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concorrência

A livre concorrência é tutelada enquanto bem público, pelo seu impacto na promoção da eficiência económica e do incremento do bem-estar dos consumidores. Assim, enquanto pilar estruturante da atividade económica no mercado nacional, a defesa da concorrência constitui, nos termos do comando constitucional da alínea f) do art. 81.º da Constituição da República, uma incumbência prioritária do Estado no domínio económico e social. Os sucessivos diplomas legislativos sobre a defesa da concorrência em Portugal, desde o primeiro regime de efetividade normativa, o dec.-lei n.º 422/83, de 3 de dezembro, até à lei n.º 19/2012, de 8 de maio, estabeleceram um regime uniforme, nos planos substantivo e adjetivo, para as práticas restritivas e as operações de concentração de empresas que ocorram em território nacional (n.º 2 do art. 3.º da lei n.º 19/2012). Esta opção normativa é consentânea com a unidade do mercado nacional. Deve ainda ter-se em conta que a livre concorrência é igualmente reconhecida no quadro da construção da União Europeia (UE) como fundamental para o funcionamento do mercado interno (protocolo relativo ao mercado interno e à concorrência e art. 119.º, n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia [TFUE]). Este princípio é densificado pelas regras de concorrência do TFUE (arts. 101.º a 109.º). A UE dispõe de competência exclusiva para o estabelecimento das regras de concorrência necessárias ao funcionamento do mercado interno (alínea b) do n.º 1 do art. 3.º do TFUE). Assim, as atividades económicas desenvolvidas na RAM encontram-se sujeitas às regras nacionais e europeias de defesa da concorrência. Do ponto de vista institucional, compete à Autoridade da Concorrência (AdC), criada pelo dec.-lei n.º 10/2003, de 18 de janeiro, assegurar em todo o território nacional o cumprimento das regras nacionais de concorrência, bem como aí exercer as competências que lhe são conferidas pelo direito da UE (art. 5.º dos estatutos da AdC, aprovados pelo dec.-lei n.º 125/2014, de 18 de agosto). Antes da criação da AdC, aquelas competências eram exercidas pela Direção-Geral do Comércio e Concorrência e pelo Conselho da Concorrência, criado pelo dec.-lei n.º 422/83. Sendo claro o carácter nacional das regras de defesa da concorrência, bem como o alargamento do âmbito das competências da AdC a todo o território nacional, não deixa de ser surpreendente que tenha vigorado, entre 1996 e 2012, um decreto regulamentar regional da Madeira que atribuía essa competência à Inspeção Regional das Atividades Económicas (IRAE) da Madeira (dec. reg. regional n.º 2/96/M, de 24 de fevereiro). A alínea c) do art. 2.º daquele decreto cometia à IRAE da Madeira a “investigação e instrução dos processos por contraordenação cuja competência lhe esteja legalmente atribuída, incluindo os que dizem respeito a práticas restritivas da concorrência”. Ora, não prevendo nenhum dos sucessivos regimes de concorrência uma norma atributiva de competência a entidades de nível regional, não se vislumbra qual o possível alcance prático daquela disposição. O dec. reg. regional n.º 19/2012/M, de 22 de agosto, enquanto diploma orgânico da IRAE da Madeira, veio suprimir esta previsão. Além da AdC, também a Comissão Europeia (CE) dispõe de competência para garantir a aplicação das regras de concorrência do TFUE no território dos Estados-membros, incluindo, portanto, a RAM. Práticas restritivas da concorrência A lei n.º 19/2012 qualifica como práticas restritivas da concorrência os acordos, práticas concertadas e decisões de associações de empresas (art. 9.º), os abusos de posição dominante (art. 11.º) e os abusos de dependência económica (art. 12.º). Estas práticas constituem ilícitos contraordenacionais, punidos com coima até 10 % do volume de negócios das empresas infratoras, admitindo-se, todavia, a possibilidade de justificação das práticas visadas pelo art. 9.º, caso se demonstre estarem preenchidos os requisitos do balanço económico, previsto pelo art. 10.º da mesma lei. Trata-se, neste último caso, de admitir a justificação de eventuais restrições da concorrência com fundamento na sua indispensabilidade para a obtenção de ganhos de eficiência que sejam partilhados equitativamente com os utilizadores, e sem que as empresas em causa possam assim eliminar a concorrência numa parte substancial do mercado dos bens ou serviços em causa. Em matéria de acordos e práticas concertadas, encontramos um exemplo particularmente relevante da importância de uma atuação eficaz pela AdC para o bem-estar dos consumidores residentes na RAM. Referimo-nos ao caso das escolas de condução do Funchal (PRC/2008/06). O caso surgiu na sequência de uma denúncia anónima que indicava estar em curso, no início de 2008, um aumento generalizado dos preços praticados por várias escolas de condução do Funchal quanto ao ensino de condução de veículos ligeiros (categoria B). A investigação da AdC, que implicou a realização de inspeções a diversas escolas de condução no Funchal, concluiu que as empresas envolvidas se concertaram no sentido de levar a cabo um aumento de preços em duas fases, atingindo em março de 2008 um valor que era quase o dobro do praticado no final de 2007. Tendo em conta o diminuto volume de negócios das empresas, o valor total de coimas foi bastante reduzido, sendo inferior a 10 mil €. Para efeito do cálculo da coima, a AdC ponderou também o facto de as empresas em causa operarem num mercado caracterizado pela insularidade. Esta intervenção da AdC demonstra que é fundamental assegurar a tutela da concorrência em todo o território nacional, de modo que nenhum grupo de consumidores fique desprotegido, incluindo os residentes em mercados insulares, como é o caso da RAM. Embora não tenham surgido casos de decisões condenatórias por abuso de posição dominante, a proibição destas práticas pelo art. 11.º da lei n.º 19/2012 e pelo art. 102.º do TFUE levanta uma questão interessante quanto à sua aplicação na RAM. Um dos pressupostos destas proibições é a existência de uma posição dominante numa parte substancial do mercado nacional, no caso da lei n.º 19/2012, ou numa parte substancial do mercado interno, no caso do art. 102.º do TFUE. Quanto a esta última disposição, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) implica uma apreciação casuística tendo em conta fatores como a estrutura e volume de produção e de consumo do produto ou serviço em causa, bem como dos hábitos e possibilidades económicas dos vendedores e dos compradores (ac. TJUE, de 16 de fevereiro de 1975). A aplicação destes critérios já levou à qualificação de parte de um dos maiores Estados da União como uma parte substancial do mercado interno. Assim, a parte meridional da Alemanha, com 22 milhões de habitantes e na qual estava localizado um dos principais produtores de açúcar da UE, constituía uma parte substancial do mercado interno (Ibid., n.º 448). Mais recentemente, um dos Länder alemães, a Renânia-Palatinado, foi também considerada como uma parte substancial do mercado interno para efeitos do art. 102.º do Tratado, “tendo em conta a superfície do território deste Land, que é de cerca de 20.000 km2, e o número muito elevado dos seus habitantes, que é de cerca de quatro milhões, superior à população de alguns Estados-Membros” (ac. TJUE, de 25 de outubro de 2001). Relativamente ao art. 11.º da lei n.º 19/2012, julgamos ser inteiramente aplicável a posição que defendemos quanto à anterior lei da concorrência: uma região autónoma nunca deixará de constituir uma parte substancial do mercado nacional, se não por razões económicas então por razões jurídico-políticas ligadas à necessidade de tutelar a concorrência enquanto bem público e de defender o bem-estar dos consumidores residentes nas regiões autónomas. Controlo de concentrações Não sendo muito frequentes as operações de cariz regional que têm sido analisadas em sede de concentrações, o caso da compra de parte dos estabelecimentos de retalho alimentar do Grupo Sá pela Modelo Continente Hipermercados, em 2013, constitui um dos mais interessantes casos, desde logo pela aceitação da failing firm defense (argumento da falência iminente). Em 2013, devido a dificuldades financeiras, o Grupo Sá alienou um conjunto de nove estabelecimentos comerciais situados na ilha da Madeira ao Grupo Sonae – Modelo Continente. A aquisição configurava uma operação de concentração sujeita a notificação à AdC nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 50.º da lei n.º 19/2012. A 2 de maio de 2013, o Conselho da AdC adotou uma decisão de não oposição, considerando que a operação notificada não era suscetível de criar entraves significativos à concorrência efetiva no mercado retalhista de base alimentar nos formatos hipermercado, supermercado e lojas discount nas áreas geográficas afetadas, definidas como (i) áreas 1 e 2, ou seja, englobando os concelhos do Funchal (1A), de Câmara de Lobos (1B) e da Ribeira Brava (área 2), e freguesias da Camacha e Caniço (1C); (ii) área 3, correspondente aos concelhos de Santa Cruz (exceto freguesias da Camacha e Caniço) e Machico; e (iii) área 4, correspondente ao concelho de Santana. Com a operação em causa, a adquirente Modelo Continente Hipermercados passaria a deter quotas de mercado na ordem dos 50-60 % em área e entre 40-50 % em valor (dados de 2012, que refletiam as dificuldades do Grupo Sá, que detinha quotas bastante superiores nos exercícios de 2010 e 2011). Em termos globais, a operação reduzia o número de grandes operadores retalhistas de três para dois (Modelo Continente Hipermercados e Pingo Doce), com um rácio de concentração daqueles dois operadores superior a 80 %. Apesar de a operação suscitar “sérias preocupações jus-concorrenciais”, a AdC teve em conta o chamado argumento da falência iminente (“Decisão de Não Oposição...”, Autoridade da Concorrência, 2 maio 2013). Este foi, de resto, o primeiro caso em que essa defesa foi aceite no regime português de defesa da concorrência. Para a AdC, o argumento da falência iminente implica o cumprimento de duas condições gerais: em primeiro lugar, a empresa a adquirir deve estar em reais dificuldades financeiras; em segundo lugar, é necessário que estejam excluídos cenários menos gravosos para a concorrência como alternativa à aquisição em causa. Quanto à primeira condição, o facto de o Grupo Sá se encontrar sujeito a um processo especial de revitalização empresarial (PER) não parece ter sido suficiente para presumir a falência iminente, tendo a AdC procedido à análise de informação relativa às vendas para aferir as dificuldades financeiras alegadas. Quanto ao cenário alternativo, o mesmo poderia passar pela aquisição da empresa insolvente por outro concorrente, a reestruturação dos ativos e sua alienação total ou parcial, ou ainda a saída do mercado de todos os ativos da empresa. A AdC valorou com especial relevo o facto de o Grupo Sá ter procurado negociar com os outros grandes grupos de distribuição a operar em Portugal, não tendo essas negociações tido um desfecho positivo. O cenário que maiores dificuldades tende a colocar na prática é o de a saída dos ativos da empresa do mercado em causa gerar benefícios ao nível da concorrência. Sendo matéria de difícil ponderação, por lidar com probabilidades e múltiplos cenários possíveis de evolução do mercado, a AdC entendeu que, apesar de não se poder afastar definitivamente a possibilidade de os estabelecimentos em causa virem a ser adquiridos por terceiros em processo de insolvência, tal cenário tinha uma menor probabilidade de ocorrer, em especial atendendo à crise económica vivida à época na ilha da Madeira e ao facto de sete dos nove estabelecimentos terem já sido encerrados devido às dificuldades do Grupo Sá, tendo os consumidores adaptado o seu comportamento dirigindo-se aos dois grandes grupos remanescentes. Foi também considerado o potencial impacto negativo da proibição da operação na viabilização das 14 lojas do Grupo Sá não incluídas na mesma. Auxílios de Estado A disciplina dos auxílios de Estado constitui uma particularidade do sistema estabelecido pelo Tratado de Roma, que instituiu a então Comunidade Económica Europeia, correspondendo à posterior disciplina dos arts. 107.º a 109.º do TFUE. Quanto à aplicação destas regras, a CE dispõe de competência exclusiva, sujeita, claro está, à fiscalização realizada pelas instâncias judiciais da UE. Na senda do movimento de descentralização da aplicação das normas relativas a práticas restritivas da concorrência adotadas por empresas, corporizado no regulamento n.º 1/2003, alguns sistemas nacionais de defesa da concorrência passaram a integrar, sobretudo no início deste século, normas relativas ao controlo dos auxílios de Estado de âmbito puramente nacional. Foi o caso da lei n.º 18/2003, com o seu art. 13.º, a que veio a corresponder o art. 65.º da lei n.º 19/2012. Esta última disposição determina que os auxílios a empresas concedidos pelo Estado ou qualquer outro ente público não devem restringir, distorcer ou afetar de forma sensível a concorrência no todo ou em parte substancial do mercado nacional (n.º 1 do art. 65.º). A AdC pode, após analisar um auxílio aprovado ou em fase de projeto, dirigir à entidade pública em causa as recomendações que considere necessárias para que sejam eliminados os efeitos negativos sobre a concorrência (n.º 2 do art. 65.º). Como decorre da sua designação, as recomendações não vinculam as entidades em causa, limitando-se a lei a prever o acompanhamento pela AdC da execução das suas recomendações, as quais são divulgadas na respetiva página eletrónica. O único caso em que foi emitida uma recomendação no exercício desta competência diz precisamente respeito à RAM. Em causa estavam os auxílios concedidos pelo Governo regional à Empresa Jornal da Madeira, Lda. (EJM), os quais chegaram ao conhecimento da AdC através dos relatórios de auditoria do Tribunal de Contas àquela empresa, detida em 99,98 % pelo Governo regional da Madeira. A EJM atua em concorrência com outras empresas no âmbito da imprensa regional na RAM. Os apoios tiveram a forma de financiamentos a título de suprimentos no total de 33.000.000 de euros, permitindo à EJM cobrir parte substancial dos seus custos. Para além de recomendar a notificação à CE dos auxílios superiores a 200.000 euros, que não são abrangidos pelo regime de minimis estabelecido no regulamento (CE) n.º 1998/2006, a AdC entendeu que o Governo regional da Madeira devia observar um conjunto de princípios de modo a garantir que não fossem criadas distorções na concorrência. Para tal, seria necessário definir, em primeiro lugar, quais os objetivos a atingir, identificando as falhas de mercado que justificam o eventual auxílio; em segundo lugar, tais auxílios devem ser proporcionais à falha de mercado em causa; por fim, quaisquer financiamentos que ultrapassem o montante que um investidor privado, em circunstâncias normais de mercado, poderia razoavelmente disponibilizar a uma empresa participada devem ser atribuídos com base em regras objetivas e não discriminatórias. Como este breve elenco de casos procura demonstrar, a concorrência tem sido protegida enquanto bem público por diversas intervenções da AdC que asseguram a proteção dos interesses dos consumidores. Neste aspeto, o caso da concertação entre as escolas de condução do Funchal assume especial relevo, na medida em que foi posto termo a uma prática que aumentou muito substancialmente os preços pagos pelos consumidores.   Miguel Moura e Silva (atualizado a 30.12.2016)

Economia e Finanças

contas

Em termos de contabilidade, devemos considerar a Conta do Ano Económico, a Conta de Gerência e a Conta Geral de Administração Financeira do Estado (CGAFE), que engloba as duas. Ao nível das diversas operações orçamentais, podemos, ainda, definir as contas ordinária, extraordinária, dos serviços autónomos e uma exceção, a chamada “conta excecional”, resultante da guerra, que existiu nos períodos de 1914-15 e de 1927-28, tendo sido criada pela Lei n.º 372, de 31 de agosto de 1915. A CGAFE é o resultado da execução do orçamento. De acordo com a constituição de 1822, estas deveriam ser apresentadas para aprovação em Cortes, juntamente com o orçamento do ano seguinte. Na Carta Constitucional de 1926 e na Constituição de 1838, alude-se ao mesmo, sendo referido como o balanço geral da receita e despesa do tesouro público. Por lei de 18 de setembro de 1844, foi determinado que a Conta deveria ser submetida a parecer do Tribunal do Conselho Fiscal de Contas. A partir do ato adicional à Carta de 1852, ficou definida a separação entre a Conta e o orçamento. Durante a República, não tivemos qualquer alteração, o que só veio a ocorrer com a Constituição de 1933, que determinou que a sua submissão ao Parlamento deveria ser acompanhada de relatório e decisão sobre a mesma exarados pelo Tribunal de Contas (TCo). A CGAFE foi substituída, a 21 de novembro de 1936, pela Conta Geral do Estado. De acordo com a lei de 20 de março de 1907, existiam dois tipos de conta: a Conta do Ano Económico e a Conta de Gerência do mesmo. Enquanto a primeira ficava aberta por um período de cinco anos, a segunda deveria ser encerrada a cada ano e ser o registo de todas as operações financeiras realizadas. Esta segunda conta deveria igualmente ser publicada no prazo de quatro meses após o final do ano, enquadrada na CGAFE, que englobava as duas. Como já referido, a partir de 1936, esta Conta passou a designar-se Conta Geral do Estado (CGE). Com o Dec. n.º 3519, de 8 de maio de 1919, somos confrontados com a falta de cumprimento desta determinação que estabeleceu normas, no sentido de simplificar o processo, reduzindo para dois anos o período em que as contas dos anos económicos estariam abertas e o alargamento do prazo de publicação da conta para sete meses. Mesmo assim, não foi solução, e, em novo decreto, com força de lei, n.º 18381, de 24 de maio de 1930, estabeleceram-se novas regras, no sentido de obviar esta situação. Assim, o ano económico ficaria aberto apenas por 45 dias e acabava-se com as duas contas, passando a figurar apenas a Conta de Gerência. Em 1935, alargou-se o prazo da sua publicação para 12 meses e, no ano seguinte, insistiu-se na prioridade que deveria ser dada à publicação da CGE. A publicação regular das contas iniciou-se com as do ano económico de 1833-34, mas a agitação política levou, por vezes, ao não cumprimento desta ordem, como sucedeu nos anos económicos de 1845-46 a 1859-1950. Antes disso, deveremos assinalar a apresentação de três contas à Câmara dos Deputados juntamente com o orçamento respeitante aos anos económicos de 1926, 1832 e 1832-33. A partir de 1850, juntaram-se à Conta do Tesouro as contas dos Exercícios, as dos Ministérios e a da Junta de Crédito Público. Como já referido, a CGE surgiu, a 21 de novembro de 1936, para substituir a CGAFE, sendo o resultado da execução financeira do orçamento. A conta é preparada pela Direção-Geral de Contabilidade, que deveria apresentar, até 15 de março de cada ano, os mapas de execução e publicar a conta até 31 de dezembro do ano seguinte. Esta, depois de parecer do TCo, é apresentada à Assembleia para votação. A Constituição de 1976 refere, a exemplo da de 1933, que a submissão ao Parlamento deveria ser acompanhada de relatório e decisão sobre a mesma, exarados pelo TCo, e acrescenta o prazo de 31 de dezembro para a sua apresentação à Assembleia. A partir de 1977, a lei determinou a publicação mensal de contas provisórias, o que, em 1991, passou a ter uma periodicidade trimestral. A Conta da Região é a conta das regiões autónomas, tendo surgido para o ano fiscal de 1976. De acordo com a Lei n.º 98/97, de 27 de agosto, o Governo Regional é obrigado a submeter, à Secção Regional do TCo, esta Conta, que, depois de julgada, é submetida à aprovação da Assembleia Legislativa Regional, conforme lei n.º 28/92, de 1 de setembro. A Conta da Região assinala a execução orçamental da Região Autónoma da Madeira (RAM) e apresenta, detalhadamente, os valores constatados em agrupamentos como as Receitas e as Despesas do Arquipélago. Dados da Direção Regional de Orçamento e Contabilidade permitem identificar a evolução favorável das receitas, tanto as correntes como as de capital. Em 1977, o total de receitas correntes era de 8932 milhões de euros, sendo que o total de receitas de capital cifrava-se em 232 mil euros, fazendo com que a receita total se quantificasse em 9374 milhões de euros. Em 1981, o total de receitas de capital aumentou para 44.348 milhões de euros, um crescimento de cerca de 191 vezes quando comparado com o valor verificado em 1977. Ainda no mesmo ano, foi igualmente notória a evolução das receitas correntes, já que no seu total somaram o valor de 26.325 milhões de euros. Em 1985, a receita total atingiu o valor de 139.023 milhões de euros, e, no ano seguinte, o valor quase duplicou, passando para 252.542 milhões de euros, muito por conta de as receitas de capital terem passado de 32.955 milhões de euros, em 1985, para 130.162 milhões de euros, em 1986, quase igualando o valor da receita total do ano anterior. Todavia, cabe destacar que as receitas correntes aumentaram, neste período, em 14.211 milhões de euros. Para a déc. de 90, os montantes verificados foram reflexo de um aumento das receitas da RAM, tendo especial destaque o ano de 1990, em que a receita total assumiu o valor de 733.975 milhões de euros. Este valor justifica-se pelo montante assumido pelas receitas de capital, que no seu total foi de 500.346 milhões de euros, valor que atingiu tais proporções devido a um passivo financeiro assumido pela RAM de 439.473 milhões de euros. Em 1991, embora inferior à do ano anterior, que não constitui um bom elemento de comparação por conta da excecionalidade verificada, a receita total foi superior à de 1989, devido ao aumento das receitas correntes, impulsionado pelo incremento das receitas fiscais. A partir de 1995, a receita total da RAM superou os 700 milhões de euros, assumindo, nesse ano, o valor de 703.678 milhões de euros, sendo que o valor das receitas correntes foi de 337.777 milhões de euros e o das receitas de capital de 214.729 milhões de euros. Em 1996, a receita total foi de 822.373 milhões de euros, sendo que no ano seguinte o valor diminuiu para 765.446 milhões de euros, voltando a aumentar, em 1998, para 782.498 milhões de euros. No início do novo século, as receitas da RAM atingiram valores nunca antes verificados. Em 2001, a receita total da RAM foi de 1105.302 milhões de euros, aumentando no ano seguinte para 1129.110 milhões de euros e tomando o valor de 1167.048 milhões de euros em 2003. As receitas correntes em 2001 foram de 545.424 milhões de euros, tendo-se verificado um aumento das mesmas em 2002 e 2003 para 671.637 e 672.472 milhões de euros, respetivamente. As receitas de capital, pelo contrário, reduziram de 2001 para 2002, na medida em que no primeiro ano as mesmas somavam o valor de 364.151 milhões de euros e no segundo diminuíram para 271.664 milhões de euros. 2008 marca a primeira década do século no que concerne à receita total, que se cifrou em 1317.770 milhões de euros, ano em que as receitas correntes foram de 931.883 milhões de euros e as receitas de capital de 385.887 milhões de euros. Os anos seguintes foram marcados por diminuições constantes. A partir de 2009, inicia-se uma tendência que é caracterizada pelo decréscimo das receitas totais, sendo que, para esse ano, o valor das mesmas foi de 1074.878 milhões de euros. Em 2010, com uma receita total de 1201.411 milhões, é claro o aumento em relação ao ano anterior, situação que não se verificou em 2011, com uma diminuição para 1076.962 milhões de euros. Em 2012, a receita total cifrou-se em 1597.936 milhões de euros, um aumento significativo relativamente ao do ano anterior, ocasionado pelo valor assumido pela rubrica das receitas advindas de passivos financeiros, de 635.070 milhões de euros. Em 2013, os dados provisórios apontavam para um valor das receitas totais de 2492.607 milhões de euros. Para o mesmo ano, as receitas correntes eram de 1091.643 milhões de euros e as receitas de capital de 1400.964 milhões de euros. No que diz respeito à estrutura da receita, cabe destacar o peso que as receitas fiscais foram assumindo ao longo do tempo. Para 1977, as receitas fiscais eram de 6721 milhões de euros, representando 75,2 % das receitas correntes e 71, 7% das receitas totais. O ano seguinte deu início a um período que se prolongou até 1981, caracterizado pela diminuição da proporção das receitas fiscais nas receitas totais. Note-se que, em 1981, as receitas fiscais representaram 21,6 % do total das receitas e 67,7 % das receitas correntes, sendo que as mesmas mantiveram uma percentagem relativamente baixa no que concerne à receita total em 1982 e 1983, com 28,7 % e 31,0 %, respetivamente. 1989 é um ano de destaque para as receitas fiscais, já que as mesmas ascenderam aos 155.862 milhões de euros, o que se traduziu em 92,3 % das receitas correntes e 55,4 % das receitas totais. A déc. de 90 apresentou receitas orçamentais com um peso superior a 40 % das receitas totais, com exceção de 1990, ano em que a receita fiscal representou apenas 23,8 % das receitas totais. De destacar o ano de 1992, em que as receitas fiscais foram de 293.702 milhões de euros, cerca de 61,0 % da receita total desse ano. No novo século, a proporção das receitas fiscais nas receitas totais aumentou significativamente. Esta situação é identificada com maior realce no período compreendido entre 2008 e 2013. Em 2008, as receitas fiscais foram de 786.249 milhões de euros, e, embora nos anos seguintes o valor absoluto das mesmas tenha sido inferior, tomando os valores de 643.499, 682.954, 666.690 e 651.970 milhões de euros em 2009, 2010, 2011 e 2012, respetivamente, o impacto nas receitas totais foi superior em algumas ocasiões. Isto porque, se em 2008 as receitas fiscais representavam 59,7 % das receitas totais, em 2009 a proporção aumentava para 59,9 %. Em 2010, a proporção diminuía para 56,8 %, voltando a aumentar no ano seguinte, representando 61,9 %. As previsões para 2013 deixavam antever um aumento do valor absoluto das receitas fiscais, já que a estimativa apontava para um valor a rondar os 847.255 milhões de euros, substancialmente superior ao verificado no ano anterior. Todavia, e apesar do aumento do valor da mesma, a sua influência na receita total decresceu para 33,99 %. Cabe destacar que, desde 1977 até 2012, para cada um dos anos em apreço a receita fiscal apresentou-se sempre superior à receita fiscal do ano imediatamente anterior, com exceção de 1994, 2003, 2007, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013. Nesse espaço temporal, o valor mais elevado da receita fiscal, considerando os dados definitivos, foi constatado em 2008, ano em que foi verificada, de igual forma, a maior receita total, que ascendeu aos 1317.770 milhões de euros. No que concerne à componente de capital, as receitas associadas à mesma ganharam uma importância relativa bastante significativa, já que, enquanto em 1977 representavam aproximadamente 2,5 % da receita total e assumiam o valor de 232.000 mil euros, em 2012, o valor absoluto ascendia aos 703.562 milhões de euros, com um peso de 44,0 %. Não obstante, é de ressaltar que a conjuntura com a qual a RAM se viu confrontada a partir de 2008, com a crise financeira, e especialmente desde 2012, ano em que foi assinado o PAEF-RAM – Programa de Ajustamento Económico e Financeiro da RAM, deturpou, em certa medida, os pesos das receitas de capital nas receitas totais verificados em anos anteriores. Se foi notável o aumento das receitas da RAM, a evolução das despesas foi semelhante. Em 1977, a despesa total da RAM rondava os 7490 milhões de euros, passando no ano seguinte a ser de 16.827 milhões de euros, ultrapassando o dobro do ano anterior. O total da despesa aumentou anualmente até ao fim da déc. de 80, com exceção de 1984, ano em que tomou o valor de 106.213 milhões de euros, e de 1987, ano no qual a despesa total foi de 224.099 milhões de euros. Na déc. de 90, sobressai o valor verificado em 1990, em que a despesa ascendeu aos 728.808 milhões de euros. Contudo, e apesar de em 1991 se ter verificado uma diminuição do total da despesa para 392.018 milhões de euros, o período entre 1991 e 1996 apresentou um crescimento anual da mesma, tomando o valor de 816.206 milhões de euros no último ano considerado. No início do séc. XXI, a despesa total assumiu um valor nunca antes verificado, de 1100.651 milhões de euros. Não obstante o facto de em 2001 se ter atingido tal patamar, nos três anos seguintes foram constatados aumentos de tal variável, chegando, em 2004, a ser de 1306.510 milhões de euros. Os anos seguintes são caracterizados por uma diminuição da despesa total, quando comparada com a constatada em 2004, salvo em 2008, em que foi atingido um novo máximo de 1317.102 milhões de euros. 2012 marca um novo máximo da variável de 1533.094 milhões de euros, sendo que os dados provisórios de 2013 permitem vislumbrar um aumento significativo, que situa a despesa total em 2368.748 milhões de euros. A estrutura da despesa total modificou-se parcialmente ao longo dos anos em apreço, embora continue a ser maior o peso das despesas correntes, comparativamente com o das despesas de capital. Em 1983, as despesas correntes representavam, aproximadamente, 52,55 % da despesa total, sendo de cerca de 62,12 % em 2012, enquanto o peso das despesas de capital variou de 33,33 % para 37,79 % no mesmo período. Analisando as componentes que conformam cada um dos agregados da despesa, é possível constatar o peso significativo das despesas afetas ao pessoal. As mesmas cresceram cerca de 24,43 vezes entre 1983 e 2012, chegando a tomar o valor de 375.070 milhões de euros, o seu valor mais elevado, em 2009. Relativamente às despesas de capital, a rubrica que se apresenta com maior relevância é aquela que diz respeito às aquisições de bens de capital, embora em 2012 se tenha verificado uma situação na qual a despesa referente aos ativos financeiros, e que em si engloba as operações financeiras com a aquisição de títulos de crédito e com a concessão de empréstimos e subsídios reembolsáveis, foi superior à referente às aquisições de bens de capital. Não obstante, não é possível subestimar a evolução desta última rubrica, já que em 1983 a mesma tomava o valor de 2.422 milhões de euros, enquanto em 2012 o mesmo era de 217.947 milhões de euros, o que representa um aumento de cerca de 89,99 vezes. Em 1983, representava 2,18 % da despesa total, e em 2012, 14,22 %. Para efeitos da análise efetuada anteriormente, foram consideradas as despesas e as receitas orçamentais executadas afetas ao subsector do Governo Regional da Madeira, por permitir uma análise temporal mais ampla. O saldo efetivo, que reflete a diferença entre as receitas e as despesas efetivas, permite verificar a relação entre ambas as variáveis. Entre 1977 e 2012, o saldo foi negativo, com exceção dos anos: 1977, com 1896 milhões de euros; 1989, com 167 mil euros; 1992, com 1694 milhões de euros; e 2005, 2006 e 2007, com um saldo de 1302, 1070 e 1105 milhões de euros, respetivamente. Os valores deficitários mais importantes, pela expressividade que assumiram, foram os constatados nos anos: 2012, com as despesas a superarem em 491.703 milhões de euros as receitas; 2008, quando o saldo efetivo foi de -255.113 milhões de euros; e 1990, em que o diferencial entre as receitas efetivas e as despesas efetivas foi de -220.349 milhões de euros. O saldo efetivo calculado não inclui a utilização do produto da emissão de empréstimos, nem os encargos com a amortização da dívida pública.   Alberto Vieira  Sérgio Rodrigues (atualizado a 30.12.2016)

Economia e Finanças História Económica e Social

tutela administrativa

A figura jurídica da tutela representa, no âmbito do direito administrativo, uma forma de controlo administrativo que uma pessoa coletiva pública, através dos seus órgãos considerados legalmente competentes para o efeito, pode exercer sobre outra pessoa coletiva pública. Esta figura jurídica releva particularmente em ordenamentos jurídicos que consagram um sistema de organização administrativa descentralizado, pressupondo a existência de diversas pessoas jurídicas públicas. A tutela administrativa implica uma relação entre duas pessoas coletivas públicas, em que uma tem a posição de entidade tutelar e a outra de entidade tutelada. No âmbito dessa relação, a entidade tutelar acompanha e verifica o desempenho funcional da entidade tutelada, promovendo ou concorrendo para a adequação ou correção desse desempenho. A existência de uma relação tutelar entre duas pessoas coletivas públicas não se presume, dependendo de lei que, de modo inequívoco, a preveja. Estando prevista legalmente, só acarreta para a entidade tutelar os poderes sobre a entidade tutelada que resultarem, expressa ou implicitamente, da lei, não se admitindo a consagração tácita da tutela ou dos poderes tutelares respetivos. Acresce que, por definição, o legislador, ao consagrar um regime de tutela administrativa de uma pessoa coletiva pública sobre outra, deverá no limite fazê-lo de tal modo que daí não resulte a anulação da autonomia da entidade tutelada, sob pena de ficar em causa a sua personalidade jurídica e de, consequentemente, deixar de ser possível falar de uma relação entre entidades distintas, como é próprio da tutela. As limitações que por essa via se impuserem à autonomia da entidade tutelada devem restringir-se ao estritamente necessário para que se realizem os fins que o ordenamento jurídico considera que a podem justificar. Esta figura jurídica não se confunde com outras que relevam também para o direito administrativo. Assim, distingue-se desde logo da hierarquia administrativa, porque esta toma como referência uma relação entre órgãos de certa pessoa coletiva pública e não – como é próprio da tutela administrativa – uma relação entre distintas pessoas coletivas públicas. Distingue-se também da superintendência administrativa, na medida em que esta se traduz numa interferência juridicamente relevante de uma pessoa coletiva pública na gestão de uma outra, correspondendo tal interferência não a uma situação de mero controlo intersubjetivo, como é próprio da tutela, mas antes, especificamente, ao exercício de poderes tais como os de dirigir orientações, de emitir diretivas ou de solicitar informações aos órgãos dirigentes de outra pessoa coletiva pública sobre os objetivos a atingir na gestão desta e sobre as prioridades a adotar na respetiva prossecução. A tutela administrativa também não se confunde com a figura da fiscalização administrativa sobre entidades privadas que exerçam poderes públicos que é exercida por pessoas coletivas públicas. Neste caso, a diferença está em que a tutela administrativa pressupõe uma relação entre pessoas coletivas públicas, sendo que, diferentemente disto, nesta outra figura agora em referência está presente uma relação entre uma pessoa coletiva pública e uma entidade privada. Noutro aspeto, cabe referir que a tutela administrativa pode ter expressões muito distintas, variando consoante, nomeadamente, o seu alcance finalístico e material ou ainda em razão dos poderes de controlo que se lhe associam. A tutela administrativa, em razão das finalidades a que se vincula, pode configurar-se como tutela de legalidade ou como tutela de mérito, envolvendo, no primeiro caso, um controlo do cumprimento das determinações legais por parte da entidade tutelada e, no segundo caso, um controlo sobre a conveniência e a oportunidade dos comportamentos realizados pela entidade tutelada. Por sua vez, considerando o seu alcance material, distingue-se a tutela administrativa stricto sensu da tutela administrativa financeira: a primeira tem incidência sobre a autonomia administrativa da entidade tutelada; a segunda interfere com a autonomia financeira da entidade tutelada. Com referência aos poderes abrangidos, podem ainda ser identificados os seguintes tipos de tutela administrativa: tutela integrativa, em que o controlo administrativo se concretiza por via da aprovação ou da autorização da prática de determinados atos pela entidade tutelada; tutela inspetiva, que se exprime no poder de a entidade tutelar averiguar da regularidade da atuação da entidade tutelada; tutela sancionatória, que traduz o poder de aplicar sanções que se devam fazer corresponder a irregularidades verificadas no funcionamento da entidade tutelada; tutela revogatória, que envolve o poder de fazer extinguir os efeitos de regulamentos e/ou atos administrativos produzidos pela entidade tutelada e tutela substitutiva, que implica o poder de a entidade tutelar praticar atos legalmente devidos, em caso de inércia do órgão responsável da entidade tutelada. No que respeita particularmente ao ordenamento jurídico português vigente em 2016, importa ter em consideração que a Constituição, no n.º 2 do seu art. 267.º, determina que a lei estabelecerá adequadas formas de descentralização administrativa, devendo tal ocorrer sem prejuízo, nomeadamente, dos poderes de tutela dos órgãos competentes. Cabe depois esclarecer como é concebida a tutela administrativa nas situações de descentralização territorial, associativa e institucional operadas no ordenamento jurídico português. Neste sentido, com referência à descentralização territorial, impõe-se distinguir entre a que respeita às Regiões Autónomas e a que se relaciona com as autarquias locais. Quanto à descentralização em favor das regiões autónomas, será de relevar que a Constituição não prevê que seja acompanhada da consagração de correspondentes poderes de tutela estaduais. Tal descentralização é de natureza político-administrativa e não meramente administrativa, entendendo-se, por isto, que não se aplica às regiões autónomas a previsão sobre tutela administrativa contida no citado n.º 2 do art. 267.º da Constituição. Será assim de entender que, por falta de base constitucional, não será admissível a consagração, por via estatutária ou outra via legislativa ordinária, de tutela estadual sobre as Regiões Autónomas. A propósito da descentralização relativa às autarquias locais, diferentemente, a Constituição determina, no n.º 1 do seu art. 242.º, que sobre estas será exercida tutela, a qual consiste estritamente na verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos, sendo exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei. A tutela administrativa a exercer sobre as autarquias locais é, neste sentido, apenas, uma tutela inspetiva de legalidade, não cabendo aos órgãos tutelares, desde logo, o poder de apreciação do mérito dos atos praticados pelos órgãos autárquicos. Mais se determina constitucionalmente, no referido artigo, que as medidas tutelares restritivas da autonomia local devem ser precedidas de parecer de um órgão autárquico, nos termos a definir por lei (n.º 2), admitindo-se que a determinação da dissolução de órgãos autárquicos apenas possa ter por causa ações ou omissões ilegais graves (n.º 3). Tal tutela administrativa incumbe ao Estado, no caso das autarquias locais do continente, competindo ao Governo da República (art. 199.º, al. d) da Constituição); por sua vez, pertence às regiões autónomas, no caso das autarquias locais existentes nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, competindo ao respetivo Governo regional, como resulta da al. m) do art. 227.º da Constituição e dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas. Ainda a propósito do regime da tutela administrativa sobre as autarquias locais, importa considerar, especificamente, o que resulta da lei n.º 27/96, de 1 de agosto (alterada pela lei orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro), a qual se aplica também às regiões autónomas, sem prejuízo da publicação de diploma regional que identifique especificamente os membros dos Governos regionais que são competentes para o exercício da tutela administrativa; e.g., em relação à Madeira, o dec. leg. regional n.º 6/98/M, de 27 de abril. Neste diploma, entre outros aspetos, definem-se os regimes de realização de ações inspetivas e de aplicação de sanções resultantes da prática, por ação ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das autarquias locais (perda de mandato e dissolução de órgãos). No que respeita à tutela administrativa relacionada com a descentralização associativa que se concretiza em favor de associações públicas, cabe logo considerar a realidade das entidades intermunicipais (áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais), que se regem pelo disposto nos arts. 63.º e seguintes da lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, e estão sujeitas ao mesmo regime da tutela administrativa que se aplica às autarquias locais e se encontra consagrado na citada da lei n.º 27/96, de 1 de agosto. Por seu turno, as associações públicas profissionais beneficiam, nos termos da legislação que define o seu regime (lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro), do reconhecimento de uma ampla autonomia que se traduz logo na determinação legal de que não estão sujeitas a superintendência governamental nem a tutela de mérito, ressalvados quanto a esta, os casos especialmente previstos na lei (art. 45.º, n.º 1 da citada lei). Estão sujeitas a tutela de legalidade idêntica à exercida sobre as autarquias locais, sendo essa tutela de carácter inspetivo, salvo quanto aos regulamentos que versem sobre os estágios profissionais, as provas profissionais de acesso à profissão e as especialidades profissionais, os quais só produzem efeitos após a sua homologação por parte da respetiva entidade tutelar (art. 45.º, n.os 2 a 5 da citada lei). Com referência às situações de descentralização institucional relativa a institutos públicos – serviços ou fundos personalizados (neste último caso, também designados como fundações públicas de direito público) do Estado ou das regiões autónomas –, importa sublinhar que estas entidades, gozando de autonomia administrativa e financeira, se sujeitam todavia a superintendência administrativa e a tutela – consoante os casos – do Estado ou da região autónoma respetiva. A tutela administrativa que pode ser exercida sobre os institutos públicos pode ser de legalidade e de mérito, configurando-se como tutela inspetiva, integrativa, sancionatória e substitutiva, nos termos do que resulta do art. 41.º da respetiva Lei-Quadro (aprovada pela lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro, alterada e republicada pelo dec.-lei n.º 105/2007, de 3 de abril). A propósito considerem-se, ainda, as adaptações legislativas regionais constantes do dec. leg. regional n.º 17/2007/M, de 12 de novembro (alterado e republicado pelo dec. leg. regional n.º 2/2013/M, de 2 de janeiro) e do dec. leg. regional n.º 13/2007/A, de 5 de junho (alterado e republicado pelo dec. leg. regional n.º 13/2011/A, de 11 de maio). Por último, deverá cuidar-se da tutela administrativa que se realiza com referência às entidades públicas empresariais e às entidades administrativas independentes. As entidades públicas empresariais sujeitam-se à tutela administrativa que for consagrada nos atos legislativos que determinarem a sua criação. No caso das entidades administrativas independentes e, em particular, de entidades que exercem funções de regulação e de promoção e defesa da concorrência respeitantes às atividades económicas dos sectores privado, público, cooperativo e social, deverá ser considerado o disposto na Lei-Quadro da Entidades Reguladoras (aprovada pela lei n.º 67/2013, de 28 de agosto). Trata-se de entidades que, dispondo de uma ampla autonomia administrativa e financeira, se caracterizam por não se encontrarem sujeitas a superintendência ou a tutela administrativa, sujeitando-se, todavia, ao poder governamental de solicitação de informações e de aprovação e autorização prévia de alguns atos (art. 45.º da citada Lei-Quadro).   Afonso d’Oliveira Martins (atualizado a 04.01.2017)

Direito e Política

archais, associação de arqueologia e defesa do património da madeira

A ARCHAIS nasceu a 15 de abril de 1998. A sua atuação engloba a área da arqueologia e luta pela defesa do património cultural. Como obra fundamental de arranque, realizou o projeto cultural do Solar do Ribeirinho, em Machico, distinguido com o prémio APOM, da Associação Portuguesa de Museologia. Realizou inúmeros encontros, seminários e publicações diversas. Palavras-chave: arqueologia; associações culturais; defesa do património; inventários; recriações históricas.   A ARCHAIS, acrónimo da Associação de Arqueologia e Defesa do Património da Madeira, inspirado na palavra grega Arkhais que significa “antigo”, nasceu a 15 de abril de 1998, data em que formalmente registou os seus estatutos, então com sede no Sítio do Povo, em Gaula, Santa Cruz. A ARCHAIS surgiu na sequência de uma série de associações deste âmbito que proliferaram em Portugal continental e na ilha da Madeira durante as décs. de 80 e de 90, mas quase sempre, por razões de ordem vária, quer políticas quer sociais, de duração efémera. Os sócios fundadores foram Arlindo Quintal Rodrigues, Richard da Mata e Élvio Sousa. A associação assumiu-se desde logo como sociedade sem fins lucrativos, apartidária e não religiosa, visando desenvolver na RAM uma série de atividades de forma a defender os valores relacionados com a arqueologia e com o património, e a enriquecer o espírito de grupo e a cidadania. Os elementos fundadores já se encontravam a trabalhar desde 1997 pelo menos, procurando fazer um diagnóstico da situação do património cultural a nível regional. Foi com base nesse diagnóstico que vieram a assumir intervenções em várias frentes, especialmente na promoção de campanhas e de trabalhos na área da arqueologia, criando, inclusivamente, não só uma escola de arqueologia para o ensino, a formação e a promoção das campanhas a efetuar, e a promoção de cursos técnicos de introdução e de iniciação à arqueologia, à conservação e ao restauro, mas também visitas de alerta para a preservação geral do património cultural material do passado. No final da primeira década do séc. XXI, foi lançado o Portal do Arqueólogo, dedicado a todos os profissionais da área da arqueologia. Este serviço pretendia facilitar e agilizar os procedimentos decorrentes da prática profissional da arqueologia no território continental e promover a dinâmica entre a tutela do património arqueológico e o trabalhador/investigador. A obra fundamental de arranque do projeto cultural da ARCHAIS foi o trabalho de arqueologia desenvolvido a partir do Solar do Ribeirinho, em Machico, coordenado pelo Prof. Arlindo Rodrigues, que se estendeu a outros locais da cidade, tendo depois o solar sido transformado em museu, com projeto do arquiteto Vítor Mestre, que, em 2016, foi distinguido com o prémio APOM, da Associação Portuguesa de Museologia. Solar do Ribeirinho. Tapete.     Escavação Junta de Freguesia de Machico   Foi no projeto de escavação da área do solar que se alicerçaram, de imediato, outras iniciativas, tal como a realização do I Encontro Regional de Arqueologia e Património, no Funchal, a 26 e 27 de abril de 2000, cujos conteúdos foram depois publicados no Livro Branco do Património (2003). Outros encontros seguiram-se, e.g.: Legislação e Património, Arqueologia e História e Mesa-Redonda sobre a Nova-Lei de Bases do Património. Partindo da premissa de que publicar seria a melhor forma de defender e de valorizar o património e o trabalho desenvolvido, foram sendo dados à estampa não só vários estudos temáticos, tais como A Propósito do Solar do Ribeirinho (2000) e Iluminação Pública em Machico (2001), mas também inventários gerais de património de cidades e de freguesias da Região, com o apoio fundamental das Câmaras Municipais e de outras instituições.   As atividades de defesa do património da ARCHAIS estenderam-se ainda ao património cultural e ao imaterial, tendo-se tais ações integrado especialmente nos chamados mercados quinhentistas (recriações históricas muito divulgadas por toda a Europa desde os finais do séc. XX, de que o mercado de Machico se tornou paradigmático na Região). Estes eventos começaram com vários elementos ligados à Associação, com o apoio da Câmara de Machico e da Escola Básica e Secundária de Machico, quer na orientação dos professores quer na participação dos alunos, tendo-se alargado progressivamente. Naqueles mercados quinhentistas organizaram-se também colóquios sobre o património cultural imaterial que, embora não surgissem com a chancela da ARCHAIS, tinham a sua marca de origem. A atividade da ARCHAIS é indissociável da revista Ilharq, cujo n.º 0 apareceu em 2000 e o n.º 1, em 2001,e que abarca um amplo leque de temas, especialmente na área do património arqueológico. A partir do seu n.º 8, a revista começou a apresentar uma periodicidade bianual com o apoio da Câmara Municipal de Machico, e a ARCHAIS começou a ter a sua sede na antiga escola do Sítio dos Maroços, em Machico. O n.º 11 foi apresentado no Solar do Ribeirinho, a 11 de dezembro de 2015, reunindo um conjunto de artigos sobre o concelho de Machico, e revelando temáticas tais como a história regional e local, o património arquitetónico, a arte, a azulejaria, a etnografia, as tradições e as vivências quotidianas. Desde o nascimento da ARCHAIS, em 1998, foram sendo publicados também boletins informativos, acompanhados de imagens das atividades da Associação, tendo os primeiros boletins começado com uma periodicidade quadrimestral, evoluindo para uma periocidade semestral, e acabando, finalmente por se tornar anuais. A atividade da Associação, embora gozando do apoio de inúmeras personalidades nacionais ligadas à arqueologia, pretendendo intervir em toda a Ilha e arvorando-se de valores da cidadania participativa, encontrou alguma dificuldade no Funchal, devido a também existirem naquele local outras estruturas regionais e concelhias relacionadas com a área da arqueologia. Acresce que, embora assumindo-se como não partidária pelos seus estatutos, teria sido no seio desta associação, ou pelo menos com elementos ligados à mesma, que surgiu a formação partidária Juntos pelo Povo (Partidos políticos), que conquistou rapidamente representação autárquica e regional. Nesse sentido e torneando essas dificuldades, a ARCHAIS e os elementos ligados à mesma apostaram na diversificação de polos de desenvolvimento, fundando, por exemplo, o Centro de Estudos em Arqueologia Moderna e Contemporânea (CEAM), que, em união com outras entidades, desenvolveram projetos alternativos e apostaram em interessantes iniciativas vocacionadas para as camadas mais jovens (e.g., os chamados Giro de Património e os roteiros juvenis), com bastante sucesso. Estas ações, que pretendiam divulgar a realidade patrimonial local numa perspetiva de sensibilização para a necessidade de proteger, de preservar e de valorizar a mesma, conseguiram assim estender-se a quase toda a Ilha, inclusivamente às várias freguesias do Funchal, com o apoio das respetivas juntas de freguesia. O primeiro Giro, intitulado Património Histórico de Machico, editado com o apoio da Câmara Municipal de Machico, com textos de Isabel Gouveia e de Virgínia Nóia, e com design de Ricardo Caldeira, teve edição em abril de 2000; seguiu-se-lhe o Giro pelo Património Edificado de Santa Cruz, em 2001, com o mesmo design, texto de João Lino Pereira Moreira e fotografias de Élvio Duarte Martins Sousa. O sucesso da iniciativa levou a que ambos estes giros tivessem nova edição, seguindo-se, ainda em 2001, o Giro pelo Património Edificado da Ponta do Sol, com texto de Emanuel Gaspar e com o apoio da respetiva Câmara. Seguiram-se o Giro pelo Património Cultural de Santana, em 2002, e o Património Edificado da Ribeira Brava e Histórico-Arquitetónico da Calheta, em 2004, tendo sido depois promovidos, nas freguesias do Funchal, o Histórico de Santa Maria Maior, em 2005, o Histórico da Sé, em 2006, o Histórico de São Pedro, também em 2006, e o Histórico do Monte, em 2007. A ARCHAIS lançou ainda, em formato de livros de bolso, facilmente consultáveis em caminhadas, vários roteiros culturais das freguesias da zona leste da Madeira: o do Caniçal, o do Santo da Serra, o da Água de Pena, o do Porto da Cruz, o de São Jorge, e o de Gaula e de Caniço, entre outras.   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

Arquitetura Património Madeira Cultural

acordos e tratados internacionais (participação da madeira na negociação de)

A participação da Região Autónoma da Madeira (RAM) na negociação de acordos e tratados internacionais traduz-se na intervenção no procedimento de vinculação internacional do Estado português desta pessoa coletiva territorial, dotada de personalidade de direito público ao abrigo do direito português (art. 2.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM)). Trata-se de uma intervenção inserida no âmbito do processo de conclusão de tratados em Portugal, ou treaty-making power, ao constituir uma questão relacionada com os poderes conferidos às diferentes entidades públicas portuguesas e às competências atribuídas aos órgãos do poder político para intervirem na assunção de um compromisso internacional pelo Estado português. Tendo em consideração os efeitos internos e internacionais que serão potencialmente produzidos pelos compromissos internacionais, a referida intervenção deve ser analisada tendo por base uma abordagem que tenha simultaneamente em conta os contributos do direito regional, do direito interno português e do direito internacional. Os acordos e os tratados internacionais são acordos de vontade entre sujeitos de direito internacional. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 2.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 (CVDT69), a “expressão ‘tratado’ designa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo direito internacional, quer esteja consignado num instrumento único, quer em dois ou vários instrumentos conexos, e qualquer que seja a sua denominação particular”. Daqui decorre serem determinantes, para a qualificação de um compromisso internacional como acordo internacional ou tratado internacional, a intervenção de, pelo menos, dois sujeitos de direito internacional e a sua sujeição ao direito internacional. O modo como os acordos de vontade entre sujeitos de direito internacional são designados não é, assim, decisivo para os efeitos jurídicos que estes venham a produzir nos planos nacional e internacional, sendo “acordo (internacional)”, “tratado (internacional)”, e “convenção (internacional)” as denominações mais correntemente encontradas na prática dos Estados. Ao nível do direito internacional, relativamente à menor ou maior complexidade do procedimento de vinculação internacional utilizado, entende-se que a distinção entre acordo internacional e tratado internacional resulta da existência de ratificação ou da necessidade da manifestação de vontade a estar vinculado através de assinatura ser confirmada por um órgão do poder político distinto daquele a quem está confiada a negociação dos compromissos internacionais. A Constituição da República Portuguesa (CRP), no seguimento do direito internacional, utiliza os conceitos de convenção (internacional), de tratado (internacional) e de acordo internacional em diversas disposições do seu articulado. As convenções (internacionais) correspondem a compromisso internacional enquanto género (CRP, art. 8.º, n.º 2), enquanto os tratados internacionais são a espécie de vinculação internacional carecida de ratificação pelo Presidente da República (CRP, art. 135.º, alínea b)) e os acordos internacionais correspondem aos compromissos internacionais que não exigem a prática de um ato discricionário de confirmação por parte desse órgão de soberania. O EPARAM, por seu turno, faz expressa referência a tratados e acordos internacionais em quatro disposições distintas: (i) na alínea r) do art. 69.º, relativamente à competência do Governo regional para participar na negociação de compromissos internacionais; (ii) na alínea c) do art. 93.º, no que respeita à conclusão de protocolos de colaboração permanente sobre matérias de interesse comum entre o Estado e a RAM; (iii) no art. 95.º, sobre a representação na negociação de tratados e acordos internacionais que incidam sobre matérias de interesse específico da RAM; e, finalmente, (iv) na alínea e) do art. 108.º, no que concerne às receitas da RAM que sejam geradas por tratados e acordos internacionais respeitantes à Região. A potencialidade de assumir compromissos internacionais é uma prerrogativa reconhecida aos sujeitos de direito internacional, com destaque para os Estados soberanos. Nesse sentido, o art. 6.º da CVDT69 prevê expressamente que “todo o Estado tem capacidade para concluir tratados”. A possibilidade de entidades que integram a organização política e administrativa de um Estado soberano concluírem compromissos com natureza e efeitos jurídico-internacionais é algo que resulta da sua organização interna e exige a expressa concordância do outro ou dos outros sujeitos de direito internacional intervenientes (nesse sentido, o n.º 3 do art. 225.º da CRP, ao estabelecer que a “autonomia político-administrativa não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição”, conduziu o Tribunal Constitucional a afirmar, no ac. n.º 403/2009, de 30 de julho, que os “poderes das regiões autónomas, em matéria de política externa, não as transformam, portanto, em entidades autónomas e diferenciadas do Estado Português, do ponto de vista do Direito Internacional Público”). O procedimento de vinculação internacional do Estado português consiste no conjunto de regras jurídicas e de práticas que são seguidas em Portugal na assunção de um compromisso internacional. Trata-se de um procedimento muito complexo, em resultado de a capacidade de Portugal para a conclusão de compromissos internacionais se ter alterado substancialmente em consequência da sua integração na União Europeia (UE). Daqui decorre que uma adequada compreensão desta matéria implique, por um lado, ter-se em consideração que se trata de uma matéria simultaneamente regulada pelo direito interno, pelo direito internacional e pelo direito da UE e, por outro lado, que a liberdade de atuação internacional do Estado português está limitada em virtude de ser um Estado-membro da União Europeia. O procedimento de vinculação internacional dos Estados vai buscar a sua estrutura básica ao direito internacional, nomeadamente às normas de direito consuetudinário codificado e de direito estritamente convencional que integram os arts. 6.º a 25.º da CVDT69. No direito dos Estados encontram-se, por seu turno, as regras jurídicas que desenvolvem essa estrutura fundamental, com destaque para os órgãos com competência para atuar em cada uma das fases do procedimento de vinculação internacional e os termos em que é feita a publicitação internacional das convenções internacionais que tenham sido assumidas pelos Estados. A participação de Portugal na UE, ao implicar a aceitação de um estatuto genérico de capacidade internacional limitada, integra a obrigação de atuar de forma coordenada ou conjunta com as Comunidades ou com a UE ao nível da vinculação internacional. A conclusão de tratados e de acordos internacionais deixou, em conformidade, de ser uma atividade livre do Estado português, para passar a ser uma atuação em que este só se poderá vincular individualmente se tiver capacidade internacional para o fazer. Em conformidade com a alínea t) do n.º 1 do art. 227.º da CRP, a RAM deve “participar nas negociações de tratados e acordos internacionais que diretamente lhes digam respeito, bem como nos benefícios deles decorrentes”. Em sentido concordante, no art. 95.º do EPARAM, integrado na secção IV (“Participação da Região em Negociações Internacionais”) do capítulo II (“Relações entre os Órgãos de Soberania e os Órgãos de Governo Próprio”) do título III (“Relações entre o Estado e a Região”), está expressamente previsto que a “participação nas negociações de tratados e acordos que interessem especificamente à Região realiza-se através de representação efetiva na delegação nacional que negociar o tratado ou o acordo, bem como nas respetivas comissões de execução ou fiscalização”. Da leitura conjugada destas duas disposições resultam três perguntas, a que importa dar resposta quando se pretende saber qual é o significado da participação da RAM no procedimento de vinculação internacional do Estado português: (i) quais são as matérias em relação às quais a RAM deve participar na negociação de um compromisso internacional a celebrar pelo Estado português; (ii) como se concretiza o direito constitucional de participação da RAM nas negociações jurídico-internacionais que sejam prosseguidas pelo Estado português; (iii) por último, quando deve ter lugar a participação da RAM na assunção de um compromisso internacional por parte de Portugal. Em primeiro lugar, antes de mais, importa delimitar os compromissos internacionais que integram o direito constitucional de participação na negociação de um compromisso internacional do Estado português por parte da RAM. Para alcançar esse desiderato devem-se ter em consideração três disposições do EPARAM. Em primeiro lugar, o art. 40.º, que apresenta um longo elenco das matérias de interesse específico que são relevantes como “motivos de consulta obrigatória pelos órgãos de soberania”. Em segundo lugar, o art. 94.º do EPARAM, que elenca as matérias de direito internacional que podem constituir o objeto de protocolos de colaboração permanente que venham a ser celebrados entre o Governo da República e o Governo regional e que integram os “trabalhos preparatórios, acordos, tratados e textos de direito internacional” (alínea c) do art. 93.º do EPARAM), e, ainda, os “benefícios decorrentes de tratados ou de acordos internacionais que digam diretamente respeito à Região” (alínea d) do art. 93.º do EPARAM). E, finalmente, a alínea e) do art. 108.º do EPARAM, ao prever que constituem receitas da Região os “benefícios decorrentes de tratados e acordos internacionais respeitantes à Região, tal como definida nos artigos 1.º, 2.º e 3.º deste Estatuto”, em razão da referência, no n.º 2 do art. 3.º do EPARAM, ao “mar circundante e seus fundos, designadamente as águas territoriais e a zona económica exclusiva”. O art. 94.º do EPARAM é particularmente relevante neste domínio, ao prever que constituem “designadamente matérias de direito internacional […] respeitando diretamente à Região”: “a) Utilização do território regional por entidades estrangeiras, em especial bases militares; b) Protocolos celebrados com a NATO e outras organizações internacionais, em especial sobre instalações de natureza militar ou paramilitar; c) Participação de Portugal na União Europeia; d) Lei do mar; e) Utilização da zona económica exclusiva; f) Plataforma continental; g) Poluição do mar; h) Conservação, investigação e exploração de espécies vivas; i) Navegação aérea; e j) Exploração do espaço aéreo controlado”. O Tribunal Constitucional, no ac. n.º 800/2014, de 26 de novembro de 2014, a propósito do dever de audição dos órgãos regionais, avança, em termos muito gerais, que, de acordo com uma jurisprudência “que remonta ao Parecer n.º 20/77 da Comissão Constitucional […], sendo reiterada posteriormente em acórdãos do Tribunal (v. Acórdão n.º 174/2009 e jurisprudência aí referida e, por último, o Acórdão n.º 747/2014), ‘[…] são questões de competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às regiões autónomas, aquelas que, excedendo a competência dos órgãos de governo regional, respeitem a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios’”. Assim sendo, das disposições citadas, em conjugação com a alínea s) do n.º 1 do art. 227.º da CRP (“participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos”), decorre que um domínio em que a RAM terá um interesse reforçado em participar em negociações visando a assunção de compromissos internacionais pelo Estado português será o relacionado com as matérias relativas às atividades que podem ser prosseguidas no espaço aéreo e nos espaços marítimos adjacentes e circundantes ao território terrestre do arquipélago da Madeira. Em segundo lugar, importa esclarecer como se concretiza o direito constitucional de participação da RAM na negociação jurídico-internacional, tendo em consideração que o art. 95.º do EPARAM estipula que esta se deve realizar através “de representação efetiva na delegação nacional que negociar o tratado ou o acordo”. Ao Governo regional, em conformidade com o art. 69.º do EPARAM, é atribuída competência para “participar na negociação de tratados e acordos internacionais que digam diretamente respeito à Região bem como nos benefícios deles decorrentes” (alínea r)) e para “participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos”. A orgânica da presidência do Governo, aprovada pelo dec. reg. regional n.º 11/2016/M, de 6 de abril, estipula, no n.º 3 do art. 2.º, que o “Presidente do Governo Regional exerce os poderes que a lei confere ao Governo Regional” relativamente a “tratados e acordos internacionais que digam diretamente respeito à Região”, sem fornecer qualquer outro elemento relevante neste domínio. No ac. n.º 403/2009, de 30 de julho, antes citado, e a propósito das alterações ao Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, o Tribunal Constitucional não avançou com qualquer elemento relevante neste domínio, dado que se limitou a transcrever um passo de Rui Moura Ramos quando este afirmava que “precisa-se, no que respeita à sua concretização, que tal participação traduzir-se-á na representação efetiva dentro da delegação nacional que negociará o tratado ou acordo”. Em termos que merecem concordância, Maria Luísa Duarte defende que a “participação compreende a representação na delegação da República Portuguesa incumbida da negociação, o direito de ser notificada de toda a documentação relevante e ainda a oportunidade de ser ouvida e de se pronunciar, de modo efetivo, sobre as questões da negociação com incidência regional direta” (DUARTE, 2014, 236). Importa realçar, no entanto, como o fez o presidente do Tribunal Constitucional, conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro, na sua declaração de voto no ac. n.º 136/2016, de 29 de fevereiro, a propósito de uma questão próxima, ao apreciar os poderes das regiões autónomas ao nível do ordenamento do espaço marítimo, em termos particularmente adequados ao seu esclarecimento, que a posição reconhecida à RAM é corporizada por “poderes cuja natureza e alcance permitem apenas estabelecer ‘fluxos de comunicação e manifestação de vontade’ por parte desses órgãos, mas não dão qualquer garantia de que essa vontade seja minimamente tida em conta ou respeitada na decisão final”. Finalmente, em terceiro lugar, importa esclarecer quando deve ter lugar a participação da RAM no âmbito do procedimento conducente à assunção de um compromisso internacional por parte de Portugal. O Tribunal Constitucional, no ac. n.º 800/2014, de 26 de novembro, antes citado, refere, em termos relevantes para a questão em análise, que em “procedimentos legislativos complexos em que as decisões fundamentais quanto ao regime a definir se não tomam em um só momento mas se vão tomando em fases consecutivas, importa assegurar que a audição regional ocorra naquela fase do procedimento em que mais ampla é a liberdade de conformação do legislador nacional”. No procedimento de vinculação internacional do Estado português podem ser distinguidas cinco fases: (i) a negociação; (ii) a assinatura; (iii) a aprovação interna ou aprovação interna conducente à manifestação definitiva do consentimento a estar vinculado internacionalmente; (iv) a ratificação ou manifestação definitiva do consentimento a estar vinculado internacionalmente; e (v) a publicitação, interna e internacional. Sendo a negociação a primeira fase do procedimento de vinculação internacional, é nela que importa garantir a efetividade da participação da RAM, dado que, sendo uma competência do Governo central negociar compromissos internacionais, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 197.º da CRP, no seu âmbito podem ser autonomizados dois momentos distintos: por um lado, uma subfase prévia, anterior à negociação, que consiste na decisão de vinculação internacional; por outro lado, a negociação propriamente dita, que é uma concretização da decisão de vinculação internacional. Tendo o procedimento de vinculação internacional do Estado português o seu momento propulsor com a decisão de vinculação internacional, deverá ser este o momento a partir do qual a intervenção da RAM é jurídica e factualmente relevante, na medida em que é nesta ocasião que o decisor português deve fazer o cruzamento entre o interesse ou a necessidade de ser assumida uma determinada vinculação internacional e a possibilidade de esta ser concluída, tendo em consideração o preenchimento de determinadas condições de natureza jurídica. Com efeito, antes de mais, o decisor português tem a obrigação de confrontar a intenção de assumir uma determinada vinculação internacional com um conjunto de condicionamentos de natureza jurídica, de carácter interno e externo. De carácter interno, de uma banda, para analisar a compatibilidade da vinculação internacional que pretende assumir com determinadas normas de natureza constitucional, nomeadamente as que regulam o treaty-making power e as que estabelecem princípios relativos à atuação externa do Estado. De carácter externo, de outra banda, para ter em consideração os limites à decisão de vinculação internacional do Estado português que resultam da sua subordinação às normas de ius cogens, do respeito pelos compromissos anteriormente assumidos que estejam em vigor e, finalmente, da participação de Portugal na União Europeia. Entre os condicionamentos de carácter jurídico tem especial importância a questão da apreciação da capacidade de vinculação internacional do Estado português, em resultado da extensão das limitações impostas pela União Europeia à capacidade de vinculação internacional dos Estados-membros. Esta matéria assume, além disso, uma prioridade lógica na decisão de vinculação internacional, na medida em que, nas situações de incapacidade, o Estado português não terá, enquanto tal, e isoladamente, legitimidade para assumir a vinculação internacional em causa. Confirmada a existência de capacidade para a assunção de um compromisso internacional, a decisão de vinculação internacional deverá ainda ponderar a questão da opção pelo tipo de procedimento a ser utilizado. Como referido anteriormente, a CRP utiliza, nesta matéria, a contraposição entre tratado internacional e acordo internacional: o primeiro é um compromisso internacional sujeito a ratificação ou a uma manifestação semelhante do consentimento a estar vinculado; o segundo é um compromisso internacional que não está sujeito a ratificação ou a um tipo semelhante de manifestação reforçada do consentimento a estar vinculado. Vigora em Portugal, em termos gerais, um princípio de liberdade de escolha do procedimento ou da forma que irá assumir a vinculação internacional, do que resulta ser a opção pelo procedimento a utilizar, na maioria das situações, uma decisão dos contratantes em presença. Existem, no entanto, algumas situações em que é imposta a forma de tratado em Portugal, em resultado da alínea i) do art. 161.º da CRP. Daqui resulta só ser exigida a utilização de um procedimento de vinculação solene nos casos dos compromissos internacionais expressamente previstos na segunda parte do primeiro segmento da alínea i) do art. 161.º da CRP, isto é, relativamente aos “tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de retificação de fronteiras e os respeitantes a assuntos militares”. Nas outras situações de vinculação internacional poderá ser indiferentemente utilizado o procedimento solene ou simplificado, algo que é distinto da exigência da submissão, à aprovação da Assembleia da República, de um conjunto alargado de compromissos internacionais, em conformidade com a alínea i) do art. 161.º da CRP, anteriormente mencionada. Assim sendo, não existe uma justificação jurídico-constitucional para se defender uma distinção material entre tratados e acordos internacionais, nem uma argumentação convincente para defender, em consequência, uma qualquer subordinação hierárquica do acordo internacional (em forma simplificada) ao tratado internacional. A negociação internacional será levada a cabo por intermédio do Ministério dos Negócios Estrangeiros ou dos diversos ministérios ou departamentos sectoriais que integram a administração central do Estado, devendo ser prosseguida com uma efetiva intervenção dos órgãos competentes da RAM. Ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, enquanto “departamento governamental que tem por missão formular, coordenar e executar a política externa de Portugal” (nos termos do art. 1.º do dec.-lei n.º 121/2011, de 29 de dezembro), cabe a apreciação das matérias políticas e técnicas de natureza jurídico-internacional, em conformidade com o que se encontra previsto na sua lei orgânica. Nesse sentido, a alínea j) do n.º 1 do art. 2.º do diploma antes citado prevê que são atribuições do Ministério dos Negócios Estrangeiros “conduzir as negociações e os processos de vinculação internacional do Estado português, sem prejuízo das competências atribuídas por lei a outras entidades públicas”. Em sentido idêntico, os n.os 1 e 2 da resolução do Conselho de Ministros n.º 17/88, de 7 de abril, estabelecem que cabe ao Ministério dos Negócios Estrangeiros a coordenação das negociações conducentes à aceitação de vinculações internacionais. Aos restantes ministérios ou departamentos sectoriais, por seu turno, caberá intervir nas negociações relativamente à matéria técnica que constitui o objeto da vinculação internacional. Importa acrescentar que o direito de participação da RAM deve também abranger o modo como os objetivos e os resultados que estiverem a ser alcançados nas negociações dos compromissos internacionais de maior relevância são objeto de informação por parte do Governo ao Presidente da República, aos partidos políticos representados na Assembleia da República e que não façam parte do Governo e aos grupos parlamentares, nos termos, respetivamente, da alínea c) do n.º 1 do art. 201.º, do n.º 3 do art. 114.º e da alínea j) do n.º 2 do art. 180.º da CRP.   Fernando Loureiro Bastos (atualizado a 25.11.2016)

Direito e Política História Política e Institucional

zona franca ou centro internacional de negócios da madeira

A criação da Zona Franca da Madeira (ZFM), que veio também a ser designada por Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM), resultou de um conjunto de circunstâncias e causas de natureza diversa, sendo umas remotas e outras próximas: por um lado, as aspirações ancestrais dos madeirenses, fundadas na existência de um porto franco de consumo existente nas ilhas Canárias, e, por outro, o movimento que, sob a égide da Associação Comercial e Industrial do Funchal (ACIF), conduziu, face à situação da economia da Madeira na década de 70 do séc. XX, à reflexão do modelo de zona franca mais adequado e consentâneo com as características geográficas, geológicas, morfológicas, económicas e sociais da Madeira. Este desiderato havia já sido ensaiado através da lei n.º 265, de 24 de julho de 1914, que autorizou o Governo a adjudicar a construção e a exploração duma zona franca na Madeira que seria instalada no local julgado mais conveniente por uma comissão técnica, durante 60 anos. Na zona franca, seriam permitidas todas as operações de beneficiação, empacotamento e transformação dos géneros do arquipélago da Madeira em outros produtos comerciáveis, com a exceção do vinho, beneficiando de isenção de direitos para embarcar, desembarcar e depositar aqueles géneros, isenção que não abrangia o cacau e o azeite não destinado a conservas. A zona franca ficava sujeita ao regime fiscal dos armazéns gerais francos, aprovado pelo dec. de 27 de maio de 1911, e a sociedade adjudicatária garantia as suas obrigações legais e contratuais nos termos previstos pela lei de 13 de junho de 1913, que havia autorizado a construção e a exploração de um porto franco em Lisboa. Esta iniciativa legislativa não foi prosseguida e, na déc. de 1970, a ACIF levou a cabo as providências necessárias ao apuramento e à definição do modelo da zona franca mais adequado à Madeira com base nesta dicotomia: uma zona franca comercial ou de consumo, como a das Canárias, ou uma zona franca empresarial, como na Irlanda e nas ilhas do Canal. Para esse efeito, a ACIF promoveu, em 1974, a realização de um estudo da viabilidade e oportunidade da criação de uma zona franca, sustentado em inquérito destinado a recolher a opinião de largos sectores da população sobre o projeto, tendo sido consultados todos os organismos oficiais, os representantes dos vários sectores da vida económica da Região, bem como outros profissionais de diversas atividades. Neste inquérito, a área abrangida pela zona franca admitia três hipóteses: um porto franco, uma zona franca extensiva a toda a ilha da Madeira, ou uma zona abrangendo todo o arquipélago da Madeira. Assente em participação ativa e relevante das entidades consultadas e nos resultados desse inquérito, a ACIF assegurou a elaboração de um estudo prévio, cujo texto provisório foi colocado à apreciação e discussão em 1975, através da consulta às entidades e aos profissionais já auscultados no inquérito anteriormente realizado. O texto preliminar e provisório desse estudo foi publicado na íntegra na imprensa diária, tendo, assim, o debate sido alargado a toda a população. O texto definitivo do estudo prévio resultou da inserção dos contributos obtidos através das diligências efetuadas, contendo uma análise das vantagens advenientes da criação da zona franca – então referenciada como regime de franquia aduaneira –, bem como um projeto de diploma legal e respetivo regulamento atinentes ao correlato regime. Este estudo foi apresentado, em 1975, à então Junta de Planeamento da Madeira, a qual entendeu que, dada a natureza e a importância de que o projeto se revestia, devia o mesmo ser objeto de aprofundamento através de uma entidade internacional especializada na matéria. A ACIF, tendo em consideração que o estudo em causa devia abranger uma perspetiva global, integrada e de longo prazo da economia regional, obteve propostas de três empresas especializadas: a americana International Finance Consultants, a britânica M. L. H. Consultants Ltd e a alemã Agrar und Hydrotechnik, cujos representantes se deslocaram à Madeira para a prestação de esclarecimentos sobre as propostas apresentadas, em reuniões em que também participaram os vogais para o Planeamento e Finanças e para a Indústria, Agricultura e Pescas da então Junta Regional da Madeira. Em 1976, a realização do estudo foi adjudicada à sociedade International Finance Consultants, a qual apresentou o estudo em 1977, tendo o mesmo sido objeto de ajustamentos face ao pedido formulado em 1978 pelo Governo da República de adesão do país à então Comunidade Económica Europeia. Com base neste estudo e nas diligências efetuadas junto do Governo da República, foi, em 1980, criada a Zona Franca da Madeira visando satisfazer uma velha aspiração dos Madeirenses e tendo como pressupostos a especial situação geoestratégica da Madeira, onde se conjugam as características específicas da economia regional com a sua peculiar configuração sócio-política, de molde a facultar o aparecimento de novos sectores voltados para o desenvolvimento económico e social da Região. Na iminência da criação da zona franca, o conselho do Governo regional procedeu à definição da localização e demarcação da área onde a mesma seria instalada, tendo a escolha recaído na freguesia do Caniçal, em território que se delimitava, devido aos princípios e orientações do ordenamento territorial da zona litoral, entre o Garajau e a Ponta de São Lourenço, pela pertença de imóveis afetáveis da Região na referida freguesia, pela localização do aeroporto, pela melhoria do eixo rodoviário que o liga ao Funchal, e pela previsível construção de viadutos previstos sobre as ribeiras em Santa Cruz e no Porto Novo. Em 1988, o Governo regional voltou a pronunciar-se sobre os critérios de implementação da Zona Franca Industrial, tendo em consideração os interesses legítimos do agregado populacional do Caniçal, a localização definitiva das instalações escolares e desportivas, a existência de um porto de pesca e os campos agrícolas experimentais do Governo. Nessa primeira data, ficou assente que seriam definidos posteriormente o regime jurídico-fiscal aplicável, a natureza, o âmbito territorial e as características da zona franca, bem como a regulamentação da atividade nela desenvolvida, tendo em consideração os condicionalismos resultantes das negociações encetadas para a adesão de Portugal à então CEE. Essa definição foi efetuada em 1982, ficando determinado que poderiam ser autorizadas, na zona franca, todas as atividades de natureza industrial, comercial ou financeira, sendo os pedidos de instalação das empresas apreciados e decididos com base em dois parâmetros fundamentais: a idoneidade da firma impetrante e o interesse económico da atividade a desenvolver. Nessa mesma data, ficou a zona franca industrial definida como um enclave territorial onde as mercadorias que nele se encontram são consideradas como não estando no território aduaneiro para efeito de aplicação de direitos aduaneiros, de restrições quantitativas e de mais imposições ou medidas de efeito equivalente. A zona franca deveria ser exteriormente resguardada por uma vedação, de harmonia com o disposto no Código da Reforma Aduaneira, e disporia de uma estância aduaneira e de um posto fiscal próprios, que vieram a ser criados em 1990. A regulamentação operada teve em atenção as normas comunitárias concernentes ao funcionamento de zonas francas e ao denominado regime de aperfeiçoamento ativo, em subordinação ao princípio de conformação das disposições legais aplicáveis à zona franca ao ordenamento jurídico comunitário. Nesse mesmo ano, foi constituída a comissão instaladora da ZFM, composta por dois representantes do Governo regional da Madeira e dois representantes – um efetivo e um suplente – da ACIF. O período compreendido entre 1982 e 1985 foi dedicado à conceção e definição do regime fiscal da zona franca e da sua administração e exploração em regime de concessão. Assim, em 1985, foi aprovado um regime fiscal que se traduziria num sistema contratual de usufruição dos benefícios fiscais, fortemente inspirado pelo regime constante do Código de Investimento Estrangeiro então vigente, mas, que, por não corresponder à proposta apresentada pelo Governo regional ao Governo da República, foi substituído, seis meses depois, por novo decreto-lei, que consagrou o princípio da usufruição automática dos benefícios e incentivos fiscais e financeiros pelas empresas, logo após o seu licenciamento no âmbito da zona franca. Na conceção do regime de incentivos foi tido em consideração o disposto no Tratado de Roma relativamente ao desenvolvimento regional e as regras de salvaguarda da distorção da concorrência no seio da Comunidade Económica Europeia. Paralelamente, a Assembleia Regional da Madeira aprovou o regime de administração e exploração da ZFM, autorizando o Governo a adjudicar, em regime de concessão e com dispensa da realização de concurso, a sua gestão a uma entidade privada nacional ou estrangeira, na qual a Região Autónoma da Madeira (RAM) viesse a participar ou à qual viesse a associar-se. A previsão da existência de uma comissão para assegurar uma simplificação dos procedimentos administrativos, bem como um desburocratizado acompanhamento e fiscalização das atividades licenciadas, foi uma antevisão do gabinete da Zona Franca criado no ano seguinte com esse escopo e essa missão funcional, com a concomitante extinção da comissão instaladora da Zona Franca. O prazo da concessão foi estabelecido em 30 anos, sem prejuízo da sua eventual renovação ou prorrogação, ficando o Governo regional autorizado a regular as condições de exercício das atividades, quer da concessionária quer dos utentes da zona franca. Nesse mesmo ano de 1986, foi regulado o exercício de atividades financeiras através das denominadas sucursais financeiras exteriores, tendo o Governo regional procedido, em 1987, à regulamentação das condições de instalação e funcionamento daquelas sucursais. O exercício destas atividades foi alargado, em 1994, quer às instituições constituídas de raiz quer às sucursais financeiras internacionais, as quais podiam realizar operações com residentes, faculdade que se encontrava vedada às sucursais financeiras exteriores. Em 1987, o Governo regional da Madeira adjudicou a administração e a exploração da zona franca à Sociedade de Desenvolvimento da Madeira, S.A., e aprovou o Regulamento das Atividades Industriais, Comerciais e de Serviços Internacionais no âmbito institucional da ZFM. No reconhecimento da proeminência económica e social, contributiva do desenvolvimento da Região, e da concomitante necessidade de uma gestão célere, proficiente e atempada, considerada como pressuposto e condição essencial para uma maior simplicidade e eficiência do processo decisório, o Governo regional não só rejeitava e removia os processos de antanho, os quais recorriam a desnecessárias complexidades e delongas processuais, desencorajadoras do investimento prosseguido por entidades caldeadas em regimes mais simplificados, como também fundamentava a opção por uma gestão empresarial em termos privados da zona franca. O diploma em causa estabeleceu o regime de licenciamento das atividades em consideração, as competências da concessionária nesse licenciamento, na aprovação dos projetos de instalação e funcionamento das empresas industriais e na fiscalização das obras com base em licença emitida pela concessionária, assim como o regime de uso dos imóveis por via da subconcessão do domínio público em autoconstrução ou de direito de uso em pavilhões construídos pela concessionária, os quais, finda a concessão, revertem gratuitamente para a RAM. Em 1988, os princípios de simplificação, desburocratização e de celeridade fundamentaram a criação da Conservatória do Registo Comercial Privativa da Zona Franca da Madeira e do Cartório Notarial também privativo da zona franca, cujo início de funcionamento foi fixado para o dia 1 de abril de 1989, tendo sido estabelecido que os atos praticados por aqueles serviços privativos se encontravam isentos de qualquer taxa ou emolumento. Os mesmos princípios determinaram, em 1989, a criação da IV Série do Jornal Oficial, destinada exclusivamente às empresas licenciadas na zona franca – cujas publicações, não exigidas em regimes europeus congéneres, foram também isentas de pagamento de taxas –, a autorização da constituição, em 1994, das sociedades comerciais por quotas e anónimas unipessoais e, em 1995, o reconhecimento da faculdade de as sociedades licenciadas usarem palavras ou parte de palavras estrangeiras ou de feição estrangeira na composição das suas firmas ou denominações. Estes princípios, pioneiros no país quer em relação à autorização das sociedades unipessoais, mais tarde autorizadas só para o tipo por quotas, quer em relação à simplificação administrativa e à prática e objetivos empresariais, permitiram que, na sua conceção, a ZFM constituísse o primeiro exercício unitário, integrado e coerente de internacionalização da economia portuguesa. Nesse mesmo sentido, em 1988, tendo em consideração que muitos dos investidores seriam oriundos de países com ordenamentos jurídicos diversos do sistema português, designadamente dos países da common law, e reconhecendo a necessidade de dotar a ZFM de instrumentos mais eficazes na captação do investimento direto estrangeiro, foi autorizada a instituição de instrumentos de trust, instituto jurídico até à data inexistente no ordenamento jurídico português. Este regime de propriedade fiduciária, envolvendo uma relação tripartida entre o settlor ou instituidor, o trustee e os beneficiários ou a causa específica por eles prosseguida, que nos regimes romano-germânicos encontram fronteiras com as fundações, o usufruto, o mandato sem representação e o fideicomisso ou a fidúcia, permitiu à zona franca disponibilizar aos seus utentes um meio jurídico que lhes era facultado noutros regimes e jurisdições congéneres. Em 1989, foi criado o quarto sector de atividades, acrescentando-se à Zona Franca Industrial, aos serviços financeiros e aos serviços internacionais o Registo Internacional de Navios da Madeira (MAR), o qual foi criado visando a prossecução de dois fins: em primeiro lugar, estancar os processos de saída de navios do registo convencional português para registos de conveniência (flagging-out) e, em segundo lugar, atrair novos armadores e navios, oferecendo condições de custos semelhantes às apresentadas pelos registos mais competitivos. Nesse sentido, o MAR foi dotado de uma somissão técnica, composta por um representante do membro do Governo responsável pelo sector dos transportes, um representante da RAM e um representante da Inspeção Geral de Navios. Adentro das condições indispensáveis à atratividade do MAR, a Lei do Orçamento do Estado para 1989 procedeu à consagração da isenção do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) para os tripulantes embarcados nos navios matriculados no MAR e o próprio diploma que procedeu à sua criação não só aplicou aos navios o regime fiscal da zona franca, como também permitiu às partes que designassem a lei que regula a constituição das hipotecas, tendo o aprofundamento do regime de graduação dos privilégios creditórios determinado o recesso da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimos, assinada em Bruxelas em 10 de abril de 1926, que se havia tornado um impedimento à adesão dos armadores devido às objeções colocadas pelos credores hipotecários em relação à graduação dos seus créditos. Paralelamente, foi facultado aos tripulantes dos navios o acesso ao regime do seguro social voluntário. A reforma fiscal operada em 1989, com a extinção da contribuição predial e industrial, da sisa e do imposto profissional, e a concomitante criação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), do Imposto Municipal sobre os Imóveis (IMI) e do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas (IMT), determinou que o regime fiscal da ZFM ficasse, em grande parte, plasmado no Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), então aprovado. Nesse sentido, o primeiro regime fiscal (regime i) da zona franca, que vigorava desde 1986, passou a constar do EBF e permitiu o licenciamento de atividades até 31 de dezembro de 2000, usufruindo as empresas que as desenvolvessem da isenção de IRC até 31 de dezembro de 2011. O regime ii, com uma taxa de tributação em IRC de 1 %, 2 % e 3 %, respetivamente nos anos de 2003-2004, 2005-2006 e de 2007 a 2011, entrou em vigor a 1 de janeiro de 2003, permitindo o licenciamento de atividades até 31 de dezembro de 2006, com o usufruto desse benefício pelas entidades que as prosseguissem até 31 de dezembro de 2011. O regime iii, com uma taxa de tributação em IRC de 3 %, 4 % e 5 %, respetivamente nos anos de 2007-2009, 2010-2012 e de 2013 a 2020, entrou em vigor a 1 de janeiro de 2007, permitindo o licenciamento de atividades até 31 de dezembro de 2013, prazo que, de acordo com a legislação comunitária adrede posta em vigor, foi prorrogado, por duas vezes, até 31 de dezembro de 2014, com usufruição dos benefícios fiscais até 31 de dezembro de 2020. As empresas licenciadas no CINM são contribuintes fiscais portugueses para todos os efeitos, pendendo sobre elas as obrigações gerais a que se encontram adstritos os contribuintes em geral, e pagam uma taxa de instalação aquando do licenciamento, e uma taxa anual de funcionamento, através de depósito nos cofres da concessionária nos termos previstos na lei e no contrato de concessão. Os resultados obtidos pela aplicação destes regimes são de natureza qualitativa e quantitativa. Os primeiros, já referidos, permitiram que o CINM constituísse o primeiro exercício político-económico de internacionalização da economia portuguesa, rasgando novos rumos para o ordenamento jurídico português, introduzindo princípios e regras de simplificação administrativa e desburocratização do processo decisório e de licenciamento e exercício de atividades no âmbito do CINM. Do ponto de vista quantitativo, pela aplicação do regime i, constata-se que, em 2000, se encontravam licenciadas cerca de 5900 entidades, congregando 2900 empregos diretos e indiretos, e com o registo de 264 embarcações no MAR. A remuneração média dos quadros qualificados que trabalhavam no CINM era superior em cerca de 60 % à média da Região. Os capitais sociais agregados das sociedades ascendiam ao equivalente a 8600 milhões de euros e os investimentos efetuados pela concessionária na construção e manutenção das infraestruturas internas da ZFI eram de cerca de 18,7 milhões de euros, tendo os utentes investido mais de 143 milhões de euros nas suas unidades industriais. Nesta data, o CINM erigia-se já como um dos pilares fundamentais da economia da Região com um contributo de cerca de 20 % para a formação do respetivo PIB. Em 2000, com o procedimento formal de investigação instaurado pela Comissão Europeia, por força da entrada em vigor das Orientações sobre os Auxílios de Fiscalidade Regional, cujo início de prazo não coincidia com o fim da vigência do regime i, e com a aprovação do regime ii, que só entrou em vigor a 1 de janeiro de 2003 e que introduziu limites máximos (plafonds) ao benefício fiscal usufruído em IRC pelas entidades licenciadas no CINM, verificou-se não só um hiato de dois anos sem licenciamento de atividades, como um retrocesso na atratividade do regime e na adesão dos investidores. Esse retrocesso foi acelerado pela interrupção, em 2010, do processo negocial para revisão e aumento dos plafonds, que havia sido iniciado em 2009, junto da Comissão Europeia, o qual veio a ser retomado em 2011, com conclusão favorável em 2013. Também contribuiu para o agravamento desse retrocesso a revogação do benefício da isenção de dividendos aos sócios e acionistas das empresas licenciadas, benefício que, de acordo com a Comissão Europeia, não se encontrava sujeito a limitação temporal. O referido retrocesso foi reconhecido em 2012 pela Assembleia Legislativa da Madeira que, tomando as suas questões como causas e fundamentos, solicitou ao Governo da República a reabertura do processo negocial dos plafonds, no cumprimento dos deveres para-constitucionais que impendem sobre os órgãos de soberania para assegurarem a rentabilidade e competitividade internacional do CINM. Desse modo, em finais de 2014, encontravam-se licenciadas 1868 entidades, com a criação de cerca de 3000 empregos diretos, estando matriculadas 323 embarcações no MAR. Os capitais sociais agregados das entidades licenciadas ascendiam a 6,4 mil milhões de euros e os investimentos em infraestruturas e equipamentos na ZFI eram de 24 milhões de euros pela concessionária e de 200 milhões pelos utentes. José António Câmara (atualizado a 11.10.2016)

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