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Em Portugal até ao séc. XV circunstâncias de ordem política e social fazem da poesia dramática uma forma acidental de arte e inibem a cultura e os costumes tradicionais destinados ao povo. No séc. XVI a Igreja permite que o povo participe na liturgia, cujas formas são essencialmente dramáticas. Estas mantêm-se assim unidas aos costumes e festas populares, dando seguimento a uma corrente oposta à da erudição humanista da Renascença que valorizava as comédias clássicas. Com o surgimento de povoadores na ilha, como o moçárabe, a poesia de reminiscências medievais, une-se ao figurado e à melopeia das composições árabes, caracterizando os primeiros esboços de arte referidas pelos autores. No séc. XVII, o teatro assume um papel de diversão e de reflexão crítica e nos séculos seguintes são fluentes os nomes de autores naturais da ilha ou que por ela tenham passado. No séc. XIX as publicações dedicadas ao teatro multiplicam-se, dado o impacto que têm na sociedade. Palavras-chave: teatro, drama, poesia dramática, liturgia cristã, povo, costumes, festas populares, Renascença (da Itália), comédias clássicas, povoadores, moçárabe, poesia de reminiscências medievais, composições árabes. O texto dramático integra-se no modo literário do drama. É constituído por um texto principal e por um texto secundário; enquanto o primeiro contém réplicas, atos linguísticos realizados pelas personagens, o segundo é formado por didascálicas ou indicações cénicas. No texto dramático monológico, apesar de não existirem réplicas, os elementos dialógicos podem estar presentes de forma implícita ou latente. Desprovido de narrador, a ação subordina-se às exigências do conflito, o tempo é relativamente condensado, o espaço é rarefeito, as personagens supérfluas são eliminadas e os episódios laterais são abolidos, dado destinar-se a ser representado e encenado por atores que, no palco, são peças fundamentais. O teatro tem origem na Grécia antiga, nas homenagens religiosas ao deus Dionísio. Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes e Antífanes figuram entre os principais autores dramáticos deste período. A comédia, a tragédia, a tragicomédia, o auto e a farsa são as espécies que representam o género e prosperam ao longo dos séculos. A comédia tem o quotidiano como temática, satirizando os defeitos humanos e a sociedade em geral. Aristóteles defendia que era a imitação de seres humanos inferiores, não quanto a toda a espécie de vícios, mas apenas quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. As personagens eram estereótipos das debilidades humanas, como o rabugento, o avaro, o apaixonado e o mesquinho; clichês que se disseminam pela história, principalmente na Europa. A estrutura consiste numa situação inicial complicada, que finaliza bem. Ainda do ponto de vista de Aristóteles, a tragédia, imitação de uma ação de carácter elevado, suscita o terror e a piedade, e tem como objetivo a purificação das emoções. Tem um carácter mais sério e solene, e personagens humanas pertencentes às classes nobres, como reis e príncipes, que sofrem às mãos dos deuses e do destino. A estrutura parte de uma ação inicial feliz, que tem um final trágico. A temática é baseada no sofrimento e no infortúnio do protagonista. A tragicomédia é uma obra dramática que matiza elementos trágicos e cómicos ou risíveis. Aristóteles é também um dos primeiros pensadores a utilizar o conceito, salientando que os dois géneros utilizam na sua composição a mesma métrica, os mesmos cantos e os mesmos ritmos. O auto é uma peça curta, geralmente de conteúdo religioso ou profano e, sobretudo, simbólico, uma vez que as suas personagens não são humanas, mas entidades abstratas, como a hipocrisia, a bondade, a luxúria, a virtude, entre outras. É representado por ocasião das grandes festas religiosas, nos pátios ou no interior das igrejas, e muitas vezes nas praças. A farsa, surgida por volta do séc. XIV, é normalmente uma pequena peça teatral, que tem como objetivo satirizar os costumes e despertar o riso por meio da representação de situações ridículas, grotescas ou engraçadas. Na verdade, para António de Sousa Bastos, atendendo à etimologia, drama é toda a obra teatral, trágica, dramática, cómica ou burlesca; o termo evoluiu semanticamente, passando a designar qualquer peça teatral, em prosa ou verso, que constitua um meio-termo entre a tragédia e a comédia. Embora sério na essência, o drama admite todo o género de personagens e exprime toda a sorte de sentimentos. As peças dramáticas possuem um carácter comovedor e uma forma mais familiar do que a tragédia, mas aproximam-se dela pela natureza e complicação dos acontecimentos, tirando da comédia os seus processos de intriga, a linguagem natural e a cópia dos costumes e situações vulgares da vida. De modo mais preciso, António Sousa Bastos diz-nos o seguinte: “A peça literária é aquela cuja forma, mais ou menos teatral, é todavia primorosa no conceito, nos caracteres e especialmente na linguagem” (BASTOS, 1994, 84). É precisamente este conceito de peça que envolve o de literatura dramática. Deste modo, a representação teatral é inseparável de uma literatura que lhe dá corpo e que é a matéria que a sustenta. Em Portugal, mormente na Madeira, a literatura dramática acompanha a história da nação. Uma vez que circunstâncias de ordem política e social fazem da poesia dramática uma forma acidental de arte e inibem a cultura e os costumes tradicionais destinados ao povo, pode afirmar-se que, até ao séc. XV, a fórmula de Shakespeare, “the form and pressure of the times” [a forma e a pressão dos tempos] não se aplica à realidade portuguesa. À medida que o elemento moçárabe que compõe a raça portuguesa perde relevância, o fisco, a enfiteuse manuelina, os dízimos, os exércitos permanentes, as ordens mendicantes, a desigualdade social e o fanatismo religioso dificultam a subsistência da classe social mais baixa e a sua arte espontânea e criadora. O elemento aristocrático ou leonês, que compõe a linha de fronteira entre Espanha e Portugal, vive na ociosidade da corte e promove passatempos nas festas reais, uma moda seguida na Europa, que os monarcas portugueses se prezam de imitar; condicionalismos que projetam as principais tradições da nação para as páginas das crónicas monásticas. O povo não as conhece, de modo que Portugal quase fica sem festas nacionais. Os ensaios dramáticos surgem a partir das tradições épicas da Idade Média de dois dialetos franceses, frequentemente chamados línguas do sim, a língua d’ oil e d’oc (“oc” significava “sim” no sul de França e “oil” tinha o mesmo significado no norte). A língua d’ oil vulgariza o nome de Bon Amis entre o povo. D. Sancho I concedeu o feudo de umas terras do Douro a um farsante ou bobo chamado Bonamis, a seu irmão, Acompaniado, e aos descendentes. Segundo Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo foi precisamente um serviço feudal grotesco que fez com que aparecesse em Portugal a palavra “arremedilho” que o estudioso interpreta como uma espécie de farsa mímica, “farsas em miniatura, dotadas de música e, sobretudo, de um ‘texto’ escrito segundo o esquema do contraste, pelo que a recitação deveria ser confiada a um par de atores pelo menos” (PICCHIO, 1964, 33); “embora, arrimidilum, longe de ser sinónimo de entremez ou farsa e de provar a vetusta existência de um ‘género’ típico da tradição dramática portuguesa, equivalia, pelo contrário, [...] a ‘imitação burlesca’ prometida ao soberano por jograis remedadores, isto é, por bobos cuja especialidade consistia em ridicularizar o próximo macaqueando-lhe o semblante” (Id., Ibid., 33-34). O conceito de bonifrates enraíza nesta época. Foi pela influência da língua d'oc na aristocracia portuguesa que nos primeiros séculos da monarquia se conheceram as “cortes de amor”, que têm vagas analogias com os espetáculos cénicos. No Cancioneiro da Ajuda, que exclui os géneros mais vulgares, nas cantigas de escárnio e de maldizer, existem versos que aludem àquelas “cortes”, ao debate entre damas e cavaleiros de uma casuística sentimental, de que são exemplo os seguintes: “E vej'a muitos aqui razoar / Que a mais grave coita de soflrer / Veela ome, e ren non lhe dizer, etc.” (BRAGA, 1870, 6). Por seu turno, o povo desconhece essa poesia subtil e canta as suas prosas e hinos farsis na liturgia cristã, até que a pressão do catolicismo lhe impõe silêncio. O espírito aristocrático procura banir o costume simples e natural do vulgo e proíbe uma poesia dramática arreigada a costumes populares. Deste modo, no séc. XVI, ao contrário do que se passa na centúria anterior, quando o teatro encontra condições sociais e mentais de desenvolvimento favoráveis, como os papas se tornam príncipes temporais, a Igreja mostra-se aristocrática e afasta o povo da participação na liturgia. Francisco I de França e o Parlamento são, por vezes, severos nas repressões para os que representam farsas e comédias políticas, aplicando-lhes a censura prévia. Cronologicamente, estas proibições coincidem com a condenação eclesiástica que se encontra geralmente transcrita nas Constituições episcopais portuguesas, que excluem da liturgia as representações populares. Em 1534, lê-se nas Constituições do Bispado de Évora: “Defendemos a todas as pessoas eclesiásticas e seculares de qualquer estado ou condição que sejam, que não comam nas igrejas, nem bebam, com mesas nem sem mesas, nem cantem, nem bailem em elas, nem em seus adros, nem os leigos façam seus ajuntamentos dentro delas sobre cousas profanas; nem se façam nas ditas igrejas ou adros delas jogos alguns, posto que sejam vigília de santos ou dalguma festa; nem representações que sejam da Paixão de Nosso Senhor J. C., ou da sua ressurreição, ou nascença, de dia nem de noite, sem nossa especial licença; por que de tais autos se seguem muitos inconvenientes, e muitas vezes trazem escândalo no coração daqueles que não estão mui firmes na nossa santa fé católica, vendo as desordens que nisto se fazem” (BRAGA, 1898, 72). Repetem esta proibição de representar autos da Paixão, da ressurreição e da natividade nas igrejas as Constituições episcopais de Lisboa, em 1536, de Braga, em 1537, de Angra, em 1559, de Lamego, em 1561, de Miranda, em 1536, e do Funchal, em 1538. Contudo, consentem a persistência do costume com especial licença do ordinário ou bispo. Esta proibição canónica remete para a existência de um teatro hierático em Portugal nos três últimos séculos da Idade Média, que chega ainda à Madeira, e mostra também que não são somente espetáculos religiosos que se usam. As formas litúrgicas do cristianismo são eminentemente dramáticas e o povo, que não abandona rapidamente os costumes, toma parte nas cerimónias do culto. Embora se reconhecessem nesses autos hieráticos a persistência de costumes, as manifestações populares são toleradas com uma certa benevolência. Tal como se lê num decreto da Universidade de Paris em 1444: “Os nossos predecessores, que eram grandes personagens, permitiram estas festas. […] Nós não fazemos todas estas cousas a sério, mas por jogo, para nos divertirmos segundo o antigo costume, para que a tolice (folie) que nos é natural se expanda uma vez por ano. Os toneis de vinho rebentariam, se lhes não dessem ar por vezes […]. É por isso que consagramos alguns dias ás representações e chocarrices” (BRAGA, 1898, 73). Com este espírito, os mistérios, os milagres e as moralidades passam de formas hieráticas a farsas políticas e sarcásticas comédias burguesas. Gil Vicente apropria-se desses elementos tradicionais e exerce sobre eles o seu génio dramático. Na verdade, essas formas de teatro podem desenvolver dramas sacros, poemas narrativos e sequências líricas; outros ficam na espontaneidade dos costumes populares, como os dramas da vida quotidiana. Deste modo, as formas dramáticas mantêm-se unidas aos costumes e às festas populares e a obra de Gil Vicente, colocada na transição do séc. XV para o XVI, surge dessa tradição. As vigílias do Natal são a primeira forma da sua escrita e muitos dos seus autos continuaram a ser representados em igrejas. Inspirado no espírito de tolerância racional, resiste aos obstáculos, cuja tendência é reprimir a sua obra e a fundação do teatro nacional. Desprovidos de raízes étnicas e com simpatia pela Idade Média, os seus autos não poderiam vencer a corrente da erudição humanista da Renascença que impõe ao gosto da corte, da Universidade e dos solares da fidalguia as comédias clássicas e as suas imitações italianas. Garcia de Resende afirmava aliás que o criador do género dramático não fora Gil Vicente, mas o espanhol Juan del Enzina. Na verdade, Gil Vicente mantém o interesse e a atenção do povo, a sua obra tenta resistir ao Tribunal do Santo Ofício, à presunção das tragicomédias dos Jesuítas, que pretendem sobrepor-se ao teatro popular, e também às comédias clássicas. Para Duarte Ivo Cruz, um teatro litúrgico religioso, um teatro popular e jogralesco e um teatro de origem cortesã, provenientes da época medieval, atingem a faixa ocidental da Península Ibérica naquela época. Estes três ramos dramatúrgicos não são estanques, embora o filão litúrgico, quase todo perdido, tenha sido o mais praticado. Na Madeira, Balthazar Dias, nascido em finais do séc. XV, é considerado o principal contemporâneo de Gil Vicente e um dos principais expoentes da literatura dramática portuguesa. No entanto, já no alvor da centúria, afluem à Ilha, a passos brandos, povoadores como o moçárabe, elemento importante do povo que traz consigo o carácter português e o que a arte popular e tradicional possui de original. É precisamente a fusão com as “correntes estranhas”, transportadas pelos povoadores, que dá à literatura uma originalidade própria. A poesia de reminiscências medievais, unida ao figurado e à melopeia das composições árabes, caracteriza os primeiros esboços de arte, a que vários autores fazem referência. Por seu lado, os capitães donatários dão continuidade à vida palaciana, já que a aristocracia permanece parte do tempo no continente, enquanto na Ilha se erguem os seus palacetes. Analisado o teor de várias composições de diversos poetas fidalgos madeirenses, pode verificar-se que se aproximam das do reino, como acontece com os poetas inseridos no Cancioneiro de Garcia de Resende. Autores como Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, o visconde do Porto da Cruz, o conde de Sabugosa, Francisco Trigoso de Aragão Morato, entre outros, fazem o historial dessa poesia de contornos dramáticos que tão bem caracteriza essa época. Atesta este estudioso que a forma mais usada nos divertimentos cénicos da corte de D. Afonso V e de D. João II é justamente a mímica, e que os momos, acompanhados de dança, nem sempre são mudos, já que alguns dizem palavras apropriadas ao carácter das pessoas que representam. No casamento da Infanta D. Leonor, precisamente irmã de D. Afonso V, com o Imperador Frederico III de Habsburgo, representam-se vários momos, a que um poeta do Cancioneiro Geral também chama autos, como pode ler-se no seguinte verso: “Eram vossos tempos Autos/Nas festas da Imperatriz/Mas agora calar chyz/Nem é tempo de crisautos” (fl. 47, v, col. 2.). Duarte de Brito é o autor dos versos e o visado é João Gomes da Ilha, dois madeirenses ilustrados constantes do Cancioneiro. Apesar da controvérsia sobre a naturalidade do autor, tal como a relata João de Freitas Branco, o compositor tem ligações à Ilha e a ilhéus e fornece dados de valor irrefutável sobre as criações literárias da época. Quanto a D. Afonso V, é por mais evidente que conhece a primeira Renascença da Itália: manda aí estudar os artistas portugueses e chega a visitar a corte francesa, na qual são muito usados os divertimentos dramáticos, tal como se pode ler no poema seguinte: “Por Framengos, Genoveses Froreniyns e Castelhanos/mal nos vindo/com seus novos entremezes dam-nos trinta mil avanos,/vam-se rindo” (BRAGA, 1970, 8). Também D. João II, à semelhança de seu pai, manda os artistas portugueses fazer aperfeiçoamento em Itália e mantém relações diretas com Angelo Poliziano, um dos primeiros que no séc. XV inicia em Itália a imitação do teatro clássico, e cuja obra-prima, Orféo, é escrita para uma festa palaciana. Nos divertimentos dos serões da corte de D. João II encontra-se uma representação cénica criada pelo conde de Vimioso, que Garcia de Resende conserva. O que se passa fora dos palácios, o popular, está pouco documentado e conduz a opiniões controversas, no que respeita à existência de uma literatura original, embora não seja completamente desconhecido. Relativamente a Baltazar Dias, não se sabe ao certo onde nasce, mas sabe-se que passa grande parte do tempo no continente, onde vem a falecer. Barbosa Machado, uma das principais e mais antigas fontes de conhecimento do autor, afirma “que foi um dos celebres poetas que floresceram no reinado de D. Sebastião, particularmente na composição de autos, com a circunstância de ser cego de nascimento” (MACHADO, I, 1741, 446). Nas mais diversas histórias de literatura e de dicionários de teatro, é citado como o “poeta popular” mais incontestável. Na verdade, os conhecimentos literários que revela mostram que aprendera as formas e os temas poéticos elementares da atmosfera espiritual da Ilha, o que lhe permitiu criar obra memorável. Tradições medievais, lendas de santos, gestos de paladinos, amores desventurados, mágoas de exílio e visões de peregrinos, são uma presença na alma dos insulares que marca o espírito deste poeta. A corrente humanista apenas o influencia ligeiramente, como se pode constatar num requerimento que dirige a D. João III para publicar os seus autos e trovas; no texto, declara que é natural da ilha da Madeira, que cantou vidas de santos, que animou na técnica gótica dos seus autos, que celebrou feitos de heróis portugueses, como D. João de Castro, e que riu dos disparates da época e da variedade das mulheres. Álvaro Rodrigues de Azevedo destaca-o como contemporâneo de D. Sebastião e autor de vários autos dramáticos, uns sacros e outros profanos, à semelhança de Gil Vicente. Parte das obras do autor, mencionadas por Inocêncio da Silva, tem grande divulgação em várias edições: Auto de St.º Aleixo, edições de 1613, 1616, 1638, 1749 e 1791, Auto de El-Rei Salomão, edição de 1613, Auto da Paixão de Cristo, edição de 1613, Auto da Feira da Ladra, edição de 1613, Auto de Santa Catharina, Virgem Mártir, edições de 1610, 1038, 1659, 1727, 1786, Auto da Malícia das Mulheres, edições de 1640 e 1793, Auto do Nascimento de Cristo, edição de 1665, Conselhos Para Bem Casar, edições de 1638, 1659, 1680, História da Imperatriz Porcina, Mulher do Imperador Lodonio de Roma, edição de 1660, Trovas de Arte Maior Sobre a Morte de D. João de Castro e Tragédia do Marquez de Mantua, edição 1665. No séc. XVII, Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723) enriquece a literatura dramática madeirense com a sua obra. É bacharel em leis, formado na Universidade de Coimbra entre 1686 e 1697. Em 1697, é nomeado ouvidor da Capitania do Funchal. São famosos os seus poemas à morte de D. Pedro II, sucedida em 1706, e um elogio dramático em honra do governador e capitão-general da ilha da Madeira, João de Saldanha da Gama, quando termina o seu governo em 1718. O elogio dramático, representado em 1718 pelas freiras de Santa Clara, possui um argumento simples. A peça, intitulada Residência do Governador e Capitão General da Ilha da Madeira, é uma obra de arte viva, cuja ação assume a função de pedagogia política, já que evidencia sentido de justiça e de razão, princípios que devem nortear a conduta humana perante um mundo cheio de controvérsias e de excessos. O objetivo é, precisamente, mostrar ao leitor e ao espectador essas imagens e abrir um espaço de reflexão sobre os princípios que devem orientar o comportamento dos homens. Decorrido num só ato e em seis cenas, o autor apresenta ao espetador uma espécie de julgamento em praça pública, em que as personagens principais não são mais do que (falsas) testemunhas de acusação e o réu é o Gov. João de Saldanha. Na estrutura interna, a ação é dividida em três partes: a exposição, que corresponde ao momento em que as personagens abstratas – a corte, a Ilha, a saudade, a religião, a justiça e a fama – vão sendo apresentadas, por ordem decrescente de importância; o conflito, que diz respeito aos argumentos de acusação que cada uma das personagens vai expondo contra o governador; e o desenlace, momento em que se chega a um veredicto final. A corte, símbolo do poder régio e da virtude soberana, é a primeira personagem a entrar em cena, a cantar e a incitar a que se apresentem as queixas relativas ao governador. O teatro assume um papel de diversão, de arma pedagógica e de espaço para a reflexão crítica, já que demonstra que o verdadeiro governador é aquele que é constante, humilde, justo, dono da verdade e da razão. Enquanto no séc. XVII apenas há registo do elogio dramático atrás referido, a partir da centúria seguinte abundam os nomes de autores naturais da Ilha ou que por ela passaram. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo Menezes, Sousa Bastos, Inocêncio da Silva e, mais recentemente, Luiz Francisco Rebello, fazem o historial dos múltiplos escritores e das principais obras dramáticas. Joaquim de Menezes e Ataíde (1765-1828) é o primeiro autor destacado, que Inocêncio da Silva considera um distinto escritor, apesar de a maioria das suas composições poéticas e dramáticas ter sido publicada por Luiz José Baiardo, seu secretário durante vários anos. Nascido na mesma década, Manuel Caetano Pimenta de Aguiar (1765-1832) inscreve o nome na história da literatura dramática da Madeira com uma vasta produção dramática, sendo por muitos considerado o precursor de Almeida Garrett. O curso de artes e ciências feito em França dá-lhe a intuição de que em Portugal não há um verdadeiro teatro, razão que o leva a cultivar os trágicos franceses. Com esse espírito, escreve tragédias, apresenta uma obra original e desperta o gosto para este género literário. Começa a publicar em 1816 e, num curto período, imprime dez tragédias escritas em verso, intituladas Virginia, Os Dois Irmãos Inimigos, D. João I, Arria, Destruição de Jerusalém, D. Sebastião em Africa, Conquista do Peru, Eudoxia Liciana, Morte de Socrates e Carácter dos Lusitanos. Fernando Augusto da Silva e Carlos Menezes citam a representação de um drama seu em três atos, intitulado A Festa do Olimpo, no Teatro Grande, em 1822. No último quartel do século, Luiz José Baiardo (n. 1775) é sobejamente conhecido por publicar em seu nome, como já se referiu, a obra de Joaquim de Menezes e Ataíde, bispo do Funchal. Dada a sua paixão pelo teatro e a sua inibição de figurar como autor, o clérigo cede a sua obra a Luiz José Baiardo, seu fâmulo, consentindo que a divulgue como sua. A partir de 1821, já em Lisboa, Baiardo escreve peças originais e traduz outras. Da sua autoria são: O Moiro de Ormuz, comédia mágica representada pela primeira vez no Teatro do Salitre, em 1826, Valadomir Elevado ao Throno de Seus Maiores, O Combate de Touros, Gullistan, O Marquez de Pomhal ou o Terremoto de 1785, A Virtude Triumphante ou os Mágicos de Granada, Hariadan Barha Roxa, As Luvas Amarellas, Christierno Rei de Dinamarca, Templo da Innocencia, Figaro, O Delator, Alberto I, O Caminho Escuro, Gullistan, Miguel Valadomir, etc. Em 1838, redige um periódico semanal, Atalaia dos Teatros, do qual saem alguns números, mostrando mais uma vez a paixão pela representação e pelo género dramático. José Anselmo Correia Henriques (1777-1831), natural da Ribeira Brava, segue a carreira diplomática em vários países europeus e também no Brasil, no Rio de Janeiro, onde desempenha cargos da confiança do príncipe regente, quando a corte e o governo português ali estão estabelecidos. Embora se tenha dedicado mais à poesia, cultiva a tragédia e a comédia, e publica traduções, nomeadamente de uma comédia intitulada A Escola do Escandalo, composta por Ricardo Brinsley Sheridan. Da sua autoria são as tragédias A Revolução de Portugal e Mesquita. A sua obra encontra-se publicada em Paris, Londres, Hamburgo, Veneza e Christiania, o que indica que terá passado algum tempo nessa cidade, no exercício de funções consulares ou diplomáticas. Luiz da Costa Pereira (1819-1893) é considerado um homem do teatro pelos autores do Elucidário Madeirense, dada a sua vocação para autor, ator, ensaiador e diretor técnico. Efetivamente, exerce o cargo de comissário régio no teatro D. Maria, e é professor de declamação e da arte de representar no Real Conservatório de Lisboa. Camilo Castelo Branco elogia o seu trabalho de encenador. Traduz e adapta à cena portuguesa algumas peças de teatro estrangeiro e escreve o livro Rudimentos da Arte Dramática, de que só publica a primeira parte. Entre as peças que traduz conta-se Calumnia, de Scribe. Manuel Luís Viana de Freitas (1820-1861) destaca-se com um drama intitulado D. Luiz d'Athayde, e por ser sócio correspondente do Instituto Dramático de Coimbra, dada a sua paixão pelo teatro. Sérvulo de Paula Medina e Vasconcelos (1822-1854) é redator do periódico Beija-Flor e funcionário público nas ilhas de Cabo Verde. Em 1845, publica no Funchal um drama intitulado Amor e Pátria, que foi estreou no teatro Concórdia, em 1844. Em Cabo Verde, é redator do Boletim Official, onde publica o romance Um Filho Chorado. João de Andrade Corvo (1824-1890) distingue-se como jornalista, político e escritor. O desempenho de elevados cargos públicos proporciona-lhe um conhecimento dos problemas reais do país e sensibilidade em assuntos de carácter social, como a abolição da escravatura e a emigração, e condu-lo ao público através do texto dramático. Na altura em que o oidium tuckerii chega à Madeira, Andrade Corvo desloca-se à Ilha a fim de estudar essa enfermidade da vinha. A peça O Alliciador retrata esses tempos, a situação dos camponeses, decorrente dos “contratos de colónia”, e os dramas do aliciamento e da emigração clandestina, uma necessidade para muitos madeirenses. O drama é representado no teatro D. Maria II, em Lisboa. Outro dos autores que se destaca é Álvaro Rodrigues de Azevedo (1824-1898). Após a obtenção da licenciatura em Direito, na Universidade de Coimbra, desloca-se de Vila Franca de Xira para o Funchal em 1856. A par da carreira de professor, faz investigação da história da Madeira, envolve-se na vida política, escreve para a imprensa, dirige periódicos e publica uma vasta obra. Sensível aos problemas sociais dos madeirenses, bem como aos seus usos e costumes, escreve o drama A Família do Demerarista, sobre o madeirense que enriquece nos países de emigração à custa do seu trabalho e regressa à terra natal com vontade de ajudar a família e os da terra – contrariando os retratos feitos por João de Nóbrega Soares e Andrade Corvo, que o descrevem como um explorador dos seus compatriotas. João de Nóbrega Soares (1831-1890) é professor e jornalista. Como escritor, cultiva vários géneros literários, entre eles o dramático. São de sua autoria as peças Qual dos Dois?, Um Quarto com Duas Camas e A Virtude Premiada. Esta peça é um drama de atualidade que contém no final um conjunto de notas sobre vários pontos geográficos da Guiana Inglesa que são, precisamente, o espaço em que se movimentam as várias personagens ligadas à emigração de madeirenses no ano de 1861. Na verdade, João de Nóbrega Soares viaja por África e pela América do Norte e percorre o trilho dos portugueses naquelas terras, o que lhe permite fazer retratos aproximados dos dramas de muitos conterrâneos seus ao longo do séc. XIX. A peça é representada no teatro Esperança, na Madeira, colhe os maiores aplausos, e o autor confirma que a literatura dramática é o género que melhor retrata o crer e o viver do povo. Ao escrever a peça, o seu principal objetivo fora esclarecer e proteger os camponeses que na época emigravam engajados para terras longínquas, à procura de trabalho e de uma vida melhor. M. Knowler visita a Madeira em 1845 e profere no Funchal uma série de seis conferências sobre poesia dramática, nas quais revela elevado conhecimento do assunto. Encontram-se publicadas em Inglaterra e contêm referências à passagem do autor pela Ilha. Eugénio Maximiliano Azevedo (1850-1911) inicia-se na escrita dramática ainda jovem, sobretudo com comédias. Fazem parte desse tempo Por Força!, Paulo, Santos de Casa... e Duas Crianças, representadas no Teatro Ginásio, entre 1873 e 1874, e Vida Airada, representada no teatro D. Maria, em 1875. Na mesma época traduz A Familia Mougrol, de grande sucesso no Teatro Ginásio, e Um Fura-vidas, imitada da comédia italiana Un Uomo d’Affari. Nas décs. de 80 e de 90 escreve Os Annos da Menina, O Epílogo, Cinta e Bordão, representadas no Teatro Ginásio e no teatro D. Maria, e O Crime das Picôas, representada no teatro do Príncipe Real. A peça original de maior valor é o drama histórico Ignez de Castro, representada no teatro Príncipe Real de Lisboa, na rua dos Condes, no teatro Príncipe Real do Porto, na rua Nova de Sá da Bandeira e, por fim, no teatro Lucinda, do Rio de Janeiro. Para uma sociedade de amadores faialenses escreve a comédia de costumes açorianos Ralham as comadres…, representada em 1879 no teatro União, da Horta. A peça é representada na Madeira em 1901. Do seu rol de traduções e de imitações, fazem parte Os Jesuitas, Tosca, Causa Celebre, Purgatório de Casados, A Mendiga, O Amor, O Convento do Diabo, As Surpresas do Divorcio, Naná, O Az de Paus, Os Filhos do Capitão Grant e A Honra. O primeiro trabalho do autor a aparecer no teatro é a comédia Entre a Vitima e o Carrasco, traduzida do espanhol. Para além de escritor dramático, é, em final de vida, crítico teatral e comissário régio do teatro Normal. O seu nome é uma presença constante na história do teatro madeirense, pelo impulso e apoio dado à subida ao palco da peça Guiomar Teixeira, de João dos Reis Gomes. Também João de Freitas Branco (1854-1910) se distingue na literatura dramática, na crítica, na escrita de originais e na tradução de peças estrangeiras. Depois de ter viajado e permanecido alguns anos fora do país, em Inglaterra, França, e especialmente na Áustria, onde adquire conhecimentos de línguas estrangeiras, regressa a Portugal e divulga os trabalhos dos dramaturgos mais famosos do norte da Europa, Suécia, Dinamarca e Alemanha, traduzindo diretamente dos originais as suas principais obras. Entre elas, contam-se a Casa da Boneca e o Esteio da Sociedade, de Ibsen, Uma Fallencia, de Bjornson, Penedos do Inferno, de Blumenthal e O Fim de Sodoma, de Sudermann. Sousa Bastos, em A Carteira do Artista e no Diccionario do Theatro Portuguez, elenca a obra traduzida pelo madeirense e a que sobe aos palcos dos mais importantes teatros de Lisboa, o teatro D. Maria e o Teatro Ginásio. Luiz António Gonçalves de Freitas (1858-1904), chefe de repartição no Governo Civil de Lisboa, administrador de concelho e deputado, redige e colabora em importantes jornais, embora os trabalhos literários sejam a sua paixão. Aos 12 anos, em 1871, “publicava o seu primeiro livro original, Phantasias, ensaios litterarios e a sua tradução do Monge de Kremsmanster de Alphonse Karr” (BASTOS, 1898, 495). O seu primeiro trabalho do género dramático é a opereta escrita em verso A Pupila de Beltrão, para ser representada pelos alunos do 5.º ano do curso de Direito de 1879/1880. A peça é levada à cena pela primeira vez no Teatro Académico de Coimbra, em 1880. Em 1886, em homenagem a Leopoldo Carvalho, Noite de Núpcias é representada no Ginásio e posteriormente nos teatros da rua dos Condes e Avenida. Em 1897, sobe à cena no teatro da rua dos Condes a sua ópera cómica Pif! Puf! Publica também, entre dramas, comédias e operetas, À Beira do Abismo, Sob as Cinzas, traduzida de Charles Méronvel, O Club dos Perigosos, Rachel, Por Causa d´Um Cabelo, Pecados da Mocidade e Velha Farça. É sócio e diretor da empresa que explora o teatro Avenida, dado o seu gosto pelo drama e pela representação; traduz para esta empresa, em parceria com Sousa Bastos, uma opereta em três atos, Josephina Vendida por Suas Irmãs. João dos Reis Gomes (1869-1950), militar de carreira, professor do ensino secundário e técnico, jornalista e crítico de arte, na sua qualidade de autor, escreve obras de cariz histórico, filosófico e dramático. O Teatro e o Actor, em 1905, A Música e o Teatro, em 1919, e ainda Figuras de Teatro, em 1928, são obras que distinguem este escritor. Em 1912, escreve o drama Guiomar Teixeira, extraído da sua novela madeirense A Filha de Tristão das Damas. A peça é representada por amadores em 1913; pela Companhia Vitaliani-Duse em 1914; e em 1922, por ocasião das festas da comemoração do V centenário da descoberta da Madeira, novamente pelo primitivo grupo de amadores, embora com algumas substituições. A obra é um expoente da literatura dramática da Madeira, pelos motivos históricos retratados e porque a estreia oferece a novidade de fundir o cinema e a ação dramática. Efetivamente, é a primeira vez que em Portugal se utilizam efeitos especiais cinematográficos como o pano de fundo, e que estes se combinam com a representação dos atores. Maximiliano de Azevedo impulsiona a estreia da peça em Lisboa, dado ser um homem de teatro e ter conhecimentos que satisfaziam as ambições da representação do autor da peça. Francisco Bento de Gouveia (1874-1921) colabora numa revista que foi levada à cena no teatro Manuel de Arriaga. No final de século, em 1877, Olimpia Pio Fernandes escreve um drama intitulado Alda ou a Filha do Mar, que foi representado no Funchal. As principais cenas da peça são publicadas pela imprensa regional, com a qual colaborou. Francisco Jorge de Abreu (1878-1932) é jornalista de profissão. Além de muitos artigos disseminados por vários periódicos do Funchal, de Lisboa e do Porto, traduz várias peças teatrais. José Jorge Rodrigues dos Santos, ou apenas Jorge Santos (1879-1958), segue a carreira diplomática na Suécia e na Dinamarca. É autor de três peças dramáticas representadas no teatro nacional: em 1903, Crime de Amor, que põe em cena um caso de incesto, e A Festa da Actriz, uma derivação da estética naturalista; e, em 1908, Mar de Lágrimas, escrita em colaboração com João Gouveia. Escreve ainda Rosa Enamorada e uma peça de costumes madeirenses, Vinho Novo, entregue no teatro nacional em 1903, mas que não chegou a ser representada. João Gouveia (1880-1947) é um escritor apaixonado pela aeronáutica. Da sua autoria são duas peças levadas à cena no teatro nacional, nomeadamente Engano de Alma, em 1904, e Mar de Lágrimas, em 1908, com a colaboração do seu conterrâneo Jorge Santos. Em 1912, escreve Balões e Aeroplanos. Salienta-se, igualmente, Alberto Figueira Jardim (1882-1970), bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, professor do liceu do Funchal, colaborador de alguns jornais na região e autor de uma vasta obra, que escreve uma fábula trágica, Galateia, publicada no Funchal em 1920, e a comédia Honra, Drama e a Laranja de Califa, peça em dois atos. Alfredo Freitas Branco (1890-1975), também conhecido por Visconde do Porto da Cruz, escreve Madrinha de Guerra em 1919, uma comédia cuja ação é centrada em Lisboa no ano de 1917. No mesmo ano, publica um auto designado Auto da Primavera, para o qual seu primo Luís Freitas Branco escreve uma música, e, em 1922, publica a peça A Canção de Solveig. A estes autores junta-se Álvaro Leal (1891-1931), autor de revistas e de operetas, umas escritas individualmente, outras em coautoria, como A Conferência, uma adaptação do francês, em 1924, Aqui para Nós, revista em um ato e três quadros, Jesus!, peça sacra, episódio bíblico em três etapas, de parceria com Pedro Bandeira, Isso Era d’ Antes, revista em um prólogo, dois atos e seis quadras, com outros autores, Sol de Portugal, revista em dois atos e doze quadros, com Lourenço Rodrigues, Prata da Casa, série de oito quadros de conjunto, a imitar uma revista novamente em colaboração com Pedro Bandeira. Escreve também o melodrama O Alfinete egípcio, em colaboração com Carlos Ferreira, representado apenas em tradução espanhola. É ainda autor das comédias Pegadas na Areia, da qual foi colaborador Lourenço Rodrigues, representada no teatro nacional em 1930, e Nero, escrita com Guedes Vaz. Algumas destas peças encontram-se no Arquivo Distrital do Porto. Augusto Elmano Vieira (1893-1962), bacharel em Direito pela Universidade de Lisboa em 1920, exerce o jornalismo, a advocacia e é membro da Câmara Municipal do Funchal. Como escritor dramático, colabora na revista de costumes madeirenses A Madeira por Dentro, representada no teatro Dr. Manuel de Arriaga, e na opereta regional A Menina dos Bordados, representada no pavilhão Paris. Em 1915 escreve o episódio dramático A Ultima Bênção, publicado no Funchal, em 1917. A peça é representada no teatro Circo, do Funchal, e no teatro nacional, em Lisboa, com muito sucesso, dado a gente da Ilha ser muito sensível ao tema retratado, a emigração madeirense; a ação é, pois, fundamental para esclarecer tanto os que partem para destinos transatlânticos, como os que ficam, aguardando que os seus regressem depressa. João França (1908-1996) que escreve várias peças de teatro, entre dramas, farsas e comédias, levadas à cena no Funchal por amadores, entre 1924 e 1930, nas quais representa alguns papéis. Algumas constituem grande êxito, como Mimi, O Regenerado e Amor Sem Deus. Escreve também uma opereta, Zé do Telhado, representada no teatro Avenida, em 1944, uma adaptação de O Bobo, de Alexandre Herculano, publicada em 1964 com o título O Drama do Bobo, uma comédia, Um Mundo Àparte, premiada em 1970 no concurso de originais para o teatro Maria Matos, proibida pela censura, e o monólogo Sol nas Minhas Mãos. Em 1978 publica o drama O Emigrante, peça em que retrata a emigração madeirense para a América no primeiro lustro do séc. XX. João de Brito Câmara (1909-1967) publica, em 1943, no Funchal, o Auto da Lenda, que é a descrição poética da lenda que conta os amores de Ana d’Arfat e Machim, que em tempos idos terão chegado à Madeira. Alberto Figueira Gomes (n. 1913) foi um estudioso da história insular madeirense e das fontes das principais tradições poéticas. A publicação da obra Poesia e Dramaturgia Populares no Século XVI – Baltasar Dias vai ao encontro desse gosto do autor. Em 1965, publica Encontros no Pireu, peça em um ato. Ernesto Leal (1913-2005) publica a obra teatral Afonso III, “história fabulosa e irónica de um rei sem história”. Finalmente, António Aragão (Funchal, 1921-2008) é autor de uma única peça dramática, Desastre Nu, distinguida em 1980, na qual propõe uma visão despojada e desencantada do mundo tecnocrático seu contemporâneo, dada a sua ligação ao experimentalismo dos anos 60 e 70. Em termos conclusivos, e segundo os autores do Elucidário Madeirense, a literatura dramática na Madeira foi, no início, uma articulação entre o génio dramático dos criadores e a fome, a pobreza e a necessidade. As famílias ilustres dedicavam-se à filantropia, forma de sobressaírem socialmente, algo que distingue e caracteriza o teatro na Madeira. Afirma Derrida que, quando os povos atingem um certo grau de civilização, os espetáculos são uma necessidade, “uma energia […] a única arte da vida” (MATEUS, 1977, 36). No séc. XIX, principalmente, os títulos dos jornais e outras publicações dedicadas ao teatro multiplicam-se, dado o impacto que têm na sociedade. Ao longo dos séculos, organiza-se um movimento mundano de apoio ao teatro, do meio citadino ao rural, suscitando paixões e levando-o a desempenhar um papel importante no cenário político, social e cultural de cada época.   Elina Baptista (atualizado a 10.01.2017)

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escultura

Para traçar uma panorâmica da história da escultura existente no arquipélago da Madeira apenas se pode recorrer a estudos dispersos e pontuais, já que um levantamento sistemático ainda está por realizar em 2015. O interesse pela recolha e preservação do património religioso que esteve na origem da criação do Museu de Arte Sacra do Funchal (MASF), levou à realização de exposições de escultura religiosa, sendo a de 1954 no convento de S.ta Clara do Funchal, organizada pelo P.e Pita Ferreira e por Luiz Peter Clode, pioneira e muito alargada. Propunham-se os seus mentores dar uma ideia da evolução do sector, sem pretensões de exaustividade e conscientes das limitações de documentação e de publicações que então se verificava. Lembremos algumas das principais iniciativas que se seguiram no MASF: em 1967, uma mostra sobre iconografia mariana (Exposição Mariana), tema retomado e ampliado em 1988 por ser ano mariano; em 1984, uma exposição de escultura religiosa da coleção Dr. Frederico de Freitas, com imaginária europeia e produção luso-oriental, que precedeu a abertura da casa-museu onde hoje é dado a ver o espólio deste colecionador; por ocasião do 8.º centenário do nascimento de Santo António, em 1996, uma exposição dedicada a este santo da qual, infelizmente, não foi publicado catálogo, reunia pintura e escultura dos sécs. XVI a XVIII, pondo em diálogo peças do próprio museu com outras da Diocese e de outros museus; A Madeira na Rota do Oriente, em 1999, retomada e ampliada, em 2005, com o título A Madeira nas Rotas do Oriente, reuniu peças significativas dos intercâmbios culturais decorrentes da Expansão; em 2002, Jesus Cristo Ontem, Hoje, Sempre, exposição integrada na pastoral do ano do grande Jubileu de 2000, agrupou em torno da temática cristológica; no ano seguinte, Futuro do Passado deu especial enfoque a problemas de conservação e restauro; Eucaristia, Mistério de Luz, organizada em 2005 para celebrar o ano da eucaristia; Obras de Referência dos Museus da Madeira, em 2008, no Funchal e, em versão mais vasta, no palácio nacional da Ajuda, em Lisboa, no ano seguinte; em 2014, a exposição comemorativa dos 500 anos da Diocese do Funchal: Madeira, do Atlântico aos Confins da Terra 1514-2014. Estas exposições temporárias do MASF foram ocasião para o restauro de peças e para efetuar investigação sobre elas, e é sobretudo nos seus catálogos que podemos encontrar informação acerca das obras mais relevantes do património ilhéu. Muito continua, no entanto, por estudar e valorizar e é uma lacuna a inexistência de um inventário exaustivo, até ao presente ano de 2015, feito com a colaboração de especialistas, com registo fotográfico cuidado, acessível a consulta, que seria um instrumento de trabalho precioso não só para investigadores, mas até para a indispensável salvaguarda do património. Salientamos, no entanto, as inestimáveis, ainda que inéditas, recolhas feitas pela escultora Luiza Clode ao longo da sua atividade de docente e de diretora do MASF. Cabe lembrar também a importância da participação de peças pertencentes ao património insular em destacadas exposições nacionais e internacionais, pelas oportunidades que abre à investigação e à divulgação, entre as quais: Europalia, em 1991, Antuérpia; Exposição Universal de Sevilha, em 1992; Brilho do Norte, em 1997, Lisboa. O remanescente da escultura de épocas mais recuadas consiste em peças de imaginária devocional que encontraram, apesar das alterações decorrentes de deterioração ou de mudanças de gosto, melhores condições de conservação. Algumas das imagens que chegaram até nós sofreram sucessivos repintes descaracterizadores, outras já estavam fora de culto e tinham sido enterradas, guardadas em armários ou debaixo de altares de igrejas. Recorria-se a esta prática, ou à queima, conforme estabelecem as Constituições Sinodais, para evitar a profanação. Do séc. XV, entre o gótico final e os alvores do renascimento, existem diversos exemplares em madeira estofada, mas salienta-se um S. Brás (MASF73) em mármore, vindo da matriz de Gaula, de cânone bastante curto e modelação sumária, com báculo, mitra e uma figura ajoelhada a seus pés, alusão à cura do rapaz com uma espinha na garganta, um dos seus milagres mais populares. Pertencente à Misericórdia da Calheta, uma Virgem com o Menino, em pedra, que estava grosseiramente repintada, foi alvo de restauro em 2015,  desvendando-se assim a volumetria original da imagem. É também interessante uma S.ta Catarina, da igreja do Campanário, de livro na mão e segurando o punho da espada com que foi decapitada na outra, que tem a seus pés a figura do vencido imperador Maximiliano, tal como uma sua congénere do Museu Nacional de Arte Antiga com o número de inventário 144 Esc. A par das importações flamengas vieram também peças de produção nacional, de que é excelente exemplo um S. Sebastião em pedra de ançã, de apurada modelação e harmoniosa proporção, com vestígios de policromia, de oficina coimbrã do início do séc. XVI, atribuído a Diogo Pires o Moço (MASF379). Encontra-se mutilado e estava enterrado na igreja de Câmara de Lobos. Também em pedra policromada e dourada é a Virgem com o Menino de oficina flamenga ou luso-flamenga que segura um tinteiro enquanto o Menino tem um livro na mão e uma pena para escrever, entretanto já desaparecida. Trata-se de uma iconografia não muito usual, que se encontra a partir do séc. XV nas regiões da Renânia e do Mosa. A escultura em pedra é uma presença mais rara, sendo a madeira policromada, estofada e dourada o material mais utilizado para a imaginária até ao séc. XIX. De um modo geral, nas obras dos sécs. XV e início do XVI, tal como acontece com a pintura, predomina o gosto flamengo, como podemos ver na coleção do MASF, objeto de análise no seu catálogo, publicado em 1997 (Arte Flamenga). Guarda este museu alguns exemplares de produção flamenga, de que se salienta uma Nossa Senhora da Conceição de madeira estofada, policromada e dourada, do início do séc. XVI, esculpida em meio vulto, proveniente da matriz de Machico e que terá pertencido a um primitivo retábulo (MASF18). Coroada, com o Menino ao colo segurando o rolo da Nova Lei, os seus traços fisionómicos e opções compositivas e de modelação apontam para oficina da zona de influência Malines-Bruxelas. Uma Nossa Senhora da Estrela (MASF354) vinda de oratório particular da Calheta, em que o Menino segura um cacho de uvas alusivo à sua futura Paixão, de oficina de Antuérpia ou de Malines. S.ta Luzia (MASF351), proveniente da antiga capela de S.ta Luzia, é uma obra de Malines, do início do séc. XVI, mutilada e com a carnação já desaparecida, mas conservando o douramento original; é de grande expressividade e notável desenvoltura e dinamismo na execução de panejamentos e cabelos. Cristo Crucificado (MASF319), em madeira de carvalho com vestígios de policromia, possivelmente proveniente do convento de S. Francisco, está estilisticamente próximo da escultura alemã, pelo alongamento e expressividade da figura. Apesar de lhe faltarem os braços, é notória a qualidade da modelação. S. Roque (MASF352), que seria originalmente do altar de S. Roque na Sé, santo de grande devoção enquanto intercessor contra a peste, é obra de uma oficina de Malines de finais do primeiro quartel do séc. xvi. Veste de peregrino e está acompanhado por um pequeno anjo. Falta-lhe a mão esquerda e apresenta vestígios das cutiladas de que foi alvo aquando do ataque dos corsários, em 1566. São muitas as figuras de desmembrados conjuntos representando o Calvário. Entre as quais, uma Virgem Dolorosa, um S. João e um Cristo Crucificado, encontradas, as duas primeiras, sob o altar da igreja de S. Roque, sendo o conjunto proveniente da capela do Calvário da Sé e de oficina arcaizante de Malines (MASF374). Mas também, uma Virgem Dolorosa e um S. João (MASF45/45A), provenientes do colégio dos Jesuítas do Funchal; uma Virgem Dolorosa e um S. João (MASF134/134A) de oficina flamenga ou luso-flamenga, possivelmente de Fernão Muñoz, provenientes da Sé. Nesta última imagem de S. João foram acrescentados olhos de vidro, retirados aquando do seu restauro. Esta prática inicia-se apenas no período barroco, pelo realismo e intensidade que conferia ao olhar, mas foi por vezes aplicada a esculturas já existentes. Guarda também o museu um conjunto de figuras de uma Deposição da Cruz de oficina de Malines, com a Virgem amparada por S. João e Maria de Cleofás, achadas sob o altar da igreja de S. Roque (MASF47/47A). Deste conjunto fariam parte outras figuras, entre as quais uma Maria Salomé encontrada numa arrecadação da Sé. De Malines vieram também pequenas imagens do Menino Jesus, decerto destinadas a oratórios particulares. De fatura flamenga existem, entre outras, ainda ao culto, uma Virgem com o Menino, dita Virgem do Rosário e uma Nossa Senhora da Luz, na matriz da Ponta do Sol; na da Ribeira Brava, subsiste uma Nossa Senhora do Rosário. De oficina portuguesa, em barro e de pequena dimensão, possui o convento de S.ta Clara duas peças com o tema da Piedade, a Virgem com o Cristo morto nos braços, e ainda um fragmentado S. Jerónimo de excelente modelação. Do séc. XVII, restam, nas igrejas de Machico, Santa Cruz, e Porto Santo, grupos de figuras de Cristo e os apóstolos na Última Ceia. Documentado como obra do imaginário Manuel Pereira (Manuel Pereira), em parceria com os douradores Baltasar Gomes e Manuel Duarte, é o conjunto do mesmo tema executado entre 1648 e 1652 para o camarim da Sé, depois colocado no MASF (MASF346), parte de um vasto e fragmentado conjunto, encomendado pela confraria do Santíssimo Sacramento. O grupo escultórico de Machico foi atribuído à oficina deste imaginário, o de Santa Cruz, a um seu seguidor. Na matriz da Calheta existem também figuras de um destes grupos escultóricos, bastantes degradadas, mas, a julgar pelas suas caraterísticas formais, mais antigas. A partir deste período, são muitas as imagens que, em 2015, ainda estão presentes ao culto. A recrudescência do culto dos santos que o ideário contrarreformista preconizava, as reformas em altares já antigos, a construção da igreja jesuítica de S. João Evangelista e o aumento de mão de obra local, documentada, como veremos adiante, potenciam as encomendas do clero, de confrarias e de oratórios particulares. Do demolido convento das Mercês ficou um Senhor da Paciência, também designado Senhor da Pedra, hoje no mosteiro de S.to António, das Clarissas, em madeira policromada, de proporções um tanto atarracadas, mas de modelação cuidada. É um tema do ciclo da Paixão que foi alvo grande devoção popular, divulgado através de gravuras de Dürer, uma da série da Pequena Paixão outra da Grande Paixão, onde o pintor retoma as convenções de representação da Melancolia, mesclando dor e resignação e salientando o dramatismo da cena. Dentro das figuras de maior devoção encontra-se a Virgem Maria, nas suas muitas invocações. Uma delas é a Nossa Senhora da Vida, de uma pequena capela da mesma invocação na Fajã do Mar, Calheta, estática e solene, de modelação um tanto sumária. De cunho mais erudito é a Nossa Senhora da Luz com o Menino ao colo e assente sobre nuvens e cabeças de querubins, onde se sente já uma certa quebra do hieratismo da figura na obliquidade do pregueado largo do manto (MASF197). Estava num altar colateral da igreja do colégio dos Jesuítas, onde era invocada como protetora dos estudantes. A Nossa Senhora do Pópulo, também da igreja jesuítica de S. João Evangelista (colégio), do altar do mesmo nome, é um exemplo paradigmático da solenidade que adquirem as imagens no contexto maneirista pós-tridentino. O estatismo é animado pela ondulação quase gráfica das pregas miúdas que, no entanto, não contrariam a solidez do bloco. Dentro da mesma linguagem, mas menos imponente, é a Nossa Senhora da Assunção do altar do mesmo nome do convento de S.ta Clara. Mais austera na sua modelação, mas de grande qualidade plástica e muito delicada nos gestos e na expressão é a S.ta Isabel (MASF310/A) que, em atitude de caminhar, segura o braçado de rosas alusivo ao milagre que operou. Um culto que foi particularmente impulsionado em Portugal, após a Restauração, foi o da Imaculada Conceição, incentivado sobretudo pelos Franciscanos e pelos Jesuítas. Do convento do Bom Jesus da Ribeira transitou para o MASF uma Senhora da Conceição, de grande hieratismo e simetria, mas de marcada juvenilidade (MASF412). A representação da Virgem sobre o crescente lunar é uma caraterística da Imaculada Conceição e fundamenta-se na descrição da mulher apocalíptica. No caso da Imaculada Conceição que figurou na exposição A Madeira nas Rotas do Oriente, o crescente está voltado para baixo e sob este, em grande evidência, está o globo do mundo no qual se enrosca a serpente do mal. Pedro (MASF198), proveniente da igreja de S.to António, com algumas mutilações, é de cânone curto mas solta movimentação na atitude e nas vestes. Da mesma igreja, mas podendo ter tido outra proveniência, veio um S.to Inácio de Loyola (MASF193), de expressão contemplativa, livro na mão e gesto pregador, tem no peito uma abertura para colocação de relíquia. O estofado do hábito é sóbrio, mas requintado. De sobriedade está carregado um ascético S. Bruno com uma caveira na mão da igreja de S. Pedro. São significativos da devoção aos santos os bustos-relicário, tal como podemos ver, neste ano de 2015, ainda in loco, um exemplar de retábulo de 1653, atribuído a Manuel Pereira, com 9 nichos com os bustos e 12 braços-relicário nos intercolúnios na capela das Onze Mil Virgens da igreja do colégio. Possui também o MASF alguns exemplares interessantes de bustos-relicário dos mártires de Marrocos, ainda que muito deteriorados, pois foram encontrados sob o soalho na igreja do colégio (MASF357). Os santos jesuítas, como o S.to Inácio acima referido, têm forte presença na igreja desta Companhia, veja-se os quatro santos em pedra nos nichos da fachada maneirista e os do retábulo do altar-mor, de 1660, um dos quais, S.to Inácio; este último foi incluído na exposição comemorativa dos 500 anos da Diocese do Funchal. Interessante também é a escultura integrada nos retábulos das capelas laterais (Talha), nomeadamente o S. Miguel Arcanjo pesando as almas e com um demónio vencido a seus pés. Na igreja da Ribeira Brava existe um grupo escultórico com o tema da Piedade em barro policromado, indiciando uma procura de pequenas obras para devoção privada. Também a igreja do Carmo possuía uma peça sobre o mesmo dramático tema. Um importante núcleo de imagens de roca dos sécs. XVII e XVIII, que estava arrecadado numa dependência da igreja do colégio, transitou para as reservas do MASF; algumas delas foram mostradas pela primeira vez na exposição O Futuro do Passado, em 2003. Trata-se de esculturas de vestir processionais, articuladas, com estrutura interna oca de ripas de madeira, para torná-las mais leves, em que apenas a cabeça e as mãos são esculpidas com acabamento mais apurado e com carnação. As vestes, olhos de vidro, cabeleiras e adornos conferiam realismo e fausto a estas figuras, contribuindo para o pathos do cerimonial. Os exageros no adorno das imagens refletem-se na redação da constituição quarta das Constituições Extravagantes de 1601, emanadas do sínodo de D. Luís Figueiredo de Lemos, relativa à decência e honestidade das pinturas e dos vestidos dos santos. Algumas das imagens de roca são facilmente identificáveis, como Cristo com Coroa de Espinhos (MASF385), outras têm uma inscrição no peito com o nome do santo, como S. Benedito (MASF393), S.ta Delfina (MASF392), ou S.to Henrique (MASF391). Os contactos com os territórios portuguesas de além-mar levaram para a Ilha numerosas peças, sobretudo de artes decorativas, mas também imaginária produzida por artífices orientais, de que os exemplos mais singulares serão as representações indo-portuguesas do Menino Jesus Bom Pastor em marfim (Casa-Museu Frederico de Freitas, n.os 20.036 e 20.037; Museu Quinta das Cruzes, MQC137). São frequentes as representações da Imaculada Conceição, da Virgem com o Menino, os crucifixos e diversos santos. São geralmente peças de pequenas dimensões, em marfim, destinadas a oratórios particulares e, para além da Índia, há também peças trazidas da China e do Ceilão, entre outros. A Dormição de S. Francisco Xavier (MASF337), de oficina portuguesa ou mesmo local, proveniente do antigo convento do Bom Jesus da Ribeira, é um baixo relevo que representa bem o prestígio adquirido pelos protagonistas da missionação do Oriente. Nos finais do séc. XVII, são frequentes os anjos candelários ou ceroferários, peças com forte presença no diálogo entre géneros artísticos próprio do bel composto barroco. Assim  são os anjos de madeira policromada e dourada de pose dinâmica e teatral e vestes esvoaçantes (MASF241 e MASF241/A). A igreja de S. Jorge conserva ainda um par de anjos desta tipologia, que se prolonga no século seguinte, como podemos constatar em exemplar congénere da igreja do colégio dos Jesuítas. Nos finais do séc. XVII e ao longo do séc. XVIII, a escultura ganha realismo e acentua-se a veemência da gestualidade e a dinâmica das pregas, criando volumetrias mais ousadas e é abundante a produção de peças, mantendo-se a preferência pela madeira estofada, policromada e dourada. Nossa Senhora dos Anjos com o Menino ao colo e assente sobre uma revoada de anjos (MASF358), proveniente da igreja do Carmo, apresenta um contraste entre a serenidade dos rostos e a agitada composição geral. A Senhora, o Menino e um dos anjos seguram um fruto vermelho na mão. É de particular qualidade a Nossa Senhora da Assunção que passou a integrar o retábulo da Sé, já na segunda metade do séc. XX, após a proclamação do dogma da assunção por Pio XII, em 1950, vinda então da igreja de S. Pedro. Justifica-se este facto pela tradição de dedicar as catedrais portuguesas a Nossa Senhora da Assunção. A Virgem é levada por um grupo de anjos e tudo se conjuga para criar uma forte ilusão de movimento ascensional: a direção do olhar, as oblíquas dos braços, das pernas e da fímbria esvoaçante do manto e a sinuosa agitação das pregas. Além disso o estofado da túnica é de muito cuidado desenho. O rosto sereno e as mãos cruzadas sobre o peito da Imaculada Conceição existente na capela do Espírito Santo (Lombada, Ponta do Sol) é realçado pela grande desenvoltura nos panejamentos com pedras incrustadas. É curiosa a solução da serpente esmagada a seus pés sobre o globo do mundo. Na igreja de S. Pedro, a expressão dolorosa da Nossa Senhora das Dores, de espada no peito, boca entreaberta e olhos lacrimosos a que não falta o brilho das lágrimas de vidro, contrasta com a elegância do gesto e das vestes. Outra peça relativa aos episódios trágicos da vida da Virgem é a Senhora da Piedade, em madeira policromada, da igreja dos Canhas, muito expressiva no confronto entre o corpo desfalecido de Cristo, de braços abertos como que ainda crucificado, e a tensão do abraço de sua Mãe. Testemunhos da devoção a S.ta Ana, existem duas imagens deste tema que apresentam semelhanças formais entre si: uma proveniente da igreja do Carmo (MASF455), com Maria ao colo e o livro na mão, na atitude de S.ta Ana mestra, de rosto um tanto anguloso, vestes agitadas e ampla volumetria; outra oriunda da igreja de Câmara de Lobos, apenas com o livro. Muitas outras devoções ficaram patentes na numerosa imaginária do séc. XVII. Lembremos ainda S. Francisco Xavier (MASF450), oriundo da igreja do Carmo, figura cujo movimento ascensional do olhar é sublinhado pela colocação diagonal do braço que segura a cruz; S. Francisco de Paula (MASF450), fundador da Ordem dos Mínimos, de longas barbas e hábito com capucho aponta para a divisa que tem no peito; S. João Batista menino, da capela da mesma invocação no Funchal, veste uma pele de cordeiro que se mescla indestrinçavelmente com o estofado ao gosto barroco; S.ta Rita de Cássia, da Sé, com o estigma na fronte, olhar de contido sofrimento, veste um hábito de monja cuja ondulação discreta se afasta das exuberâncias do barroco. De pequena dimensão, mas de grande qualidade no apuro das feições, mãos e pés, e na larga movimentação do panejamento, é o S. Paulo (MASF449), vindo da igreja do Carmo, que foi atribuído ao círculo de Machado de Castro, famoso escultor da Casa Real. Destaque também para uma Nossa Senhora dos Remédios e do Amparo (MASF261) procedente da demolida capela da Qt. de S. João. Também os arcanjos Rafael (MASF453), Miguel (MASF452) e Gabriel (MASF454), em maquineta da época em talha dourada, provindos da igreja do Carmo, são requintados exemplos de entalhe e de estofado. Abundam as figuras de presépio, sejam avulsas sejam em presépios de caixa, algumas de muito boa qualidade, pois foi grande a procura deste tipo de peças por particulares nos sécs. XVIII e XIX (Presépios). Em mármore policromado e dourado assinala-se um arcanjo S. Miguel vencendo o demónio (MASF185), vindo do colégio dos Jesuítas que assenta sobre um ornato de palmeta. A autoria das peças mencionadas nesta súmula e das muitas outras que não é possível aqui enumerar é ainda uma incógnita, devido à escassez de documentação específica acerca de contratos e pagamentos. Algumas desta peças, pela sua qualidade e caraterísticas estilísticas, sugerem proveniência de oficinas nacionais. Quanto à documentação acerca de imaginários a trabalhar na Ilha, são mais frequentes as menções encontradas em registos paroquiais, contratos de aforamentos e outras situações semelhantes do que referências à execução de peças em vulto, aos pagamentos de talha, douramentos e consertos diversos. A partir do início do séc. XVIII é mais comum a designação de entalhador para os executantes da talha, aparecendo também, para as mesmas funções, a designação de carpinteiro ou marceneiro (Talha). Na viragem para o séc. XVII, estão documentados, nas datas que seguidamente indicamos, os imaginários: Álvaro Luís, natural de Sintra, que também foi procurador de mesteres e morreu em 1630, havendo notícia dele desde o seu casamento, em 1596; João da Costa (1602-1604); Manuel Dias, que trabalhou no sepulcro da Sé (1639); Manuel Dias de Andrade (1696); Brás Fernandes, elogiado por Manuel Tomás na Insvlana como insigne escultor, com obra na igreja de S. João Evangelista (batizou um filho em 1641); Manuel Afonso (1641); Manuel de Lima, irmão da Confraria da Candelária de S. Pedro (1651-1698); Domingos Martins (1652, 1655); Pedro Nunes de Morim (1655, falecido em 1682); Manuel Martins, já falecido por volta de 1660; Francisco Fernandes (1669); Domingos Moniz, que trabalhou com Manuel Pereira no camarim da Sé (1651-1661); Filipe Correia (1664); Francisco Afonso, que acrescentou o retábulo do altar do Bom Jesus da Sé, em parceria com Manuel Pereira de Almeida, Inácio Ferreira, Manuel da Silva e João Rodrigues (1683); Francisco Afonso da Cunha (1686); Francisco Rodrigues (1672); Manuel Fernandes (1672, falecido em 1675); José Fernandes de Morim, que foi procurador dos mesteres e conselheiro de segunda condição da Misericórdia do Funchal (1627-1673); Manuel da Silva, mordomo de fora e da capela da Misericórdia do Funchal, que trabalhou em parceria, na talha do retábulo da capela do Bom Jesus da Sé, com Manuel Pereira de Almeida, Inácio Ferreira, Francisco Afonso e João Rodrigues (1683-1698); Luís Dias (1684); Manuel Coelho, conselheiro de segunda condição na Misericórdia do Funchal (1685); José Gonçalves (1691); Martinho de Bettencourt, que trabalhou no camarim da Sé com Manuel Pereira (1652-1654); Leandro João Caldeira (datas desconhecidas); Francisco da Silva, natural de Lisboa (1688-1689); Fr. António de Estremoz, do convento de S. Francisco, cujas imagens foram aprovadas como respeitadoras da ortodoxia durante a visita da Inquisição, em 1691; Inácio Ferreira, que integrou a parceria acima referida (1652, falecido em 1684); João Rodrigues de Almeida, por vezes mencionado apenas como João Rodrigues entalhador ou como imaginário, nascido por volta de 1650 e falecido em 1740, colaborador na mesma parceria. Ativos no séc. XVIII, encontramos em atividade, nas datas seguidamente indicadas: António da Silva Santiago (1700); Agostinho de Almeida, imaginário e entalhador (1697-1742); António José (1755-1756), que trabalhou em parceria com o pintor Villavicêncio e com o entalhador João Francisco Ferreira; Nicolau de Lira com o remate do retábulo da igreja da Graça de Câmara de Lobos e com trabalhos para a Sé (1720-1765); Luís Ferreira (1766-1767); António João (1758); António Rodrigues (1725-1734); P.e Marcelino da Silva, pago pelo feitio de um Cristo para a Sé mas também por diversas pinturas e consertos (1734); Francisco Martins (1753); Inácio Pereira (1710-1753); João da Silva (1758); Julião Francisco Ferreira (1727-1771), natural dos Açores, que trabalhou, entre outros, nos retábulos de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, São Jorge, capela-mor de S. Pedro, sacristia do colégio dos Jesuítas em parceria com o pintor Villavicêncio; Manuel Pestana, discípulo do mestre entalhador Julião Francisco Ferreira (1755-1758). No séc. XIX, no âmbito religioso, foi-se recorrendo paulatinamente a soluções mais viradas para uma produção em série, evidenciando-se o trabalho de santeiros, sediados sobretudo no norte do país. Escasseavam as encomendas a escultores, retomadas, já no séc. XX, com as obras de Francisco Franco e, mais tarde, António Duarte, Lagoa Henriques e Amândio de Sousa, entre outros. Em contrapartida, o espaço público começou a oferecer novas oportunidades. Do séc. XIX não se conhece notícia de inaugurações oficiais de bustos, estátuas ou grupos escultóricos de carácter secular. Contudo, note-se a existência de algumas peças de estatuária religiosa, nomeadamente escultura fúnebre. Para além destas pode ser referido um outro tipo de peças escultóricas, habitualmente não consideradas obra de escultor por serem peças anónimas, provenientes de fábricas, ou reproduções de modelos pré-existentes, tais como, os marcos comemorativos e os cruzeiros; ou pelo facto de estarem mais associadas a peças arquitetónicas, como é o caso dos fontenários. Das escassas recolhas sobre peças de carácter urbano utilitário e comemorativo feitas até 2015, refira-se o livro/inventário de José de Sainz-Trueva e Nelson Veríssimo, Esculturas da Região Autónoma da Madeira: Inventário, publicado no Funchal em 1996. Muitos dos cruzeiros distribuídos pelas principais vilas e cidades da Madeira, ainda de pé no segundo milénio, foram erguidos no séc. XIX. Na sua maioria de cantaria rija, têm formas austeras e pequenas dimensões, e encontram-se em largos, praças e cemitérios da Região. Um exemplo é o cruzeiro com motivos heráldicos, existente no largo da igreja de Santa Cruz, cujo material, menos habitual na Ilha, é o mármore. Datam também do séc. XIX muitos fontenários existentes na Madeira. É esse o caso daquele que ficou conhecido como Poço da Cidade, sito ao Lg. do Poço, nas imediações do mercado dos Lavradores, Funchal. Por sua vez, o fontenário do Torreão, também no Funchal, data de cerca de 1836 e possui azulejaria acrescentada já nos anos 30 do século seguinte. Um outro, situado no Lg. da Fonte (e ao qual o lugar deve o seu nome), na freguesia do Monte, foi erguido em finais do séc. XIX, e apresenta um claro gosto neoclássico. Contudo, são os chafarizes encimados por figuras alegóricas que mais se aproximam do conceito de escultura, por isso, destacamos o chafariz que ostenta figuras de inspiração clássica sob o tema da Leda e o Cisne, peça encomendada a uma oficina lisboeta e originalmente instalada no antigo mercado D. Pedro IV, por volta de 1880. Em 2015, é possível observá-la no átrio da Câmara Municipal do Funchal (CMF), para onde foi transferida em 1941. No primeiro quartel do séc. XX, assistiu-se em Portugal a um incremento de bustos escultóricos e estátuas de corpo inteiro que retratam diversas individualidades de vulto e que se enquadram na estética realista de Oitocentos. À Madeira chegaram ecos deste tipo de homenagem escultórica, encomendada pelo Estado ou por particulares. A primeira escultura inaugurada em local público, datada de 1906, foi um busto representando Luís da Câmara Pestana, médico madeirense. Localizado na casa de saúde Câmara Pestana, o busto foi encomendado por particulares a Josef Füller, escultor austríaco a residir em Portugal continental, onde foi professor de escultura. A nova Av. Manuel de Arriaga, aberta em finais do séc. XIX, no centro do Funchal, foi o palco privilegiado para a implantação das primeiras esculturas de porte considerável no espaço público exterior. Em 1922 foi descerrado um busto em homenagem ao conde de Canavial, médico e político, da autoria de Raul Xavier. A figura, de carácter naturalista, assenta num elaborado pedestal clássico e foi implantada numa redoma ajardinada no centro da cidade, orientada de frente para a Sé. Um outro busto, assinado por Costa Motta, seria inaugurado em 1925. Esta escultura retrata João Fernandes Vieira, o “libertador de Pernambuco”, personagem histórica do séc. XVII, nascida na Madeira. De claro gosto oitocentista, esta peça foi erguida no extremo oposto à de Raul Xavier, dando costas à Sé, no local onde se encontra o monumento a Gonçalves Zarco, de Francisco Franco. Em 1932, dois anos antes da inauguração desta última e célebre estátua, concluída em 1928, ambos os bustos foram retirados da avenida: o de Raul Xavier foi transferido para o Campo da Barca, e o de Costa Motta para o jardim municipal do Funchal, locais onde ainda se encontram, na segunda década do séc. XXI. O contraponto a este tipo de estatuária será dado, de facto, pelas obras modernistas do escultor madeirense Francisco Franco (Franco, Francisco). Como atesta a sua obra, desde primeiras peças, influenciadas pela sua estadia em Paris, até à paradigmática e já referida estátua de Gonçalves Zarco, Francisco Franco foi o único protagonista das novas tendências escultóricas internacionais a nível regional. Nos anos 10 e 20, este artista viu inauguradas algumas peças importantes no Funchal, influenciadas pelas várias estadias em Paris e de clara referência a escultores como Antoine Bourdelle e Auguste Rodin. Concluído em 1914, o torso de João Gonçalves Zarco, executado para o restaurante Esplanade, depois Casa de Chá do Terreiro da Luta, foi inaugurado com o patrocínio da extinta Monte Railway Company, em 1919. De grande simbolismo e arrojo expressivo é a escultura funerária Anjo Implorante, de 1916, assim como o torso alusivo aos mortos da Primeira Grande Guerra, de 1917, ambos inaugurados no cemitério das Angústias, Funchal. O busto do aviador, datado de 1920, em homenagem aos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, protagonistas do primeiro voo entre Lisboa e a Madeira, seria inaugurado no jardim municipal, em 1923. A escultura O Semeador, que foi exposta no Salão de Paris, em 1924, recebendo rasgados elogios da crítica francesa, foi inaugurada no Funchal em 1936, na Pç. de Tenerife. Ao longo do tempo, esta obra mudou de localização várias vezes e passou para um largo adjacente ao edifício da CMF. São também desta época várias peças de interior, como as cabeças em madeira e em barro, das quais se destacam a do velho, a da viloa e a do rapaz, entre outras, que podem ser vistas no Museu Henrique e Francisco Franco, para além de um vasto espólio de gravuras e esboços deste escultor. Por fim, data de 1924 o busto que homenageia o mecenas Henrique Augusto Vieira de Castro, e que foi inaugurado no hospital dos Marmeleiros apenas em 1943. Para além da profícua presença modernista das obras de Francisco Franco, outras esculturas de carácter mais convencional continuaram a ser encomendadas. São notáveis dois grandes monumentos de carácter religioso, ambos inaugurados em 1927. A estátua do Sagrado Coração de Jesus foi a primeira escultura levantada fora do concelho do Funchal, concretamente na Ponta do Garajau, e foi assinada pelo francês Pierre Lenoir, revelando uma simplificação timidamente modernista. Menos moderno é o monumento a Nossa Senhora da Paz, erguido no Terreiro da Luta no mesmo ano, da autoria do Arqt. Emanuel Ribeiro, e constituindo-se ao tempo, com os seus 10 m de altura, como o maior monumento da Região. Os anos 30 e 40 foram o tempo da renovação urbanística promovida pelo Eng.º Duarte Pacheco, ministro das Obras Públicas desde 1932, e que acabou por influenciar a arquitetura e escultura públicas em Portugal, nomeadamente em Lisboa, Porto e também no Funchal. Por estes anos, o Funchal cresceu para oeste e modernizou-se progressivamente ao sabor da estética do Estado Novo. Entre 1935 e 1946, durante o mandato de Fernão de Ornelas na CMF, iniciaram-se obras importantes, como a ampliação do porto do Funchal, a abertura da Av. do Mar e da rua que hoje tem o seu nome. Obras relevantes de arquitetos como Raul Lino e Edmundo Tavares foram acompanhadas, em alguns casos, por esculturas que as integraram e que foram projetadas para os novos espaços circundantes aos edifícios e arruamentos, tais como jardins, praças e átrios. De carácter mormente comemorativo, estas obras deixaram na Madeira trabalhos assinados por estatuários consagrados do regime, nomeadamente Leopoldo de Almeida, António Duarte, Delfim Maya e Barata Feyo. Após a grandiosa e adiada inauguração do monumento a Gonçalves Zarco, de Franco, em 1934, registaram-se algumas iniciativas de homenagem, contudo sem grande interesse artístico. Em 1939, foi inaugurado um busto em homenagem a Alexandre da Cunha Teles, escritor e advogado, encomendado ao madeirense Agostinho Rodrigues, em 1937, escultor que emigrou para os EUA nesse ano. Em 1941, foi a vez de um busto em homenagem ao poeta António Nobre, no largo que leva o seu nome. Trata-se de uma cópia do original existente em Coimbra, concebido pelo escultor Tomás Costa. Em 1940, a Junta Geral do Funchal adquiriu uma escultura alusiva a Cristóvão Colombo, executada por Henrique Moreira, discípulo de Teixeira Gomes. Esta figura sentada do navegador ficou arrecadada, ao longo de 28 anos, até ser inaugurada no Prq. de Santa Catarina do Funchal, em 1968. No mesmo ano, Leopoldo de Almeida assinou uma figura sentada do infante D. Henrique, anichada num esguio arco ogival de cantaria. Este conjunto escultórico foi inaugurado apenas em 1947, na entrada do Prq. de Santa Catarina, voltada para a rotunda que levou também o nome do infante. O projeto de recuperação do edifício dos paços do conselho, hoje CMF, ficou a cargo do Arqt. Raul Lino. O projeto previa obras de ampliação e a criação de um fontenário para a Pç. da Constituição, depois Pç. do Município, contígua ao mesmo. O fontenário, inaugurado em 1942, foi executado em cantaria rija e ostenta um obelisco com as armas da cidade, assim como uma esfera armilar encimada pela Cruz de Cristo. Integrado também neste projeto, o escultor António Duarte concebeu um baixo-relevo alusivo a S. Tiago, de figuração estilizada, datado de 1944, para uma das paredes exteriores da CMF. Este escultor seria chamado mais vezes ao Funchal para executar outras encomendas, assinando, em 1946, um fontenário de claro imaginário nacionalista, composto por uma esfera armilar rodeada de cavalos-marinhos, para a rotunda do infante D. Henrique (rotunda da responsabilidade do Arqt. Faria da Costa). Neste ambiente de nacionalismo retórico e monumental, o contraste é dado pela modesta produção local. Nos anos 50 popularizaram-se os trabalhos artesanais dos irmãos Roberto e Manuel Cunha. Foi sobretudo Roberto Cunha (1904-1966) quem mais se destacou pela criação de pequenas figuras de temática religiosa ou pitoresca, executadas em barro, marcadas pelo estilo realista e pela técnica apurada. A propósito da sua obra, o escultor Anjos Teixeira destacou: “Algumas das miniaturas de Roberto Cunha são autênticas estátuas de pequenas dimensões, abstraindo-nos dos poucos centímetros encontramos-lhes a monumentalidade que é uma das expressões do talento” (TEIXEIRA, 1968, 18). Outros escultores madeirenses, como Rebelo Júnior, foram respondendo às escassas encomendas oficiais. Deste artista apenas se conhecem dois bustos, um deles, um retrato convencional do historiador Fernando Augusto da Silva, inaugurado no Lrg. de Santo António em 1955. Ao que parece, partiu da Madeira por esses anos e não deixou especial notícia de si. Os anos 50 foram de continuidade, no que diz respeito à presença de escultores portugueses continentais. Um busto da autoria de Barata Feyo, retratando o escritor madeirense João dos Reis Gomes, é inaugurado em 1956 no jardim municipal, hoje instalado nos jardins do palácio de S. Lourenço. No ano seguinte, Delfim Maya executou a primeira escultura para o Porto Santo, no Pico do Castelo. Trata-se de um busto em homenagem a António Schiappa de Azevedo, iniciador da reflorestação daquela Ilha. António Duarte voltou ao Funchal, em finais dos anos 50, para trabalhar em conjunto com arquitetos conceituados. Em 1957, concebeu quatro apóstolos em cantaria, de contornos muito simplificados, destinados ao pórtico da nova igreja matriz do Porto da Cruz, um dos projetos modernistas do Arqt. Chorão Ramalho na Madeira. Outra parceria de António Duarte com um arquiteto aconteceu no edifício do palácio da justiça do Funchal, projeto de Januário Godinho, para o qual criou uma alegoria materializada numa figura austera, de braço erguido. A peça em bronze, inaugurada em 1962, está centrada na fachada e tem por baixo um fontenário. Outro grupo escultórico modernista também integrado na arquitetura, e de tendência monumental, teve como tema o comércio e indústria e foi assinado por I. V. Perdigão, em 1960. Trata-se de duas figuras alegóricas, a masculina simbolizando o comércio e a feminina a indústria, incrustadas numa esquina do edifício da Alfândega, da autoria do Arqt. Faria da Costa e inaugurado em 1962. A partir dos anos 60, a escultura renovou-se em Portugal, oferecendo uma alternativa à omnipresente estatuária oficial, continuadora do estilo instaurado por Francisco Franco. O paradigma de mudança introduziu o novo conceito de artes plásticas, ensaiado por escultores como Jorge Vieira, João Cutileiro, Fernando Conduto e Zulmiro de Carvalho, assim como o objetualismo de pintores, nomeadamente Lourdes Castro, René Bértholo e António Areal. Nesta década, a progressiva abertura oficial permitiu ao Funchal ter as suas primeiras obras escultóricas de recorte propriamente contemporâneo. Cabe aqui mencionar dois madeirenses, Amândio de Sousa e António Aragão, pelo contributo dado à renovação da escultura a nível local, introduzindo novas linguagens e uma progressiva simplificação formal que se traduziu, em alguns casos, numa clara opção pelo minimalismo e abstracionismo, inéditos na Ilha. Amândio de Sousa esculpiu, em 1963, um conjunto painéis de cimento com relevos vegetalistas estilizados para o átrio da clínica S.ta Catarina, assim como uma maternidade de linhas simplificadas que anunciava já o alongamento que caracteriza as figuras do escultor. Em 1969, concebeu uma escultura em bronze, comemorativa do primeiro jogo de futebol realizado em Portugal (em 1875), para a freguesia da Camacha. De estética assente no construtivismo abstrato, constituiu a primeira obra não figurativa inaugurada fora do Funchal. Ao longo das décadas seguintes, a colaboração de Amândio de Sousa com arquitetos, como Chorão Ramalho e Marcelo Costa, demonstrou a cumplicidade com estes e a sua manifesta “sensibilidade para com a escala e os materiais arquitetónicos” (SANTA CLARA, 2011, 142). António Aragão, intelectual e artista polifacetado, também fez incursões no campo da arte escultórica, e propôs uma pequena escultura de parede, representando uma S.ta Ana, para os paços do conselho de Santana, em 1959. Um ano depois, foi inaugurado o monumento ao infante D. Henrique, na ilha do Porto Santo. Este projeto urbanístico de Chorão Ramalho consiste numa alameda em cujo centro se situa um bloco de betão com 7 m de altura. Este bloco foi graficamente animado por Aragão com formas geometrizadas de cariz abstratizante, inscritas na cantaria, que evocam o imaginário histórico português. Aragão trabalhou nos anos 60 em outras encomendas, tais como os painéis de cerâmica policromada para o mercado de Santa Cruz, datados de 1962. Os painéis, cuja temática é a agricultura e a pesca, denotam uma composição em estilo decorativo que acusa influências do neorrealismo e do neocubismo. Um outro baixo-relevo em cantaria rija do mesmo autor, Artes e Ofícios, segue a linha temática do anterior e funciona como friso para a entrada principal da escola secundária Francisco Franco, no Funchal. Figuras simplificadas organizam-se geometricamente no espaço, jogando com as variações de um padrão figurativo que se repete, alterado pelas posições e gestos das figuras representadas. Ao mesmo tempo, e lado-a-lado com os monumentos ao gosto do Estado Novo e as tímidas incursões de vanguarda, a tendência oitocentista que privilegiava o naturalismo continuou presente na Madeira. Anjos Teixeira, professor de escultura na Academia de Música e Belas Artes da Madeira, executou algumas encomendas de estatuária naturalista, recorrendo a alegorias ou retratando personalidades, como é exemplo a escultura em homenagem ao político e intelectual Jaime Moniz, no largo que leva o seu nome, descerrada em 1961. Ao longo dos anos 70 e 80, Anjos Teixeira realizou um conjunto de obras que perpetuaram este estilo naturalista. Por sua vez, Ricardo Velosa, discípulo de Anjos Teixeira, será claramente influenciado pela técnica e estética do mestre, que procurará atualizar e será o escultor mais requisitado pelas encomendas de Estado ao longo dos anos 80 e 90. Para além de Velosa, um pequeno grupo de escultores madeirenses, ou residentes na Ilha, como Luiza Clode, Manuela Aranha, José Manuel Gomes, Celso Caires, Jacinto Rodrigues, Martim Velosa e Sílvio Cró, entre outros, marcaram, no final do séc. XX e inícios do XXI, o panorama da escultura na Região, alguns deles encetando uma ação mais abrangente no campo das artes plásticas, expandido que está este conceito a partir dos anos 60. Para concluir, refira-se um conjunto de realizações arquitetónicas, o hotel Casino Park, o edifício da Caixa de Previdência e o novo hospital distrital do Funchal, que permitiram trazer ao Funchal, na déc. de 70, obras de importantes escultores portugueses que então se afirmavam, nomeadamente Manuela Madureira, Lagoa Henriques, Jorge Vieira, José Joaquim Rodrigues e Fernando Conduto.   Isabel Santa Clara Carlos Valente (atualizado a 02.01.2017)

Artes e Design

berredo, antónio pereira de

O governador António Pereira de Berredo ficou cativo em Alcácer Quibir e participou depois na Invencível Armada, onde foi cabo de 10 galeras. No entanto, embora fosse  um militar experiente, teve grandes problemas com o pessoal do presídio do Funchal, sobretudo devido às dificuldades de pagamento, a que se acrescentam vários pequenos problemas com corsários ingleses e franceses. Os problemas do presídio de S. Lourenço ficaram patentes na visitação do Santo Ofício, a primeira que ocorreu na Madeira e que o governador acompanhou de perto, mas de que não resultaram especiais processos. Data da sua vigência como governador a instalação da fundição em S. Lourenço. Palavras-chave: corso; governo filipino; Invencível Armada; organização militar; Santo Ofício. O reinado de Filipe II (1527-1598) foi marcado, na sua última fase, pelo desastre da Invencível Armada, funesto acontecimento que deixou profundas marcas na Península Ibérica e comprometeu ainda mais a manutenção e a defesa do Império português, então em franco declínio. O Rei, ainda príncipe, tinha-se casado em 1553 em Inglaterra, mas, com o falecimento da Rainha Maria Túdor (1516-1558), não foi possível juntar as duas Coroas. A situação religiosa da Inglaterra era uma profunda afronta ao catolicismo hermético da Península Ibérica, pelo que Filipe II queria, a todo o custo, representar a voz e o poder capazes de abater o foco protestante que ali se instalara e pretendia difundir-se. Essas razões, bem como a atuação dos corsários ingleses, principalmente de Francis Drake (1540-1596) e de John Hawkins (1532-1595), que constantemente atacavam a navegação portuguesa e espanhola no Atlântico e ambas as faixas costeiras do mesmo oceano, levavam a que a Inglaterra fosse uma das preocupações da Coroa filipina. Aumentava o poderio naval inglês e o refúgio de D. António, prior do Crato (1531-1595) (Crise sucessória de 1580), em Inglaterra, a partir de 1585, que ainda aumentavam mais os receios da Coroa filipina. Por outro lado, o suplício infligido à Rainha católica Maria Stuart da Escócia (1542-1587), que a Rainha Isabel (1558-1603) mandou executar a 8 de fevereiro de 1587, deu ao Monarca ibérico o pretexto final para uma intervenção alargada contra o poderio britânico. Neste quadro, o Rei organizou a mais poderosa Armada do séc. XVI, crendo-a invencível, mas à qual o destino, e não só, reservou um estrondoso fracasso. Em maio de 1588, concentrou-se em Lisboa uma Armada que possuía 130 naus, cujo comando foi entregue ao duque de Medina-Sidónia (1550-1615), que não tinha grande experiência marítima, encontrando-se nos restantes postos de comando nobres sem quaisquer conhecimentos de guerra naval. A Armada largou a 27 de maio de 1588, com nevoeiro e mau tempo, para o canal da Mancha, onde defrontou uma Armada inglesa mais ligeira e com navios muito mais manobráveis. Na noite de 6 para 7 de agosto, após uma semana de desgaste, os ingleses, aproveitando ventos fortes e desfavoráveis para os grandes galeões ibéricos, lançaram uma série de pequenas embarcações carregadas de combustível inflamado. Esta ação obrigou os principais navios da Armada ibérica a dispersar e provocou incêndios noutros, fracionando todo o conjunto. Aproveitando a situação, os pequenos e rápidos navios ingleses infligiram uma memorável derrota à dita Invencível Armada. O cronista Pero Roiz Soares, em Lisboa, refere que “desta maneira se perdeu tão grande máquina, sem se salvar quase nada, nem dela tornar galeão, nau, nem navio, nem coisa que prestasse” (SERRÃO, 1979, 36-37). A Madeira concorreu com pessoal para esta aventura, embora não haja na documentação madeirense coeva dados sobre a mesma participação. Em Ensaios Históricos da Minha Terra: Ilha da Madeira, escreveu Artur Alberto Sarmento (1878-1953) que D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), descendente de Zarco (Melo, D. Francisco Manuel de), nas suas Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa (1660), refere a participação do galeão S. Filipe, com 28 peças de artilharia, nesta Armada, sob o comandado de Manuel Dias de Andrade (1580-1638), que foi depois mestre-de-campo, aditando que a guarnição era composta por grande número de madeirenses. Referia ainda este autor que muitos nobres da Ilha embarcaram na Armada, como António Gonçalves da Câmara, filho de João Fogaça de Eça (c. 1550-c. 1620) (Eça, João Fogaça de), que fora governador da Madeira, mas que não tinha os seus nomes tão presentes como desejava (SARMENTO, 1946, 177). No entanto, a ação do S. Filipe e de Manuel Dias de Andrade refere-se ao desastre da Armada portuguesa de D. Manuel de Meneses (c. 1540-1628), relatado na “Epanáfora Trágica” de 1627 (MELO, 1660, 153-272). Não conhecemos diretamente as implicações deste desastre na Madeira. No entanto, uma informação dos livros do cabido da Sé atesta o facto de se ter passado por um mau momento na Ilha. Assim, em 1589, ordenou o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) a transferência “desta cidade para a serra, de toda a prata e demais ornamentos da Sé, por esperar a chegada dos ingleses que tinham ido a Lisboa. E foi a prata para Nossa Senhora do Monte e por não parecer estar segura, a tornaram a trazer aqui e foi para o Estreito de Câmara de Lobos com os ditos ornamentos. E depois para a vila da Calheta em seis arcas encoiradas e dali se tornou a trazer. E se despendeu em tudo com as bestas, carretos, fretes e outras despesas com a ida e a vinda e conserto das arcas ao todo” 3$495 reis (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fl. 178v.). Desta Armada de triste memória, foi para a Madeira o novo Gov. António Pereira de Berredo (c. 1550-c. 1614), que tinha ficado cativo em Alcácer Quibir e participara depois na “armada da perdição, onde fora cabo de dez galeras” (NORONHA, 1996, 49). Este experiente militar tinha prestado serviço como fronteiro em Tânger, onde estava em 1573, quando ali perdeu a vida o Cap. Rui de Sousa de Carvalho e ele uma vista, sendo depois comendador de Arganil e da Castanheira, na Ordem de Cristo. Era filho de António Lopes Homem e de Maria Pereira, sua mulher, sendo o pai figura próxima do secretário Miguel de Moura (1538-1600), que viria depois a integrar o Conselho de Regência (1593-1598) e que sucedeu ao cardeal e arquiduque Alberto de Áustria (1559-1621) quando este saiu para se tornar governador dos Países Baixos. Não descortinámos, no entanto, os ascendentes familiares aos quais foi buscar o apelido Berredo. António Pereira de Berredo assumiu Governo da ilha da Madeira por patente de 30 de dezembro de 1590, tomando posse a 21 de agosto do seguinte ano de 1591. A carta vem transcrita com a data de posse na Câmara Municipal do Funchal, como “Carta de El-Rei Nosso Senhor a Esta Camara sobre o Geral Antonio Pereira”, informando: “Eu mando ora Antonio Pereira do meu concelho para ora me servir de geral dessa Ilha e superintendente das coisas da guerra dela” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 3, fl. 183v.), sendo o registo da provisão do capitão geral na Provedoria da Fazenda da mesma data. As coisas não lhe correriam muito bem no Funchal, como largamente se haveria de queixar para Lisboa a 29 de abril de 1592. Primeiro, todos os seus haveres tinham sido tomados por corsários, daí que os 2000 cruzados com que fora dotado para o Governo não lhe tenham chegado para as despesas. Depois, chegado à fortaleza, descobriu que os soldados do presídio não eram pagos há mais de um ano, acabando por fazer face às suas necessidades com roubos à população, pelo que pouco lhe obedeciam. Nesse aspeto, acabavam por ter a cobertura do Cap. João Carrião Pardo, situação a que a frouxidão do desembargador António de Melo, que tomara posse a 17 de agosto de 1591 e que desempenhava igualmente as funções de provedor da Fazenda, não ajudava. O governador, que já então não gozava de muito boa saúde, o que também se passava com sua mulher, Mariana de Portugal, queixava-se amargamente para Lisboa da situação do presídio, dos capitães castelhanos e portugueses. Refere numa carta que, em todo o tempo que fora militar, “não houve algum que me perdesse o respeito e que hoje, sem fundamento, me têm assim maltratado” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 104), e que se sentia tão desconsiderado, que temia francamente o futuro. Cita então um fidalgo recentemente chegado ao Funchal, Simão de Atouguia (1552-?), neto de João Fernandes de Amil e sobrinho de Manuel de Amil, tesoureiro das fortificações e depois escrivão de guerra, com quem já teria tido problemas em Tânger, e o próprio capitão castelhano João Carrião. Deste capitão, diz o governador que tinha sofrido “alguns desatinados termos e muitas desordens, a que se com brevidade não acudira, seriam causa de muitos males”. E acrescenta: “Este capitão não entrou nesta fortaleza, nem tratou de mim em coisa alguma e confesso a Vossa Majestade, que me receio dele pela grande natureza que tem de fazer conluios e folgar com novidades” (Ibid.). Por outro lado, dava as melhores referências do tenente do presídio, Luís de Benevides, embora com a situação vigente dos pagamentos pouco o pudesse ajudar. Em face da situação, o governador propõe nesta carta “que destas duas companhias se fizesse uma só, e sendo assim, nesta fortaleza se podiam alojar, e seria menos gasto, e os donos das casas que ora servem de quartel receberiam nisso grande esmola e mercê” (Ibid.). Nesta carta, o governador conta também o sucedido com a Armada que se deslocava para a Índia e que incluía o célebre galeão S. Pantaleão. Os navios tinham passado na Madeira um pouco dispersos, o que levou a que uma urca fosse tomada por três navios ingleses. Na urca, seguia Gaspar de Figueiredo, ouvidor-geral da Índia, que os corsários colocaram em terra, na ilha do Porto Santo. Os corsários tinham tentado negociar com o governador da Madeira a vida do ouvidor e do mestre dessa urca, tal como as mercadorias e a restante gente que seguia no navio, ameaçando levar tudo para o Norte de África (Berberia, como se cita) se não acedessem aos seus pedidos. O governador recusou-se a negociar, com base na gente do Porto Santo, que se encontrava em armas, pronta a defender a ilha, e por ter sido informado de que essas naus inglesas deveriam fazer parte dos navios de Francis Drake e do conde de Cumberland (1558-1605), que em 1589 saqueara a vila Horta nos Açores e que António Pereira conhecia da Invencível Armada. A carta termina por, mais uma vez, solicitar a “mercê de licença para me poder ir a minha casa” (Ibid.), no que não foi atendido. A 5 de setembro do mesmo ano de 1592, o governador voltou a escrever para Lisboa, dando conta da maneira como se resolvera o assunto dos corsários ingleses no Porto Santo e das aquisições de pólvora e de mosquetes. A pólvora destinava-se aos exercícios de barreira efetuados todos os domingos e controlados pelo governador, sargento-mor e capitães entertenidos, ou seja, sem comando de companhia (Comando militar). Nesta carta, descreve alguns incidentes ocorridos na Madalena do Mar, onde se fizera um exercício de fogo de barreira no dia 28 de agosto. O governador tinha ido acompanhado de Lisboa pelo Cap. Pero de Faria, adjunto para assuntos militares que, na Madalena, tinha tentado prender os vários negligentes do serviço de vigias e alardos. Os populares tinham então apedrejado o Cap. Pero de Faria e um dos seus criados, o qual “feriram muito mal, de cima dumas rochas, onde se fizeram fortes” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 105). Esta carta dá ainda parte do movimento de navios no mar da Madeira, com a passagem de vários navios do porto de Marselha, que tinham ido comerciar açúcar em Cabo de Gué (Marrocos) e que haviam informado da presença de cerca de 12 navios ingleses também nesse comércio. O governador tinha apresado, a 23 de agosto, um desses navios de Marselha, uma setia, barco comprido, afilado de boca aberta, de velas e remos, extremamente rápido. Para que não pudesse sair do porto, apreendera-lhe as três velas grandes, pensando que assim não se poderia fazer ao mar. Apesar dos pedidos, Lisboa manteve o governador e as duas companhias do presídio. Assim, D. António Pereira, como começa a ser referido, teve de reformular a Junta Militar criada pelo conde de Lançarote, D. Agustín de Herrera y Rojas (1537-1598) (Lançarote, conde de), também chamada sala de Governo, dividindo-a ao meio e só reunindo com dois capitães de cada vez. Este órgão era formado pelos quatro capitães das ordenanças, para além do comandante da guarnição da fortaleza, nessa altura o Cap. Luís de Benevides, dada a saída em finais de 1588, ou princípios de 1589, do Cap. Juan de Aranda. Este órgão não tinha sido muito desenvolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da), se é que este alguma vez o reuniu. Efetivamente, parece que teria tido razões para isso, pois com o novo governador estes elementos acabaram por se envolver em intrigas várias, que incluíram o próprio D. António Pereira e que levaram a uma alçada do licenciado Pero de Alfaro, e depois a outra, presente no Funchal a 29 de agosto de 1594, presidida por Miguel de La Plaza. A primeira alçada derivou de queixas e arbitrariedades dos capitães castelhanos com os pagamentos recebidos pela Fazenda, mas a segunda deve ter-se deslocado à Ilha também motivada pelo escândalo causado pela visitação de 1592, que envolvera alguns dos militares da guarnição castelhana, embora por razões que posteriormente seriam consideradas ridículas. O Funchal foi visitado pela primeira vez por um oficial do Santo Ofício, Jerónimo Teixeira Cabral (c. 1540-1614), depois bispo de Angra e, sucessivamente, de Miranda e de Lamego, visitação que ocorreu em 1591. A visitação envolveu um prolongado processo contra os cristãos-novos e acabou por envolver também um quantitativo populacional importante, principalmente do Funchal. Assim, acabaram por se ver envolvidos com a Inquisição muitos dos militares do presídio castelhano estacionado na fortaleza de S. Lourenço, inclusivamente alguns dos oficiais superiores, como o Ten. Alonso de Segura, natural de Castelo Branco, da companhia do Cap. Luís de Benevides, e o próprio Cap. João Carrião Pardo, da outra companhia. Nesta visitação, foram ainda envolvidos os soldados Alonso de Vila Real, natural de Castro Monte; Belchior Simões; Francisco de Velasco; Garcia Sanches, das Astúrias; Jerónimo Lopes; João Carrilho, de Aguilar de Campo; João de Gambôa, natural de Escoitia, no reino de Biscaia, Guipúscua; João Rodrigues, de Badajoz; e Pedro Sans, todos da companhia de Luís de Benevides. Da companhia do Cap. João Carrião Pardo, foram envolvidos os soldados Afonso Gomes de Segóvia; Francisco Ortiz; Miguel Fernandes; Diogo Lopez, mosqueteiro, natural de Valladolid, e Roque de Penafiel, também de Valhadolid. No entanto, tratou-se tudo de pequenos delitos incluídos nas preposições, geralmente denunciados por camaradas da mesma companhia, que alguns – como Belchior Simões – nem confessaram, acabando todos por ver os seus processos despachados no Funchal. Passando em revista estes processos, ressalta, essencialmente, o isolamento então vivido por esses soldados do presídio castelhano e até uma certa má vontade contra os mesmos por parte da população civil. O principal processo envolve o soldado Pedro Sans, já citado, e uma série de companheiros. Em linhas gerais, estando alguns soldados na igreja do Colégio, no Funchal, a assistir a uma prédica do P.e Lopo de Castanheta, aliás escrivão da visitação, estes murmuraram ao ouvir o pregador referir que os soldados eram maus porque haviam feito mal a Jesus. Teriam então murmurado os soldados que maus eram os soldados romanos, pois eles, castelhanos, eram cristãos e bons, e nunca fariam mal a Jesus. Tal bastou para de imediato serem presos no aljube da Sé. No complicado processo que se seguiu, foram chamadas, ou apareceram a depor, as mais diversas pessoas, algumas das quais, para além de se identificarem, quase não disseram mais nada. Depuseram alguns dos assistentes à cerimónia, como os ourives de ouro Pedro Gonçalves de Negro, cristão-novo, e Manuel Fernandes, cristão velho, o ourives de prata Salvador Rodriguez, de 33 anos, e o alfaiate Simão Gonçalves, entre outros. O processo acabou por ser despachado no Funchal e por não levar a especiais penas. Outro processo, praticamente só envolvendo soldados do presídio, roda à volta de uma partida de dados, jogada na casa da guarda da fortaleza Velha (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), em meados de 1591. O soldado Francisco Velasco, cansado de não ter sorte aos dados, disse num determinado momento, na febre do jogo, que renegaria a sua fé se não tivesse sorte na jogada seguinte. Não teve. Isso bastou para ser acusado do crime de proposição herética, ou seja, renegação da fé, pelos seus camaradas de jogo e para dar origem a mais uma série de processos. A notícia da partida do inquisidor foi dada pelo governador em carta de 29 de abril de 1592. O visitador Jerónimo Teixeira partira a 18 desse mês numa nau escocesa, viagem “bem negociada, da qual o capitão ficou aqui em terra, e é homem conhecido, segundo me dizem, e o preço foi muito moderado porque foi de caminho fazer sua viagem” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 106). Com os pedidos do governador e os casos da Inquisição, que não devem ter deixado de pesar nas preocupações de Lisboa e Madrid, ou com as alçadas que se deslocaram nesses anos à Madeira, voltou-se a tentar colocar em ordem os pagamentos das companhias do presídio do Funchal. Aparecem a receber os quantitativos, em Lisboa, a condessa da Calheta, Maria de Alencastre, na menoridade do filho, Fernando Martins Mascarenhas, mas que não seria o então bispo do Algarve (1548-1628) – que não era menor –, e Rui Dias da Câmara (c. 1542-c. 1600), seu primo por afinidade. As letras de câmbio foram passadas por João de Valdavesso Aldamar para Jerónimo de Aranda, pagador do exército. No ano seguinte, 1593, há mandados do Cap.-Gen. João da Silva (1528-1601), 4.º conde de Portalegre, para Jerónimo de Aranda fazer diversos pagamentos, nomeadamente ao Sarg.-mor Pedro Borges de Sousa e a António Bocarro. Nestes anos, há igualmente registo de pagamentos pontuais a diversos soldados que devem ter acabado o seu serviço na Madeira. Encontrámos elementos sobre Diogo de Naba, Garcia de Gusmão, que, porque culpado duma morte, não teve direito a soldo algum, e Fernando de Torres. Um dos pagamentos mais interessantes foi o que se fez a António Bocarro, de 1.600$000, recebido por Manuel Bocarro a 8 de janeiro de 1592 e sancionado por mandado do Cap.-Gen. João da Silva. Ora o quantitativo é francamente elevado para ser um simples soldo, devendo tratar-se de uma obra de empreitada e envolver mesmo aquisições importantes de material. A família Bocarro foi uma das principais famílias de fundidores portugueses, tendo tido o seu expoente máximo em Manuel Tavares Bocarro (at. 1625-1652), na fundição de Macau. Descendente de várias gerações de fundidores, o seu avô materno, o fundidor Francisco Dias, era irmão de João Dias e tio de Baltazar Gomes e António Gomes Feo, todos fundidores de artilharia nos inícios e meados do séc. XVI. Este António Bocarro, a ser membro da mesma família, em princípio ter-se-ia deslocado ao Funchal em finais do 1591 para preparar a fundição de S. Lourenço, que sabemos a laborar alguns anos depois, embora, tanto quanto temos conhecimento, esta não tenha chegado a fundir bocas de fogo. O Gov. D. António Lopes Pereira de Berredo, como também depois aparece referido, entregou o Governo a 20 de abril de 1595, data em que tomou posse o novo Gov. Diogo de Azambuja de Melo (c. 1530-1599) (Melo, Diogo de Azambuja de). António Pereira, que, em 1592, no Funchal, se queixava de falta de saúde e desejava voltar para a sua casa no continente, ainda assumiria o lugar de capitão de Tânger, em agosto de 1599, substituindo Aires de Saldanha (1542-1605), que foi nomeado vice-rei da Índia, lugar que ocupou até setembro de 1605, quando foi substituído por Nuno de Mendonça (c. 1560-c. 1633). Em 1613, foi também enviado a Marrocos como inspetor das fortificações e com instruções para reformar parte das mesmas, intento localmente muito pouco aceite. Teria ainda sido nomeado para a Índia com o governo da parte do Sul, a primeira sucessão do Estado e outras mercês, mas nada aceitou, dada a avançada idade. Deve ter falecido em 1614.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

História Militar Personalidades

azevedo, joão da costa e ataíde

João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho (c. 1650-1704) tinha sido capitão de Infantaria dos familiares de Lisboa e mais tarde do terço da Armada, tendo tido patente de governador e capitão-general da ilha da Madeira em março de 1701. Uma das principias preocupações desta época era a das salvas, face a alguma anarquia que havia nas inúmeras armas estrangeiras que entravam no porto do Funchal, que foi um dos assuntos especificamente regulado. Este governador teria tido problemas com o bispo D. José de Sousa Castelo Branco, que o cronista Henrique Henriques de Noronha depois tentou distorcer. Por razões que desconhecemos, veio a ocorrer uma sedição em S. Lourenço, onde teriam tentado assassinar o governador e o juiz de fora da câmara, estando envolvidos um dos capitães de artilharia e o provedor da Alfândega. Foi enviado um desembargador para investigar a situação, mas o governador faleceu antes do desembargador chegar. Palavras-chave: Alçadas; Armadas; Devassas; Relações institucionais; Salvas; Sedição. João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho (c. 1650-1704), de seu nome completo, era filho de Gonçalo da Costa Coutinho – que servira na armada da Costa e tinha participado na fatídica armada de D. Manuel de Meneses (Meneses, João de, e Pereira, Manuel), de 1637 – e de D. Isabel de Ataíde e Azevedo, filha única e herdeira de D. João de Ataíde e Azevedo, capitão de cavalos e comissário da cavalaria da província do Alentejo. O novo governador tinha sido capitão de Infantaria dos familiares de Lisboa e depois do terço da Armada. Teve patente de governador e capitão-general da ilha da Madeira a 1 de março de 1701, tomando menagem a 6 de abril e posse, no Funchal, a 12 de junho desse mesmo ano, substituindo o mestre de campo dos auxiliares de Lisboa, D. António Jorge de Melo (c. 1645-1703) (Melo, António Jorge de). Nesta época, um dos principias assuntos de preocupação dos governadores – e que foi um dos especificamente regulados – era o das salvas, face ao aumento quase exponencial de armadas de outras nacionalidades no porto do Funchal. Nesse quadro, quando o novo governador veio para a Ilha, trouxe, com data de 25 de janeiro de 1700, o regulamento de salvas que tinha sido enviado ao seu antecessor e que, entretanto, não teria sido registado. O regimento começa por referir a obrigatoriedade de salvas, mesmo em relação às embarcações inglesas e francesas, “que por vezes não usam” esse tipo de cumprimento. Responder-se-ia com igual número de salvas aos navios de capitanias reais, com menos uma aos navios almirantes e com menos duas aos restantes. Aos navios suecos e dinamarqueses, que não salvavam com números certos, “pois tanto salvam com um tiro, como com quatro ou seis” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 245v.), responder-se-ia sempre, mas com menos um tiro, caso salvassem com vários. As boas relações entre os governadores e os bispos do Funchal eram essenciais para o funcionamento geral das instituições insulares, como aliás referira um alto funcionário da corte de Lisboa, que pensamos ter sido António de Freitas Branco (1639-c. 1700), madeirense e desembargador da Casa da Suplicação, quando o anterior governador, António José de Melo, solicitara informações “de como se devia portar o governador [...], para fazer bem a sua obrigação, e dos interesses que tinha”. Especificava o informador que o novo governador deveria, logo à chegada, visitar o bispo, com quem, em princípio, deveria manter as melhores relações possíveis, pois nisso “consiste todo o sossego da terra e a sua quietação” (BNP, Coleção Pombalina, cód. 526, fls. 275-282). Deveria mesmo haver uma específica atenção a tudo o que se relacionasse com o prelado diocesano, não permitindo que na sua presença se murmurasse a seu respeito e, no caso de isso acontecer, deveria repreender-se asperamente quem o tivesse feito. Acontece, porém, que terá havido alguma desarmonia entre estas duas autoridades e, tendo o bispo, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740) (Castelo Branco, José de Sousa), solicitado que o governador colocasse homens da milícia das companhias de ordenanças do Funchal às suas ordens, João da Costa de Ataíde recusou-se a aceder ao pedido e, depois de enviar o assunto ao Rei D. Pedro II (1648-1706), teve o seu apoio expresso em alvará régio, emitido a 15 de janeiro de 1703. As posições devem ter-se extremado e para isso deverá ter contribuído o arcediago da Sé do Funchal, António Correia de Bettencourt (1664-1725), sucessivamente promovido por este prelado e irmão do cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de). Assim se explica a defesa do bispo e, acrescente-se, do irmão, que levou Noronha a escrever que, em 1703, D. José de Castelo Branco, “em razão do ofício de bom Pastor, teve algumas dissensões com o governador João da Costa de Ataíde e com o provedor da fazenda real, o desembargador Manuel Mexia Galvão, de cujos procedimentos se queixou a el-rei D. Pedro II”. O Rei enviou então um sindicante ao Funchal, “para que chamando o dito Provedor à Câmara, lhe estranhara corretivamente os seus procedimentos, fazendo-o assim saber ao dito Prelado. Tudo consta da provisão passada a sete de janeiro de 1704” (NORONHA, 1996, 127-128). Ora, o que consta da provisão datada de 7 de janeiro de 1704 não é, contudo, isso – e envolve inclusive algo mais grave: os Noronha passam a estar explicitamente envolvidos nos quesitos a serem investigados pelo desembargador. Em finais de 1703 terá havido uma sedição “no salão da Índia da fortaleza de S. Lourenço”, salão de que não temos qualquer outra informação, “e uma conspiração que intentaram fazer os soldados”, “tentando tirar a vida” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 245v.) ao governador e ao juiz de fora da câmara, então António de Macedo Velho. No atentado ao governador teria estado envolvido o capitão de artilharia António Nunes, que imediatamente a seguir à sedição se ausentou do Funchal (Artilharia), tal como o provedor da Alfândega. Por causa desta sedição, deslocou-se ao Funchal, com poderes excecionais, o desembargador Diogo Salter de Macedo (1654-c. 1730), com provisão passada em Lisboa, a 7 de janeiro de 1704, que se apresentou na Madeira a 9 de junho desse ano (Alçadas). Em prol da correção das suas averiguações, dever-se-ia fazer sair da cidade o governador, João da Costa de Ataíde, “em distância de dez léguas, para que não fosse, com a sua presença e poder, assistindo” às averiguações, interferir nas mesmas. Nas ordens do desembargador vinha expresso: “e na mesma embarcação em que fores tirar esta devassa, voltará o provedor da fazenda Manuel Mexia, por não ser conveniente que fique na Ilha depois da vossa chegada, para se não dar tempo a negociações, e por ser o dito Provedor da Fazenda envolvido em mais suspeições” (Ibid.). As questões em causa terão tido uma significativa gravidade e envolvido também o bispo, pois ficou escrito no regimento do desembargador: “E a queixa contra o Bispo deverá ser queimada, para dela não ficar nada, nem memória, e disso deverá ser dado conhecimento ao Bispo, para o mesmo saber como o Rei e as suas Justiças tratam semelhantes casos” – o que não foi aquilo que Henrique Henriques de Noronha acabou por escrever. Neste caso, havia ainda queixas contra a família Noronha, a que pertencia o arcediago, e contra a família do vigário geral da Diocese, e ainda se encontrava envolvido o juiz de fora da câmara do Funchal, “a quem [os soldados] fizeram uma sátira difamatória” (Ibid.). Os autores do Elucidário Madeirense seguem de perto as opiniões de Noronha, embora não deixando de salientar ter sido este bispo “estrénuo defensor dos privilégios e regalias de que gozava a Igreja” (SILVA e MENESES, 1998, I, 260). Sobre o governador limitam-se a dar a sua posse e falecimento. As ordens dirigidas ao desembargador e corregedor Salter de Macedo foram passadas em janeiro, mas o mesmo só se apresentou na Ilha em junho, pelo que desconhecemos totalmente o que teria conseguido averiguar. Entretanto, já tinha falecido no Funchal o Gov. João da Costa Ataíde, a 8 de março, e já tinha tomado posse Duarte Sodré Pereira (1666-1738) (Pereira, Duarte Sodré). O novo governador tinha sido nomeado em novembro de 1703, “havendo respeito a desobrigar” João da Costa de Ataíde, referindo-se os merecimentos dos anteriores serviços e ainda “por [ser] quem ele é”, conforme vem expresso na carta patente de Sodré Pereira (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fls. 233-253v.), conforme vem expresso na sua carta patente, parecendo que em Lisboa ainda se não havia tido notícia da sedição. No entanto, o Gov. Duarte Sodré Pereira demorou-se algum tempo em Lisboa, decerto por questões oficiais, pois só em março de 1704 foi nomeado para o Conselho de Estado, chegando ao Funchal quando o anterior governador já tinha falecido. O Gov. João da Costa de Ataíde foi sepultado na igreja do Colégio da Companhia de Jesus, como aconteceu sempre que um governador faleceu no Funchal e “foram depois levados os seus ossos a Lisboa” (NORONHA, Ibid., 58). Não se casou nem deixou descendência, sucedendo na casa de seus pais o irmão Gaspar da Costa de Ataíde, sucessivamente capitão de mar e guerra, sargento-mor de batalha, fiscal da Armada, alcaide-mor de Sortelha, que tinha passado à Índia em 1701, por capitão-mor das naus daquele Estado, mas não constando também descendência do mesmo. Duas das irmãs foram freiras em S.ta Clara de Lisboa, outra morreu ainda jovem e D. Leonor Maria de Ataíde casou-se com Sebastião de Carvalho e Melo (c. 1625-1719), sendo avó do futuro ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), sucessivamente conde de Oeiras e marquês de Pombal.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

História Militar Personalidades

artilharia

O armamento pesado de fogo foi fulcral na expansão portuguesa, chegando Portugal a produzir do mais evoluído material de artilharia entre os meados do séc. XVI e os meados do seguinte, não só em Lisboa, mas também no Oriente, nomeadamente Cochim, depois em Goa, Campanel, Jafanapatão e em Macau. Temos poucas informações sobre a sua inicial existência e possível produção na Madeira, que não teria passado de experiência; no entanto, Fernão Lopes de Castanheta refere que, com a chegada das armadas portuguesas ao golfo Pérsico e o desenvolvimento das primeiras instalações construídas, ou seja por volta de 1507, houve que recorrer não só a artífices estrangeiros, mas também a um madeirense, citando-se nos primeiros trabalhos da fortaleza de Ormuz “quatro fundidores de artilharia, dois de artilharia de metal e dois de artilharia de ferro, e três eram gregos e um português mulato e natural da ilha da Madeira” (CASTANHETA, II, 1933, 362). A passagem contínua das armadas portuguesas pelo porto do Funchal, inclusivamente com especialistas de outras nacionalidades, e.g., em 1547, o lendário aventureiro e artilheiro alemão Hans Staden (c. 1525-c. 1579), levou à circulação pela Madeira de todo esse tipo de armamento e de pessoal com o mesmo relacionado. A primeira referência à presença de artilharia na Madeira aponta para o último quartel do séc. XV, citando Gaspar Frutuoso que João Gonçalves da Câmara (c. 1417-1501), 2.º capitão do Funchal, entre outras façanhas bélicas, fez frente a “uma grande armada de castelhanos de muitas velas, com muita gente”, que tentou atacar a praia da vila. Mesmo tendo em conta que se tratava de um cronista açoriano a escrever em Ponta Delgada 100 anos depois dos acontecimentos, e sem nunca ter ido à Madeira, Frutuoso faz notar que “não havendo naquele tempo mais artilharia na terra que um trabuco”, com essa bombarda somente e “com o seu esforço, com que animava a gente”, não só defendeu a Ilha, mas antes “fez muito dano aos navios dos castelhanos e os afugentou, sem ousar nenhum deitar gente em terra” (FRUTUOSO, 1968, 222). Estas bombardas devem ter vindo para a Madeira depois de 1477, quando a infanta D. Beatriz ordenou a montagem dos postos alfandegários, pois existem informações do envio de idêntico armamento para a capitania de Machico, que, mais de 100 anos depois, em 1595, segundo se queixa o mestre-das-obras reais Mateus Fernandes (c.1520-1597), ainda não estava sequer montado. Também há referências a outras bocas-de-fogo na ilha, como a artilharia utilizada, em 1531, nas complicadas questões da Lombada do Arco da Calheta entre elementos das famílias Câmara, Abreu e Esmeraldo (um dos elementos da família Câmara assediou uma das irmãs Abreu, que vivia com a irmã na Lombada dos Esmeraldos, tendo-se as três famílias envolvido em conflito aceso), onde aparecem referidos dois falcões pedreiros e algumas bombardas. Quando do ataque corsário francês de 1566, temos também informação quanto ao equipamento da fortaleza: oito grandes peças de bronze, por certo as enviadas em 1529. O cronista Gaspar Frutuoso refere que algumas delas teriam cerca de 1500 quilos, “145 quintais” e que eram “das maiores que havia no reino”; ainda nesse ataque, existem referências a falcões pedreiros. Um dos pormenores curiosos deste texto de Gaspar Frutuoso é a descrição dos trabalhos de Gaspar Borges, “engenhoso artífice em metais”, que desencravou duas das grandes peças da fortaleza, “grandes e grossas e que nenhumas havia maiores no reino”, como voltou a escrever. No dizer do cronista, os corsários tentaram arrastar as peças para o calhau da praia, mas dado o seu peso e não as podendo levar, deram-lhes a mesma sorte das restantes, “atupindo-as e encravando-as pelos buracos das escorvas” (Ibid., 327-386). A organização da artilharia começou por ter alguma independência, dado ser constituída por artífices especialmente contratados que muitas vezes eram também fundidores e construtores e que, localmente, tinham outras profissões. Nesse quadro, a instituição da Nómina dos Bombardeiros deve datar de 1515; a organização manteve-se mesmo depois de 1675, quando a função passou ao foro exclusivamente militar e os bombardeiros passaram a ser soldados regulares e designados por artilheiros. As primeiras bocas-de-fogo do séc. XVI devem ter sido transportadas em 1529 para o Funchal, com o fim de equipar a futura fortaleza (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), quando era provedor da alfândega Cristóvão Esmeraldo. As designações das várias peças de artilharia (“peças”, no sentido em que na época moderna começam a ser fundidas por inteiro, enquanto até então o eram por partes), como culatra, tubo, etc., também são muito díspares, tendo-se perdido, inclusivamente o significado de algumas designações. Começaram por ser simplesmente bombardas e canhões pedreiros, quando disparavam bala de pedra, passando depois a ter designações de animais mais ou menos fantásticos: e.g., as grandes peças foram nomeadas basiliscos, dragões, serpes, etc., as médias, falcões e falconetes, e as de longo alcance, com tubo mais longo, colubrinas. As de grande calibre e que faziam tiro curvo, quase sempre se designaram por morteiros. A progressiva sistematização da designação através do tamanho e relação do calibre e comprimento do tubo data dos meados do séc. XVII, passando as colubrinas a ser designadas por peças, e as de médio e curto alcance por canhões ou meios canhões e, depois, obuses. Obus. Bartolomeu da Costa. 1770. MM Madeira A reformulação da situação dos bombardeiros, civis de profissões várias, que pontualmente exerciam essa função, aparece a partir de 1640, com a aclamação de D. João IV e a progressiva e lenta constituição dos novos corpos militares permanentes.             Boca de fogo naval inglesa - 1780. GAG2 Funchal     Boca de Fogo inglesa do Porto Santo   A primeira ordem veio logo a 15 de setembro de 1641, com a reforma da companhia do presídio e com a indicação para se proverem as fortalezas “dos necessários artilheiros, para serem todos pagos à maneira das fortalezas do reino” (BNP, Index Geral…, fl. 11). De 1648 foi depois a ordem geral de reforma do material de artilharia existente, ordenando-se ao Gov. Manuel Lopo da Silva que se enviassem para Lisboa todas as peças e falcões das fortalezas da Madeira que estivessem rebentadas, para se fundirem novamente e então serem reenviadas para a Ilha. Em setembro de 1689, foi nomeado o Cap. António Nunes como capitão da artilharia da ilha da Madeira, referindo-se que até então fora condestável dos bombardeiros do Funchal. A artilharia para a Madeira foi sendo enviada de Lisboa, embora sempre com alguma dificuldade, chegando os governadores a optar pela sua aquisição em Londres, como aconteceu, pelo menos com o Gov. Duarte Sodré Pereira, nos primeiros anos do séc. XVIII, de acordo com o que o mesmo escreveu e mandou lavrar nas lápides das fortificações construídas durante o seu governo (Fortes) Este processo manter-se-ia com os governadores seguintes, como José Correia de Sá, que idêntica inscrição mandou colocar na fortaleza de S. Tiago, tendo mandado ir de Londres, em 1767, 50 peças de artilharia para a mesma. A possibilidade de reutilização do bronze das bocas-de-fogo fez com que quase nenhuma peça de artilharia nesse material chegasse ao séc. XXI, ao contrário das de ferro, cujo material não é suscetível de reutilização. Tal facto ocasionou que pelas praias do arquipélago, e.g., como também por outras das ilhas e das costas do Atlântico, etc., existam milhares de antigas bocas-de-fogo de ferro abandonadas, algumas das quais foram reunidas no forte de S. José do Porto Santo ou no do Amparo, em Machico. Segundo as ordenações navais, estas bocas-de-fogo deveriam ser obrigatoriamente lançadas borda fora após 400 tiros, pois a sua manutenção a bordo poderia levar a que, em caso de perigo, pudessem vir a ser utilizadas, o que constituía um perigo maior para a guarnição que para o inimigo. A partir desse número de tiros, o ferro ficava propenso a estilhaçar-se, atingindo toda a guarnição. As peças incapazes para combate eram muitas vezes recuperadas para tiros de salva, utilizando cargas de pólvora muito mais baixas, o que, no entanto, não deixou de causar acidentes, como chegou a acorrer na fortaleza do Ilhéu, a 23 de fevereiro de 1731, quando se deu o rebentamento de uma das peças de ferro, “que se fez em migalhas”, matando um dos artilheiros (ARM, Governo Civil, liv. 418, fls. 17-19). Existe um Livro de Carga da Fortificação das fortalezas da Madeira, entre 1724 e 1733 e, em 1754, o Gov. Manuel de Saldanha de Albuquerque (1712-1771), depois 1.º conde da Ega e vice-rei da Índia, informava existirem 18 peças de bronze, 16 nas fortalezas do Funchal 2 nas de Machico, 125 de ferro “todas de diferentes calibres”, 7 “pedreiros de bronze e ferro para balas de pedra”, todos no Funchal, e 36 peças inúteis “que só servem para salvas”, também no Funchal. Existiam, entretanto mais de 7000 balas de artilharia “de diferentes calibres” nas fortalezas e mais de 20.000 nos armazéns (AHU, Madeira, doc. 47). No Museu Militar da Madeira (Museu Militar da Madeira), instalado na fortaleza de S. Lourenço, existe uma amostragem das mais expressivas peças de bronze de artilharia, quer de fabrico português, como do célebre engenheiro brigadeiro Bartolomeu da Costa (1731-1801), autor da fundição da estátua equestre do Rei D. José, em 1775, quer dos vários arsenais estrangeiros de que o país se subsidiou para a o seu abastecimento.   Rui Carita (atualizado a 05.01.2017)

História Militar

arguim

A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha ficaria dependente da Diocese do Funchal, que para ali nomeava capelão e ouvidor, sendo depois sucessivamente ocupada por Holandeses, Ingleses, prussianos e Franceses, até ser por fim abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios das antigas fortificações, com uma pequena povoação de pescadores-recoletores, sendo objeto de diversas lendas e narrativas. Palavras-chave: comércio; Descobrimentos; escravatura; feitorias fortificadas; tradição oral. Arguim é uma ilha na baía do mesmo nome, situada na extremidade norte da República Islâmica da Mauritânia, na costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprimento por 2 km de largura. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes. A ilha faz parte do Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona protegida, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas. Vista aérea do Banco de Arguim. Arquivo Rui Carita. A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa da costa ocidental de África (África Marrocos). Na sequência da passagem do cabo Bojador, em 1434, as embarcações portuguesas ao serviço do infante D. Henrique (1394-1460) prosseguiram para o Sul, passando ao largo da costa saariana e atingindo a costa da Mauritânia. Estas navegações, que de início se revelaram lucrativas, em virtude de atos de corso e de razias, chegaram ao golfo de Arguim na déc. de 1440; e.g., a caravela de Nuno Tristão (c. 1410-1446) tê-lo-á alcançado em 1441, embora outros navegadores ali tenham passado por esses anos, como Gonçalo de Sintra (c. 1400-1444) e Diniz Dias (há divergências entre os vários cronistas quanto à sua ordem de chegada). Em 1443, voltava àquela área Nuno Tristão, então já acompanhado de um mouro, dado como Sanhaja Berber, que servia de intérprete; aí, adquiriu 28 escravos, que levou para Lagos, no Algarve. É desse ano o pedido oficial de carta de corso do infante D. Henrique ao seu irmão D. Duarte (1391-1438), passando aquele a usufruir de 1/5 das capturas efetuadas – que, em princípio, pertenciam ao Rei –, pedido também posteriormente feito pelo infante D. Pedro (1392-1449). Banco de Arguim. Em 1444, a expedição de Lançarote de Lagos a Arguim, na qual participaram forças da Madeira e, provavelmente, o sobrinho de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), Álvaro Fernandes, conseguiria recolher 240 escravos. As relações da Madeira com estas navegações vão manter-se nos anos seguintes, tendo Álvaro Fernandes e Lançarote de Lagos, em 1446, a explorado a embocadura do rio Senegal e a área de Cabo Verde. Este navegador, que já comandara uma caravela de Zarco em 1444, dirigiu a expedição que em 1447 ultrapassou Cabo Verde e que se supõe ter atingido a ilha de Goreia. As relações da ilha da Madeira com este tipo de comércio e com esta área – Arguim, depois Cabo Verde, Guiné, Angola, etc. – vão manter-se nos anos seguintes. Na Furna de Arguim, como era por vezes chamada esta baía de recifes, ficava a ilha dos Coiros, principal centro de comércio de peles de toda a costa e, para o Sul, localizavam-se as ilhas das Garças, de Naar e de Tider. Serviram as mesmas, com mar bonançoso, para abrigo e repouso das naus. Por ali passaram madeirenses, como os da caravela enviada por Zarco até ao cabo dos Matos, com seu sobrinho Álvaro Fernandes, depois o genro do capitão do Funchal, Garcia Homem de Sousa, e Diogo Afonso, Denis Eanes da Grã, João do Porto e outros. Deve datar de cerca de 1445 a substituição da pirataria, com uma função simultaneamente económica e bélica, pelo comércio pacífico – ou, pelo menos, mais pacífico, dado não ser nessa altura possível fazê-lo sem armas na mão. Em 1444, já se procurava estabelecer o tráfico com os nómadas cameleiros do rio do Ouro, tendo cabido a João Fernandes, um colaborador próximo do infante D. Henrique, beneficiando das informações de Ahude Meimão sobre a localização das principais povoações e o interesse comercial da região, concretizar esses planos. Em 1445, aquele navegador foi responsável pela realização das primeiras operações comerciais com as populações muçulmanas daquela região, promovendo a aquisição de ouro, de goma-arábica e de escravos, em troca de tecidos e de trigo. Em 1447, iniciaram-se as relações com o Suz, em Marrocos – grande mercado de escravos, de ouro e de açúcar –, tentando o infante D. Pedro, ainda nesse ano, estabelecer a paz e manter relações comerciais com o Bori-Mali e com os jalofos, na área da Guiné. Poucos anos depois, por volta de 1454-1455, o italiano Luís de Cadamosto (1432-1488) (Cadamosto, Luís de) explica, nas suas memórias, a propósito do contrato da feitoria de Arguim, que, quando esteve ao serviço do infante D. Henrique, as caravelas costumavam ir armadas de Portugal ao golfo de Arguim, umas vezes quatro, outras mais, “e de noite desembarcavam” e saíam sobre as aldeias costeiras de pescadores, “e faziam correria pela terra”, de modo que prendiam esses “árabes, tanto machos como fêmeas e os traziam a vender em Portugal” (GODINHO, 1956, III, 125-126). Pontão. Antigo embarcadouro. A ilha de Arguim veio a configurar-se como um local privilegiado para o estabelecimento de um posto comercial fixo, dado situar-se numa região esparsamente povoada, mas próxima dos circuitos comerciais percorridos pelas caravanas mercantis que atravessavam o Saara, as quais frequentemente se aproximavam da costa, devido à abundância de sal na região. Sendo um território dotado de um bom porto e de água potável, era facilmente defensável pela vantagem que a sua situação insular oferecia face à previsível hostilidade das populações autóctones, sendo por isso escolhido para centralizar o comércio da costa africana. Entre 1454 e 1455, já se tinha efetuado um contrato por 10 anos, explicando Cadamosto que ninguém podia entrar no golfo para traficar com os locais, “salvo aqueles que entrassem no contrato” celebrado com a Coroa para esse comércio, no qual se incluía a “feitoria na dita ilha, e feitores, que compram e vendem àqueles árabes, que vêm à marinha, dando-lhes diversas mercadorias, como são panos tecidos, prata e alquicéis, que são uma espécie de túnicas, tapetes e sobretudo trigo, do qual estão sempre famintos, e recebem em troca negros, que os ditos alarves trazem da Negraria, e ouro Tiber” (Id., Ibid.). Acrescenta o navegador italiano que o infante fazia então levantar “uma fortaleza na dita ilha, para conservar este comércio para sempre; e por esta razão todos os anos vão e vêm caravelas de Portugal à ilha de Arguim” (Id., Ibid.). O castelo só seria terminado após o falecimento do infante, em 1461, sendo a capitania entregue a Soeiro Mendes de Évora, o vedor da construção, que viria a ter carta de 26 de julho de 1464, de D. Afonso V (1432-1481), a conferir-lhe, a si e aos seus descendentes, a capitania-mor da ilha. Saliente-se, no entanto, que o estatuto comercial de Arguim conheceu variantes. Assim, por volta de 1455, aquando da visita de Cadamosto, a feitoria era administrada por uma sociedade privada, que tinha obtido do infante D. Henrique esse monopólio por um período de 10 anos, provavelmente entre 1450 e 1460. Mais tarde, segundo o cronista João de Barros (1469-1570), Fernão Gomes da Mina (c. 1425-c. 1485), após ter assumido o mercado de exploração do comércio da Guiné, que dominou entre 1468 e 1474, conseguiu também obter o de Arguim, ao preço de uma renda anual de 100$000 réis. A área em torno de Arguim era habitada por berberes e negros islamizados, chamados “mouros” pelos Portugueses, sendo uma importante zona de pesca. Da parte portuguesa, esperava-se intercetar o tráfego do ouro que as caravanas transportavam de Tombuctu para o Norte de África; contudo, foi o comércio de escravos que mais prosperou, recebendo Portugal de Arguim, aproximadamente a partir de 1455, cerca de 800 escravos por ano, na sua maioria jovens negros, feitos prisioneiros durante razias conduzidas no interior do continente pelos líderes tribais da região costeira vizinha. No decurso do mandato de Fernão Soares como capitão e feitor, entre maio de 1499 e dezembro de 1501, obtiveram-se 668 escravos e 12.558 dobras e meia de ouro – moeda que, em 1472, valia 327 reais brancos, na razão 1$896 reais brancos por marco (cerca de 235 g de prata) –, sendo parte deste convertida em escravos, totalizando 840 indivíduos. O feitor seguinte, Gonçalo Fonseca, conseguiria somente 406 escravos em dois anos e meio, mas o que se lhe seguiu, Francisco de Almada, entre 1508 e 1511, ultrapassaria a cifra de 1500 escravos. Em segundo plano estava o importante comércio da goma-arábica, produto que a região produzia em quantidade significativa e com qualidade superior, que se adquiria em Arguim a preços muito atrativos. O território conquistado em Arguim passou então a assumir-se como um centro de comércio, estabelecendo ligações comerciais com os portos de Meça, Mogador e Safim (Safim), em Marrocos. Destes lugares provinham os tecidos, o trigo e outros produtos que, na feitoria de Arguim, eram trocados por ouro e escravos; as mercadorias eram transportadas pela rota que ia de Tombuctu até Hoden. A criação desta feitoria representou um ponto de viragem na expansão portuguesa, assinalando o início da política de construção de feitorias fortificadas, dotadas de uma guarnição militar capaz de as defender contra os ataques dos povos autóctones. Em 1487, foi fundada uma feitoria no interior do continente africano, na localidade de Ouadane (ou Wadan), e, na mesma área, foram feitas outras tentativas de fixação de feitorias, e.g., na região de Cofia e junto à foz do rio Senegal, todas goradas face à hostilidade das populações locais e à dureza do clima. Nos anos de 1505 a 1508, a guarnição do castelo de Arguim era composta de 41 indivíduos, 18 dos quais eram soldados e 5 marinheiros. O comércio da feitoria estava sob o controlo da Coroa, sendo os capitães nomeados pelo Rei, habitualmente para comissões de três anos. Tinham direito a arrecadar 25 % dos lucros do comércio realizado na feitoria, sendo assistidos por um feitor, que arrecadava 12,5 % daqueles, e por um escrivão assalariado, que recebia 20.000 réis na fase inicial dos trabalhos. Em finais de 1555, ou em princípios de 1556, a feitoria de Arguim foi atacada pelo pirata português Brás Lourenço e, em 1569, a guarnição tinha-se reduzido a 30 pessoas. A manutenção da guarnição de Arguim não era fácil, tendo de recorrer-se às vizinhas ilhas Canárias ou à Madeira, como aconteceu em 1513, quando era capitão de Arguim Fernão Pinto (que deve ter sucedido a Francisco de Almada, capitão entre 1508 e 1511, embora o seu nome não conste das listagens geralmente divulgadas, que referem apenas o Cap. Pero Vaz de Almada, em 1514-1515). O mestre do navio enviado às Canárias pelo capitão de Arguim acabou por aportar a Machico, tendo requerido ao almoxarife Antão Álvares a compra de diversos mantimentos – 30 moios de trigo, 20 quintais de biscoito e uma parte de remel (possivelmente o açúcar local) –, deixando como pagamento a João de Freitas (c. 1470-1533), executor das dívidas à Fazenda, seis escravos, marco e meio de ouro, e meia onça de ouro em pó e em pedaços, e tendo sido lavrada quitação com data de 3 de maio de 1513. Três dias depois, o mestre do navio São Miguel Fadigas entregava mais 78 dobras de ouro, em pó e em pedaços, para pagamento de novos mantimentos. Não se conhece qualquer descrição do castelo henriquino de Arguim, nem da sua reformulação na época de D. Afonso V, embora a carta de alcaidaria-mor refira ter havido então obras, nem também das remodelações da déc. de 80 do séc. XV, se bem que se saiba que, ao passar, em 1481, a monopólio régio, sob D. João II (1455-1495), o castelo foi aumentado. Arguim foi perdendo a sua importância ao longo dos anos seguintes, à medida que os interesses comerciais portugueses se transferiam para regiões localizadas a sul (e, depois, para a Índia). Desconhece-se a data em que Arguim passou a estar na dependência da Diocese do Funchal, mas julga-se ter isso ocorrido com o abandono de Safim, em 1541, de cuja Diocese deveria depender, embora não houvesse uma clara definição dos seus limites. A referência a Arguim como pertencente à Diocese do Funchal parece datar da bula do Papa Júlio III, de 1550, que separou da antiga Arquidiocese (Diocese e arquidiocese do Funchal) os territórios das novas dioceses dos Açores, de Cabo Verde, etc., que passaram à jurisdição eclesiástica de Lisboa. A referência à integração da ilha de Arguim na jurisdição do Funchal dá-se com o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), que recebeu a doação de Arguim, do seu castelo e do produto das pescas na costa de Atouguia e que, em 1601, nas Extravagantes que adicionou às anteriores Constituições Sinodais, refere que “dispondo os casos da sua jurisdição nela colocava Ouvidor Eclesiástico” (LEMOS, 1601, título 16, const. 2). Aliás, antes de ser meio-cónego da Sé, o cronista Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) foi vigário de Arguim, em 1567, na ausência do P.e António Fernandes, sinal de que a freguesia já existia e dependia do Funchal (embora pouco tempo ali estivesse, passando rapidamente a Lisboa e aí conseguindo a indigitação para uma futura eleição como meio-cónego da Sé do Funchal).   Voyages en Afrique- Asie-Indes orientales et occidentales-Jean Mocquet-1617 Arguim seria visitada por Jean Mocquet (1575-1617) (Mocquet, Jean), aventureiro francês, em 1601, na sua primeira viagem de recolha de objetos exóticos e curiosos, que lhe permitiu ocupar o boticário régio de Henrique IV (1553-1610) e organizar um gabinete de curiosidades (Colecionismo) nas Tulherias para o seu sucessor, Luís XIII (1601-1643). Jean Mocquet conta nas suas memórias que, na sua primeira viagem, em que visitou o Funchal, seguiu “o desejo que tinha há muito tempo de viajar pelo mundo: quis começar pela África”. Partira de Saint Malo a 9 de outubro de 1601, em La Syréne, que se destinava à Líbia (nome pelo qual se designava a costa marroquina à época e, assim parece, também as ilhas atlânticas e da Mauritânia), e que era um “navio carregado de sal e bem equipado de víveres e munições para a guerra” (MOCQUET, 1830, 27). A embarcação passou por diversas peripécias, chegando a ter de combater com vários corsários; passado o cabo de São Vicente, dirigiu-se ao Norte de África, e depois de dobrar o cabo Branco visitou a velha feitoria de Arguim. Conforme se usava à época (como referido), Jean Mocquet refere-se à região como “Líbia”, contando que “de toda a Líbia vão buscar água ao porto de Arguim”, que se situa sobre uma pequena ponta relevada, a seis léguas de cabo Branco. A fortaleza tinha então alguns soldados portugueses e um capitão. Mocquet menciona que os Portugueses eram amigos dos chefes da região, que não eram todos negros, havendo chefes brancos, mas que eram todos muçulmanos. Faziam comércio de plumas de avestruz e de peixe, “que aqui usam como moeda de troca” (Id., Ibid., 34). Mocquet já não refere o rendoso comércio de escravos e de ouro.     Arguim estava a entrar em franca decadência; embora periodicamente visitada pelos pescadores da Madeira e sob a jurisdição do bispo do Funchal, a sua situação militar era muito precária e a guarnição insustentável. A fortaleza de Arguim teve, em 1612, um projeto de reconstrução, a cargo do arquiteto-mor Leonardo Turriano (1559-1628), e elaborado com base nos dados que este recolhera quando estivera em idêntica função nas Canárias, entre 1588 e 1590, sendo muito provável que se tenha deslocado a Arguim. O projeto, no entanto, não passou do papel: não há registo de qualquer despesa ou movimentação de pessoal nesses anos.     A pequena fortaleza de Arguim acabaria por ser conquistada, em 1638, por forças holandesas e, alguns anos mais tarde, por forças inglesas, sendo posteriormente recuperada pelos Holandeses, até que, em setembro de 1678, foi arrasada por forças francesas, embora depois tenha sido pontualmente reconstruída pelos Franceses. Devem datar de meados do séc. XVII (de cerca de 1665) os dois desenhos flamengos de Johannes Vingboons (1616/1617-1670) que sobreviveram e que parecem representar já a remodelação de Arguim pelos Holandeses. Em 1685, estava quase abandonada, sendo então ocupada por tropas brandeburguesas, transformando-se Arguim na primeira colónia do principado de Brandeburgo. Em 1701, com a incorporação do principado no reino da Prússia, Arguim transitou para o controlo prussiano. Em 1721, perante o desinteresse da Prússia pelas suas colónias africanas, o território voltou à posse da França, momento a partir do qual se fazem muitas representações cartográficas e, inclusivamente, um levantamento planimétrico de Arguim, com Perrier de Salvert, a 8 de março de 1721.   Mapa de Arguim de Gerard van Keulen-1720   A praça seria novamente perdida para os Holandeses no ano subsequente, voltando todavia à posse dos Franceses em 1724, que ali permaneceram até 1728, ano em que abandonaram a ilha ao controlo dos líderes tribais mauritanos. Fez-se explodir a fortificação por ocasião da retirada, pouco devendo ter restado dela. A ilha regressou ao controlo francês nos princípios do séc. XX, quando foi incorporada no então protetorado da Mauritânia; em 1960, com a independência da Mauritânia, Arguim passou a fazer parte do território do novo Estado.       Teatro. A Ilha de Arguim, de Francisco Pestana Durante a sua conturbada história, a ilha foi sempre um dos centros do comércio de goma-arábica e, durante muitos anos, um importante local de caça de tartarugas marinhas e de outras atividades mais ou menos artesanais, em que estavam inclusivamente envolvidos pescadores madeirenses – isso justifica a existência de várias pequenas embarcações, quer no Funchal, quer em Câmara de Lobos, com o nome de Arguim. Embora alguns dos seus proprietários não saibam onde fica, e se tenham limitado a repetir os nomes que já os pais e avós tinham utilizado para as embarcações, subsistem lendas e narrativas populares sobre a ilha – que aparecia e desaparecia, que era o local para onde teria ido viver D. Sebastião, etc. –, que foram inclusivamente objeto de peças de teatro. Na época moderna, a dificuldade de navegação dos navios de algum calado nesta área, em razão dos bancos de areia e dos afloramentos rochosos, é patente no desastre ocorrido em julho de 1816 com a fragata francesa La Méduse, que transportava pessoal para a colónia do Senegal e que encalhou na região, sendo abandonada com grande perda de vidas. O acontecimento ficou imortalizado na obra Le Radeau de la Méduse (A Jangada da Medusa), do pintor francês Théodore Géricault (1781-1824), de 1818-1819. Arguim encontra-se ainda na base da fundação do Convento franciscano da cidade da Baía, no Brasil, como resultado da influência da lenda de S.to António de Arguim: nos inícios do séc. XVII, terá aparecido na costa brasileira, roubada por corsários franceses, uma imagem de S.to António, proveniente da antiga praça africana, pelo que o santo foi eleito padroeiro da cidade (padroado que perderia por proposta dos padres jesuítas, em 1686, passando para S. Francisco Xavier). Em suma: foi em Arguim que se localizou a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha foi sucessivamente ocupada por Portugueses, Holandeses, Ingleses, Prussianos e Franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios da antiga fortificação, tendo uma pequena povoação, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recoletores da etnia imraguen, sendo, para os madeirenses, provavelmente até aos inícios ou meados do séc. XX, um destino de pesca, e permanecendo no seu imaginário como uma antiga lenda. Pesacadores. Arguim. 2006   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017) Imagens: Arquivo Rui Carita

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