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ateneu comercial do funchal

Fig. 1 – Capa do jornal Re-Nhau-Nhau (Funchal, 4 abr. 1935). O Ateneu Comercial do Funchal (AtCF) surgiu em nome dos interesses dos empregados do comércio a 8 de dezembro de 1898, sendo os seus estatutos votados só a 8 de janeiro de 1899 e o alvará que os aprovou datado de 22 de dezembro do mesmo ano. Em fevereiro de 1895 fundou-se a Associação de Socorros Mútuos dos Empregados do Comércio, que acabaria por ter uma curta duração, pois em abril do ano seguinte terá sido decidido exonerar os sócios que não pagavam as quotas; alguns destes membros, inseridos num grupo de empregados do comércio, estiveram na origem da criação do futuro Ateneu. Em novembro de 1897, alugaram um quarto ao número 14 da Rua da Sé, com os objetivos de se distraírem nas horas vagas e difundirem palestras educativas, levando assim ao nascimento de uma associação de classe. Os empregados pretendiam também encontrar proteção e apoio na defesa dos seus interesses junto dos patrões. Sob o impulso dos seus principais promotores, empenharam-se na recolha de um avultado número de adesões entre os seus colegas, abrindo, assim, caminho para a primeira reunião, na qual ficou deliberado nomear-se uma comissão para se constituir uma associação da respetiva classe profissional. O grupo reunia-se frequentemente no escritório de comissões de Júlio A. de Carvalho, à Rua do Sabão, e em estabelecimentos comerciais, em assembleias que somavam o empenho de vários colaboradores, o que permitiu que, em pouco tempo, fosse concretizada a aspiração de fundar uma agremiação para defesa dos empregados do comércio. À época debatiam-se, na sociedade local, questões relacionadas com a construção de um jardim no espaço do demolido Convento de São Francisco e do Teatro Municipal (inaugurado em 1888 com o nome de Teatro D. Maria Pia), a par de temas políticos. É neste contexto que nasce, em 1898, o AtCF, associação cujos membros lutam pela concretização daquilo que consideram serem as aspirações dos madeirenses. A atividade do AtCF abarca, assim, não só a defesa dos interesses dos empregados do comércio, mas também o domínio intelectual e o âmbito das obras de utilidade pública, procurando contribuir, dessa forma, para o progresso social da Madeira. Desde a sua fundação até 1900 o Ateneu funcionou no segundo andar do número 24 da Rua Direita, mudando-se, depois, para o número 3 do Largo da Sé, onde permaneceu até 1905. Nesse ano, transferiu-se para o número 108 da Rua dos Ferreiros, onde passou a dispor de instalações mais cómodas e capazes de permitirem o alargamento das diversas iniciativas. Com mais de 90 sócios fundadores, era constituído por personalidades influentes como César de Oliveira, Francisco António Ribeiro, João Maria Valente, Manuel Dias Tavares, Agostinho Dias Tavares, Luís Canuto Gonçalves, Vasco M. de Ornelas, João Gonçalves Farinha, João Pereira Martins, José de Freitas, Manuel Marques Júnior. Júlio A. de Carvalho, que acompanhava os acontecimentos do Ateneu Comercial de Lisboa, foi apontado como impulsionador deste projeto; Vieira de Castro, delegado do Banco de Portugal, fez a redação dos estatutos conforme os do Ateneu Comercial de Lisboa (AtCL) e tratou da sua aprovação. O Ateneu recebeu influências do AtCL, fundado a 10 de junho de 1880, bem como da Sociedade Nova Euterpe – que, em 1884, adotou o nome de Ateneu Comercial do Porto – e do Ateneu Popular, inaugurado em Coimbra em 1885. Segundo José Laurindo de Goes, a partir de 1850 surgiram, por toda a Europa, diversas coletividades com a designação de ateneu, bebendo a sua inspiração da antiguidade clássica Madrid, Roma, Londres ou Paris são exemplo dessa realidade. Fig. 2 – Imagem da simbologia do Ateneu Comercial do Funchal Para Jaime Vieira dos Santos, os fundadores destas coletividades eram homens de amplos horizontes, já que, para além dos proveitos resultantes da atividade comercial, tinham em vista ser homens de cultura, dignificando a sua profissão e elevando o seu espírito. Procuravam a sua própria valorização intelectual, bem como a de todos os membros do Ateneu e respetivas famílias. O comerciante não poderia ser um simples burguês boçal e inculto, mas deveria ser um verdadeiro homem de sociedade, que, ao lado das preocupações do lucro, se interessava também pelos acontecimentos que marcavam a realidade à sua volta Na Madeira, vivia-se um moderado progresso comercial e uma agitada discussão sobre os fundamentos da instauração da República, com vários títulos dedicados à causa republicana, bem demonstrativos do envolvimento e da participação da população na vida política da Ilha. Rafael Bordalo Pinheiro descrevia a época através de uma caricatura que apresentava o vilão madeirense, vestido a rigor, a segurar o deputado Manuel de Arriaga, enquanto pontapeava Fontes Pereira de Melo, chefe do governo da época. Para republicanos como Teófilo Braga, as comemorações camonianas realizadas no Ateneu significavamo começo de uma era nova da democracia portuguesa. A história desta instituição reparte-se em três fases. A primeira, desde a fundação até 1925, consiste sobretudo na sua afirmação enquanto coletividade. É a fase embrionária, marcada pelo entusiasmo dos membros do Ateneu, na qual assumiram grande significado as reivindicações sócio económicas dos anos 20. A segunda fase inicia-se em 1925, com a elaboração dos segundos estatutos, e prolonga-se até aos anos 60, sendo conhecida como o período áureo do AtCF pelos acontecimentos que nesta altura se despoletaram; considerada uma fase mais intelectual que sindical, atinge o seu clímax na década de 50. A terceira fase, iniciada nos anos 60, reflete algum esmorecimento das iniciativas, mantendo-se, no entanto, a realização de atividades como a Festa da Flor. Nos seus primeiros estatutos, o AtCF definia-se como “uma associação de instrução profissional, física e recreativa, representação e proteção mútuas, criada pelos empregados do comércio”, que tinha como finalidade proporcionar a “aquisição de conhecimentos teóricos e práticos que mais diretamente interessem à profissão do comércio em geral” (GOES, 1985, 128). Não se limitaria a agremiar empregados e a zelar pelos seus interesses, mas teria objetivos mais ambiciosos, os quais compreendiam os campos da cultura e da arte. Ao mesmo tempo, pretendia ser um espaço de descanso e partilha de opiniões. O projeto do AtCF visava a valorização intelectual dos associados e respetivas famílias, o que passava pela criação de escolas primárias para os filhos dos seus membros, por cursos de aperfeiçoamento linguístico para os sócios, por lições para o melhoramento da técnica comercial, por conferências sobre arte e literatura, por sessões científicas e palestras, pela ampliação progressiva da sua biblioteca, pela criação de divertimentos – como as tardes dançantes, festas de carácter regional, matinées destinadas às crianças, representações de pequenas peças teatrais – e por outras iniciativas que contribuíssem para estreitar os laços de solidariedade no interior da classe profissional. Seriam estas as linhas gerais estatutárias que algumas direções do AtCF procurariam concretizar ao longo dos tempos. Na qualidade de primeiro presidente da direção do Ateneu, entre 1898 e 1900, Sabino Joaquim Rodrigues procurou promover o desenvolvimento intelectual e social da vida da agremiação, zelando pelo melhoramento do nível de instrução dos seus sócios. Em fevereiro de 1899, inauguraram-se aulas ministradas por personalidades como Manuel Augusto Martins, Francisco Correia Caldas e Jaime Campos Ramalho. Em 1901, nos mandatos de José de Freitas e de Maximiano de Sousa Rodrigues, destacam-se a realização de uma exposição industrial e de uma récita no Teatro D. Maria, aquando da trasladação dos restos mortais de Almeida Garrett para o Mosteiro dos Jerónimos; em 1903, ocorreram a fundação de uma tuna e de um grupo dramático, a recolha de fundos para a construção de um monumento a Câmara Pestana e uma quermesse no então Jardim de São Francisco. Nesta altura, lutou-se pela Lei do Descanso Semanal, fizeram-se viagens pela Ilha e melhoramentos na sede do AtCF. Em 1905, sob a direção de João Lomelino Ferreira, a atividade reivindicativa diminuiu e a instituição virou-se para as áreas do desporto e das artes e letras. No final da primeira década, fundou-se o Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, pela mão de Luíz César Vieira, Francisco Melim e Aquino Baptista; no ano de 1912, foi criada uma escola de instrução primária para as crianças pobres, por proposta do presidente Agostinho Dias Tavares. Em 1913, com o objetivo de congregar a classe do comércio e de defender os seus interesses, alguns elementos do grupo desportivo fundaram O Athenista, jornal que se dedicava aos problemas mais graves da classe. Todavia, por pressão do patronato, por falta de apoio dos comerciantes e pela proximidade da Primeira Grande Guerra, O Athenista deixou de se publicar, o que coincidiu com o colapso do Ateneu. Só depois de 1925 foi possível assistir à retoma da associação e restituir-lhe a dinâmica dos primeiros tempos, por influência do presidente da direção, Carlos Alberto Ferreira, e dos presidentes que se lhe seguiram, personalidades como Diogo M. de Freitas, Juvenal de Araújo e Luís Vieira de Castro. A segunda fase do Ateneu seria marcada pela modificação dos estatutos iniciais, em março de 1925, cujo projeto de reforma foi elaborado pela comissão nomeada a 1 de março, sendo os princípios que regiam a coletividade lidos e aprovados em sessão de 29 de julho de 1925. Os 130 artigos dos novos estatutos veiculavam uma nova compreensão do Ateneu, que passou a definir-se como uma associação de classe de profissionais do comércio constituída tanto por empregados como por patrões – beneficiando, assim, de um critério mais alargado na admissão dos seus sócios, até porque muitos empregados do comércio se tinham tornado patrões com o passar dos anos. Para além da redefinição dos estatutos, também houve alterações nas atas, que recomeçaram a ser numeradas; escolheu-se, para símbolo do comércio, a figura alegórica de Mercúrio; e foi ainda decidido colocar um busto desta divindade no átrio do Ateneu. Seguiram-se tempos marcados por uma conjuntura de sentimentos autonomistas, pela falência de bancos da praça funchalense, em consequência da grande depressão, e pela Revolta da Madeira, bem como pelas transformações políticas que iriam consolidar a governação do Estado Novo. Apesar destas circunstâncias, o Ateneu impôs-se uma nova dinâmica, que acabaria por resultar num vasto conjunto de iniciativas de sucesso. As preocupações dos sócios não se cingiam às questões económicas, mas incluíam também a transmissão de uma panorâmica etnográfica dos costumes da Madeira. Além disso, voltou a incentivar-se o sentido lúdico do baile. Nesta altura, vivia-se um período de maior participação política. Em 1926, foi enviada a Lisboa uma delegação para se encontrar com vários ministros, com o propósito de solucionar as reclamações do comércio local e da própria associação. Pretendia criar uma comissão de verificação e defesa do bordado da Madeira e garantir uma melhor proteção à indústria do bordado; ambicionava a expedição direta de encomendas postais e maior celeridade na sua entrega; apostava na criação de uma representação do comércio na Junta Autónoma da Madeira, no aumento da carteira de descontos nos bancos locais e na simplificação da contribuição industrial. Ao levar as suas pretensões ao Governo Central, os empregados do comércio procuravam também afirmar-se no interior da sociedade madeirense. Insistiram em requerimentos ao Poder Central, sendo 1927 o ano mais ativo, em que trocaram correspondência com o Conselho da Bolsa Agrícola em defesa dos agricultores; com o chefe de serviços da Alfândega, o Governo e a Câmara sobre a questão dos linhos, que era fundamental para a indústria dos Bordados Madeira; com a Direção da Associação Comercial de Lojistas de Lisboa sobre a pauta alfandegária; com o Ministro do Comércio acerca de mercadorias e do movimento de turistas; com o Ministério das Finanças sobre a situação dos impostos, a carteira de descontos, a recolha de moeda, a situação da vinicultura e da obra de verga, a importação das farinhas e outros temas do interesse dos madeirenses. O Ateneu funcionava como uma Câmara de Comércio, que promovia o diálogo com as entidades oficiais em vista da luta pela defesa do comércio da Ilha. Estas conversações permitiram que, em 1928, o Ateneu solicitasse às entidades competentes que os bilhetes de identidade passassem a ser feitos no Funchal; que, em 1929, a importação de farinhas fosse livre; que a situação dos vendedores ambulantes fosse regularizada; simultaneamente, procurou intervir no sentido de que o liceu do Funchal tivesse um edifício próprio. Quanto à década seguinte, destaca-se, em primeiro lugar, o facto de, em 1933, se ter preparado uma exposição de flores naturais, a realizar, em agosto, nos salões do Ateneu, iniciativa que não chegaria a concretizar-se, por motivos políticos. A questão viria a ser ultrapassada por uma manifestação de rua, já que se procurava utilizar as flores, com a sua cor e vivacidade, para fazer a propaganda relativa ao golpe de Estado de 28 de maio de 1926 e, desta forma, impressionar não só os madeirenses, como todos os visitantes da Ilha. O cuidado da questão etnográfica justificou que, em 1935, se efetuasse um levantamento das vendedoras de flores e se publicasse uma postura camarária onde se estipulava o uso do traje obrigatório para as floristas, que usaram o vestuário, pela primeira vez, nas comemorações do 28 de maio, instituindo-se assim, um traje-padrão. Em 1935, após a substituição de diversos dirigentes governativos da Ilha, face às nomeações de Salazar, com Fernão de Ornelas na Câmara Municipal do Funchal e João Abel de Freitas na Junta Geral, o AtCF iria ser o palco escolhido para debater os problemas económicos da Ilha e para procurar esclarecer o rumo dos dinheiros enviados para a Região. Pó, fumo e nada foi o resultado do debate, o que motivaria uma firme resposta de Salazar, em carta enviada ao Presidente da Junta Geral, caricaturada a 6 de junho de 1935 pelo trimensário humorístico Re-Nhau-Nhau. Apesar das dificuldades económicas, cria-se, em 1936, o Núcleo Fotográfico do Ateneu e faz-se o I Salão de Arte Fotográfica, tendo-se destacado, como colaboradores mais distintos, José Carlos de Mendonça, António Manuel Trigo, Eduardo Pereira, Pita Ferreira e Carlos Maria dos Santos. Com a Segunda Guerra Mundial, o comércio da Madeira viveu uma fase crítica, visto que muitos dos bens essenciais foram racionados – além disso, a população padeceu de fome com o conflito. Neste período, a atividade do AtCF enfraqueceu, levando, depois, algum tempo a recuperar a sua dinâmica. Nos primeiros anos da década de 40 fazem-se jogos florais com atribuição de prémios e, em 1942, surge a Festa da Primavera. Assiste-se à afirmação da literatura e do seu aspecto criativo. Carlos Cristóvão, Alfredo Vieira de Freitas e Florival dos Passos são personalidades que marcaram esta época. Horácio Bento de Gouveia assegura que foi “pelo fim da década de 1940 e por todo o decénio de 50” que o Ateneu teve “uma função retintamente cultural” e que desenvolveu, com consciência esclarecida, uma ação de mecenato (GOES, 1985, 131). Vivia-se o espírito clássico do ateneu, que implicava a crítica e o diálogo, com conferências de variadas temáticas em que várias figuras apresentaram as suas ideias. Passaram pelo AtCF, inscrevendo-se na sua história, Ângelo Augusto da Silva, Ernesto Baltazar Gonçalves, José Pereira da Costa, Horácio Bento de Gouveia, J. Vieira dos Santos, J. Brito Câmara, Aragão Mendes Correia, Carlos Lélis e Maria Mendonça, entre outros, os quais marcaram esta época e deram o seu contributo para a literatura da Madeira. Para lá das atividades de pendor intelectual, distinguia-se, no AtCF, uma vertente recreativa, no âmbito da qual havia lugar para diversas modalidades desportivas e passeios a pé, bailes, serões e convívios, ao jeito da belle époque, procurando o descanso mental e a distração da conjuntura económico-social que então se vivia. Em 1954, o Ateneu organizou o Natal do Recém-Nascido e a Festa da Rosa. Seguiram-se a Festa do Avental, em 1956, a organização do I Rally Automóvel do Ateneu e da Festa da Uva, em 1957, para além de uma excursão às Ilhas Canárias e, nos anos 60, uma viagem aos Açores. As relações de amizade com outras regiões do País e com outros países iam-se consolidando, conferindo ao Ateneu um carácter universal. Figuras de toda a Europa e de diferentes ramos de atividade ficaram ligadas a esta instituição, como foi o caso da Viscondessa de Porto Formoso. A Festa da Flor está indissociavelmente ligada ao Ateneu. A Festa da Flor terá a sua origem na Festa da Rosa, quando a direção do AtCF realizou um evento de que fazia parte uma exposição/concurso desta espécie de flores. Para estimular a participação e aumentar o entusiasmo dos membros do Ateneu, foram atribuídos vários prémios, alguns bastante valiosos. O êxito da iniciativa levou a que esta se realizasse todos os anos, não apenas com rosas, mas com qualquer flor, mudando-se a designação, em 1955, para Festa da Flor. Numa terra onde são abundantes as flores de várias espécies, o acontecimento ganhou projeção e adquiriu um valor turístico excecional, dando razão aos que defendiam que podia ali estar a génese de um atrativo turístico de categoria mundial. Ao longo desta década, o AtCF desempenhou papel relevante na procura da elevação do nível cultural da cidade, promovendo conferências, proporcionando noites de arte e outras distrações de carácter cultural. A partir dos anos 60, o associativismo ressente-se não só da adversidade da conjuntura sociopolítica, como também da falta de novas ideias. Nesta altura, o dinamismo e a capacidade criativa do Ateneu perdem fulgor, atravessando-se anos de reduzida expressão cultural pública, o que caracteriza a terceira fase desta instituição. Mantêm-se, no entanto, algumas atividades, nas quais se recordam momentos da história do Ateneu, ou de que fazem parte vários intelectuais madeirenses: por exemplo, Bernardete Falcão, Elisa de Carvalho e Alice Ogando participaram nas conferências realizadas nos anos 60, salientando o papel da mulher. Nos anos 70, destaca-se o aspeto alegórico e renova-se a Festa da Flor, sob a direção do paisagista Fernando Pessoa e do professor Francisco Simões, que aproximam a coletividade das artes plásticas. Depois de se ter realizado, em 1957, no Casino da Madeira, a Festa da Flor volta à sede por razões de espaço. Em 1974 autorizou-se o regresso das atividades culturais ao AtCF; esta retoma cultural foi assinalada no dia 10 de junho com uma conferência sobre Camões, proferida no Teatro Municipal do Funchal. Organizaram-se também exposições de autores como Isabel Cabral, Afonso Costa, Ruy Teles, Carlos Luz e Francisco Simões (Francisco d’Almada). Nesta terceira fase, a atividade do AtCF não se caracterizou pela novidade das suas iniciativas, mas pela repetição da realização de eventos culturais já anteriormente levados a cabo. Os associados organizaram conferências, colóquios, saraus musicais e literários, jogos florais, bailes, exposições, a Mostra do Antúrio e do Sapatinho e, em especial, a Festa da Flor. Em 1981, em razão do trabalho desenvolvido ao longo de várias décadas, o Governo Regional da Madeira (GRM), reunido em plenário, resolveu declarar de utilidade pública o AtCF por intermédio da Resolução n.º 268/81. Foram reconhecidos os importantes serviços que o Ateneu prestou à Região nos setores cultural, artístico, desportivo e comercial, dinamizando a participação cívica dos seus associados e promovendo o associativismo da Região, aos quais se ficou a dever o seu lugar de destaque no interior da sociedade madeirense. Em 1982 reabriu-se o ciclo cultural do Ateneu, com uma forte participação da juventude. Organizaram-se os Jogos Florais de Verão e convidaram-se personalidades como Maria Aurora, Ângela Varela e Gonçalo Nuno, para estimular o renascimento do Ateneu. Nas comemorações do Dia de Camões de 1983 assumiu especial relevo a conferência de Mendes Marques, designada “O Ateneu Comercial do Funchal do Passado ao Presente”, assim como a de Maria Margarida M. Silva. Foram, ainda, expostas várias obras de interesse existentes na biblioteca. Nos anos seguintes, a coletividade continuaria a desempenhar um papel importante na dinamização de atividades socioculturais. Ao assinalar o seu 85.º aniversário, em 1983, ficou claro que o Ateneu, paladino de todos os verdadeiros valores, não estava, nem nunca estaria ultrapassado, assim o quisessem as suas gentes. Entre períodos difíceis e épocas áureas, faziam-se balanços anuais, esperando, ao mesmo tempo, a revitalização desta associação da sociedade madeirense. Procurando adaptar-se à evolução da sociedade, os professores Atanásio e Vítor Costa souberam captar os jovens para as iniciativas do AtCF. Ao longo dos tempos, vários membros desta instituição têm colaborado com ela espontaneamente, empenhando a sua inteligência e o seu esforço em valorizar a atividade do Ateneu. Atingido o centenário da fundação do AtCF, o GRM afirmou-se disposto a apoiar esta instituição, que apresentou formalmente o projeto de reconstrução do edifício-sede, considerado monumento de interesse público. O palacete urbano do século XIX, situado na Rua dos Netos, foi adaptado às exigências da época, procurando contribuir-se, deste modo, para a revitalização do Ateneu, que enfrentara, desde os anos 60, um crescente esmorecimento das suas iniciativas. João Evangelista, presidente desta instituição entre 1983 e 1992, expressaria o seu descontentamento, referindo, com tristeza, que parecia ter caído uma maldição sobre o Ateneu. Os anos iniciais do século XXI foram difíceis, com David Abreu, presidente demissionário desde 2002, a confirmar a acumulação de dívidas, a degradação do edifício e o afastamento dos sócios, não permitindo o desenvolvimento do tipo de atividades que, no passado, o AtCF, na sua qualidade de associação interventiva, havia realizado.   Agostinho Lopes (atualizado a 23.01.2017)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social Madeira Cultural

aquário municipal do funchal

  O Aquário Municipal do Funchal encontra-se localizado no rés do chão do Palácio de São Pedro, uma das mais significativas obras da arquitetura civil portuguesa, de meados do séc. XVIII, mandado construir pela família Carvalhal e adquirido pela Câmara Municipal do Funchal a 19 de setembro de 1929, quando se deu início às obras de reformulação do Palácio com o propósito de aí se instalar um museu. Inicialmente designado Museu Regional da Madeira, este foi oficialmente inaugurado a 5 de outubro de 1933, e mais tarde deu origem ao Museu de História Natural do Funchal. A primeira vez que se falou na criação de um aquário público no arquipélago da Madeira foi em 1937, através de uma deliberação do município do Funchal, ficando esta sem efeito até 1951. Foi devido em grande parte a Charles L. Rolland, industrial norte-americano de bordados na Madeira e grande admirador da fauna ictiológica da ilha, que em 1951 a sua construção teve lugar. Este filantropo ofereceu à Câmara Municipal do Funchal 30.000 escudos (cerca de 150€) e o material necessário para que as obras tivessem o seu início. Sob a orientação, técnica e científica, de Günther Maul, conservador do Museu, inaugurou-se a primeira fase do Aquário, em dezembro de 1953, com três grandes tanques, sendo parte do material necessário para a construção do Aquário obtida graças à generosidade de vários entusiastas, de entre os quais se destacou o importador E. Brendle. Na segunda fase, concluída em 1957, o Aquário passou a ter 15 tanques de exposição de diversos tamanhos, nos quais passaram a estar representados alguns dos mais importantes elementos da fauna marinha costeira da Madeira, tais como meros, moreias, sargos, castanhetas, cabozes, caranguejos, lagostas, camarões, polvos, búzios, estrelas, ouriços do mar, etc. A captura de organismos para serem colocados nos tanques de exposição deveu-se à generosidade e dedicação de um grupo de pescadores amadores, Américo Durão, A. Correia da Silva, David Teixeira e João de Freitas, entre outros. A renovação regular dos exemplares vivos em exposição nos tanques é assegurada essencialmente através de dois métodos de captura, dependendo do tipo de organismo: alguns invertebrados marinhos são colhidos, à mão, nas poças de maré (zona do intertidal) ou no subtidal, através de mergulho com escafandro autónomo ou de mergulho em apneia; quanto à maioria das espécies piscícolas, bem como de outros invertebrados, a captura é feita recorrendo a diferentes tipos de artes de pesca, sendo muitas vezes necessária a utilização de uma embarcação para o lançamento e a recolha dos respetivos aparelhos de pesca. Durante muitos anos o Aquário dispôs de uma pequena embarcação de apoio, a Ianthina, para a captura de espécimes; através desta eram utilizados essencialmente dois métodos tradicionais de pesca: pesca à linha e covos. Posteriormente, deixou de ser utilizada qualquer embarcação de apoio, o que condicionou muito não só a própria renovação dos exemplares do Aquário, como a diversidade de espécies. O sistema de circulação de água do mar existente funciona em circuito fechado, tendo um volume total de cerca de 200.000 l, que estão distribuídos pelos tanques de reserva (cerca de 150.000 l) e pelos tanques de exibição (cerca de 50.000 l). A qualidade da água do mar é mantida não só através de sistemas de filtração de natureza biológica e mecânica, como também de um sistema de arejamento, pelo qual é introduzido ar em cada um dos tanques de exposição. A água do circuito é renovada uma vez por ano, sendo colhida diretamente no mar e transportada em autotanque para o Aquário. Toda a iluminação nos tanques é de natureza artificial; são utilizadas as lâmpadas mais adequadas para que as cores dos organismos expostos se aproximem o mais possível das que podem ser observadas quando estes se encontram no seu meio natural. A alimentação dos organismos é baseada essencialmente em cavalas, chicharros e espada preto, adquirido na praça e administrado três vezes por semana. Aquando da existência da embarcação Ianthina, para além das espécies anteriormente referidas, era adicionado à dieta dos espécimes do Aquário um crustáceo, conhecido vulgarmente como camarão comestível (Plesionika narval), que era capturado através da utilização de covos apropriados, sendo depois armazenado em arcas congeladoras e administrado de acordo com as necessidades e as características alimentares das espécies existentes. A manutenção diária do Aquário Municipal do Funchal é realizada por uma equipa técnica constituída por três funcionários com formação adequada às exigências de uma estrutura desta natureza: um técnico superior (biólogo) e dois assistentes técnicos. O Aquário Municipal do Funchal é uma das principais atrações da visita ao Museu de História Natural do Funchal, recebendo em média cerca de 11.000 visitantes por ano, 3500 dos quais são alunos provenientes dos vários níveis de escolaridade do ensino básico e secundário da Região Autónoma da Madeira.   Ricardo Araújo (atualizado a  23.01.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

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área(s) marinha(s) protegida(s)

As áreas marinhas protegidas (AMP) correspondem, numa aproximação jurídica de carácter genérico, à aplicação de um regime jurídico específico e reforçado de proteção ambiental a um espaço marítimo delimitado. Quando o âmbito de aplicação espacial é o oceano circundante ao território terrestre da RAM (nos termos do art. 3.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira – EPARAM: o “arquipélago da Madeira é composto pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas, Selvagens e seus ilhéus”), uma adequada compreensão do seu regime jurídico implica que se tenha simultaneamente em consideração uma multiplicidade de fontes de direito, dado que o enquadramento jurídico-internacional aplicável aos oceanos condiciona a regulamentação proveniente de fontes internas. Assim sendo, no que respeita às AMP existentes na RAM, a sua regulamentação é o resultado da conjugação das fontes aplicáveis de direito regional, de direito interno português, de direito da União Europeia e de direito internacional, com destaque para o direito internacional aplicável aos espaços marítimos. Com efeito, as AMP, ao determinarem quais são os usos permitidos e proibidos num espaço marítimo delimitado e ao pretenderem simultaneamente conformar os comportamentos de todos os potenciais utilizadores do mar, sejam estes nacionais ou estrangeiros, devem respeitar o direito internacional relevante, na medida em que este é o fundamento último de legitimação da atuação do Estado costeiro e das suas divisões ao nível da organização política e administrativa. A qualificação de uma determinada zona de oceano como AMP é recente na prática dos Estados, coincidindo com a progressiva relevância dada às questões ambientais a partir da déc. de 70 do século passado. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), comummente designada como a Constituição dos Oceanos, não fornece um conceito jurídico-internacional para este instituto jurídico, nem contém identicamente um regime jurídico-internacional dedicado especificamente às AMP, não obstante a sua parte XII ser dedicada à “[p]roteção e preservação do meio marinho” e o art. 192.º proclamar expressamente que os “Estados têm obrigação de proteger e preservar o meio marinho”. O n.º 5 do art. 194.º, com a epígrafe “medidas para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho”, estabelece que os Estados devem tomar as medidas “necessárias para proteger e preservar os ecossistemas raros e frágeis, bem como o habitat de espécies e outras formas de vida marinha em vias de extinção, ameaçadas ou em perigo”, o que tem sido utilizado como o fundamento jurídico para a evolução que se deu neste domínio no final do séc. XX e no princípio do séc. XXI. Importa salientar que, ao nível do direito internacional geral, as AMP não constituem um espaço marítimo específico, em paralelo aos restantes espaços marítimos reconhecidos pelo direito internacional do mar (tal como o mar territorial, a zona contígua, as águas arquipelágicas, a zona económica exclusiva, a plataforma continental, o alto mar e a Área [veja-se a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, art. 1.º d, n.º 1, 1)]), mas antes a sujeição de áreas do mar com uma qualificação jurídica-internacional específica a um regime jurídico particular distinto daquele que é normalmente aplicável ao espaço marítimo em questão, nomeadamente ao nível do reforço da proteção ambiental. Nestes termos, a criação de uma AMP pela RAM num espaço sujeito à soberania ou à jurisdição do Estado português, como na zona económica exclusiva, deve ter simultaneamente em consideração os direitos e os deveres do Estado costeiro e os direitos e os deveres que são reconhecidos aos terceiros Estados, nomeadamente pela parte V da CNUDM e pelo direito internacional costumeiro. Embora o direito internacional geral não forneça um conceito de AMP, podem ser encontradas definições em outros documentos de direito internacional, nomeadamente naqueles que têm vindo a ser produzidos no âmbito da Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992), no âmbito da Convenção para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste, também denominada Convenção OSPAR (1992), e nos trabalhos que foram sendo desenvolvidos sobre a matéria no seio da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Sendo os “parques naturais” uma matéria de interesse específico da RAM, nos termos da alínea jj) do art. 40.º do EPARAM, a regulamentação aplicável às AMP é, na sua base, de natureza regional. Em 2016, existiam cinco AMP na RAM, sendo duas de carácter exclusivamente marinho e três com áreas mistas, marinhas e terrestres. As AMP cujo âmbito de proteção é exclusivamente marinho são a Reserva Natural Parcial do Garajau e a Reserva Natural do Sitio da Rocha do Navio. As AMP cujo âmbito de proteção é simultaneamente marinho e terrestre são a Reserva Natural das Ilhas Selvagens, a Reserva Natural das Ilhas Desertas e a Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo. A Reserva Natural Parcial do Garajau, que foi a primeira área exclusivamente marinha a ser criada em Portugal, é regulada pelo dec. leg. regional n.º 23/86/M, de 4 de outubro, com modificações introduzidas pelo dec. leg. regional n.º 38/2006/M, de 4 de agosto. Em conformidade com o n.º 1 do seu art. 2.º, a “área da Reserva Natural Parcial do Garajau tem como limites: a) A oeste, o plano perpendicular à linha de costa na Ponta do Lazareto até à intersecção do plano definido pela linha batimétrica dos 50 m; b) A leste, o plano perpendicular à linha de costa na Ponta de Oliveira até à intersecção do plano definido pela linha batimétrica dos 50 m; c) A norte, a linha definida pela máxima preia-mar de marés vivas; e d) A sul, o plano definido pela vertical da linha batimétrica dos 50 m e, em caso de dúvida, uma linha a uma distância nunca inferior a 600 m do limite norte”. O corpo do n.º 4 do art. 1.º do Regulamento do Plano Especial do Ordenamento e Gestão da Reserva Natural Parcial do Garajau, aprovado pela resolução n.º 882/2010, de 5 de agosto, esclarece que a “área de intervenção (…) é o leito do mar, com uma dimensão total de 376 hectares, e uma linha de costa de aproximadamente sete quilómetros”. O n.º 1 do art. 3.º antes citado estipula que na área do Reserva Natural Parcial do Garajau é proibido: “a) Exercer quaisquer atividades de pesca, comercial ou desportiva, incluindo a caça submarina; b) Colher exemplares animais e vegetais, exceto para fins científicos, quando devidamente justificados e autorizados; c) Extrair areias e outros materiais de origem geológica; d) Vazar quaisquer tipos de sólidos ou líquidos, quer sejam provenientes de terra ou de embarcações; e) Instalar condutas de efluentes provenientes de instalações industriais e domésticas; e f) Navegar dentro dos limites da reserva, com exceção da abicagem de pequenas embarcações às praias, aplicando-se, neste caso, a legislação em vigor”. Concretizando a alínea a) do n.º 3 do art. 3.º, o dec. reg. regional n.º 1/97/M, de 14 de janeiro, regula o exercício do mergulho amador na área da Reserva Natural Parcial do Garajau, entendido como a atividade prosseguida por “um amador, quando se desloca, submerso ou à superfície, equipado com um aparelho respiratório de mergulho”. A Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio foi criada pelo dec. leg. regional n.º 11/97/M, de 30 de julho, e abrange uma área de 1822 ha, sendo 1820 ha de área marítima e 2 ha correspondentes ao Ilhéu da Viúva (de acordo com a informação disponibilizada pelo Programa de Medidas de Gestão e Conservação do Sítio da Rede Natura 2000 do Ilhéu da Viúva). Em conformidade com o seu art. 2.º, a Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio está “definida e delimitada […] no sítio da Rocha do Navio, entre a ponta do Clérigo a leste e a ponta de São Jorge a oeste e entre a linha definida pela preia-mar máxima e a batimétrica dos 100 m, incluindo os seus ilhéus e respetivas áreas marítimas” (sendo a batimétrica uma linha que une pontos da mesma profundidade no mar). O art. 4.º estabelece que na área da Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio é expressamente proibido: “a) O uso de redes de emalhar ou outras, exceto as empregues na captura de isco vivo e o peneiro, empregue na captura da castanheta; b) A colheita, captura, detenção e ou abate de quaisquer espécies de aves ou plantas; c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos; d) A extração de quaisquer inertes, quer de origem marinha, quer terrestre; e) A apanha de lapa e caramujo de mergulho; e f) A caça submarina”. Através da resolução n.º 751/2009, de 2 de julho, o Conselho do Governo regional determinou a classificação do Ilhéu da Viúva como Zona Especial de Conservação (ZEC), ao abrigo da legislação da União Europeia sobre a conservação das aves selvagens e a preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens. A Reserva Natural das Ilhas Selvagens foi inicialmente estabelecida pelo dec. n.º 458/71, de 29 de outubro, como reserva, ao abrigo da lei n.º 9/70, de 19 de junho, e representou o primeiro exemplo de AMP em Portugal. Nos termos do seu art. 1.º, passou a “constituir uma reserva toda a área das Ilhas Selvagens e também a orla marítima que as rodeia até à batimétrica dos 200 m”. Posteriormente, foi classificada como reserva natural pelo dec. regional n.º 14/78/M, de 10 de março. Ao abrigo do n.º 2 do seu art. 1.º, a “reserva natural é definida pelo território das ilhas e pelos fundos marinhos até à batimétrica dos 1000 m.” O limite exterior da reserva natural foi reduzido à linha dos 200 m de profundidade, pelo dec. regional n.º 11/81/M, de 15 de maio, tendo uma área total de 9455 ha, em conformidade com a resolução n.º 1408/2000, de 19 de setembro. Relativamente aos usos do espaço marítimo, o art. 4.º estabelecia que na área da Reserva Natural das Ilhas Selvagens eram proibidos: “g) A colheita de material geológico ou arqueológico ou a sua exploração sem autorização do Governo Regional; h) A caça submarina; i) A pesca de arrasto e outras artes que colidam com o fundo até à batimétrica fixada pela reserva, ressalvando-se as artes de anzol e rede”. Em conformidade com o art. n.º 11, com a epígrafe “atividades condicionadas” do Regulamento do Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Selvagens, aprovado pela resolução n.º 1292/2009, de 25 de setembro, ficaram “sujeitas a autorização da Entidade Gestora, os seguintes atos e atividades: b) A recolha de amostras biológicas, geológicas ou arqueológicas quer de origem marinha quer terrestre; k) A pesca recreativa; e l) A caça submarina”. Pelo edital n.º 15/2011, de 29 de novembro, da Capitania do Porto do Funchal, está “interdita toda a atividade de pesca na faixa litoral das Ilhas Selvagens até à batimétrica dos 200 (duzentos) metros, por período indeterminado”, em razão da “suspeita da eventual presença de uma microalga produtora de uma biotoxina suscetível de provocar alterações ao nível da saúde humana”. As Ilhas Selvagens são uma área classificada de Zona Especial de Conservação e de Zona de Proteção Especial (o dec. reg. regional n.º 3/2014/M, de 3 de março, estabeleceu a Zona de Proteção Especial das Ilhas Selvagens, com uma extensão de 124.530 ha), estando inscritas na categoria 1.a de gestão de áreas protegidas da União Internacional da Conservação da Natureza como “área de reserva natural integral gerida prioritariamente para fins de pesquisa científica, assegurando que os habitats, ecossistemas e as espécies nativas se mantenham livres de perturbação, tanto quanto possível”. A Reserva Natural das Ilhas Desertas foi criada pelo dec. leg. regional n.º 14/90/M, de 23 de maio, como Área de Proteção Especial das Ilhas Desertas, sendo posteriormente o seu estatuto jurídico alterado pelo dec. leg. regional n.º 9/95/M, de 20 de maio. Nos termos do art. 2.º, a Reserva Natural das Ilhas Desertas é “delimitada pela linha batimétrica dos 100 m em volta das Ilhas Desertas, incluindo todas as suas ilhas e ilhéus e a respetiva área marítima”, tendo uma área total de 9455 ha (em conformidade com a informação disponível no Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Selvagens). Relativamente aos usos do espaço marítimo, o art. 4.º, após as alterações introduzidas pelo segundo dos diplomas antes citados, estabelece que nos locais a sul “do marco geodésico da doca e da Ponta da Fajã Grande, nela se incluindo o ilhéu Chão” são proibidos: “a) A pesca comercial e a pesca sem fins comerciais, designadamente a desportiva; b) A prática de caça submarina; e c) A colheita de exemplares vegetais e animais, exceto para fins científicos, desde que devidamente autorizada; e d) O acesso de pessoas e embarcações, salvo as que hajam sido autorizadas e credenciadas pelo Parque Natural da Madeira”. Em conformidade com o art. 5.º, na sua versão alterada, aplicável a toda à área protegida, é ainda proibido: “a) O uso de artes de redes de emalhar, cercar e arrastar, com exceção das que são empregues na captura de isco vivo; (…), c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos; d) A extração de quaisquer inertes, quer de origem marinha, quer terrestre; e e) A prática de caça submarina”. Em conformidade com o art. 11.º, com a epígrafe “atividades condicionadas”, do Regulamento do Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Desertas, aprovado pela resolução n.º 1292/2009, de 25 de setembro, ficaram “sujeitas a autorização da Entidade Gestora, os seguintes atos e atividades: b) A recolha de amostras biológicas, geológicas ou arqueológicas quer de origem marinha quer terrestre; k) A pesca recreativa; e l) A caça submarina”. As Ilhas Desertas são uma área classificada de Zona Especial de Conservação e de Zona de Proteção Especial (o dec. reg. regional n.º 3/2014/M, de 3 de março, estabeleceu a Zona de Proteção Especial das Ilhas Desertas, com uma extensão de 76.462 ha). A Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo foi criada pelo dec. leg. regional n.º 32/2008/M, de 11 de agosto. Nos termos do n.º 1 do art. 2.º, é “constituída pela parte terrestre de todos os seus ilhéus e pelas zonas marinhas circundantes do Ilhéu da Cal ou de Baixo e do Ilhéu de Cima, incluindo a zona onde se encontra afundado o navio O Madeirense”, sendo ainda acrescentado no número seguinte, relativamente às áreas marítimas, que integra, em conformidade com a alínea b) a “área marinha limitada a oeste pela batimétrica dos 50 m e pelo azimute verdadeiro 315º a partir da extremidade oeste da Ponta do Focinho do Urso, a sul pela batimétrica dos 50 m, a norte pela linha da preia-mar máxima de marés-vivas equinociais da costa da ilha do Porto Santo e a este pela batimétrica dos 50 m e pelo azimute verdadeiro 135º a partir do enfiamento do Pico de Ana Ferreira” e, nos termos da alínea c), pela “área marinha limitada a oeste pelo azimute verdadeiro 160º a partir da extremidade oeste do Porto de Abrigo, a sul e este pela batimétrica dos 50 m e a norte pela linha da preia-mar máxima de marés-vivas equinociais da costa da ilha do Porto Santo e pelo azimute verdadeiro 90º a partir da Ponta das Ferreiras”. Em toda a área da Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo, em conformidade com o n.º 1 do art. 5.º, é interdito: “a) O exercício da pesca para fins comerciais, exceto a captura de isco vivo destinado à pesca de tunídeos (…); b) A apanha de lapa e caramujo de mergulho; c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos, quer sejam provenientes de terra ou de embarcações; d) A instalação de condutas de efluentes provenientes de instalações industriais e domésticas; e) A extração de areias ou de outros recursos geológicos; f) As atividades náuticas, com exceção das necessárias ao exercício das atividades autorizadas […]; g) A colheita, captura, abate ou detenção de exemplares de quaisquer espécies vegetais ou animais sujeitas ou não a medidas de proteção legal ou efetuar outras atividades intrusivas ou perturbadoras do seu desenvolvimento”. Em contraponto, no art. 6.º, relativo a “atos ou atividades sujeitos a autorização”, está previsto que, desde que devidamente autorizados pela entidade gestora, são permitidos: “a) A pesca marítima sem fins comerciais ou lúdica, com exceção do Ilhéu de Cima, onde é proibida toda e qualquer atividade de pesca (…); b) A apanha de lapa e caramujo no calhau; c) O mergulho de escafandro; d) Caça submarina, com exceção da área do ilhéu de Cima, onde é proibida toda e qualquer atividade de pesca; (…); e f) As atividades marítimo-turísticas (…) que não sejam suscetíveis de pôr em risco a proteção ambiental da Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo”. O n.º 3 do artigo citado ainda prevê que é “permitida a travessia de embarcações pelos boqueirões do Ilhéu de Cima e do Ilhéu de Baixo ou da Cal, incluindo a passagem, com esse fim, das respetivas áreas da Rede de Áreas Marinhas Protegidas de Porto Santo”. O n.º 3 do art. 7.º determina que “poderá ser dada prioridade às comunidades locais dependentes da pequena pesca” quando sejam “estabelecidas condições específicas para o exercício da pesca lúdica e para a captura de isco vivo destinado à pesca de tunídeos”. Os Ilhéus do Porto Santo são uma área classificada de Zona Especial de Conservação. No que concerne especificamente ao espaço marítimo, importa realçar que uma adequada compreensão do regime jurídico aplicável às AMP implica que tenham em consideração três questões de natureza jurídico-internacional, na medida em que os poderes que os Estados costeiros podem exercer nos mares e nos oceanos não são equivalentes aos poderes de soberania que os Estados exercem no âmbito do seu território terrestre, em razão de estes serem por natureza exclusivos e excludentes. Em primeiro lugar, deve ser posto em destaque que os mares e os oceanos, apesar da sua unidade física, estão divididos em espaços marítimos com estatutos jurídico-internacionais diferenciados. Em termos gerais, importa distinguir entre espaços marítimos sujeitos à soberania ou à jurisdição dos Estados costeiros (com destaque para o mar territorial, a zona económica exclusiva e a plataforma continental) e os espaços marítimos internacionais (alto mar) ou com um regime jurídico de internacionalização (Área). Os poderes dos Estados variam em função dos espaços marítimos em questão, pelo que a apreciação de qualquer comportamento levado a cabo por um Estado ou pelos seus nacionais, seja pelo Estado costeiro, seja por terceiros Estados, importa uma prévia localização geográfica no espaço em que ocorrem. Daqui resulta que as referências às batimétricas nas zonas marítimas abrangidas pelas AMP na RAM, como forma de delimitação das áreas especialmente protegidas do ponto de vista ambiental, não tenham de estar necessariamente compatibilizadas com os poderes que os Estados costeiros podem exercer nos espaços marítimos sob a sua soberania ou jurisdição, tendo em consideração os diferentes poderes que são reconhecidos aos Estados nas águas interiores, no mar territorial, na zona económica exclusiva e na plataforma continental. Em segundo lugar, importa salientar que a atuação dos Estados nos mares e nos oceanos se encontra genericamente enquadrada pelo princípio da liberdade dos mares, em conformidade com o qual todos os Estados, sejam ou não costeiros, podem prosseguir atividades nos diferentes espaços marítimos, sujeitos às limitações que decorrem do direito internacional. As utilizações específicas que podem ser prosseguidas pelos diferentes Estados e pelos seus nacionais estão dependentes do espaço marítimo em questão, mas a ideia básica que subjaz à atuação nos mares e nos oceanos é a de conciliação entre os diversos usos possíveis. Assim, a título de exemplo, embora os Estados costeiros exerçam poderes muito alargados no mar territorial, com a extensão máxima de 12 milhas marítimas (ou milhas náuticas, equivalentes a cerca de 22,22 km), os navios com a bandeira de terceiros Estados podem circular pelas suas águas ao abrigo do direito de passagem inofensiva, sem a necessidade de obterem a anuência ou a autorização desses Estados (arts. 17 a 19 da CNUDM). Finalmente, em terceiro lugar, deve ser tido em consideração que, salvo em situações muito circunscritas, como a colocação de instalações para a exploração de petróleo ou de gás natural ou a construção de ilhas artificiais, os usos dos mares e dos oceanos são temporários e prosseguidos por navios. Daqui decorre a necessidade de se autonomizar os usos que estão reservados para os Estados costeiros, nos casos em que estes tenham lugar num espaço sujeito à soberania ou à jurisdição dos Estados costeiros, como nos casos do mar territorial, das zonas económicas exclusivas ou das plataformas continentais, e daqueles outros usos, como a navegação, que constituem uma prerrogativa de todo e de qualquer Estado, seja ou não um Estado costeiro, podendo ser prosseguidos em qualquer lugar, com a exceção das águas interiores do Estado costeiro. A necessidade de ser respeitada a liberdade de navegação dos navios com o pavilhão ou bandeira de um terceiro Estado é particularmente relevante em algumas das AMP existentes na RAM, em razão da sua dimensão, com particular destaque para a Reserva Natural das Ilhas Selvagens.   Fernando Loureiro Bastos (atualizado a 14.12.2016)

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archais, associação de arqueologia e defesa do património da madeira

A ARCHAIS nasceu a 15 de abril de 1998. A sua atuação engloba a área da arqueologia e luta pela defesa do património cultural. Como obra fundamental de arranque, realizou o projeto cultural do Solar do Ribeirinho, em Machico, distinguido com o prémio APOM, da Associação Portuguesa de Museologia. Realizou inúmeros encontros, seminários e publicações diversas. Palavras-chave: arqueologia; associações culturais; defesa do património; inventários; recriações históricas.   A ARCHAIS, acrónimo da Associação de Arqueologia e Defesa do Património da Madeira, inspirado na palavra grega Arkhais que significa “antigo”, nasceu a 15 de abril de 1998, data em que formalmente registou os seus estatutos, então com sede no Sítio do Povo, em Gaula, Santa Cruz. A ARCHAIS surgiu na sequência de uma série de associações deste âmbito que proliferaram em Portugal continental e na ilha da Madeira durante as décs. de 80 e de 90, mas quase sempre, por razões de ordem vária, quer políticas quer sociais, de duração efémera. Os sócios fundadores foram Arlindo Quintal Rodrigues, Richard da Mata e Élvio Sousa. A associação assumiu-se desde logo como sociedade sem fins lucrativos, apartidária e não religiosa, visando desenvolver na RAM uma série de atividades de forma a defender os valores relacionados com a arqueologia e com o património, e a enriquecer o espírito de grupo e a cidadania. Os elementos fundadores já se encontravam a trabalhar desde 1997 pelo menos, procurando fazer um diagnóstico da situação do património cultural a nível regional. Foi com base nesse diagnóstico que vieram a assumir intervenções em várias frentes, especialmente na promoção de campanhas e de trabalhos na área da arqueologia, criando, inclusivamente, não só uma escola de arqueologia para o ensino, a formação e a promoção das campanhas a efetuar, e a promoção de cursos técnicos de introdução e de iniciação à arqueologia, à conservação e ao restauro, mas também visitas de alerta para a preservação geral do património cultural material do passado. No final da primeira década do séc. XXI, foi lançado o Portal do Arqueólogo, dedicado a todos os profissionais da área da arqueologia. Este serviço pretendia facilitar e agilizar os procedimentos decorrentes da prática profissional da arqueologia no território continental e promover a dinâmica entre a tutela do património arqueológico e o trabalhador/investigador. A obra fundamental de arranque do projeto cultural da ARCHAIS foi o trabalho de arqueologia desenvolvido a partir do Solar do Ribeirinho, em Machico, coordenado pelo Prof. Arlindo Rodrigues, que se estendeu a outros locais da cidade, tendo depois o solar sido transformado em museu, com projeto do arquiteto Vítor Mestre, que, em 2016, foi distinguido com o prémio APOM, da Associação Portuguesa de Museologia. Solar do Ribeirinho. Tapete.     Escavação Junta de Freguesia de Machico   Foi no projeto de escavação da área do solar que se alicerçaram, de imediato, outras iniciativas, tal como a realização do I Encontro Regional de Arqueologia e Património, no Funchal, a 26 e 27 de abril de 2000, cujos conteúdos foram depois publicados no Livro Branco do Património (2003). Outros encontros seguiram-se, e.g.: Legislação e Património, Arqueologia e História e Mesa-Redonda sobre a Nova-Lei de Bases do Património. Partindo da premissa de que publicar seria a melhor forma de defender e de valorizar o património e o trabalho desenvolvido, foram sendo dados à estampa não só vários estudos temáticos, tais como A Propósito do Solar do Ribeirinho (2000) e Iluminação Pública em Machico (2001), mas também inventários gerais de património de cidades e de freguesias da Região, com o apoio fundamental das Câmaras Municipais e de outras instituições.   As atividades de defesa do património da ARCHAIS estenderam-se ainda ao património cultural e ao imaterial, tendo-se tais ações integrado especialmente nos chamados mercados quinhentistas (recriações históricas muito divulgadas por toda a Europa desde os finais do séc. XX, de que o mercado de Machico se tornou paradigmático na Região). Estes eventos começaram com vários elementos ligados à Associação, com o apoio da Câmara de Machico e da Escola Básica e Secundária de Machico, quer na orientação dos professores quer na participação dos alunos, tendo-se alargado progressivamente. Naqueles mercados quinhentistas organizaram-se também colóquios sobre o património cultural imaterial que, embora não surgissem com a chancela da ARCHAIS, tinham a sua marca de origem. A atividade da ARCHAIS é indissociável da revista Ilharq, cujo n.º 0 apareceu em 2000 e o n.º 1, em 2001,e que abarca um amplo leque de temas, especialmente na área do património arqueológico. A partir do seu n.º 8, a revista começou a apresentar uma periodicidade bianual com o apoio da Câmara Municipal de Machico, e a ARCHAIS começou a ter a sua sede na antiga escola do Sítio dos Maroços, em Machico. O n.º 11 foi apresentado no Solar do Ribeirinho, a 11 de dezembro de 2015, reunindo um conjunto de artigos sobre o concelho de Machico, e revelando temáticas tais como a história regional e local, o património arquitetónico, a arte, a azulejaria, a etnografia, as tradições e as vivências quotidianas. Desde o nascimento da ARCHAIS, em 1998, foram sendo publicados também boletins informativos, acompanhados de imagens das atividades da Associação, tendo os primeiros boletins começado com uma periodicidade quadrimestral, evoluindo para uma periocidade semestral, e acabando, finalmente por se tornar anuais. A atividade da Associação, embora gozando do apoio de inúmeras personalidades nacionais ligadas à arqueologia, pretendendo intervir em toda a Ilha e arvorando-se de valores da cidadania participativa, encontrou alguma dificuldade no Funchal, devido a também existirem naquele local outras estruturas regionais e concelhias relacionadas com a área da arqueologia. Acresce que, embora assumindo-se como não partidária pelos seus estatutos, teria sido no seio desta associação, ou pelo menos com elementos ligados à mesma, que surgiu a formação partidária Juntos pelo Povo (Partidos políticos), que conquistou rapidamente representação autárquica e regional. Nesse sentido e torneando essas dificuldades, a ARCHAIS e os elementos ligados à mesma apostaram na diversificação de polos de desenvolvimento, fundando, por exemplo, o Centro de Estudos em Arqueologia Moderna e Contemporânea (CEAM), que, em união com outras entidades, desenvolveram projetos alternativos e apostaram em interessantes iniciativas vocacionadas para as camadas mais jovens (e.g., os chamados Giro de Património e os roteiros juvenis), com bastante sucesso. Estas ações, que pretendiam divulgar a realidade patrimonial local numa perspetiva de sensibilização para a necessidade de proteger, de preservar e de valorizar a mesma, conseguiram assim estender-se a quase toda a Ilha, inclusivamente às várias freguesias do Funchal, com o apoio das respetivas juntas de freguesia. O primeiro Giro, intitulado Património Histórico de Machico, editado com o apoio da Câmara Municipal de Machico, com textos de Isabel Gouveia e de Virgínia Nóia, e com design de Ricardo Caldeira, teve edição em abril de 2000; seguiu-se-lhe o Giro pelo Património Edificado de Santa Cruz, em 2001, com o mesmo design, texto de João Lino Pereira Moreira e fotografias de Élvio Duarte Martins Sousa. O sucesso da iniciativa levou a que ambos estes giros tivessem nova edição, seguindo-se, ainda em 2001, o Giro pelo Património Edificado da Ponta do Sol, com texto de Emanuel Gaspar e com o apoio da respetiva Câmara. Seguiram-se o Giro pelo Património Cultural de Santana, em 2002, e o Património Edificado da Ribeira Brava e Histórico-Arquitetónico da Calheta, em 2004, tendo sido depois promovidos, nas freguesias do Funchal, o Histórico de Santa Maria Maior, em 2005, o Histórico da Sé, em 2006, o Histórico de São Pedro, também em 2006, e o Histórico do Monte, em 2007. A ARCHAIS lançou ainda, em formato de livros de bolso, facilmente consultáveis em caminhadas, vários roteiros culturais das freguesias da zona leste da Madeira: o do Caniçal, o do Santo da Serra, o da Água de Pena, o do Porto da Cruz, o de São Jorge, e o de Gaula e de Caniço, entre outras.   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

Arquitetura Património Madeira Cultural

quercus-madeira

A Quercus-Madeira, fundada a 28 de janeiro de 1995, é o Núcleo Regional da Associação Nacional de Conservação da Natureza (Quercus), uma das principais organizações não-governamentais de ambiente em Portugal, e é constituída pelos sócios residentes no Arquipélago da Madeira. O Núcleo Regional da Quercus na Madeira, tal como os restantes núcleos desta Associação, organiza-se internamente numa Assembleia de Núcleo, que reúne pelo menos uma vez por ano os associados residentes, e numa Direção de Núcleo, eleita em Assembleia de Núcleo e composta, no mínimo, por presidente, tesoureiro e secretário. A Quercus-Madeira tem como objetivos os que decorrem dos Estatutos da organização em que se insere, destacando-se os de alertar e apoiar os cidadãos em relação às disfunções ambientais, fomentar e promover a educação cívica e ambiental, defender e promover a conservação dos valores naturais, e desenvolver estudos que contribuam para o conhecimento e a defesa dos valores do património natural e cultural. Decorrente da sua Declaração de Princípios, a Quercus norteia a sua intervenção cívica e política pelos valores da independência e da autonomia, sendo uma organização apartidária, liberta de qualquer tutela económica, religiosa ou racial, e consubstanciando a sua ação no lema “Pensar Globalmente, Agir Localmente”. A Quercus-Madeira, como toda a estrutura nacional da Associação, aborda as mais variadas áreas essenciais à sustentabilidade ambiental, tendo dado particular atenção à educação ambiental, à gestão dos resíduos, à escassez e qualidade da água, à conservação da natureza, ao ordenamento do território, à poluição, à eficiência energética e à energias renováveis. A origem do Núcleo Regional da Quercus na Madeira está diretamente associada à vontade de um grupo alargado de alunos que, no ano letivo de 1994/1995, frequentava o 3.º ano do curso de Biologia na Universidade da Madeira. Estes jovens, que tinham vontade de se organizar e constituir uma associação de defesa do ambiente, fizeram-se sócios da Quercus e constituíram o Núcleo Regional. A reunião preparatória que resultou no pedido formal à Direção Nacional da Quercus para a constituição de uma estrutura regional na Madeira ocorreu a 27 de outubro de 1994. Face à vontade subscrita por 15 alunos da licenciatura em Biologia e ao apoio do professor Jorge Paiva, a Direção Nacional autorizou a constituição do Núcleo Regional da Madeira a 28 de janeiro de 1995. A primeira Direção da Quercus-Madeira foi eleita a 15 de fevereiro de 1995 numa Assembleia de Sócios do Núcleo que decorreu no Colégio dos Jesuítas, Universidade da Madeira, tendo Hélder Spínola sido eleito Presidente, Maria Cristina de Matos Niza Secretária, Dília Maria Góis Gouveia Menezes tesoureira, e Odília Maria Freitas Garcês e Irene Gomez Câmara vogais. A apresentação pública da constituição da Quercus-Madeira ocorreu a 12 de abril de 1995, numa sala do Ateneu Comercial do Funchal, tendo suscitado uma forte curiosidade por parte da comunicação social regional. A Quercus-Madeira, sem sede, abriu um apartado na estação de correios e começou por usufruir de algum apoio logístico da própria Universidade da Madeira: dispunha de um armário para o seu arquivo, utilizava as salas para reuniões e fazia uso dos serviços de telecópia da instituição para contatos com a comunicação social. Em maio de 1996, com a eleição do primeiro Reitor da Universidade da Madeira, foi perdendo este apoio, passando a manter o seu arquivo em casa dos dirigentes e estabelecendo contactos com a comunicação social via serviço de telecópia dos Correios de Portugal. À medida que a Quercus na Madeira vincava a sua discordância com as opções que considerava desviadas da sustentabilidade – nomeadamente o atraso na aprovação dos Planos Diretores Municipais e outros instrumentos de ordenamento do território, a gestão da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos, que estava a criar problemas de contaminação das águas subterrâneas, os despejos de terras para dentro das ribeiras e diretamente para o mar e a falta de medidas para evitar os efeitos sobre a saúde pública da aplicação de materiais contendo amianto –, foi dando a conhecer o seu trabalho e atraindo novos sócios. Passado o primeiro ano desde a sua fundação, este Núcleo Regional deixou de ser um projeto de um grupo de estudantes de Biologia para passar a integrar elementos de outras proveniências da sociedade madeirense. Efetivamente, aquando da constituição de uma nova direção, a 27 de fevereiro de 1997, a maioria dos dirigentes eleitos já não pertencia ao grupo inicial de fundadores. No início de 1997, a Quercus-Madeira, ainda sem sede própria, passou a contar com um espaço na Escola da APEL para manter o seu arquivo e fazer as suas reuniões de trabalho. A utilização deste novo espaço resultou dos contactos estabelecidos entre a nova Secretária da Direção da Quercus-Madeira, Carina Martins Nunes, e o diretor da escola, Mário Casagrande (1930-2009). Um ano depois, também este espaço ficou indisponível e até ao ano 2000 a Quercus-Madeira funcionou sem sede, fazendo as suas reuniões em cafés, na casa dos dirigentes ou em espaços solicitados à Câmara Municipal de Machico. No ano 2000, fruto de uma colaboração que vinha a ser mantida com a Câmara Municipal de Machico, foi estabelecido um protocolo para a constituição de um centro de educação ambiental que passou a ser também a sede da Associação. A Quercus-Madeira passou assim a ter sede fixa num antigo quiosque, onde iniciou também a dinamização do novo Centro de Educação Ambiental de Machico. Em 2004, o Centro de Educação Ambiental e a sede da Quercus-Madeira passaram a funcionar no Mercado Municipal de Machico. A partir de 2011, por indisponibilidade da autarquia local, o Centro de Educação Ambiental de Machico cessou funções, mas a sede da Quercus-Madeira manteve-se no local. A Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza é uma Organização Não Governamental de Ambiente que se formalizou a 31 de outubro de 1985, mas que já desenvolvia atividade desde finais de 1984. A sua constituição resultou da união de esforços entre vários ativistas e associações ambientalistas, que sentiram a necessidade de uma organização mais forte e de âmbito nacional dedicada à conservação da natureza. A base da sua fundação foi determinante na definição do tipo de estrutura interna que adotou, a qual, além dos órgãos nacionais, é marcada pelas existência de Núcleos Regionais espalhados de norte a sul do país, incluindo os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Os primeiros Núcleos Regionais da Quercus foram constituídos a partir da integração de associações locais de defesa do ambiente previamente existentes, algumas que participaram na fundação da Associação e outras que se juntaram mais tarde. Numa segunda fase, já na década de 90 do século XX, e à semelhança do que aconteceu na Madeira, a organização local dos sócios deu origem a Núcleos Regionais nascidos dentro da própria Quercus. O facto de os Núcleos Regionais da Quercus constituírem estruturas democráticas, com dirigentes eleitos pelos seus sócios, e possuírem autonomia de funcionamento, proporcionou a esta Associação uma grande agilidade de atuação que é, em grande medida, responsável pela forte implantação e influência em todo o território português. Apesar de estes Núcleos Regionais possuírem autonomia estatutária para definir a sua estrutura organizativa, nomeadamente criando delegações na sua área geográfica, são muito raros os exemplos de concretização dessa faculdade. O Núcleo Regional da Madeira chegou a aprovar, em outubro de 1995, a criação de uma Delegação no Concelho de Santana, mas, à semelhança de tentativas para o Estreito de Câmara de Lobos e para o Porto Santo, essas estruturas acabaram por não vingar. A Quercus possui como órgãos sociais a Assembleia-Geral, a Mesa da Assembleia-Geral, a Direção Nacional, o Conselho Fiscal e a Comissão Arbitral, possuindo ainda um Conselho de Representantes que reúne os membros da Direção Nacional e os presidentes dos Núcleos Regionais. Se os Núcleos Regionais permitem à Quercus uma forte implantação geográfica, os órgãos nacionais, em particular a Direção Nacional, apoiados em estruturas como os grupos de trabalho e os projetos nacionais, garantem uma atuação global coerente e sólida. Ambas as estruturas, nacionais e regionais, na sua ação concertada, completam um modelo de organização que consubstancia de forma eficaz o lema: “Pensar Globalmente, Agir Localmente”. Apesar de a Quercus ter atualmente uma intervenção muito diversificada, abrangendo áreas temáticas como a gestão dos resíduos, a qualidade do ar, a eficiência energética, as energias renováveis, a qualidade e escassez dos recursos hídricos, entre muitas outras, a preocupação predominante dos seus fundadores centrou-se essencialmente nas questões associadas à conservação da natureza. Esse foi justamente o motivo para a adoção do nome Quercus, o nome científico do género a que pertencem os carvalhos, sobreiros e azinheiras, que são as árvores predominantes do coberto vegetal primitivo do território continental português, e do símbolo da organização, uma folha e uma bolota de carvalho-negral (Quercus pyrenaica). Os dirigentes da Quercus são eleitos para mandatos de dois anos de entre os sócios da Associação e exercem os seus cargos de forma não remunerada. Tendo em conta as estruturas nacionais e regionais definidas estatutariamente, o número de dirigentes necessários para completar todos os cargos é superior a 80. Além dos dirigentes, o funcionamento da Associação requer também a ocupação de outros cargos, nomeadamente na coordenação de grupos de trabalho e de projetos. Entre 1995 e 2000, 0 presidente do Núcleo Regional da Quercus na Madeira foi Hélder Spínola, biólogo e um dos fundadores deste núcleo, que mais tarde, entre 2003 e 2009, foi também presidente da Direção Nacional desta Associação. A segunda Direção do Núcleo foi eleita a 27 de fevereiro de 1997, tendo Hélder Spínola sido acompanhado por uma equipa maioritariamente constituída por sócios não pertencentes ao núcleo de fundadores: Carina Martins Nunes, como Secretária, Élvio Duarte Martins de Sousa, como Tesoureiro, e Élia Maria Basílio Rodrigues, Idalina Perestrelo Luís, Joselino Humberto Henriques Silva, Maria Conceição Andrade Silva, Odília Maria Freitas Garcês e Ysabel Margarita Amaro Gonçalves, como vogais. Idalina Perestrelo Luís foi a segunda presidente da Quercus-Madeira, tendo iniciado funções a 5 de agosto de 2000, por nomeação da própria Direção do Núcleo, e sido eleita para o cargo a 28 de outubro de 2000. Desde 2000, e ao longo dos sete mandatos sucessivos para os quais foi eleita, Idalina Perestrelo Luís foi sempre acompanhada na Direção do Núcleo por Elsa Maria Freitas Araújo, como vice-Presidente. A partir de outubro de 2013, Elsa Araújo passou a ser a Presidente do Núcleo Regional da Quercus na Madeira. Desde 1995, o Núcleo Regional da Quercus na Madeira envolveu-se em inúmeras atividades com o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade ambiental e para uma mudança de paradigma na sociedade madeirense. À semelhança da matriz que caracteriza a ação nacional da Quercus, toda a atividade do Núcleo Regional foi marcada por duas formas principais de atuação, os projetos e a intervenção pública, em ambas abrangendo os mais diversos temas ambientais. A mudança de atitudes e comportamentos para com os valores ambientais foi um dos objetivos em que a Quercus-Madeira apostou desde início, tendo desenvolvido várias iniciativas e projetos com esse fim. Nesse âmbito, destaca-se uma parceria com a Câmara Municipal de Machico e a criação do Centro de Educação Ambiental de Machico (CEAM), cuja abertura oficial, em julho de 2000, contou com a presença do Presidente da Direção Nacional da Quercus. Ao longo dos seus 13 anos de funcionamento, o Centro de Educação Ambiental dinamizado pelo Núcleo Regional da Quercus desenvolveu largas centenas de ações de sensibilização, em particular nas escolas da Madeira, tendo abordado temáticas tão diversas como a defesa do património natural, os incêndios florestais, o ordenamento do território, a redução, reutilização e reciclagem de resíduos, a gestão sustentável dos recursos hídricos, e a eficiência energética, entre muitos outros. Além de palestras e debates, a Quercus-Madeira dinamizou, através do CEAM, atividades de reflorestação e manutenção no Parque Ecológico do Funchal, editou publicações, preparou exposições e promoveu passeios a pé. De entre os vários recursos de divulgação e educação ambiental publicados pela Quercus-Madeira é de particular realce a revista Raízes, uma publicação periódica que lançou o seu primeiro número em outubro de 2001. Ao longo de sete anos e de 34 números, a revista Raízes apresentou em capa uma grande variedade de temas, como o património malacológico do Porto Santo e dos seus ilhéus, a fauna cavernícola de Machico, a avifauna da lagoa do Lugar de Baixo, as florestas da ilha da Madeira, a qualidade ambiental das ribeiras e o problema dos incêndios florestais. Associados a estes e outros temas, muitos foram os cidadãos que deram o seu contributo voluntário na preparação de conteúdos, em particular profissionais da área da biologia, mas também juristas, professores e estudantes, entre outros. Um dos temas a que o Núcleo Regional da Quercus na Madeira tem dedicado especial atenção tem sido a gestão de resíduos, não só ao nível da educação e sensibilização ambiental, nomeadamente com o projeto Ponta de Sol Mais Brilhante em 2004 e 2005, mas também através da implementação de projetos iminentemente práticos. Exemplo disso foi a recolha de pilhas usadas, um projeto nacional da Quercus que o Núcleo Regional estendeu à Madeira logo no início de 1995, reunindo mais de 10 quilos de pilhas, as quais se juntaram, em 1998, às 11 toneladas recolhidas em todos os Núcleos da Associação para serem encaminhadas para reciclagem em França. Ainda em 1998, com a ajuda de algumas dezenas de jovens voluntários, esta estrutura regional da Quercus fez um levantamento exaustivo da quantidade e do tipo de resíduos existentes nas praias e calhaus da Madeira, tendo encontrado um litoral pejado de lixo com origem na própria ilha. A disponibilidade de bebidas em embalagens retornáveis, como forma de prevenir a produção de lixo, foi um assunto constante nas preocupações da Quercus-Madeira, que insistiu sempre na fiscalização e cumprimento da Lei. Em fevereiro de 2009, a Quercus trouxe à Madeira mais um projeto pioneiro, tendo, primeiro em parceria com o centro comercial Dolce Vita e depois com os hipermercados Continente, iniciado a recolha seletiva de rolhas de cortiça para posterior reciclagem no âmbito do projeto Green Cork, cujos lucros são utilizados para a reflorestação. Nos primeiros dois meses, o projeto Green Cork conseguiu reunir na Madeira mais de meia tonelada de rolhas de cortiça. Ainda na mesma área, uma das batalhas em que a Quercus-Madeira mais investiu foi a oposição à opção pela incineração como destino final dos resíduos sólidos urbanos produzidos no Arquipélago da Madeira. Em 1998, assim que o governo regional anunciou a intenção de construir uma central de incineração, a Quercus-Madeira promoveu uma petição para que o projeto não fosse concretizado, tendo recolhido mais de 700 assinaturas, que foram entregues na Assembleia Legislativa da Madeira. Quando, em janeiro de 1999, o Governo Regional da Madeira iniciou a discussão pública do estudo de impacte ambiental da obra de Ampliação e Remodelação da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos da Meia Serra, o Núcleo Regional da Quercus foi a única organização que se opôs a este projeto. A 22 de Agosto de 1999, a Quercus-Madeira organizou a iniciativa Ar Puro que, junto à igreja do Rochão, na Camacha, reuniu cidadãos e representantes de partidos na sensibilização para os perigos decorrentes das emissões de uma central de incineração. A 7 de dezembro de 1999, ao início da noite, devido à queda de um muro que ameaçava ruir já há algum tempo, ocorreu uma derrocada de resíduos do aterro sanitário da Estação da Meia Serra para o interior da lagoa de arejamento dos lixiviados, provocando uma enxurrada que desceu ao longo da ribeira da Cerejeira, destruiu por completo uma habitação e danificou três viaturas no sítio do Ribeiro Serrão. O sobressalto causado por esta calamidade terá estado na origem do ataque cardíaco que vitimou, no decorrer dessa mesma noite, um residente, o senhor José Arnaldo das Neves Vieira, com 39 anos, que, ao longo desse ano, vinha colaborando abertamente com a Quercus-Madeira por uma solução diferente para a gestão dos resíduos. Este facto levou a um envolvimento maior da população da Camacha, em particular dos moradores dos sítios do Ribeiro Serrão e Rochão, que, juntando-se à Quercus, se manifestaram contra o projeto à entrada da Estação a 27 de dezembro de 1999, reunindo perto de uma centena de pessoas. A manifestação repetiu-se a 2 de janeiro de 2000, envolvendo cerca de 300 pessoas. Nesse dia, as barreiras metálicas e a Brigada de Intervenção Rápida da Polícia de Segurança Pública, liderada no local pelo próprio comandante regional da PSP, não foram suficientes para demover a população de entrar na Estação para constatar in loco a estabilidade dos resíduos depositados no aterro e o que estava a ser feito para garantir a sua segurança. Apesar destas iniciativas, o projeto foi avante e a incineradora foi inaugurada em 2004. Possuindo o Arquipélago da Madeira um património biológico extraordinariamente importante, a conservação da natureza foi outra área onde o Núcleo Regional da Quercus mais interveio. Além dos contributos que deu na divulgação do património natural insular, a Quercus-Madeira agiu inúmeras vezes na tentativa de alterar o curso de algumas ações que entendia serem lesivas à biodiversidade. Desde a sua fundação, insistiu na retirada do gado ovino, caprino e bovino que pastoreava em regime livre nas serras da Madeira e impedia a regeneração da vegetação, deixando as serras escalvadas e à mercê dos processos erosivos, pondo em causa a biodiversidade e a segurança das populações pelo risco de aluvião. Também por insistência do então Vereador do Ambiente da Câmara Municipal do Funchal, Raimundo Quintal, mentor da criação do Parque Ecológico do Funchal, onde implementou essa medida, o Governo Regional da Madeira acabou por aceitar a retirada do gado das serras, tendo dado por concluído esse processo em 2003. Outra ameaça à biodiversidade que a Quercus-Madeira sempre combateu foi o flagelo dos incêndios florestais, tendo desenvolvido o projeto Vigilância Contra Fogos Florestais em 1997 e 1998 e, nos anos seguintes, criado uma rede informal de vigilância com mais de 100 voluntários no âmbito do projeto De Olhos na Floresta. Para minimizar o problema dos incêndios florestais, esta Associação insistiu constantemente numa estratégia para a Madeira apostada na prevenção, na vigilância e numa primeira intervenção rápida e eficaz. Em 1999, em colaboração com a Câmara Municipal de Machico, a Quercus-Madeira elaborou a candidatura do projeto Recuperação da Floresta Laurissilva das Funduras ao programa LIFE Natureza, projeto que foi submetido em nome da Direção Regional de Florestas e obteve um financiamento europeu superior a meio milhão de euros. A execução do projeto teve início em janeiro de 2000 e decorreu até ao fim de 2003, tendo a Quercus-Madeira assegurado a implementação das medidas de educação ambiental que ficaram à responsabilidade da Câmara Municipal de Machico. A Quercus-Madeira também se mobilizou várias vezes para tentar evitar a concretização de alguns projetos no coração da floresta Laurissilva. Por exemplo, no início do século XXI, quando o Governo Regional avançou com a asfaltagem da estrada do Fanal, entre a Ribeira da Janela e o Paul da Serra, a Quercus, além das intervenções públicas, procurou, sem sucesso, que a UNESCO, que em 1999 reconheceu o estatuto de Património Natural Mundial à floresta Laurissilva, negasse essa pretensão. Ainda assim, a contestação à asfaltagem levou a que, a partir do Fanal e até ao Paul da Serra, a largura da estrada fosse reduzida. Já em 2008, unindo esforços com a Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal e com um conjunto alargado de cidadãos, a luta foi contra a pretensão do Governo Regional da Madeira de viabilizar a construção de um teleférico no Rabaçal, na cabeceira da ribeira da Janela, em plena floresta Laurissilva, tendo pedido a intervenção da UNESCO e da Comissão Europeia, às quais enviou uma petição com mais de 5000 assinaturas. Adicionalmente, em Março de 1999, estas duas associações de defesa do ambiente interpuseram em Tribunal uma ação judicial a pedir a nulidade da Declaração de Impacte Ambiental favorável assinada pelo Secretário Regional do Ambiente. Devido a esta forte contestação, a construção do teleférico não avançou e a Declaração de Impacte Ambiental acabou por caducar por ter sido ultrapassado o prazo da sua validade, situação que levou o Tribunal Administrativo e Judicial do Funchal, em setembro de 2011, a encerrar o processo. Ao longo do tempo, a Quercus-Madeira alertou para inúmeras situações e opções que constituíam ameaças ao ambiente: Contestou as ações de abate ao Pombo Trocaz (Columba trocaz), espécie protegida e exclusiva da Madeira, , iniciadas pelo Governo Regional em 2004; opôs-se, a partir de 2002, à construção de um Radar Militar no Pico do Areeiro, em Sítio da Rede Natura 2000, junto ao único local no mundo onde nidifica a Freira da Madeira (Pterodroma madeira), uma ave marinha fortemente ameaçada; alertou insistentemente para as consequências negativas sobre os ecossistemas marinhos costeiros decorrentes dos despejos de terras provenientes de obras públicas e privadas; colocou na ordem do dia os perigos para a saúde pública decorrentes da inalação de fibras de amianto, presentes em materiais utilizados na construção de inúmeros edifícios no Arquipélago da Madeira; insistiu na necessidade de melhorar os transportes públicos de modo a garantir uma alternativa válida ao transporte individual e reduzir a poluição dentro da cidade do Funchal; defendeu uma maior aposta na eficiência energética e nas energias renováveis; pressionou inúmeras vezes para o cumprimento da Lei no que diz respeito à realização de análises e divulgação dos resultados relativos à água para consumo humano; insistiu na necessidade de serem adotados e respeitados os instrumentos de ordenamento do território previstos na legislação portuguesa, em particular os Planos Diretores Municipais, os Planos de Ordenamento da Orla Costeira e a Reserva Ecológica Nacional; cooperou com a organização internacional Save the Waves na contestação contra a destruição das ondas para a prática de surf no Jardim do Mar; cooperou com a Sociedade de Desenvolvimento Ponta Oeste numa solução para a preservação da Lagoa do Lugar de Baixo na Ponta do Sol; e, entre muitas outras iniciativas, tentou impedir o avanço de projetos turístico-imobiliários sobre o litoral.   Hélder Spínola (atualizado a 11.10.2016)

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