenda Pública e das Alfândegas (em todo o caso, foi a partir de 1843 que aconteceu a viragem do sistema, que teve continuidade nas reformas da contabilidade e da Fazenda Pública de 1854, 1869, 1870, 1881, 1891 e 1907). A partir de 1901, a Madeira passou a gozar, a exemplo dos Açores, de autonomia administrativa com o restabelecimento da Junta Geral. Todavia, as condições de instabilidade política do primeiro quartel do séc. XX, associadas às limitadas competências e capacidades financeiras da Junta, não permitiram que surgissem intervenções deste novo regime administrativo tão favoráveis quanto eram as esperanças dos autonomistas madeirenses. Tanto mais que a década de 30, aproveitando a evocação do quinto centenário do descobrimento da Madeira, foi um momento de debate por mais e melhor autonomia, revelando a insatisfação da elite política da Ilha. Com a República, não se estabeleceram alterações significativas ao sistema vigente. A lei n.º 88, de 7 de agosto de 1913, quanto aos distritos da Madeira e dos Açores, confirma o que está estabelecido no decreto de 2 de março de 1895, nomeadamente nos artigos n.os 28, 29, 30, 31 e 32. Apenas se acrescenta, no parágrafo n.º 6, que: “As juntas pagarão ao Estado, como compensação pela cobrança das contribuições, 5 por cento das quantias arrecadas, cuja dedução será feita em cada ordem de entrega de receitas, assinada pelo inspetor de finanças” (Id., Ibid,, 485). Em 1922, a situação da Ilha não era distinta dos anos anteriores; no entanto, foi o ano escolhido para a comemoração do quinto centenário do descobrimento da Madeira. Este foi o argumento para fazer despertar o espírito autonomista e regional dos madeirenses. Em outubro e novembro de 1920, Eduardo Antonino Pestana, entusiasmado com os resultados positivos da realização de congressos regionais em várias localidades do continente (uma iniciativa que partira de Augusto de Castro, então diretor do Diário de Notícias de Lisboa), reclamava insistentemente, no Diário de Notícias do Funchal, a necessidade de uma iniciativa idêntica na Madeira. O objetivo do congresso a realizar na Ilha era produzir um levantamento dos principais problemas com que esta se debatia e criar uma comissão para reclamar as soluções necessárias junto dos parlamentares madeirenses e dos ministérios do Terreiro do Paço, em Lisboa. Isto é, criar um grupo de pressão madeirense na capital. Entre os finais de 1922 e os princípios de 1923, gerou-se no Funchal um clima eufórico de debate em torno do alargamento da autonomia. Porém, realizado o debate, algumas ideias haviam demonstrado que, sem a colaboração da classe política da Madeira e do continente, não era possível fazer avançar o parco regime autonómico de 1901. A classe política da Madeira, dependente das estruturas e dos favores da continental, estava dividida. Por outro lado, as forças vivas madeirenses não só não sabiam bem o que queriam como estavam também acomodadas. A ideia de autonomia era agora distinta daquela que tinha existido em finais do séc. XIX. A influência inglesa conduziu à reivindicação de uma ampla autonomia que, segundo se dizia em 9 de novembro de 1921, deveria ter na bandeira “a única ligação com a Mãe Pátria” (Id., Ibid., 71). Para o movimento autonomista madeirense dos anos 20, muito contribuiu a atitude do então presidente da Comissão Executiva da Junta Geral, Fernando Tolentino Costa, que, aproveitando a passagem pela Ilha do Presidente da República, António José de Almeida, a 9 de outubro de 1922, quando regressava do Brasil, lançou o desafio no sentido do alargamento da autonomia. O facto teve eco na imprensa local e fez com que o movimento autonomista ganhasse novo alento. A Junta Geral, tomando a liderança do processo, enviou um ofício para as juntas gerais dos Açores (Ponta Delgada e Angra do Heroísmo), propondo uma congregação de esforços e uma concertação de ações com este objetivo, convocando uma assembleia de madeirenses, donde saiu uma comissão autonomista, que se reuniu pela primeira vez a 21 de dezembro de 1922, na sede da Associação Comercial do Funchal. Foi aqui que Manuel Pestana Reis apresentou o texto das bases da autonomia, que foi depois publicado na brochura das comemorações do quinto centenário da descoberta da Madeira. Com a proposta de estatuto em debate, pretendia-se estabelecer, pela primeira vez, a coexistência dos poderes legislativos e executivos. Surgia, assim, um conselho legislativo eleito entre as câmaras e as associações de classe, que poderia legislar no domínio regional. Apenas lhe estariam vedadas as questões referentes ao exército, às relações com o estrangeiro, à formação do Governo, à justiça e ao ensino. O quadro institucional completava-se com o conselho executivo, eleito pelo legislativo, com a função de superintender as finanças, de fiscalizar o orçamento e de superintender os serviços e as obras públicas. A representação do governo no distrito continuaria a ser feita pelo governador civil, nomeado mediante consulta ao conselho executivo. Ao mesmo, seriam acometidas funções de fiscalização e de assistência aos diversos órgãos da administração. Uma das reivindicações mais destacadas foi o direito à fruição em benefício próprio das receitas arrecadadas. A Madeira deveria deter a sua total administração, ficando ao Estado apenas o direito a uma quantia fixa para cobrir os custos da cobrança. Esta autonomia era entendida pelo próprio Manuel Pestana Reis como uma forma de “desconcentração política e administrativa” (Id., Ibid., 76) e ia ao encontro de anteriores propostas surgidas nos Açores, da autoria de Aristides da Mota (1892) e de Francisco de Ataíde Manuel de Faria e Maia (1921). Durante este momento, o intercâmbio dos projetos autonomistas de ambos os arquipélagos foi um facto, tendo sido, de novo, promovido pelo presidente da Junta. Em dezembro de 1922, uma representação de Ponta Delgada, chefiada por Luís de Bettencourt e Câmara e por José Bruno Carreiro, chegou à Madeira, seguindo-se, em janeiro do ano seguinte, a presença de Frederico Augusto Lopes da Silva, de Angra. No ano imediato, na Madeira, também foi discutida a temática da autonomia. Evocou-se o quinto centenário da descoberta da Madeira e todos, ou quase todos, clamaram por uma nova descoberta, materializada em mais e melhor autonomia. Um dos pontos assentes do projeto autonomista apresentado por Manuel Pestana Reis (1894-1966) era a questão financeira. A Revolução de 28 de maio de 1926 foi saudada por muitos sectores da sociedade madeirense que depositaram nela as suas esperanças de mudança. A primeira alteração ocorreu com o dec. n.º 15.035, de 16 de fevereiro de 1928, que ia ao encontro de algumas das reivindicações no campo financeiro. A receita da cobrança da contribuição predial rústica e urbana, da contribuição industrial, do imposto de aplicação de capitais e do imposto de transações era da Junta seria usada em benefício da Região, ficando o Estado com apenas 1 % desta para despesas de cobrança. A 31 de julho, com o dec. n.º 35.805, a situação alterou-se novamente. Este decreto, assinado pelo então ministro das Finanças, Oliveira Salazar, marcou o princípio do fim do combate autonomista das ilhas. Antes, aumentara-se a receita dos distritos, agora, impunham-se novos encargos, com o alargamento da descentralização a serviços dependentes dos ministérios do Comércio, Agricultura e Instrução, do Governo Civil, da polícia cívica, da saúde, da assistência, e da previdência. Sem capacidade para acabar com a autonomia, Salazar acedeu às aspirações autonomistas transferindo alguns serviços, que conduziram à asfixia financeira das Juntas. As reformas do Governo do Estado Novo não satisfizeram a ambição dos regionalistas. O madeirense Quirino de Jesus, ainda que muito próximo de Salazar na definição da política económica e financeira, não conseguiu demovê-lo quanto à sua visão da autonomia. Ele defendera que a autonomia insular era definida pelo carácter financeiro e económico, só se podendo afirmar com reformas financeiras. De acordo com a sua ideia de divisão administrativa, o distrito cederia lugar à província, que passaria a ter ao comando um governador-geral residente, de nomeação governamental. A ele juntava-se a Junta Geral de Província e o Conselho de Governo. A primeira era composta por procuradores eleitos pelas Câmaras Municipais, pelas associações, pelos professores e pelos chefes de serviço das repartições públicas, enquanto o segundo seria presidido pelo governador, integrando vogais eleitos de entre os procuradores e os chefes dos serviços. A Constituição, aprovada em 11 de abril de 1933, estabelecia para as ilhas uma administração especial (artº. 124 § 2.º), que só foi regulamentada pela lei n.º 1967, de 30 de abril de 1938, que estava muito distante destes propósitos. No preâmbulo da lei, refere-se que a geografia obrigou a esta descentralização e desconcentração “em benefício dos povos e com vantagem para a boa administração”. As reclamações dos insulares levaram a que o Governo as atendesse, em 1928, com alterações significativas, através da descentralização de muitos serviços; mas surgiram novamente imensas reclamações, porque as receitas eram insuficientes, continuando o legislador a negar a possibilidade do usufruto total das receitas fiscais: “Formam as ilhas adjacentes um todo com o continente, é o mesmo o seu sistema de administração e governo, como o mesmo é o grau de civilização dos habitantes e de progresso social: seria, pois, contrário ao bem comum consagrar uma forma egoísta de plena autonomia financeira que parecesse realizar a desintegração do Estado de uma parte do seu território metropolitano”. Sobre as anteriores medidas dizia-se “que foi excessiva a liberdade conferida às juntas em 1928” (Id., Ibid., 78), pois a descentralização sem a tutela governamental podia ser um princípio para uma má gestão. Deste modo, manteve-se a descentralização existente, passando, todavia, a ser fiscalizada pelo governo civil e tutelada pelo Governo central. Nesta reforma do estatuto, surge, como uma novidade, a função de coordenação económica da Junta, que tinha uma expressão ao nível do planeamento apenas nos planos trienais. Esta problemática motivou um debate público no Funchal, em janeiro de 1968, sob a epígrafe I Semana de Estudos sobre problemas sociais económicos do desenvolvimento. Como corolário desta reivindicação, foi publicado, em 11 de março de 1969, o dec.-lei n.º 48.905 que estabeleceu e regulamentou o planeamento regional, função que ficou a cargo da Junta Geral, merecendo a contestação de todos os sectores. Quando Marcelo Caetano substituiu Salazar, a 27 de outubro de 1968, era evidente a expectativa dos insulares quanto às reivindicadas alterações do estatuto. Esta possibilidade havia sido admitida pelo próprio presidente do Conselho de Ministros quando, em dezembro de 1969, visitara a Madeira. Na verdade, a década de 60 foi, de novo, uma altura de debate da autonomia, sendo o Comércio do Funchal o porta-voz destes anseios. Então, para além da visível asfixia financeira das juntas, insistia-se na necessidade de um plano de desenvolvimento regional, que chegou à Assembleia Nacional a 5 de abril de 1963, pela voz do deputado madeirense Agostinho Cardoso. As eleições para a Assembleia Nacional de 26 de outubro de 1969 acontecem no decurso do debate do processo autonómico, sendo este ideário assumido pelos candidatos da oposição democrática. Durante muito tempo, as reivindicações dos madeirenses assentaram no retorno do dinheiro dos seus impostos para a realização de obras necessárias ao desenvolvimento da Ilha, que, em muitas situações, acabariam por trazer retorno ao Estado. Com um programa de regadio, ampliar-se-ia a área agrícola e também os tributos; com a construção de portos, de cais e de embarcadouros, seriam garantidas as condições de circulação de pessoas e de produtos, animando eficazmente a agricultura e o mercado; por fim, o porto principal no Funchal, com condições de apoio à navegação livre de taxas tributárias, era uma esperança para os madeirenses, que viram nele a possibilidade de uma grande escala oceânica e de desembarque de turistas. Tudo isto era conhecido e sabido, mas continuavam a tardar as soluções. As populações continuavam isoladas nos seus locais de nascimento, frequentemente alheias a tudo. A ida ao Funchal era um acontecimento ocasional e de grande comemoração. Desde o primeiro quartel do séc. XIX, as reclamações dos madeirenses manifestaram-se no sentido de o Estado intervir na Madeira através de obras públicas para a abertura de caminhos, de levadas e de canalização das ribeiras. A crise agrícola e comercial fez despertar o olhar crítico de muitos madeirenses e ampliou a imagem de uma terra abandonada à sua sorte, sem ninguém que lhe acuda. A partir de maio de 1974, alterou-se o espectro político da Região, tendo-se manifestado à luz do dia vários grupos políticos de cariz regional e promotores da autonomia, que deram vigor ao movimento autonomista, que ganhou forma com o Estatuto Provisório da Madeira, de 29 de abril de 1976. Depois, o ato eleitoral para a Assembleia Regional, a 27 de junho, abriu o caminho para a afirmação do processo constitucional, com a atribuição da autonomia político-administrativa consagrada na Constituição que foi aprovada a 2 de abril de 1976. Tenha-se em consideração que, a partir de 1986, a realização dos empreendimentos que permitiram a total mudança do arquipélago só foi possível com o apoio financeiro da então Comunidade Económica Europeia, a que Portugal entretanto aderira. O estatuto provisório, aprovado pelo dec.-lei n.º 318-D/76, de 30 de abril, estabeleceu a possibilidade de a Região legislar e regulamentar sobre os impostos regionais (art.º 136), assim como de criar adicionais aos impostos (art.º 137) e de adaptar o sistema fiscal nacional vigente às características da RAM (art.º 138). O alargamento desta faculdade irá permitir que a Região use esta capacidade legislativa para criar condições de competitividade fiscal que permitam captar novos investimentos, nomeadamente para o Centro de Negócios da Madeira. Ao nível das autarquias, a Constituição de 1976 determinou, de forma clara, a independência orçamental e patrimonial. Pela lei n.º 1/79, de 2 de janeiro, lei das finanças locais, foram aumentados os recursos e os poderes financeiros dos municípios e das freguesias. Nela se estabeleceu um regime distinto para as finanças locais. Seguiram-se alterações, pelo dec.-lei n.º 98/84, de 29 de março, mas que vigoraram durante pouco tempo, uma vez que, pelo dec.-lei n.º 1/87, se procedeu a uma nova regulamentação das finanças locais que lhes atribuiu uma participação nas receitas do IVA e do imposto de sisa. As receitas fiscais dos municípios são resultantes de impostos autónomos (contribuição autárquica, sisa, imposto sobre veículos e imposto de mais-valia), de algumas participações (definidas pelo Orçamento do Estado, pelas taxas e pelos impostos), de taxas e de derramas. A contribuição autárquica surgiu por lei n.º 106/88, de 17 de setembro. Quanto às transferências das verbas para a Região, refere-se que o Estado estabelecer, no Orçamento (na rubrica “Encargos Gerais da Nação”), os valores a transferir para a Região de acordo “com o princípio da solidariedade nacional” (art.º 56). A partir de 1981 (resolução n.º 310/80, DR 200/80 série I de 1980/08/30), ficou estabelecida uma fórmula de financiamento do orçamento regional, assente na capitação da despesa pública. A partir da revisão constitucional de 1982, foram reforçados os poderes tributários das regiões, permitindo-lhes dispor das receitas cobradas. Pelo dec.-lei n.º 500/80, a RAM encontra-se numa situação especial em termos fiscais, devido à criação da Zona Franca da Madeira que, a partir de 1987, se encontrou na dependência da Sociedade de Desenvolvimento da Madeira S.A., que contava com os seguintes serviços: zona franca industrial, serviços internacionais, registo internacional de navios e serviços financeiros/centro offshore. A entrada de Portugal na CEE, em 1986, tinha imposto limitações ao funcionamento das zonas francas comerciais dentro do espaço comunitário. Em 1990, o governo aprovou o projeto do terminal marítimo da zona franca do Caniçal. A zona franca foi um fator significativo do desenvolvimento da Região, capaz de captar receitas que permitiram o seu financiamento. Todavia, as limitações impostas fizeram com que a mesma perdesse a sua importância, fazendo dela, nos começos do séc. XXI, um dos principais pontos do diferendo entre a RAM e o Governo central. A partir da revisão constitucional de 1982, foram reforçados os poderes tributários das regiões, permitindo dispor das receitas cobradas. A lei n.º 9/87 de 26 de março institucionalizou o poder tributário próprio das duas regiões autónomas. Os anos de 1985 e 1986 foram de um significado particular para esta conjuntura de difícil execução orçamental, levando à negociação de um programa de reequilíbrio financeiro com o Governo da República. Pela resolução n.º 9/86, de 16 de janeiro, o Governo mandatou o ministro da República e o ministro das Finanças para estabelecerem com o Governo regional um programa de reequilíbrio financeiro da RAM, assinado a 26 de fevereiro de 1986. A 22 de setembro de 1989, houve um novo programa de recuperação financeira até 31 de dezembro de 1997, que se repercutiu no orçamento regional do ano de 1990. O impacto mais significativo do período democrático decorreu de uma intervenção resultante da integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia e não da obrigação, que ao Estado era devida pela lei e pela Constituição, de colmatar as assimetrias de desenvolvimento económico da Região. A 5 de junho de 1985, a Assembleia regional da Madeira aprovou a integração da RAM no processo de adesão de Portugal à CEE, o que veio a acontecer, em pleno, a partir de 1 de janeiro de 1986. A resolução do Parlamento regional reconheceu as vantagens da adesão para o progresso económico, para o reforço do contributo insular e para a formação da Comunidade. Em 1988, na sequência de um memorando apresentado pelas regiões autónomas da Madeira e dos Açores, a Comunidade aprovou um programa de medidas específicas, no sentido da sua plena integração no Mercado Único. Foi o princípio do reconhecimento do Estatuto Especial das Regiões Ultraperiféricas, consagrado no tratado de Maastricht, com a declaração comum sobre as regiões ultraperiféricas. A aposta comunitária na política regional favoreceu o aparecimento de programas financeiros, dos quais a Madeira, a partir de 1986, passou a poder usufruir. Neste sentido, surgiu em 1985, o Fundo Europeu para o Desenvolvimento Regional (FEDER). Entretanto, em 1991, o Tratado da União Europeia estabeleceu a política regional e de coesão, criando o Comité das Regiões e o Fundo de Coesão. A Madeira recebeu, no primeiro e no segundo Quadro Comunitário de Apoio (QCA) (entre 1986 e 1999) 176,7 milhões de contos e, no terceiro (2000-2006), 140 milhões de contos. As medidas de correção dos desequilíbrios internos de desenvolvimento e a política de coesão comunitária, asseguradas pelos diversos QCA (I QCA 1989-1993; II QCA 1994-1999) e pelo fundo de coesão, para além de outros apoios no âmbito dos diversos programas comunitários, asseguraram à Madeira os meios financeiros necessários para vencer as dificuldades ancestrais de desenvolvimento económico. Um dos principais problemas da política governativa estava relacionado com a disponibilidade de verbas, por parte do Orçamento do Estado, para cobrir as carências resultantes da transferência dos serviços e das políticas de investimento que se estabeleciam necessariamente para acatar o atraso secular a que a Ilha tinha ficado votada. A conta de 1978 apontava um crescimento da despesa em 124,75 %, enquanto o da receita se limitava a apenas 57,4 %. Esta situação de rutura financeira situava-se, muitas vezes, fora do alcance da Região, ou porque o Estado não procedia à definição do valor das transferências, ou porque a Madeira não dispunha de quaisquer mecanismos fiscais que permitissem resolver os seus problemas. No decurso das décadas de 70 e 80, os orçamentos da Região foram apresentados de forma tardia, porque se aguardava pela aprovação do Orçamento Geral do Estado, em que ficaria estabelecido o valor das transferências, uma vez que a receita dos impostos e das taxas – proveniente dos tempos da Junta Geral, reforçada com o estatuto provisório de 1976 – era claramente insuficiente para cobrir os encargos associados à transferência dos serviços, nomeadamente nos âmbitos do ensino e da saúde. É certo que o estatuto (art.º 56) definiu o princípio da solidariedade nacional quanto ao apoio financeiro do Estado para cobrir as despesas, mas as contingências da conjuntura de crise política implicavam que esta garantia tardasse ou não surgisse. Neste quadro, restava à Região o recurso ao endividamento interno para cobrir os investimentos necessários à execução do plano regional que, de acordo com o mesmo estatuto (art.º 58), deveriam ser definidos por diploma do Governo da República. Em 1980, o orçamento apresentava um défice de 2.017.730 contos, porque ainda não era conhecida a verba a estabelecer no Orçamento do Estado, mas a Região decidiu manter uma verba de transferências, por considerar imperioso o cumprimento do plano de investimentos, deixando em aberto a possibilidade do seu financiamento através de um empréstimo. Em 1981, agravou-se ainda mais a situação financeira e orçamental, devido ao volume de serviços que tinham sido regionalizados no decurso do ano anterior sem a devida contrapartida financeira, e à aprovação tardia, em abril, do Orçamento de Estado. Desta forma, a Madeira não teve alternativa, e o seu orçamento foi apenas aprovado em maio. A mesma situação de precariedade dos meios orçamentais justifica o défice de 7.274.081 contos, explicado pela “evolução crescente da própria autonomia regional” (VIEIRA, 2014h, 707). Em 1983, o orçamento só foi aprovado em junho do ano de execução, pelas mesmas razões, ocorrendo uma nova situação, com o decréscimo das transferências do Orçamento do Estado, que veio a agravar o défice em 14.976.482 contos. A despesa foi justificada pela transferência de serviços sem a necessária contrapartida financeira, bem como pela necessidade de vencer o atraso da Região através de grandes obras estruturantes. Em 1983, no sentido de vencer estas dificuldades orçamentais e financeiras, o Governo regional expressou a sua intenção de lutar para que fosse encontrado “um critério mais justo, que permita à regiões autónomas recuperar o atraso económico e social em que se encontram relativamente ao continente, o mais breve quanto possível, mas sem que isso constitua uma penalização para as disponibilidades financeiras” (VIEIRA, 2014h, 707) com uma proposta de alteração dos critério de cobertura do défice da Madeira. A par disso, aponta-se a necessidade de reformas da política monetária e financeira, para que as regiões possam adotar a assunção plena dos direitos e das responsabilidades que a Constituição consagra neste domínio (alínea n) do art.º 229). Era o único meio de a Região sustentar uma estrutura financeira que lhe permitisse consolidar a sua autonomia política e económica. A lei do orçamento do Estado n.º 42/83, de 31 de dezembro, consagra a possibilidade de a Região se endividar em 5 milhões de contos, para poder colmatar os constantes défices orçamentais. Mas, em sede do orçamento regional de 1984, voltou-se a insistir na ausência de contrapartidas financeiras por parte do Estado em face da transferência dos serviços, pelo que o investimento dos últimos sete anos só havia sido possível mediante o recurso ao crédito interno. Insiste-se na ideia de que “uma política orçamental verdadeiramente autónoma só será concretizada quando todas as componentes do orçamento regional estiverem sob o domínio dos órgãos de governo próprio da Região.” Por outro lado, “sobre o Estado recaem determinadas obrigações, aliás, constitucionais, no que respeita à recuperação do atraso económico estrutural em que a Região se encontra devido à ausência ancestral de qualquer política séria de desenvolvimento regional da iniciativa do poder central” (VIEIRA, 20145g, 84). O desacordo financeiro continua em 1985, acusando-se, em finais do ano anterior, o Governo regional de ter aumentado as dificuldades financeiras que obrigaram ao aumento do défice e do endividamento da Região. Deste modo, insiste-se na necessidade de alteração dos “critérios de transferências do Orçamento do Estado para a Região Autónoma da Madeira” (VIEIRA, 20145h, 708). A principal receita da Região incidia nos impostos, sendo os diretos de maior peso. Para o período compreendido entre 1976 e 1988, os impostos principais foram a contribuição industrial, o imposto profissional, o imposto de capitais, o imposto complementar, o imposto sobre sucessões e doações, e a sisa. A partir de 1989, passaram a ter destaque o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e o imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), como reflexo das mudanças ocorridas com o sistema tributário português. No grupo dos impostos indiretos, existiam: o IVA, o ISP, o selo, as transações internacionais, as estampilhas fiscais, o imposto sobre transações, o imposto de consumo de tabaco, o imposto sobre venda automóvel, e o imposto sobre bebidas alcoólicas e cerveja. Com a lei n.º 13/98 de 24 de fevereiro, a lei de finanças das regiões autónomas, fica consagrada a salvaguarda das receitas geradas na RAM, definida e regulamentada a possibilidade de estabelecer adicionais até 10 % aos impostos (art.º 36), e estabelecida a adaptação do sistema tributário às especificidades da RAM (art.º 33, 37), assim como da fórmula e das regras que passariam a definir as transferências do Estado (art.º 33). Como resultado desta situação, o Orçamento de 2001 estabeleceu alterações às taxas de IRS e IRC cobradas na RAM. A lei orgânica 1/2007, de 19 de fevereiro, aprovou a nova lei de finanças das regiões autónomas e estabeleceu algumas alterações, consideradas penalizadoras para a RAM. Assim, o valor das transferências começou a estar baseado na população (art.º 37). Também o IVA deixou de ser transferido de acordo com uma capitação estabelecida, para ser o valor de facto cobrado. As regras das transferências financeiras foram estabelecidas nos art.os 19 e 51 e foram regulamentadas pela portaria n.º 1418/2008, de 9 de dezembro. Com a revisão constitucional de 1982, foram reforçados os poderes tributários das regiões, permitindo-lhe dispor das receitas cobradas. A lei n.º 9/87, de 26 de março, institucionalizou o poder tributário próprio das duas regiões autónomas. Com o Orçamento de Estado de 2005, foi adotado o mecanismo da capitação subjacente à afetação da receita de IVA pelas regiões autónomas, o que se repercutiu num aumento destas receitas em 6,9 %. A partir de 2007, em conformidade com as alterações vigentes, a receita do IVA deixou de ser feita por capitação. Esta alteração terá conduzido a uma quebra da receita da Madeira em 22,5 milhões de euros. Com a lei orgânica n.º 1/2010, de 29 de março, são considerados, na definição do valor das transferências, a população, o número de ilhas, e a distância entre a capital do país e o local mais distante, com claro favorecimento dos Açores. Considere-se que o n.º 3 do art. 21.º da lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro, refere que “em caso algum poderá ser adotado um modo de cálculo que origine um menor montante de receitas do que o auferido pelo regime vigente [capitação]”, compromisso corroborado pela redação da alínea a) do n.º 1 do art. 59.º da lei orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro. Daqui resultou, e.g., que a receita de IVA da RAM, em 2007, não poderia ser inferior aos 315,579 milhões de euros. Recorde-se que o compromisso do Orçamento do Estado de 2005, de definição do mecanismo de capitação subjacente à afetação da receita do IVA na RAM, se traduziu num aumento da receita para os cofres da Região em 6,9 %. Com o orçamento de 2007, a cobrança do IVA deixou de depender da capitação para ser o valor de facto cobrado. Há indicações no sentido de um sistema tributário diferenciado para atenuar os custos da insularidade. O art. 5.º do dec. leg. regional n.º 2/2001/M, de 20 de fevereiro, na redação e sistematização dada pelo dec. leg. regional n.º 30-A/2003/M, de 31 de dezembro, estabeleceu a possibilidade de a RAM alterar a respetiva taxa. Em 2004, a taxa de IRC passou de 27 % para 22,5 %. Então, anualmente, o dec. leg. regional que aprovava o orçamento estabelecia a taxa de imposto prevista no n.º 1 do art.º 80 do código do IRC a vigorar na Região. O art.º 2 do dec. leg. regional n.º 3/2001/M, de 22 de fevereiro, na redação dada pelo dec. leg. regional n.º 30-A/2003/M, de 31 de dezembro, consagra a redução das taxas do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares. Anualmente, o decreto legislativo regional que aprova o orçamento estabelece a taxa de imposto prevista no art.º 68 do Código do IRS a vigorar na Região. A crise iniciada em 2011 com a intervenção das autoridades financeiras internacionais e as regras estabelecidas pelo consequente Memorando assinado com a Troika de credores internacionais obrigaram o Governo regional a rever esta situação diferenciada da cobrança do IRC e do IRS, através do dec. leg. regional n.º 20/2011/M. DR 246 série i de 2011/12/26. A plena autonomia tributária e financeira só foi alcançada em 2005. A partir de 2 de fevereiro de 2005, de acordo com o dec.-lei n.º 18/2005, de 18 de janeiro, o Governo regional passou a exercer a plenitude das competências no que concerne às suas receitas fiscais próprias, e a poder controlar todos os atos necessários à sua administração e gestão. Estas mudanças traduziram-se num aumento da receita fiscal. Esta política de maior justiça nas transferências na RAM levou a Assembleia Legislativa regional a estabelecer um grupo de trabalho para apurar as receitas em falta, de forma a ser estabelecido um método de arrecadação, de controlo e de transferência das verbas a que a RAM tem direito. Também foi constituída uma comissão de inquérito para averiguar se os bancos, que têm a sua sede no continente e exercem a sua atividade na Madeira, reportam, de forma devida, as receitas geradas na Região para efeitos de imposto. Os resultados apontaram para uma incorreta afetação da receita fiscal à RAM. Daí a necessidade de sensibilização das entidades que, apesar de terem a sua sede fora da Região, exercem atividade na Ilha a atividade para a necessidade do preenchimento correto dos modelos de entrega dos impostos, nomeadamente IRC, IRS e imposto de selo. No ano seguinte, também por resolução desta Assembleia, foi sugerida a revisão da lei das finanças regionais, prevista para 2001, que, na verdade, só veio a acontecer em 2006, traduzindo-se em perdas para a Madeira. A aluvião de 20 de fevereiro de 2010 levou a que vários artigos desta lei fossem suspensos e que fosse publicada a lei de meios (lei orgânica n.º 2/2010, de 16 de junho), que estabeleceu o financiamento para o apoio e a reconstrução dos danos causados pelo temporal na RAM. Os Fundos Estruturais e o Fundo de Coesão são os instrumentos financeiros da política regional da União Europeia, cujo objetivo é reduzir as diferenças de desenvolvimento entre as regiões e os Estados-Membros, participando, assim, plenamente no objetivo de coesão económica, social e territorial. Existem dois Fundos Estruturais: o FEDER, que apoia, desde 1975, a realização de infraestruturas e investimentos produtivos e geradores de emprego, nomeadamente os destinados às empresas; e o Fundo Social Europeu (FSE), instituído em 1957, que apoia a inserção profissional dos desempregados e das categorias desfavorecidas da população, financiando, nomeadamente, as ações de formação. Para acelerar a convergência económica, social e territorial, a União Europeia instituiu, em 1994, um Fundo de Coesão, destinado aos países cujo PIB médio por habitante é inferior a 90 % da média comunitária. O Fundo de Coesão tem por finalidade conceder financiamentos para projetos de infraestruturas nos domínios do ambiente e dos transportes. Contudo, o apoio do Fundo de Coesão está sujeito a determinadas condições. Se o défice público de um Estado membro beneficiário exceder 3 % do PIB nacional (de acordo com as regras de convergência da União Económica e Monetária), não serão aprovados novos projetos enquanto esse saldo negativo não estiver, novamente, sob controlo. O Fundo Europeu de Desenvolvimento, que é, desde 1959, um instrumento da ajuda comunitária de cooperação no desenvolvimento dos Estados ACP e dos Países e Territórios Ultramarinos (PTU), é estabelecido por cinco anos. Destina-se a promover o investimento e a contribuir para reduzir os desequilíbrios entre as regiões da União. Os financiamentos prioritários visam a investigação, a inovação, as questões ambientais e a prevenção de riscos, enquanto os investimentos em infraestruturas continuam a ter um papel importante, nomeadamente nas regiões menos desenvolvidas. Para o sector primário, existe, desde 1 de janeiro de 2007, o Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER), criado para aumentar a competitividade dos sectores agrícola e florestal, para melhorar o ambiente e a gestão do espaço rural, apoiando o ordenamento do território, e para promover a qualidade de vida e a diversificação das atividades económicas nas zonas rurais. A reforma da Política Agrícola Comum (PAC), de junho de 2003 e de abril de 2004, definiu o FEADER, instituído pelo Regulamento (CE) 1290/2005, para reforçar a política de desenvolvimento rural da União Europeia. O FEADER é, juntamente com o Fundo Europeu Agrícola de Garantia (FEAGA), um dos dois instrumentos de financiamento da PAC que substituem, desde 1 de janeiro de 2007, o FEOGA – secção Orientação, e o FEOGA – secção Garantia, respetivamente. O Fundo Europeu das Pescas (FEP) foi um fundo criado para o período 2007-2013 com o fim de facilitar a aplicação da Política Comum da Pesca e apoiar as reestruturações necessárias ao sector. Em termos de apoios europeus, e no que diz respeito à Região Autónoma da Madeira, é de destacar o INTERVIR+, o Programa Operacional de Valorização do Potencial Económico e Coesão Territorial da RAM, aprovado pela Comissão Europeia, através da decisão C, n.º 4622, de 5 de outubro de 2007, que tem por objetivo assegurar o crescimento da economia regional, o emprego, as políticas de proteção do ambiente, a coesão social e o desenvolvimento territorial. Este programa é cofinanciado pelo FEDER e por RUMOS – Programa Operacional de Valorização do Potencial Humano e Coesão Social da RAM, cuja versão final foi aprovada pela Comissão Europeia em 26/10/2007. Ao nível da RAM, são de considerar o Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central (PIDDAC), que corresponde, no orçamento, à parte referente aos investimentos, e o Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Região Autónoma da Madeira (PIDDAR), a designação formal para a concretização anual da estratégia delineada no Plano de Desenvolvimento Económico e Social (PDES), para o período de 2007 a 2013. No debate político, as questões financeiras continuam a ser o calcanhar de Aquiles da autonomia legislada nos finais do séc. XX. Todavia, deram-se passos significativos no sentido de a Região passar a ter o controlo do sistema financeiro, o que permitiria uma gestão certamente mais racional. A lei n.º 19/83, de 13 de dezembro concedeu uma autorização ao Governo para estabelecer o regime das finanças regionais; porém, a distância em relação à meta final era ainda grande, afirmando-se, no orçamento de 1990, que a Região não controlava as variáveis que afetavam a cobrança, quer dos impostos diretos quer dos impostos indiretos que determinavam a respetiva evolução. Essas variáveis foram fixadas pelas leis do OE, limitando-se a Madeira a receber os respetivos impostos cobrados pelo Estado na Região. A sua previsão, por isso, acabou por ser mais difícil do que seria se a Ilha procedesse à respetiva cobrança. Em vésperas da aprovação da lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro, a lei de finanças das regiões autónomas e o orçamento da Região de 1997 foram usados para argumentar em Lisboa o seguinte: a regionalização, melhorando a eficiência e a equidade das finanças públicas, teria de contribuir para uma melhor performance da economia da Madeira, pelo que o modelo de financiamento dos orçamentos regionais deveria permitir às regiões autónomas aproximarem-se do nível médio de rendimento do continente, da igualdade de oportunidades e da igual qualidade de aprovisionamento de serviços e de bens públicos. A definição das relações financeiras entre o Estado e as regiões autónomas teria assim de ser feita em respeito pela autonomia regional e num quadro do reforço da coesão económica e social nacional e da solidariedade do Estado. A nova centúria pareceu levar um novo alento aos discursos e às práticas financeiras. O orçamento de 2002 alimentou esta esperança, ao afirmar que “o início do processo de regionalização dos serviços de finanças permitirá importante evolução na gestão, controlo e apuramento da receita tributária, possibilitando uma maior arrecadação de verbas. [...] A Região não dispõe ainda de todos os instrumentos que lhe permitam exercer um controle efetivo” (VIEIRA, 20145g, 91). Em 2005, sabe-se da existência de um grupo de trabalho, “tendo em vista o apuramento das receitas fiscais em falta, circuitos de cobrança, controlo, gestão e afetação às regiões, com significativos resultados ao nível de apuramento de montantes por regularizar na correção dos métodos de arrecadação, controlo e transferência de verbas para os cofres regionais”. Foi, ainda, constituída uma comissão de inquérito, na Assembleia Legislativa Regional, “para averiguar se os bancos que têm sede no continente e exercem a sua atividade na Região Autónoma da Madeira entregam aos cofres da Região as receitas fiscais devidas. As conclusões do relatório demonstram, uma vez mais, a não correta afetação da receita fiscal à Região, onde é efetivamente gerada” (VIEIRA, 20145h, 753). Em 2006, de novo em vésperas de uma nova regulamentação das relações financeiras entre o Estado e a Região, denunciava-se o incumprimento do Estado que, no Orçamento de 2006, não assegurava as transferências dos custos da insularidade e desenvolvimento económico, apontando-se responsabilidades a assumir: “O aprofundamento da autonomia em matéria fiscal, revela-se um instrumento de política essencial para que o Governo regional possa prosseguir uma estratégia de desenvolvimento sustentada, promovendo a maximização da eficiência fiscal e adaptando o sistema fiscal a condições cada vez mais específicas da economia regional, num princípio de unidade diferenciada” (Id., Ibid.). O inevitável aconteceu. Em 19 de fevereiro de 2007, pela lei orgânica n.º 1/2007, o Parlamento aprovou a lei das finanças regionais, revogando a lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro. Aqui ficaram definidos os impostos, pertença da Região, e os mecanismos de avaliação do valor das transferências, de acordo com a população. Perante isto, o Governo regional apresentou a sua demissão a 21 de fevereiro, obrigando a novas eleições regionais onde conquistou uma folgada maioria absoluta. Tudo parecia, então, voltar ao princípio, no debate financeiro das autonomias. Ainda de acordo com a portaria n.º 1418/2008, estabeleceu-se a fórmula de apuramento do IVA e a sua transferência em duodécimos. Esta nova situação implicou uma perda de 22,5 milhões de euros em relação ao sistema de capitação de 1998. Ao Estado, coube o direito de 2 % das transferências do IVA, a título de compensação pela utilização dos seus serviços. No caso dos impostos alfandegários, a sua transferência foi mensal. Uma nova alteração desta lei aconteceu pela lei orgânica n.º 1/2010 de 29 de março. O legislador insistiu na ideia de que “a autonomia financeira regional desenvolve-se no quadro do princípio da estabilidade orçamental, que pressupõe, no médio prazo, uma situação próxima do equilíbrio orçamental” (n.º 1, do art.º 6). Isto abriu o assunto para o estabelecimento de regras apertadas relativamente ao endividamento, que passou a estar sujeito a um valor máximo, enquanto as violações passaram a estar sujeitas a penalizações. Para a Região, o enquadramento do Orçamento da Região Autónoma da Madeira foi estabelecido pela lei n.º 28/92, de 1 de setembro. Esta norma orçamental está dependente da que foi estabelecida para o continente no ano de 1991, em matéria orçamental e de execução, tendo-se aplicado supletiva e subsidiariamente as leis gerais da República e, designadamente, a lei do Orçamento de Estado para 1991, com as devidas adaptações.   Alberto Vieira (atualizado a 14.12.2016)

Direito e Política Economia e Finanças

áfrica do sul

A Madeira singrou, a partir de meados do séc. XV, pela sua vocação atlântica, abraçando ambas as margens do oceano e estabelecendo pontes com os diversos portos atlânticos. A rota de aproximação à costa africana, que culmina no cabo da Boa Esperança, começou desde o início da ocupação do arquipélago e prolongou-se até a atualidade, porque a Ilha e as suas populações se embrenharam, de forma direta, neste processo de descoberta dos portos e litoral atlânticos. Sulcámos o oceano à busca do desconhecido e firmámos uma posição de relevo nas rotas oceânicas que ajudámos a criar. Desta forma, desde muito cedo, o cabo da Boa Esperança esteve presente nas aspirações dos ilhéus, na mira do Índico e do Pacífico e das suas riquezas no mar e em terra. Por força disso, foram-se estabelecendo laços entre a Cidade do Cabo e esse cabo. Desta forma, construiu-se o mundo e as rotas do Atlântico, apostando na importância destes dois pilares, já no séc. XVI. Esta ancestral ligação permaneceu quase até ao séc. XX, com a chamada rota do Cabo e a sempre presente visibilidade dos chamados vapores do Cabo, no porto do Funchal.   Do Funchal ao cabo da Boa Esperança O relacionamento da Madeira com a África do Sul vem dos tempos do descobrimento da costa africana até ao cabo, que implicou um envolvimento direto da Ilha e dos madeirenses, servindo o Funchal, muitas vezes, de base de apoio a essas viagens. Em 1488, Bartolomeu Dias abriu um caminho para o chamado cabo e, desde então, tornou-se notada a presença portuguesa nestas paragens. Todavia, o primeiro português documentado como emigrante no cabo surge apenas em 1722, não havendo, porém, qualquer referência à data da sua chegada. Apenas podemos afirmar com segurança que, nos princípios do séc. XX, a comunidade portuguesa era significativa e que, em 1904, os madeirenses assumiam uma posição maioritária. O facto de os Ingleses ocuparem a Cidade do Cabo aos Holandeses, em 1795, abriu ainda mais as portas a este novo destino para os madeirenses emigrantes e às ligações que se seguiram com o Funchal. Tenha-se em atenção que, entre 1652 e 1784, se desencadeou uma guerra marítima entre Ingleses e Holandeses pela posse dos mares e que esta incluiu a Cidade do Cabo, porto para a entrada no Índico e no Pacífico. Daí o Ato de Navegação de Oliver Cromwell, de 1651, o primeiro testemunho dessa estratégia imperial inglesa, que também amarrou a Madeira à Cidade do Cabo. Para os britânicos, a perda da América do Norte, em 1776, levou a buscar alternativas no Índico e no Pacífico e, para que elas se concretizassem, era preciso controlar a porta de acesso a esse mundo que estava em poder dos Holandeses. A conquista da Cidade do Cabo foi, assim, o início da afirmação de uma nova rota comercial que marcou a vida dos britânicos e da Ilha por muito tempo. Até à déc. de 60, na Ilha, era usual a designação “vapores do cabo” para identificar os navios da Royal Mail Steam Packet Company que, frequentemente, escalavam a Madeira. Estas escalas são uma referência no quotidiano dos madeirenses e eram também a possibilidade de muitos deles encontrarem outros destinos de emigração ou um caminho mais fácil em direção à Inglaterra. Esta rota comercial foi a ponte para a afirmação da comunidade madeirense na África do Sul, nomeadamente, na Cidade do Cabo, em Pretória e Joanesburgo. Os britânicos fizeram do porto madeirense uma peça estratégica na navegação atlântica e no domínio da colónia. O Funchal era quase escala obrigatória para as embarcações do Cabo, Índia e Antilhas, relacionada com a disponibilidade do vinho para o abastecimento dos navios e do comércio nas praças de destino. A rota do Cabo era, assim, uma rota consolidada na história da Madeira que só a plena aviação comercial destronou. Para além desta rede de rotas oceânicas, que estabelecem um vértice importante na Madeira, com a plena afirmação da máquina a vapor, outros vínculos importantes amarram a Madeira à África do Sul. Com o advento das comunicações por cabo submarino, a Ilha voltou a cumprir uma missão importante nesta ponte atlântica. Assim, em 1901, tivemos o cabo submarino da Eastern Telegraph Company, que ligava a Inglaterra ao cabo, com pontos de amarração na Madeira e em Cabo Verde. Tenha-se em conta que a conjuntura da primeira metade do séc. XX é favorável ao rápido desenvolvimento da telegrafia sem fios (TSF). A Primeira Guerra Mundial (1914-1919), os conflitos militares isolados, como os que aconteceram com os boers na África do Sul, criaram a necessidade de um rápido e eficaz sistema de comunicações, só possível com a TSF. A utilização, a partir de 1905, do rádio nas comunicações militares e a acuidade destes conflitos, nos primeiros decénios do séc. XX, traçaram o caminho para a plena afirmação das comunicações via rádio. Foi Marconi quem, durante a guerra, divulgou, no seu país, o serviço de telegrafia e telefonia e, no que diz respeito à Madeira, impulsionou a propagação dos serviços de TSF no espaço atlântico, prestando um inestimável serviço às colónias inglesas e à África do Sul. Não obstante, o serviço do cabo submarino persistiu até a atualidade. A 16 de outubro de 1927, a Western Telegraph Company encerrou o seu Hotel e escola em Santa Clara. O cabo submarino precisava, contudo, de ser substituído, dada a sua idade e os constantes reparos a que fora sujeito em 1928, 1931, 1933, 1934, 1936. O seu desaparecimento foi protelado em 1929, com o estabelecimento de um pacto de colaboração entre as duas companhias. Mas, aos poucos, a companhia do cabo submarino foi perdendo o controlo da exploração no espaço português: em 1943, era estabelecido um acordo telegráfico com o Brasil que dava uma posição privilegiada à Marconi, enquanto no acordo celebrado entre o governo português, a The Western Telegraph Company e a Cable and Wireless Limited, em 4 de abril de 1969, não lhe é concedido qualquer exclusivo. Portugal reservava-se o direito de estabelecer e explorar, diretamente ou mediante concessão, outro cabo submarino ou quaisquer outros sistemas de telecomunicações. Vingou a última situação com a concessão daquele direito à Marconi, a 11 de agosto de 1966, de que resultou a inauguração da estação de cabo submarino de Sesimbra, que estabelecia a ligação entre Londres e a África do Sul. A segunda fase de concessão, iniciada em 1956, é definida pelo recurso a novos e mais adequados meios de comunicação. Este serviço (Sat-1), inaugurado a 18 de fevereiro de 1969, divergia para uma ligação de Londres a Portugal e à África do Sul, num comprimento total de 10.787 km e com capacidade para 360 circuitos, atingido o limite da sua utilização em 1978. Ao longo do percurso, estabeleceram-se três amarrações (Tenerife, Sal e Ascensão). Seguiram-se outros que estabeleceram a ligação com a Madeira (1971), França (1979), Portugal/Senegal/Brasil (1982), Marrocos (1982) e África do Sul (1992). A 8 de março de 1990, foi assinado um acordo de intenção, subscrito pela Companhia Portuguesa Rádio Marconi, Correios e Telecomunicações de África do Sul, France Telecom, Telefónica de Espanha, British Telecom, Bundespost Telekom. O cabo de fibra ótica Sat-2, cuja inauguração teve lugar a 28 de abril de 1993, surge em substituição do Sat-1. O Sat-2 vai ligar o continente à Madeira, Canárias e África do Sul, numa extensão de 9000 km e com capacidade para 15.000 circuitos bidirecionais e 30 canais de televisão, sendo avaliado em 30.000 contos. Este meio veio propiciar, ainda, aos 20.000 assinantes da rede telefónica da Madeira o acesso telefónico direto à Europa e a alguns países da África e da América, uma maior aproximação entre os madeirenses residentes na Ilha e aqueles que se encontram emigrados nos mais diversos destinos. Neste contexto, merece referência um acontecimento prévio, a inauguração, a 20 de fevereiro de 1984, das ligações telefónicas diretas com a Venezuela e África do Sul. Esta ligação direta abrangeu mais de 70 países, graças ao Centro de Telecomunicações, capaz de corresponder a esta realidade. Aberto em 25 de setembro de 1992, o Centro passou a coordenar toda a atividade da empresa em termos do tráfego dos cabos submarinos de fibra ótica e transmissão digital (Euráfrica, Sat-2, Columbus-2, Inland), rede móvel e satélites. Esta infraestrutura concentra todos os serviços que estavam dispersos pelo Porto Novo, Garajau e Funchal. Aí está instalada a nova estação de cabos submarinos dos sistemas Euráfrica e Sat-2. A inauguração do Centro foi feita em simultâneo com a do cabo submarino internacional Euráfrica, à qual se seguiria a do cabo Sat-2. Este último é o maior cabo submarino do Atlântico e o terceiro no mundo. Deste modo, a Ilha continua a ser, por diversas formas, um pilar importante no mundo atlântico. Navegação e comércio Múltiplas e variadas razões fizeram com que o Funchal se afirmasse, a partir do séc. XVIII, como centro das transformações sociopolíticas operadas de ambos os lados do oceano. O arquipélago da Madeira não podia alhear-se das mudanças políticas geradas pela difusão de novas ideias, na segunda metade de Setecentos. O seu protagonismo deve-se a vários fatores: a vinculação ao império britânico, que é evidente no quotidiano e devir histórico madeirenses dos sécs. XVIII e XIX, o fogo cruzado que se ateou entre o velho e novo mundo e o papel ativo da Madeira no relacionamento com a comunidade inglesa. No decurso do séc. XVII, o arquipélago firmou a vocação atlântica, contribuindo para isso o facto de os Ingleses não dispensarem os portos e os vinhos insulares na sua estratégia colonial. Os atos de navegação de 1660 e 1665, corroborados por tratados de amizade como o de Methuen (1703), abriram caminho para que as ilhas entrassem na órbita da influência inglesa. Aos poucos, a comunidade ganhou uma posição, por vezes incómoda, na sociedade madeirense. A feitoria inglesa é uma realidade insofismável no séc. XVIII e contribuirá para firmar a vocação e protagonismo atlântico do porto do Funchal. A partir da déc. de 70 do séc. XVIII e até aos princípios do século seguinte, os conflitos que tiveram como palco os continentes europeu e americano alargaram-se ao Atlântico. Aliás, o oceano é um ativo protagonista das disputas entre os três principais beligerantes: Espanha, França e Inglaterra. Era permanente a preocupação com a organização militar e a defesa da costa, porque o perigo espreitava no mar a qualquer momento. A conjuntura de afrontamento levou à presença dos corsários, com forte incidência em dois momentos: o período que decorre entre 1744 a 1736, marcado pelo afrontamento de Inglaterra com a França e Espanha; a época das grandes transformações do século, com a proclamação da independência das colónias inglesas da América do Norte (e a consequente Guerra de Independência, até 1783) e a Revolução Francesa em 1779, com as convulsões que se seguiram até 1815. A dimensão assumida pela guerra de represália está bem patente nas presas. Perante o perigo da investida francesa, os Ingleses ocuparam a Madeira por duas vezes, sendo esta atitude entendida como uma forma de preservar os interesses dos “súbditos de sua majestade” e de estabelecer uma barreira ao avanço francês além oceano. O corso, que incidia preferencialmente sobre as embarcações espanholas e francesas, motivou uma resposta violenta das partes molestadas, como sucedeu com a investida francesa contra os Ingleses em 1793, 1797, 1814. A afirmação e controlo vital da vida económica e das relações externas levaram à conquista de novas regalias e a afirmação no plano político, por meio de tratados ou de uma interessada ligação, às autoridades da Ilha e do país. A feitoria, ao nível local, as autoridades consulares, no reino e na ilha, conjugavam-se para o mesmo objetivo. A situação dos Ingleses era especial. Desde o séc. XVII, a feitoria inglesa definiu um estatuto à parte para a comunidade, que lhe permitia ter conservatória e juiz privativo. O espírito de união da feitoria, que persistiu até 1842, favoreceu a posição na sociedade madeirense e demarcou o fosso com os naturais da Ilha. Com o tratado de 1661, abriram-se, de novo, as portas para o domínio inglês do mercado insular, mercê de medidas de privilégio e da isenção dos direitos de exportação do vinho. Em 1689, foi-lhes concedida a faculdade de se fixarem com casas comerciais de vinho, comestíveis e manufaturas, fazendo entrar na Ilha os artigos de luxo. Com o Tratado de Methuen, em 1703, pôs-se cobro à situação criada em 1684, ao mesmo tempo que se afirmou a dependência do mercado local ao mercado inglês. Os portugueses tornaram-se consumidores dos panos ingleses e fornecedores de vinho ao mercado inglês. Segundo A. R. de Azevedo, o Tratado trouxe para a Madeira a mais apertada vassalagem ao mercantilismo britânico. Daí que a entrada da África do Sul na órbita colonial inglesa se assuma como algo importante para a Madeira. Desde as últimas décadas do séc. XVIII que temos notícia da exportação do vinho para o Cabo da Boa Esperança: em 1792, são 6 pipas e, em 1796, tivemos 18 pipas. Depois, entre 1823 e 1847, apenas 41 pipas de vinho foram carregadas por João Cairns, Diogo Bean, João Caetano Jardim, Scott Pringle With & Ca., Richard Dover, Newton Gordon Murdoch & Scott, Grouth & Holway. Outra informação avulsa aparece no séc. XX (nos anos de 1904, 1905, 1907 e 1912), destacando a solicitação de vinho para Durban, entre 1904 e 1907, num total de 1 quartola, 32 quartos e 36 caixas de vinho Madeira. Como se pode verificar, não era um mercado muito significativo em termos do consumo do vinho Madeira, tanto mais que, a partir do séc. XVII, com os huguenotes franceses, esta cultura chegou ao cabo da Boa Esperança. E, no decurso do séc. XIX, teve um incremento significativo com os Ingleses. Mesmo assim, parece-nos que esta situação não foi concorrencial com o vinho Madeira. É provável que as ligações entre a vinha e o vinho da África do Sul e da Madeira, tendo em conta as constantes e permanentes ligações que existem entre os portos do Funchal e do Cabo, a partir de finais do séc. XIX. Várias famílias inglesas, como os Blandy, com ligações à Ilha, mantêm ligações frequentes com a Cidade do Cabo. Por outro lado, sabemos que, em 1906, seguiram duas grades de bananeiras para o Natal. O mesmo poderia ter sucedido com as parreiras. Esta atividade comercial com o cabo da Boa Esperança não se limita ao vinho e alarga-se a uma diversidade de produtos, alguns apenas com destino a este porto. Disto nos fala Michael Comport Grabham (1840-1935), casado com Mary Anne Blandy (1834-1914): “Exportam hortaliças verdes em grande quantidade, as bananas formam um negócio importante; e é tal procura de ovos para o cabo de Boa Esperança, que esta pequena mas admiravelmente fértil Ilha, chega a produzir e empacar, em cesto indígenas, muito bem feitos, e exportar mais de 200.000 ovos por semana, para povos distantes inúmeras léguas” (GRABHAM, 1901, 29). Sobre os ovos, situação excecional nas exportações madeirenses, temos testemunho nas exportações da Alfândega entre 1904 e 1907, com a saída de 9321 cestos com ovos, o que deverá corresponder a cerca de 225.000 ovos. Note-se que este mercado da África do Sul foi ainda abastecido com fruta, figos e peros. Dos primeiros, temos a saída, em 5 de janeiro de 1905, de cinco caixas de figos, que, nesta altura, só podem ser secos. Surge ainda a fruta madura da Ilha, fundamentalmente pêros – tivemos, em 1904, 1905, 1906 e 1912, 1029 caixas e 139 cestos. São referidas, em 1904, 1905, 1906 e 1912, 1431 cestos e 4116 caixas de fruta. Para a alimentação, temos, em 1904, a saída de 1210 caixas e 100 grades de cebola e 52 caixas de alhos, que, pela informação que temos de Demerara, deveria ser para a alimentação dos madeirenses, que atribuíam grande valor a estes ingredientes na sua dieta alimentar nesta época. A partir do séc. XIX, a navegação oceânica ganha um estatuto distinto, através da afirmação das companhias de navegação, que passaram a assegurar um serviço regular de passageiros e carga entre diversos destinos europeus e o espaço colonial. Para garantir esta regularidade dos serviços, surgiram os agentes que, nos diversos portos, funcionavam como intermediários e prestavam todo o apoio necessário às embarcações. É por parte da Inglaterra que vamos ter o maior número de companhias a navegar com regularidade entre os portos ingleses (Southampton, Bristol, Liverpool, Manchester, Edimburgo, Glasgow, Dublin) para o cabo da Boa Esperança, Natal, e África Oriental. A partir de 1943, os vapores da Union Castle servem os portos de Southampton e Durban, com escalas em ambos os percursos no Funchal. Com a guerra, perdeu 6 dos 26 vapores, mas, em 1953, aparece com 6 novos vapores, com peso superior a 20.000 t. Quase todos os vapores provenientes destes portos faziam escala obrigatória na Madeira e, para alguns, acontecia uma segunda nas Canárias. Desde meados do séc. XIX, é de assinalar o serviço regular dos navios da Royal Mail Steam Packet, conhecidos na Ilha como “mala real”, que permitiam não só o serviço regular com a Grã-Bretanha, mas também com Portugal, fazendo escala em Lisboa. Nos finais do séc. XIX, temos várias companhias de navegação com um serviço regular de embarcações entre os diversos portos da Europa. O movimento destas embarcações entre a Madeira e o cabo é uma grande oportunidade para os madeirenses. A imprensa regozijava-se com esta presença, de forma que, a 4 de novembro de 1897, o Diario de Noticias afirmava, com a passagem do Hawrden Castle, que “uns foram até ao Monte e outros andaram em carros ou a pé visitando diversos pontos da cidade e fornecendo-se d’artigos da nossa indústria” (DN, 4 nov. 1897). Assim, para a Ilha e para os madeirenses, esta era uma nova via que se abria, da qual a Madeira tirava grandes vantagens. Primeiro, com a abertura de mais um destino fácil de emigração, depois, pelas oportunidades de negócio, nomeadamente com os passageiros em trânsito que adquiriam bordados e obras de vimes. Havia, inclusive, muitos passageiros em trânsito que permaneciam alguns dias no Funchal. No dia 21 de abril de 1906, houve 570 passageiros em trânsito, no vapor Walmor Castle e, a 10 de maio de 1910, foram outros 602 passageiros, do Balmoral Castle, na mesma situação. Muitas das principais famílias britânicas residentes na Ilha tiveram ligações à África do Sul, como foi o caso dos Blandy, dos Hinton e dos Phelps. Entre finais do séc. XIX e princípios da centúria seguinte, a economia foi muito valorizada com esta nova demanda de produtos pelos forasteiros, mercadoria muitas vezes oferecida a bordo, através dos chamados bomboteiros, que tiveram um papel muito importante no acolhimento a estes forasteiros. Pelas suas mãos saíram todo o tipo de bordados e obras de vimes, produtos que acabaram por estar limitados pelas barreiras alfandegárias nos portos de destino. Em 1928, passou a existir uma taxa portuária, no valor de 3 a 7 xelins, para produtos saídos, como cadeiras ou sofás de vime, provocando uma reação veemente da Câmara de Comércio e Indústria da Madeira (ACIF/CCIM), em 23 de janeiro. Este comércio de obras de vime era frequente com a África do Sul desde finais do séc. XX, registando-se a saída de 96 t no ano 1896. Depois disso, entre 1904 e 1912, aparecem registos sobre a exportação de vime e obras de vime. Assim, temos 111 molhos de vime, em 1411 atados de obras de vime e 3050 volumes em obra de vime. Este movimento, nomeadamente com a Cidade do Cabo, transformava a vida do Funchal, que vivia quase exclusivamente para o porto. Os jornais anunciavam diariamente tudo o que deveria acontecer, relativamente ao movimento de navios na baía e todos os madeirenses estavam avisados do movimento dos vapores do cabo. O Funchal assumiu o papel de antecâmara das colónias europeias, recebendo todos os que circulavam nos dois sentidos. Dizia-se até que todos os que estavam de regresso à metrópole não dispensavam esta paragem de alguns dias para se habituarem ao clima europeu. E a Madeira é exímia na arte de bem receber, de forma especial, aristocratas e políticos. Em 1906, o Gen. Louis Botha; o príncipe Alberto, que depois foi rei da Bélgica, em viagem ao cabo da Boa Esperança e ao Estado Livre do Congo, em 30 de abril de 1909. São inúmeros os casos dos britânicos que transitaram entre os dois portos e que aproveitaram o intervalo da paragem dos vapores para visitar o Funchal e serem mimoseados pela população e autoridades. Não devemos esquecer que o Funchal tinha uma função importante de apoio e abastecimento à navegação com o fornecimento de água, víveres frescos, vinho e carvão, a partir de meados do séc. XIX. Segundo Biddle, o Funchal era “uma importante estação de abastecimento de carvão para a maior parte das linhas dos navios de Inglaterra e do continente europeu para a África do Sul” (BIDDLE, 1896, 101). Sabemos que alguns madeirenses participaram como fogueiros a bordo destes vapores. Em agosto de 1915, regressaram à Ilha 14 fogueiros do vapor Walmer Castle, sendo rendidos no Funchal por outros 14. Os primeiros vapores a sulcarem os mares da Madeira com serviço regular organizado foram os da referida Mala Real Inglesa, como indicámos, a Royal Mail Steam Packet Company, com destino às Índias Ocidentais, e os da Union Castle Mail Steamship Company. O primeiro serviço de abastecimento de carvão no Funchal foi montado, em 1838, pelos Ingleses Jacob Ryffy e Diogo Taylor. A partir da déc. de 70 do séc. XIX, consolidou-se o predomínio da navegação a vapor nas rotas transatlânticas, sendo imprescindível o serviço de abastecimento de carvão. Assim, surgiram empresas apostadas neste serviço, primeiro, a firma Blandy Brothers, depois, em 1898, a Cory Brothers Co. Limited e, em 1901, a firma Wilson Sons C. Limited. Mas, a partir de princípios do séc. XX, os barcos da África do Sul passam a abastecer-se, no Natal, de carvão das minas sul-africanas, não precisando escalar o Funchal no retorno, o que se refletiu, de forma negativa, na Madeira. Mesmo assim, isto não se espelhou no movimento de passageiros em escala, tendo-se mesmo atingido, no período de 1902 a 1909, o maior valor de escalas, com 126.000 passageiros contabilizados entre 1906 e 1909. Emigração e retorno A emigração madeirense orienta-se de acordo com os laços comerciais e de navegação definidos para a Ilha. O facto de a Madeira ser uma base de apoio de grande importância para o império colonial inglês, desde o séc. XVII, dita que seja nesse sentido que se orientam muitos dos destinos dos emigrantes madeirenses. As portas estão abertas e os aliciadores da emigração clandestina atuam de acordo com estes destinos, que são os mais proveitosos. Por outro lado, há uma política favorável e incentivadora por parte das autoridades inglesas. Mesmo assim, continua a existir emigração clandestina e a utilização de Lourenço Marques como passagem com destino a África do Sul. Em janeiro de 1897, foram detidos, no vapor Trojan, seis madeirenses, todos naturais do Estreito da Calheta. Em setembro de 1903, um outro indivíduo da Ponta do Pargo e dois da Calheta foram repatriados pelo vapor Norman por terem embarcado de forma clandestina. Depois, em julho de 1904, há notícia de que um madeirense, cabo de polícia em Lourenço Marques, arranjava, por 5 a 30 libras, passaportes falsos para a saída de madeirenses para o Transval, tendo-se descoberto a situação. Em julho de 1911, um outro madeirense, com 12 anos de idade, foi expulso do Cabo por aí estar estabelecido com “casa suspeita”. O recrutamento de emigrantes contou com o apoio do Governo Civil e dos consulados no Funchal, que atuavam como angariadores de potenciais emigrantes, sendo uma constante no séc. XIX. A presença madeirense alargou-se também a outros quadrantes, sendo de salientar a África do Sul e Austrália. No primeiro caso, a vinculação portuguesa é muito antiga, remontando à viagem de Vasco da Gama, mas foi a partir do séc. XVIII que tivemos notícia dos primeiros portugueses na Cidade do Cabo. No séc. XIX, a rota regular dos vapores do cabo que escalavam o Funchal permitiu a definição de um novo rumo para a emigração madeirense. Esta presença torna-se mais notada a partir de 1904, no sector da pesca, mas foi nos anos 50 que este destino ganhou dimensão significativa. Entretanto, de janeiro a junho de 1977, temos a informação de um pedido de pescadores madeirenses para a safra do atum. Os livros de passaporte, de que temos registo desde 1872 até 1915, testemunham os pedidos de passaporte por parte de 962 madeirenses (362 entre 1872 e 1900 e de 600 entre 1901 e 1915), o que revela ter havido uma forte incidência de pedidos nos primeiros anos do séc. XX. As solicitações são feitas a partir do Estreito da Calheta, Calheta, Prazeres, Fajã da Ovelha, Jardim do Mar, Canhas, Paul do Mar, Ponta do Sol, Ponta do Pargo, R. Janela, Porto Moniz, Machico, Gaula, Estreito de Câmara de Lobos, Caniço, Boaventura, Camacha e das diversas freguesias do Funchal (Monte, São Gonçalo, São Pedro, Santa Maria Maior). A partir de 1878, houve diversos cidadãos sul-africanos que pediram o passaporte, por razão da sua estância temporária, em escala, na Ilha. O primeiro que temos registado é “Mrs. Duncan”. No séc. XIX, a maioria dos registos é para o cabo da Boa Esperança; apenas em 1896 há registos de outros locais, em concreto, Natal e, em 1900, Durban. A partir de 1901, passa a definir-se o destino como África do Sul, surgindo ainda outros: Transval (1910-1916), novamente Natal (1902-1915) e Durban (1900, 1912). Em 1901, saíram Agostinho de Agrela Helena, Francisco Gomes, Agostinho Ferreira Neto, Domingos Teixeira, Francisco Gonçalves Cabeleira, João da Câmara, João Rodrigues Faias, João de Sousa Júnior, João Sardinha Branquinho, Manuel Afonso Jardim, João Fernandes Camacho, António de Agrela, João Rodrigues Faias, Agostinho Ponte Santo António, João Rodrigues Jardim, João Nunes e outro com o mesmo nome, também do Paul do Mar, Manuel de Agrela, Manuel Ferreira Gomes, Manuel de Agrela Rei Júnior, Manuel Correia e sua mulher Philley Correia, Manuel Ferreira Ferro, Manuel Gonçalves Borrageiro, Manuel Gonçalves da Costa, Manuel Gonçalves Guerra, Manuel Rodrigues Sequeira, Manuel de Sousa Alegria, António de Abreu Pestana, Maria Elisa Figueiroa Silvado, Ilda, sobrinha de D. Maria Elisa Rodrigues, Tomé António de Abreu, Maria da Conceição de Sousa, Olímpia Fernandes, Manuel dos Santos da Câmara, Agostinho Joaquim com sua mulher Narcisa Joaquina, António de Abreu Pestana, António de Agrela, António Fernandes Pateta. O maior número destes é da Calheta e Estreito da Calheta, o que parece indiciar uma emigração em grupo, que poderá ter, na origem, algum angariador. Temos informações de que o mesmo nome Agostinho de Agrela Helena, denominação pouco vulgar, surge, em 1903, a pedir autorização para embarcar, de novo, com destino ao cabo da Boa Esperança e, em 1907 e 1912, para os EUA e, em 1909, para o Brasil. Por outro lado, assinala-se o número dos oriundos do Jardim do Mar e Paul do Mar, o que poderá ser indiciar o facto de se terem dedicado à atividade piscatória, contribuindo para a importância dos madeirenses neste sector. Surgem ainda informações de que, neste grupo, se inclui gente da Ponta do Sol, Ponta do Pargo, Prazeres, Caniço e Fajã da Ovelha. Para o período de 1872 a 1915, temos uma emigração madeirense de origem diversificada, não obstante com forte incidência no Estreito da Calheta, com 178 pedidos, seguido de Prazeres, com 79 e Fajã da Ovelha, com 74. Para o período de 1872 a 1900, este movimento parece ter apenas como destino o cabo da Boa Esperança, pois, dos 260 pedidos de passaportes, só 2 foram para Durban, em 1900. Já no novo século, foram pedidos passaporte para a República Sul-Africana: o destino do Cabo continua a ser maioritário, mas temos 27 pedidos para Natal (1902, 1906, 1911, 1913, 1914 e 1915), 4 para Joanesburgo/Transval (1911 e 1913), 29 para Transval (1906, 1911, 1912, 1913 e 1914) e 1 para Durban (1912). Alguns episódios marcaram esta emigração entre finais do séc. XIX e princípios do seguinte. A 17 de outubro, saiu do Funchal, a bordo do vapor Scott, Maria Júlia Rodrigues, para se juntar ao marido no Cabo, mas, um dia antes da chegada, atirou-se ao mar e morreu. No mesmo sentido, a 27 de dezembro de 1905, António Baptista, após sete anos na África do Sul, decidiu fazer uma surpresa à família, mas, ao chegar a casa, encontrou a esposa morta, tendo o falecimento ocorrido momentos antes. Desde princípios do séc. XX que se tornou notória a presença da comunidade madeirense na África do Sul, nomeadamente em Pretória e Joanesburgo. Os madeirenses tiveram uma função importante na pesca e na agricultura. No primeiro caso, dominaram o mercado de tunídeos e de lagosta, enquanto no segundo detiveram o controlo dos produtos hortícolas. Sempre foram a comunidade mais representativa dos portugueses, constituindo mais de metade dos emigrantes, o que lhes permitiu antes e ainda no começo do séc. XXI uma posição importante na sociedade. O P.e Mário José Lobo de Matos, natural da Contenda e falecido em 1988, foi secretário de D. Teodósio Clemente de Gouveia, arcebispo-bispo da Arquidiocese de Lourenço Marques, teve um papel importante no apoio aos gauleses que pretendiam emigrar para a África do Sul, conseguindo os vistos e os contratos de trabalho necessários. Foi ainda administrador da igreja de S.to António dos Portugueses em Benoni, Joanesburgo. Os dados oficiais disponíveis atestam a evolução destes rumos da emigração madeirense após a Segunda Guerra Mundial e evidenciam que os destinos se diversificaram, de acordo com a demanda de mão de obra e as oportunidades oferecidas pelos principais mercados de trabalho. No caso da África do Sul, tivemos 2526 saídas entre 1945 e 1949; 5118, entre 1950 e 1959; 579, entre 1960 e 1969; 683, entre 1970 e 1979.   Casa da Madeira em Pretoria com Miss Comunidades A presença madeirense fica assim mais clara no período posterior à Segunda Guerra Mundial. A déc. de 50 do séc. XX foi o momento de consolidação desta comunidade. A atestar a importância da mesma, evoca-se a digressão do Grupo Folclórico da Camacha, em 1965, junto das comunidades. A grande concentração de madeirenses, e também de continentais, acontece em Joanesburgo, Benoni, Boksburg, Brakpan, Germiston, Kempton Park, Krugersdorp, Randburg, Randfontein, Roodepoort, Springs, mas também na Cidade do Cabo, Pretória, Durban, Vanderbijlpark, Welkom, Vereeniging, Bloemfontein, Port Elizabeth, Klersdorp, Witbank, East London, Sasolburg, Harrissmith, Saldanha Bay, Kimberley, Pietermaritzburg, Nigel, Heidelberg. Por força da importante comunidade emigrante madeirense, também se desenvolveram, contactos políticos. Aliás, esta relação é antiga, sendo tradição das autoridades de passagem pela Ilha fazerem um visita de cortesia ao governador civil, no palácio de S. Lourenço. Em 26 de dezembro de 1900, lord Roberts, ao comando de uma expedição para dominar o Transval, fez essa visita. Já em 1812, o Gen. Robert Meade, que estava com uma força militar na Ilha, por ser nomeado governador do Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, saíra da Madeira para o seu cargo, que ocupou em 1813.   Encontro de responsáveis do Governo Regional da RAM com um representante da Comunidade Madeirense na África do Sul   A partir de 1964, houve uma tentativa de aproximação comercial, que trouxe à Madeira, em 1972, o secretário do embaixador. Os principais produtos que asseguraram as relações comerciais foram o bordado e a obra de vime. Depois, a partir de 1976, o Governo Regional tomou especial cuidado no relacionamento com a África do Sul, no sentido de preservar a comunidade. Foi neste sentido que se estabeleceram relações com as autoridades desse Estado. Em 13 de novembro de 1986, o presidente sul-africano, Pieter Botha e o seu ministro dos negócios estrangeiros, Pik Botha, fizeram uma visita algo tumultuada à Madeira. Depois, em 2000, Pik Botha representou o governo sul-africano na inauguração das obras do aeroporto da Madeira. Recorde-se que o Gen. Louis Botha (Greytown, hoje no KwaZulu-Natal, 27 de setembro de 1862-Pretória, 27 de agosto de 1919) e família, em maio de 1907, estavam de passagem no Funchal, rumo à Inglaterra, tendo sido bem recebidos pelas autoridades e visitando a freguesia do Monte, no intervalo da paragem do vapor. Muitos madeirenses tiveram sucesso naquele país e conseguiram o tão ambicionado pecúlio para retornar à Ilha e viver em condições. Outros escolheram lá ficar e adaptaram-se às mudanças sociais e políticas ocorridas na mudança para o séc. XXI. De entre estes emigrantes, felizmente muitos tiveram sucesso, mas aqui destacamos apenas alguns. Joe Berardo (José Manuel Rodrigues Berardo, nascido em 1944) que, aos 18 anos, emigrou para a África do Sul, radicando-se na cidade de Joanesburgo, onde se dedicou à atividade comercial e industrial. Aí ergueu e dirigiu o grupo Egoli Consolidated Mines Ltd., que congregava diversas explorações mineiras de ouro, a partir de recuperação em areias auríferas, transformando-se rapidamente numa das 100 maiores empresas sul-africanas. Na sua quinta do Monte possui, desde 1988, no Jardim Tropical Monte Palace, uma coleção de cicas da África do Sul, onde estão representadas 60 espécies. Em 1986, Joe Berardo regressa à Madeira, envolvendo-se em múltiplas atividades, como o turismo, os tabacos ou os vinhos, com o mesmo sucesso. Evidenciou-se como colecionador de arte, dispondo de uma coleção de mais de 40.000 obras, que está exposta, desde 2007, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa e no Sintra Museu de Arte Moderna Colecção Berardo. Em 1985, recebeu o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Os Sousa Pestana são uma família com forte implantação no turismo nacional e madeirense que também teve o seu início na emigração para a África do Sul: Manuel Sousa Pestana (1919-2005) emigrou para Joanesburgo, onde conseguiu os proventos para erguer, a partir da Madeira, o seu império na área do turismo. Destacamos, por fim, José Alfredo Quintal, mais conhecido por Joe Quintal, fundador do Club Sport Marítimo de Joanesburgo, da Casa da Madeira e da Academia do Bacalhau, e conselheiro das comunidades madeirenses. As questões que envolvem o apartheid não tiveram implicações na comunidade madeirense e, mesmo depois de 1990, não foram visíveis situações de conflito com essa comunidade. Os problemas sociais que aí sucederam foram comuns a todos. Nas áreas de maior concentração de portugueses (na Cidade do Cabo, Port Elizabeth, Pretória, Durban, Pretória e Joanesburgo), temos diversas associações de emigrantes portugueses onde os madeirenses conquistaram um lugar de relevo. A mais conhecida e já referida, a Academia do Bacalhau, surgiu em 1960, sendo uma referência para a comunidade portuguesa. Ainda podemos salientar algumas associações, como o Club Sport Marítimo de Pretória, o já mencionado Club Sport Marítimo de Joanesburgo, a Casa Social da Madeira (Pretória), o Grupo Folclórico Madeirense de Joanesburgo, a Casa da Madeira de Joanesburgo, a Associação Familiar Pérola do Atlântico, Representante da Comunidade Madeirense de Natal (Durban). A viragem no processo da emigração madeirense aconteceu na déc. de 70. As mudanças políticas resultantes da revolução do 25 de Abril de 1974 conduziram à valorização do espaço socioeconómico da Ilha, condicionando a emigração. As mudanças políticas ao nível mundial, a situação dos habituais mercados recetores de mão de obra madeirense, em contraste com a melhoria das condições de vida na Ilha, fizeram com que o madeirense buscasse o Eldorado na sua própria terra e que muitos regressassem. Primeiro, foram os chamados retornados, das ex-colónias e, depois, os da Venezuela e África do Sul. Esta rota marítima que ligava a Madeira à África do Sul foi muito importante para estabelecer uma aproximação entre as duas regiões e permitir o transplante de inúmeras flores, muitas delas por iniciativa da comunidade inglesa. Em sentido contrário, tivemos o envio, em 1906, de bananeiras para o Natal e certamente algumas das vinhas do cabo não são alheias à Madeira. Na passagem para o séc. XXI, a riqueza das flores da Ilha deve muito a essa situação. Segundo o inventário de Rui Vieira, temos as seguintes: agapanthus praecox e agapanthus africanus (L.) Hoffmgg. ou agapanthus umbellatus L´Hérit. (agapantos, coroas de henrique); aloe arborescens, aloe ciliaris, aloe plicatilis, aloe arborescens Mill. (aloés, babosa, foguete-de-natal); amaryllis belladonna L.; antholyza aethiopica L. ou chasmanthe aethiopica (L.) N.E.Br.; arctotis stoechadifolia Berg.; asystasia bella; banksia integrifolia; bolus hy br.; calodendrum capense Thunb. (castanheiro do Cabo); carissa grandiflora A.DC.; gerbera jamesonii; clivia miniata e clivia nobilis (clívias); dombeia nyuica; encephalartos trispinosus e encephalartos transvenosus; eriocephalus africanus (alecrim da virgem); erythrina lysistemon (coralina cafra); euphorbia cooperi (eufórbia) e euphorbia ingens (eufórbia gigante); iboza riparia; kniphofia uvaria (L.) Hook. (foguetes); leonotis leonurus (L.) R.Br. (rabos de leão); leucospermum conocarpodendron (protea); melianthus major (arbusto do mel); ochna serrulata; oxalis purpurea L.; pandorea ricasoliana Tanf. ou podranea ricasoliana Sprague (trepadeira); phoenix reclinata (palmeira do Senegal); plumbago auriculata e plumbago capensis Thunb.; polygala mynifolia (pera doce); protea cynaroides (protea real); strelitzia alba, sterlitzia nicolai (estrelícia gigante) e strelitzia reginae Banks (estrelícias ou aves do Paraíso); scholia brachypetala; senecio macroglossus DC. (trepadeira); tecomaria capensis Thunb. Spach (camarões); tibouchina semidecandra (Schrank et Mart.) Cogn. (aranha); tritonia crocata (L.) Ker Gawl. (manuelas); Watsonia ardernei hort. (hastes de S. José); yucca gloriosa L. (iúca); zantedeschia aethiopica (jarros). Depois, tivemos ainda a permuta de variedades da agricultura industrial. Ao nível da produção açucareira, com as variedades de cana elefante e bambu, Porto Mackay, rajada e yuba do Natal (1897). Esta situação resultou do facto de a espécie existente na Ilha ter sido, em 1881-1882, alvo de um ataque pelo fungo conyothyrium melasporum. Note-se o facto de, no começo do novo milénio, na África do Sul, tais culturas da cana e da vinha assumirem um papel na economia do país; por algum tempo, a Madeira importou melaço daqui para suprir carências da Ilha. A História do Atlântico passa por estes importantes portos: o Funchal e o cabo da Boa Esperança. Construiu-se, desde muito cedo, uma ponte entre as duas cidades e portos, que teve um papel fundamental na história.   Alberto Vieira (atualizado a 14.09.2016)

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acram - associação cultural e recreativa dos africanos na madeira

A Associação Cultural e Recreativa dos Africanos na Madeira (ACRAM), registada no ano 2001 com a designação oficial de ACRA por iniciativa de quatro imigrantes africanos residentes na Região Autónoma da Madeira (RAM), naturais da Guiné-Bissau e de Angola, é uma organização sem fins lucrativos que tem por objetivo: preservar e divulgar a cultura africana na RAM, e promover a integração dos imigrantes africanos na sociedade madeirense. Este objetivo encontra-se consagrado nos estatutos da Associação: “fomentar, defender a unidade e solidariedade entre membros da comunidade africana residentes na RAM. Promover os valores culturais africanos; contribuir para a integração dos membros da comunidade” (“Associação Cultural…”, JORAM, II, 32, 2005, 9). A ACRAM surgiu num período marcado por grandes obras públicas na Região e pelo desenvolvimento do sector da construção civil: finais do séc. XX e inícios do séc. XXI. Este fenómeno originou o aumento significativo da população imigrante, sobretudo indivíduos do Leste europeu, Brasil e continente africano. Os imigrantes africanos residentes na RAM são provenientes de diversos países, com destaque para o Senegal, a Guiné-Bissau, a Guiné-Conacri, Angola, Moçambique, Cabo-Verde, África do Sul, Egipto, Marrocos e a Tunísia. A organização é reconhecida pelo Governo Regional como sendo, segundo o secretário regional dos Recursos Humanos do Governo Regional da Madeira, Brazão de Castro, “um importante parceiro para a integração na Região dos cidadãos de África, particularmente dos países de língua e expressão portuguesa e tem fomentado de uma forma exemplar o diálogo intercultural” (“Associações Constituem…”, AIPA, 96). As relações institucionais da Associação com o Governo Regional remontam à data da sua criação. A ACRAM também tem estabelecido relações com outras instituições da Região, como sejam as escolas, as juntas de freguesia, os consulados, as câmaras municipais, focalizando sempre a consolidação de esforço dentro de uma perspetiva de proximidade, cidadania plena e responsabilidade social. O relacionamento com os governos dos países de origem é muito esporádico. Verifica-se através das embaixadas e dos consulados, ao nível da solicitação de apoios. A ACRAM privilegia a dimensão cultural nas suas relações com a comunidade e com as instituições, promovendo, em colaboração com o Governo Regional, encontros que incluem mostras gastronómicas, exposições de arte africana e espetáculos musicais, e que têm vindo a ganhar cada vez mais adesão dos madeirenses e de todas as comunidades residentes na Região. A Associação também tem participado na semana intercultural, promovida pelo Centro das Comunidades Madeirenses, na qual se celebram os dias dos povos africanos e das mulheres e crianças africanas, promovendo convívios e fortalecendo laços de solidariedade. Estas atividades visam sempre, por um lado, a promoção do diálogo intercultural e a sensibilização para a multiculturalidade, e, por outro lado, a divulgação da cultura africana, as suas musicalidades, os ritmos, a gastronomia, o artesanato, ou seja, “levar um pouco de África” (MANÉ, com. oral, 2015) à comunidade recetora, como afirmam os dirigentes da organização. Estes eventos também têm por objetivo promover o envolvimento de todos indivíduos da comunidade. A promoção dos direitos das minorias étnicas e das suas identidades culturais faz parte das prioridades de intervenção social da ACRAM. A Associação financia-se através de donativos, da angariação de fundos provenientes de convívios e de apoios financeiros específicos do Alto Comissariado para as Migrações, nomeadamente através do Programa de Apoio ao Associativismo Imigrante (PAAI), e ainda de projetos apoiados pelo Fundo Europeu para a Integração de Nacionais de Países Terceiros (FEINPT). A ACRAM conta ainda com a tradicional contribuição dos associados, que nos seus primeiros 15 anos de existência chegaram a cerca de 150, embora nem todos fossem residentes na Madeira. A ACRAM não teve, nesse período, nenhum tipo de apoio financeiro do Governo Regional da Madeira, exceto parcerias com o centro de emprego da Madeira, que disponibilizou técnicos do emprego através de programas de formação. Ao nível do apoio técnico, o Centro das Comunidades Madeirenses do Governo Regional fornece pareceres no que respeita à dinamização das atividades e aprovação dos projetos. Os associados da ACRAM caracterizam-se fundamentalmente por possuírem uma ligação ao continente africano, sejam descendentes de imigrantes, os próprios imigrantes, ou ainda portugueses que residiram provisoriamente em África por motivos familiares ou laborais. No início do séc. XXI, a ACRAM tem-se empenhado também no sentido de mitigar os efeitos perversos das situações de desemprego na comunidade que representa, pois está na sua génese, enquanto organização, a necessidade de fazer face aos problemas com que esta comunidade se defronta, nomeadamente a legalização destes imigrantes, o seu emprego e a sua habitação condigna. Este esforço insere-se no cumprimento do seu mandato estatutário, granjeando à Associação prestígio e reconhecimento por parte dos membros da comunidade africana, das autoridades madeirenses e, de uma forma geral, da comunidade da Ilha. Nos seus primeiros 15 anos de existência, a Associação desenvolveu ainda um leque variado de serviços de apoio a jovens e crianças com dificuldades cognitivas, atuando na prevenção, no serviço social, no desenvolvimento de atividades como a dança, o teatro, as oficinas de expressões, bem como na realização de torneios desportivos, na organização de eventos, na mediação de conflitos e no desenvolvimento de projetos inovadores na área da integração, como é o caso do espaço das hortas urbanas. A organização interveio também nas situações de doença e morte dos membros da comunidade, procurando acompanhar de perto estes momentos e dando apoio, sobretudo nos contactos com os familiares dos países de origem.   João Adriano Conduto Júnior (atualizado a 19.07.2016)

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