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convento de são bernardino

O primeiro convento franciscano que se fundou fora do Funchal teve por titular S. Bernardino de Sena, um dos grandes santos da mesma ordem, e foi fundado na freguesia de Câmara de Lobos, entre 1459 e 1460, em lugar ermo e solitário, a certa distância da igreja matriz, a norte do Pico da Torre, ainda restando grande parte dos seus edifícios, embora das campanhas de obras dos sécs. XVIII, XIX e XX. O convento teve uma humilde e obscura origem, mas tornou-se célebre e afamado em toda a Ilha, e até no continente, por ter ali vivido e falecido Fr. Pedro da Guarda (1435-1505), a que o povo chama “santo servo de Deus” (VERÍSSIMO, 2002, 79-91). A fundação é atribuída a Fr. Gil de Carvalho, um humilde frade franciscano que veio do continente do reino para a Madeira, quando os Franciscanos que ocupavam o hospício de S. João da Ribeira acabavam de sair da Ilha para irem estabelecer uma comunidade nas proximidades de Lisboa, em Xabregas, que fundaram em 1456, sobre as ruínas do antigo paço de Xabregas e a invocação de S.ta Maria de Jesus, mas que ficou mais conhecido por Convento de S. Francisco. Desejando Fr. Gil viver em lugar desértico como eremita, como escreveu depois o deão, António Gonçalves de Andrade (1795-1868), anotador da História Insular do P.e António Cordeiro (1641-1722) a partir da História Seráfica, levantou um pequeno cenóbio com dois cubículos “em dois pés de terra semeada entre rochas”, num dos quais habitava o fundador e no outro João Afonso e Martinho Afonso, os quais esmolavam pelo povoado para a sustentação dos três (SOLEDADE, 1705, III, 170-171). Crescendo o número de religiosos, trataram de levantar um pequeno convento em terreno que lhes foi doado por João Afonso Correia (c. 1435-1490), escudeiro do infante D. Henrique, e sua mulher, Inês Lopes, que na Ilha foram o tronco da casa Torre Bela. A nova casa religiosa erguia-se num sítio afastado da povoação, cercado de um lado pela ribeira e do outro, por uma rocha, sendo bem própria para o género de vida a que se dedicavam. Passados alguns anos reuniram-se outros religiosos, que formaram a comunidade inicial, mas uma enchente da ribeira, pelos anos de 1480, haveria de destruir a pequena ermida e os primeiros cubículos, o que desgostou irremediavelmente Fr. Gil de Carvalho, que se retirou para o continente, entregando a direção a Fr. Jorge de Sousa. Foi Fr. Jorge de Sousa que reconstruiu o convento, um pouco mais acima, ao abrigo das correntes caudalosas da ribeira, tendo sido levantada nova e mais vasta igreja, com novas celas, “que logo foram habitadas”, tendo ficado o espaço inferior do inicial ermitério para “algumas oficinas de menor importância” (SOLEDADE, Ibid., 173). Data dos finais do séc. XV aos inícios do XVI a organização canónica do convento como uma verdadeira casa monástica, depois de ter melhorado consideravelmente as condições materiais através de doações, contratos de arrendamento, etc., como era hábito, pois estes mosteiros funcionavam também como empresas agrícolas. A fama e o desenvolvimento da comunidade encontram-se decididamente ligados à presença ali de Fr. Pedro da Guarda que, nascido na Guarda, em 1435 e que, tendo professado por 1455, “querendo subtrair-se à admiração que causavam as suas virtudes” (SILVA e MENESES, 1998, II, 103), se refugiou em S. Bernardino por 1485. Falecido em 1505, logo a sua fama se espalhou pela Ilha e pelo continente, sendo referido por Fr. Marcos de Lisboa (1510-1591), depois bispo do Porto, na terceira parte das suas Crónicas de los Frayles Menores, editadas em Salamanca, em 1570, não tendo nunca cessado o culto popular que lhe tem sido devotado. A comunidade de S. Bernardino foi crescendo ao longo do séc. XVI e, por 1584, Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) refere que ali viviam permanentemente 7 a 8 religiosos, sendo o Convento “abastado de toda a fruta e vinhos” (FRUTUOSO, 1968, 122). Em 1598, no Recenseamento dos Fogos, Almas, Freguesia, e Mais Igrejas, registavam-se 10 a 12 religiosos, sinal de continuar a crescer a população residente do Convento e, por certo, pela devoção suscitada com a ocorrência, no ano anterior, da localização da sepultura de Fr. Pedro da Guarda. No início do ano anterior, a 9 de janeiro de 1597, registam as vereações do Funchal não se ter realizado sessão da parte da manhã, por falta de comparência dos oficiais do concelho, que haviam sido informados de que os franciscanos tinham descoberto os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda (ABM, Câmara Municipal do Funchal, 1313, 3 v.). A exumação oficial deve ter ocorrido depois, a 28 de janeiro desse ano, na presença, de novo do bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), do reitor do colégio do Funchal, P.e Cristóvão João “e outras pessoas qualificadas”, como regista a História Seráfica (SOLEDADE, Ibid., 173). O certificado de transladação de Fr. Ambrósio de Jesus, à época definidor-geral e comissário dos conventos franciscanos da Madeira, datado de 23 de maio de 1624, regista somente tal ter ocorrido em janeiro de 1597 e reivindica para si o ter encontrado, nos claustros, os restos do corpo de Fr. Pedro da Guarda (Girão, 1992, 8, 396-397). A capela-mor da nova igreja foi fundada por Rui Mendes de Vasconcelos (c. 1460-c. 1520), filho mais novo de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves, filha de Zarco, e a sua mulher Isabel Correia, que era filha dos doadores do terreno em que se tinha levantado o primitivo convento. Pajem da rainha D. Leonor e um dos homens-bons do concelho do Funchal, onde serviu de vereador, guarda-mor da saúde e procurador do concelho, Rui Mendes de Vasconcelos mandou redigir cédula de testamento a 15 de setembro de 1515, antes de seguir para o reino, onde determina vir a ser enterrado no meio da capela-mor, junto dos seus filhos já falecidos. A capela teria sido reconstruída por 1533 e a lápide em causa, nessas ou nas obras seguintes, transferida para o adro da igreja, onde se encontra. Mais tarde, o neto homónimo Rui Mendes de Vasconcelos deixou ainda em testamento, de 16 de abril de 1569, 160$000 réis da sua terça para sufrágios por sua alma. Com essa importância deveriam ainda ser compradas várias alfaias e paramentos, como um cálice de prata dourada, de três marcos, uma vestimenta, uma capa e um frontal de seda de damasco. O remanescente seria aplicado em bens de raiz, “em boa terra, em Câmara de Lobos, e em água” para subsistência dos frades, tudo ficando enfeudado, “enquanto o mundo durar” (VERÍSSIMO, 2002, 33), a duas missas semanais rezadas, às quartas e às sextas, pela sua alma e as dos seus filhos. O seu testamento não veio a ser aprovado, fazendo-se inventário e partilhas, de forma a assegurar o legado. Os bens destinados a esse efeito, embora ligeiramente inferiores aos inicialmente destinados, à época, cumpriam suficientemente o determinado, mas o mesmo não viria a ocorrer alguns anos depois. O neto do segundo Rui Mendes de Vasconcelos, por via materna, também padroeiro da mesma capela-mor, João de Bettencourt de Vasconcelos (1535-1615), nos finais do século, requeria ao bispo do Funchal a redução das missas em questão. O bispo D. Luís Figueiredo de Lemos já tinha exposto a situação para Roma e havia recebido uma carta da Sagrada Congregação dos Cardeais, de 4 de outubro de 1589, concedendo-lhe o poder para reduzir as capelas e missa dos administradores do seu bispado “que se sentissem carregados com grande número de missas e encargos, ao justo e razoável, conforme as propriedades e rendimentos” (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, tombo 3, 608-608 v.). O despacho do pedido do administrador da capela-mor de S. Bernardino teve a data de 19 de dezembro de 1593, reduzindo o bispo o número de missas de duas semanais para uma por mês, mas mantendo as demais obrigações dos padroeiros, que eram o pagamento de azeite, pão, peixe ou carne e vinho para a subsistência dos frades. João de Bettencourt de Vasconcelos, a quem, regista Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de) no seu Nobiliário Genealógico, chamavam “o Cavaleiro, de alcunha”, tendo passado à Índia por capitão da nau São Gregório, sucedeu, entretanto na terça dos seus avós, por morte de seu irmão Rui Mendes de Vasconcelos, homónimo dos vários avós e que falecera sem descendência. Por testamento aprovado em 12 de dezembro de 1607, como administrador dos bens do irmão, refere que a terça do mesmo ainda tinha como obrigação para o Convento de S. Bernardino uma pipa de vinho novo, quatro arrobas de azeite e 3$500 réis de missas rezadas e cantadas, pelo que deve ter havido ainda outras alterações a estes legados. No seu testamento, João de Bettencourt de Vasconcelos deixou vinculada a sua terça nas fazendas por cima de Câmara de Lobos e abaixo da quinta da Torre, deixando-a aos frades de S. Bernardino. Determinou que a administração desta capela, depois conhecida como “Terça dos Frades”, deveria passar à sua filha Helena de Vasconcelos (c. 1572-1625), instituidora da capela-mor da igreja do Colégio do Funchal, dado o filho Henrique de Bettencourt não ter descendência e falecer pouco depois, em 1620, e Guiomar de Bettencourt (c. 1571-1607), a irmã mais velha, já ter falecido. Data de cerca de 1633 a construção de três pequenas capelas na cerca, para além de outros melhoramentos nos edifícios do Convento. As capelas de homenagem a Fr. Pedro da Guarda ficavam, uma junto à sepultura do “santo”, identificada nos finais do século anterior, outra junto da cozinha, onde a tradição contava ter havido anjos a ajudá-lo nos seus trabalhos e a última, junto à pequena lapa onde costumava meditar, isolado de tudo e de todos. Por esses anos igualmente se fizeram obras nos claustros e na casa do capítulo, para o que Rui Mendes de Vasconcelos (II) deixara os materiais, como madeira de cedro e que a mandara colocar na loja do mosteiro. Saliente-se, no entanto, que nem sempre estas determinações testamentárias eram cumpridas, pois que no documento em questão se refere a importação de uma laje da Flandres, que não temos informação de alguma vez ter existido, tal como determina que se fizessem grades de ferro, de varões grossos, lavrados e dourados para a capela-mor, de modelo idêntico aos da capela do Santíssimo da sé do Funchal, a fim de substituir os de madeira que já estavam velhos, que também mais ninguém volta a referir. Alguns anos depois Henrique Henriques de Noronha descreve pormenorizadamente o Convento, a “uma légua da cidade do Funchal, para poente”, por cima do lugar de Câmara de Lobos, que com os anos fora aumentando o número de edifícios, especialmente graças à contínua romagem do “Servo de Deus”, constituindo-se numa das melhores casas franciscanas e a segunda da Custódia de S. Tiago Menor da Madeira. Tinham então boas oficinas e “excelentes cómodos” para os 18 religiosos que habitavam no Convento. Compreendia três dormitórios, que com a igreja formavam um “perfeito quadro”, com um claustro rodeado de varandas sobre pilares de “cantaria fina” e no meio uma fonte de “perene água” (NORONHA, 1996, 250-251). O cronista descreve as várias capelas, uma das quais no claustro, dedicada a Fr. Pedro da Guarda, “onde misteriosamente foram achadas as relíquias na sua sepultura, pelo bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, em oito de janeiro de 1597”, o que, se de algum modo pode ser confirmado pelas vereações camarárias do Funchal, que no dia seguinte não tiveram sessão por todos terem acorrido a Câmara de Lobos, embora esteja em desacordo com o que escreveu Fr. Fernando da Soledade, que regista o dia 28 de janeiro, e, logicamente, omite ter sido o bispo do Funchal a fazer o achado. Refere-se ainda à capela construída na antiga cozinha, também dedicada ao “santo”, onde “vinham os anjos beneficiar o comer, enquanto ele se ocupava em outra maior contemplação”, figurando aí a sua imagem de joelhos, em oração, dentro da antiga chaminé “e os anjos ocupados no ofício do Santo” (Id., Ibid.). Nos claustros havia outra capela, que servia de capítulo aos religiosos, dedicada a N.ª Sr.ª da Piedade, “cuja imagem é de maravilhosa pintura”, capela fundada por André Afonso Drumond e sua mulher Branca de Atouguia. Fora do claustro, junto à portaria e à igreja ainda havia outra capela, dedicada às almas, com uma confraria e, a “poucos passos adiante”, ainda a capela de S. Lourenço, dentro da qual, do lado da epístola, ficava uma “lapa fechada com grades de ferro” (Id., Ibid., 252), que ainda subsiste, onde era tradição que Fr. Pedro da Guarda se retirava para oração. A igreja era “proporcionada ao convento”, de uma só nave, com capela-mor e dois altares colaterais: o do lado do evangelho dedicado ao Senhor Jesus, com irmandade e, o da parte da epístola, à Conceição de N.ª Sr.ª. O retábulo-mor possuía três nichos, sendo o central ocupado pela imagem de S. Bernardino de Sena e os laterais, pelas imagens de S. Francisco e de S.to António. Na parede do lado da epístola figuravam as armas dos Vasconcelos e, no lado oposto, havia uma tribuna. Na porta lateral que saía para os claustros havia uma laje com as letras A e D, indicação de que ali havia sido enterrado Fr. António Descalço, “religioso leigo cuja virtude e largas penitências lhe adquiriram larga veneração” (Id., Ibid.), mas na lápide aí existente no começo do séc. XXI figura o nome por extenso do frade leigo, por certo bem anterior aos anos de 1722, em que foram escritas as memórias do cronista Noronha. Fr. António Descalço havia sido canavieiro de açúcar de António Correia, o Grande (1457-1572), filho dos doadores do terreno inicial do Convento, tendo entrado como donato, ou seja “consagrado ao Senhor”, em referência a alguém mais novo e que estaria a preparar-se para seguir a vida religiosa, professando depois, mas como leigo. Passou a usar o nome de Descalço, “porque jamais calçou alparcatas” e quando se “faziam gretas nos pés, do exercício, as cozia com fio de sapateiro”. Faleceu em 27 de maio de 1590, o que parece corresponder à lápide depois colocada, tendo escrito Noronha que foi contemporâneo de Fr. Pedro da Guarda, “que sem dúvida seria o modelo do seu espírito”. No entanto, tendo o “santo” falecido em 1505, não podem ter sido contemporâneos, pois embora o antigo amo, António Correia, tenha falecido com 115 anos, um canavieiro que sempre andou descalço dificilmente teria passado dos 70 anos. Escreveu também Noronha que sobre a sua sepultura “se viam algumas vezes luzes” e ouviam cânticos amenos, com “um suavíssimo cheiro, que saindo dela se fundia por toda a igreja” (Id., Ibid., 251-253). Na descrição de Noronha do então oratório de S. Sebastião da Calheta, refere-se que no Convento de S. Bernardino se havia homiziado Pedro Bettencourt de Atouguia (1622-c. 1680), o qual tinha assassinado, por problemas de coleta de impostos, o corregedor Gaspar Mouzinho de Barba, a 29 de dezembro de 1642. O corregedor viera à Madeira para investigar uma série de tumultos ocorridos no ano anterior e, tomando conta da fazenda real, passou a tratar dos vários pagamentos em atraso. Entre esses pagamentos encontravam-se os de Pedro de Bettencourt, Manuel Homem da Câmara e outros, pelo que dirigindo-se à Câmara do Funchal, então nas traseiras da sé, para prender o último, foi assassinado às portas da mesma por Pedro de Bettencourt. Conta então Noronha, que foi depois preso, em princípio, pelo seguinte corregedor Jorge de Castro Osório, por sua vez, morto por envenenamento poucos meses depois (Aclamação de D. João IV). O morgado Pedro de Bettencourt teria, entretanto “arrombado a prisão” e passou a viver homiziado, de início, no Convento de Câmara de Lobos, “mas com tal mudança de vida”, que despendia a maior parte dos rendimentos do morgado em benefício da caridade, tendo feito “à sua custa as varandas do claustro de S. Bernardino”. Aí permaneceu até 1670, data em que comprou o terreno para o oratório de S. Sebastião da Calheta, cuja construção se iniciou por essa data, professando ali como Fr. José da Encarnação, onde “andou sempre descalço” e foi depois sepultado na capela-mor daquele oratório (Id., Ibid., 257). O Convento de S. Bernardino beneficiava, entretanto do púlpito da colegiada de S. Sebastião da Câmara de Lobos, pelo menos, desde o alvará de D. Filipe II, de 20 de outubro de 1612, que atribuiu ao guardião um ordenado anual de 15$000 réis e a obrigação de pregar na colegiada no Advento e na Quaresma, o mesmo acontecendo com os restantes conventos franciscanos, em relação às colegiadas das matrizes das freguesias próximas. Mais tarde, com a dinastia dos Bragança, as porções e esmolas dos sermões auferidas pelos religiosos estariam isentas do pagamento da décima, por provisão régia de maio de 1650. Os frades de S. Bernardino, e o Convento em geral, a partir dos inícios e meados do séc. XVII, vieram a beneficiar com o recrudescimento da devoção de Fr. Pedro da Guarda, tendo sido contínuas as tentativas de beatificação e os processos enviados para Roma. O Papa Urbano VIII, a 30 de agosto de 1625 ordenou, inclusivamente ao bispo do Funchal, D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), que, com dois dignatários da Sé, fizesse nova inquirição por autoridade apostólica. O processo foi concluído em 1628, sendo enviado para Roma, mas não tendo conhecido despacho. Novas tentativas foram feitas pelo P.e Fr. Baptista de Jesus, que se deslocou a Roma para negociar a causa, ainda sendo conduzida outra tentativa pelo deão, vigário-geral e provisor do bispado em sé vacante, Pedro Moreira (c. 1600-1674), em 1652, igualmente sem resultados. O erário público, entretanto concorreu igualmente para os processos de beatificação, determinando o rei D. João IV, por alvará de 3 de setembro de 1653, que os ministros da justiça aplicassem na Ilha metade das condenações pecuniárias para ajuda das despesas. A determinação de D. João IV foi confirmada cem anos depois, pelo bisneto D. José, por novo alvará, em 27 de fevereiro de 1753, para que se mantivesse a ajuda das despesas ao processo de beatificação do “Santo Servo de Deus” (BNP, Índice Geral do Registo da Antiga Provedoria da Real Fazenda, 118 v.), assunto cumprido ao longo dos séculos seguintes, mas sem resultado, ainda se arrastando o processo por Roma. O Convento de S. Bernardino veio a ser totalmente reconstruído nos inícios e meados do séc. XVIII, quase que somente se tendo preservado a lapa e a sepultura de Fr. Pedro da Guarda, assim como algumas das lápides sepulcrais. As obras devem ter-se iniciado por 1735, como atesta a data inscrita na base da cruz do frontispício da igreja e prolongaram-se, pelo menos para além de 1747, como se inscreveu no lintel de uma das janelas próximo da torre. A igreja ficou então dotada de três portas com molduras assentes em colunas oitavadas e conjunto rematado por cornija relevada sobre a qual assenta um pequeno nicho de cantaria aparente. O conjunto das portas parece ter tido o risco de um mestre das obras reais anterior, talvez Manuel de Vasconcelos, mas toda a fachada deve ter sido reformulada nos inícios do XIX, depois da aluvião de 1803 e ainda nas obras de 1924 a 1928, não sendo fácil deduzir o que ficou das campanhas de obras mais antigas e, inclusivamente, se não se aproveitaram cantarias de outros locais do Convento. Para estas obras, em princípio, o guardião e demais frades tiveram autorização da Câmara do Funchal, por alvará de 13 de janeiro de 1742, licença para cortar vinte e cinco paus nas serras do concelho. Entre 1730 e 1740 também se encomendaram vários painéis de azulejos para os claustros a uma das boas oficinas de Lisboa, de que chegaram aos nossos dias dois muito bons e grandes arcanjos, podendo ter sido mais. De 1740 a 1750 também deve ser o lavabo da sacristia, dos mais interessantes existentes na Região e que, contra o que seria de esperar, recupera o trigrama de S. Bernardino de Sena, de que se haviam apropriado os Jesuítas para a sua emblemática oficial, o que à época teria sido uma atitude corajosa. O Convento voltou a ter obras após o terramoto de 1748, que afetou bastante toda esta área e, então quase uma nova reconstrução, após a terrível aluvião de 9 de outubro de 1803. A descrição da aluvião de João Pedro de Freitas Drumond (1760-1825), o célebre “Dr. Piolho”, dada a fraca estatura, feita a pedido da Câmara do Funchal, refere que a ribeira da Saraiva ou ribeiro dos Frades levara “a cerca, claustros, cozinha, refeitório e adega” do Convento, de que só ficara a igreja e a casa dos romeiros. Uma testemunha ocular, a 15 de outubro seguinte, refere mesmo que “o convento do Servo de Deus também foi ao mar” e “dizem que escapou parte do refeitório e um pequeno celeiro” (VERÍSSIMO, 2002, 65). No livro de Receita e Despesa dessa época registam-se “o gasto que se fez depois do dia 10 deste mês de outubro, quando amanheceu a triste cena do aluvião, que levou este nosso convento com as alfaias que nele se achavam, etc.”. Os frades tiveram assim que adquirir quatro panelas, um tacho, uma frigideira, duas peneiras, seis copos, um cutelo, dois quartos, balança e pesos, tendo tudo custado 16$350 réis. Tiveram também de contratar um carpinteiro, por dois dias, “para consertos”, como regista o escrivão Fr. João de Santa Rosa (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, fl. 87). No pedido depois feito pelo guardião Fr. Matias de São Boaventura para se fazer uma vistoria, refere-se que os frades tiveram de trepar pela rocha vizinha do lado nascente, pois a água havia tomado a saída do Convento, demolido a portaria e entrado na igreja. Os frades tiveram que se recolher nas instalações dos Terceiros e na casa dos romeiros, pois haviam ficado sem os dormitórios e mais instalações, solicitando poder utilizar o rendimento da capela instituída por João de Bettencourt de Vasconcelos para a reedificação do Convento. A vistoria determinada pelo provedor dos resíduos e capelas só veio a ocorrer a oito de julho de 1805, levada a cabo pelo então mestre das obras reais e antigo mestre entalhador Estêvão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), assessorado pelo mestre António José Barreto, que lhe haveria de suceder. Os prejuízos tinham sido muito grandes, perdendo-se na totalidade o muro da cerca, as latrinas, o dormitório que estava ao lado do ribeiro, a cozinha e loja anexa, a casa de profundis, o refeitório, a adega, metade do claustro, a capela da cozinha do servo de Deus, a da cova do “santo”, a sacristia e a varanda que lhe ficava em cima, tal como as celas junto da mesma varanda. Na igreja, encontrava-se perdido o teto sextavado, o altar teria de ser refeito, e os azulejos, porque em mau estado, teriam de ser retirados. A ribeira dos Frades alterara o seu leito, passando então junto à porta travessa da igreja, que ia para a capela-mor, tudo necessitando de ser assim corrigido. As obras tiveram autorização do provedor-proprietário das capelas, Pedro Nicolau Bettencourt de Freitas e Meneses, devendo ser colocados em praça “os frutos” do morgadio instituído por João de Bettencourt de Vasconcelos, para se liquidarem pela melhor oferta. Satisfeitos os legados pios, deveria aplicar-se o remanescente na reconstrução do Convento e da capela-mor, de acordo com as diretivas deixadas no auto de vistoria. Ao longo dos anos seguintes as obras arrastaram-se, ainda havendo pagamentos em julho de 1822 e, em 1827, o síndico do Convento queixava-se que a vistoria às obras se achava por completar, em relação à capela-mor, oficinas do Convento e outras instalações. Estes anos foram muito complexos em Portugal com a implantação do primeiro liberalismo e com a contrarrevolução do infante D. Miguel, seguindo-se a guerra civil que, não tendo afetado fisicamente a Madeira, levou à emigração dos principais quadros eclesiásticos insulares, como grande parte dos cónegos da sé e dos vigários das freguesias. As obras do Convento nunca teriam sido completadas. A vida quotidiana da comunidade de S. Bernardino entre os finais do séc. XVIII e os inícios do XIX pode ser analisada pelos quatro livros de receita e despesa que sobreviveram. A documentação do Convento parece ter-se perdido parcialmente com a aluvião de 1803, tendo ficado alguns livros de despesas de obras no conjunto proveniente da provedoria do Funchal; os quatro livros de receita e despesa foram depositados na Torre do Tombo, indo integrar o núcleo dos conventos, tendo a documentação avulsa ficado no núcleo do Ministério das Finanças do mesmo arquivo. O estado de conservação dos cadernos iniciais do Livro de Contas de setembro de 1792 a 1798, quando era guardião o P.e Fr. António do Amor Divino, é testemunho da dificuldade por que deve ter passado toda a documentação do Convento. As receitas do Convento provinham essencialmente de foros e de missas, inclusive nos altares das confrarias, capelas e oratório do síndico, sermões na Quaresma e no Advento na colegiada de Câmara de Lobos, tal como da venda de túnicas, hábitos de saial e de burel para mortalhas, aspeto que era igualmente praticado nos restantes conventos franciscanos masculinos da Ilha. Um hábito de burel e o acompanhamento de um funeral registados, e.g., na primeira semana de setembro de 1792, custaram 2$500 réis, embora um outro enviado para o campanário na mesma semana tivesse custado somente $8000 réis. Os hábitos para mortalha eram feitos no Convento, comprando-se periodicamente uma vara de burel, como nos inícios de fevereiro do ano seguinte, que custou 6$000 réis. As túnicas também ali deviam ser feitas, vindo o linho sedado ou em rama, da Ponta do Pargo e da Fajã da Ovelha, em princípio, como esmola. Na última semana de maio de 1798, e.g., entre os inúmeros envios de hábitos de burel e de saial, registam-se verbas de 4$000 réis, para o do burel enviado para o funeral de Manuel de Sousa, das Eiras, acompanhado por dois religiosos “a 500 réis cada um” e 9$000 réis, para o hábito de saial enviado para Rita dos Santos, da Várzea, cujo funeral foi acompanhado por seis religiosos. Nessa semana também se receberam 3$000 réis pelo “caminho e assistência” ao ofício das exéquias do governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, falecido no Funchal, a 30 de março desse ano, determinadas pelo Cap.-mor Filipe Esmeraldo e nas quais participaram cinco religiosos “a 600 rs.” (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, f. 1v.). As verbas auferidas pelas missas eram também variáveis, registando-se, e.g., na primeira semana de fevereiro de 1793, 35 missas, que renderam 2$800 réis; na segunda semana, 25 missas, 2$000; na terceira, 33 missas, 2$050; e na quarta, 35 missas, 1$800, dependendo assim de onde eram celebradas e dos acordos anteriormente estabelecidos. Havia uma série de missas que eram obrigação do Convento, outras de outras obrigações, tal como as das capelas e das confrarias, nem todas pagas. Na última semana de abril de 1798, no livro de contas de quando era guardião o P.e pregador Fr. Manuel da Piedade, especifica-se que se “disseram” 23 missas, 7 do Convento, 3 de obrigações, 3 das confrarias e 4 de “ofícios de frades”, somente tendo sido pagas quatro, a 200$000 réis, pelo que houve de receita 800$000 réis (Ibid., liv. 2, fl. s/n.ºv.). Nas semanas seguintes variam os quantitativos, havendo missas pagas a $200, a $300 e, inclusivamente, a 1$550 réis, como ocorreu na terceira semana de maio desse ano de 1798 e que parece corresponder à missa que antecedeu ou finalizou o “Noturno da confraria de Jesus” (Ibid., liv. 2, fl. 1) As festas dos padroeiros das confrarias sedeadas no Convento eram igualmente fontes de receita, principalmente se tivessem sermão, podendo chegar aos 3$000 réis. Os foros representavam ainda maiores fontes de receita, como os provenientes da antiga Terça dos Frades, que a célebre morgada Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789) chegou a colocar em tribunal, em 1771, face à aplicação da lei pombalina de 4 de julho de 1768 e do alvará de 12 de maio do ano seguinte sobre os bens vinculados, mas que veio a ter despacho da Relação de 14 de dezembro de 1776, favorável ao Convento e condenando a morgada ao pagamento das custas do processo. Os seus sucessores acabaram por continuar a pagar a célebre “terça”, como o seu sobrinho-neto João de Carvalhal (1778-1837), futuro conde de Carvalhal, que em janeiro de 1811 pagou pela “sua capela”, 16$440 réis, para além de ter rendido ao Convento, “do merecido da Capela da Terça”, mais 49$400 réis (Ibid., liv. 3, fl. 3). Outra fonte de rendimento eram os peditórios, que extravasavam, em princípio as áreas estabelecidas, pois concorriam com o pequeno Convento de S. Sebastião da Calheta e mesmo com o oratório da Porciúncula da Ribeira Brava. Os peditórios decorriam em determinados períodos, consoante as festas em causa e os produtos a recolher, como era o caso do vinho, do trigo e do pão, para o que o Convento adquiria o vasilhame para a recolha e pagava a determinados “moços” ou donatos para fazerem o peditório, tal como depois pagava pontualmente os transportes, quando excediam as quantidades transportáveis pelo homem. Uma vez recolhidos no Convento, uma parte dos mesmos era vendido. As despesas do Convento eram essencialmente na alimentação, feita à base de peixe de aquisição local, ao contrário dos conventos do Funchal onde a aquisição de peixe era mais difícil, mas também de bacalhau, de salmão fumado, de carne e legumes. Na última semana de março de 1793, e.g., uma das principais despesas foi a do peixe fresco, quase 7$000 réis, mas sendo ultrapassada pela do bacalhau, em que se gastou 7$200 réis. Compraram-se ainda feijão “fradinho”, legumes vários e fruta, vários tipos de azeite, inclusivamente “de peixe”, e lenha para cozinhar, uma despesa sempre corrente; nessa semana, foram 23 feixes, 15 a $150 réis e 8 a $100, num total de 3$050 réis (Ibid., liv. 1, f. 11v.). Os frades cultivavam ainda terrenos na sua cerca e em outras propriedades, inclusivamente, contratando pessoal em épocas de maior trabalho. Tinham vinhas e produziam vinho em adega própria e aguardente, tal como criavam animais. Pontualmente compravam um porco “para o chiqueiro”, que depois deviam matar pelo Natal, tal como também compravam galinhas e tinham ovos, pois, pontualmente, aparece o envio de ovos para o Convento de S.ta Clara, de onde depois recebiam doces. No dia de Jesus, ou seja 1 de janeiro, havia cavacas, tal como também nesse mês, a abertura da arca do servo de Deus era assinalada com um jantar de galinha. Pelo Entrudo consumiam carne de vaca e sonhos, antes do jejum e abstinência da Quaresma. Na Quinta-feira Santa não faltava o arroz-doce e em toda a Semana Santa tinham biscoitos, havendo cavacas do dia de S. João Batista, tal como carneiro e cerejas, aparecendo para outras datas festivas aquisições de especiarias, presunto, queijos e outros doces. As despesas gerais incluíam ainda nesses dias festivos o pagamento de músicos, tal como o do transporte de determinadas entidades que visitavam o Convento, vindas, geralmente, do Funchal, que incluíam, não só o barco como o de rede até S. Bernardino. Uma das contínuas despesas era ainda o tabaco, por certo para consumo do Convento, mas também para pagamento de “mimos” a visitantes, funcionários e simples trabalhadores. Contínua era também a despesa com os irmãos doentes, que obrigava à alteração da alimentação, que passava, essencialmente, a dieta de frango e canja, tal como exigia o pagamento dos medicamentos. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido pelo “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A execução do decreto na Madeira foi determinada pelo prefeito da província da Madeira, Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846), que a 27 de agosto desse ano enviava ao provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851) instruções precisas a esse respeito, embora somente cumpridas quase um ano depois. As primeiras diligências ocorreram assim a 7 de abril de 1835, na presença do provedor do concelho, do tabelião Domingos João de Gouveia e do fiscal da fazenda Manuel Joaquim Lopes. Elaborado o inventário do Convento, registaram-se como objetos sagrados, uma custódia, uma âmbula, quatro cálices e um relicário de prata dourada, assim como nas capelas se inventariaram quatro lampadários de prata, um turíbulo, um naveta e três castiçais. Os objetos sagrados foram entregues ao P.e Alexandrino Salgado, vigário capitular da Diocese, e os não sagrados recolheram à provedoria da Fazenda, tendo seguido, a 28 de maio de 1836, no brigue de guerra Tejo, para a Casa da Moeda de Lisboa, de que o prefeito da Madeira havia sido provedor. Todo o conjunto de paramentos e vestiária foi entregue à Diocese e inventariou-se ainda os adornos de prata das diversas imagens. Foram ainda inventariados os livros de coro: um saltério, um antifonário, um livro de missas e um livro de calendário, conjunto entregue à Diocese. No entanto, o conjunto dos 35 livros da biblioteca, os manuscritos de contas do Convento, e um maço de 78 papéis avulsos de escrituras, títulos, provisões e outros documentos, recolheram ao governo civil, sendo depois entregues na provedoria da fazenda. Inventariou-se também todo o mobiliário do Convento, como mesas, cadeiras e, inclusivamente, vidros, loiças, cobres e demais objetos de cozinha, posteriormente vendidos em hasta pública. No mesmo dia do inventário os funcionários da provedoria da fazenda tomaram posse oficial do conjunto dos imóveis, tal como dos bens do Convento, que depois de inventariados e avaliados, previa-se também colocar em hasta pública. Tal aconteceu pouco depois com as diversas propriedades, mas o mesmo não veio a acontecer de imediato com o imóvel. Uma parte do recheio do Convento, a cargo da colegiada da matriz de S. Sebastião de Câmara de Lobos e do vigário-geral da Diocese, foi sendo distribuído pelas matrizes limítrofes, como já havia acontecido com o património dos Jesuítas e aconteceu então com os conventos franciscanos. Na altura do inventário, tal como a paramentaria foi entregue à Diocese, alguns móveis, como os cinco confessionários, duas cadeiras e duas escadas para armações, foram de imediato transferidos para a matriz de Câmara de Lobos. Em abril de 1835, o vigário da freguesia do Estreito de Câmara de Lobos recebeu o sino maior do Convento e o menor foi entregue à matriz da Santíssima Trindade da Tabua. Refere o P.e Pita Ferreira que a imagem de N.ª Sr.ª da Conceição seguiu para a matriz, o sacrário foi oferecido à igreja da Piedade do Curral das Freiras, em 1850, e a imagem do Senhor Jesus foi oferecida à capela da Vera Cruz, na Quinta Grande, em 1866. Com a implantação do Governo liberal foi nomeado para o Funchal um novo vigário capitular e governador do bispado, o Cón. António Alfredo de Santa Catarina Braga (c. 1795-c.1845), que se havia refugiado em Cabo Verde e depois no Brasil, em razão das suas ideias liberais. Tendo já publicado no Porto um folheto contra o culto do “santo”, uma vez na Madeira, a 2 de junho de 1835, fez uma visita extraordinária à capela e lapa de Fr. Pedro da Guarda no extinto convento de Câmara de Lobos. Tendo examinado o monumento onde se guardavam os restos mortais do Franciscano, junto do altar-mor da igreja, mandou-os destruir, o mesmo mandando fazer à pintura existente na capela do “santo” e demais imagens que encontrou, tudo sendo queimado em novo “auto de fé” ao sabor do antigo regime. Entendia assim cumprir o seu “rigoroso dever, para desagravar a verdadeira e sã doutrina do cristianismo”, pois que nunca havia sido canonicamente autorizado o culto de Fr. Pedro da Guarda (A Flor do Oceano, 21 jun. 1835, 30). Se esfriaram e diminuíram momentaneamente estes preitos de devoção e piedade, mas não se extinguiram de todo, tendo-se transformado na sede da paróquia de S.ta Cecília, um número considerável de indivíduos procura a sepultura, onde foram depostos os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda. As imagens só se retiraram da igreja de S. Bernardino a 18 de junho de 1837, umas para a igreja paroquial e outras para a posse de algumas famílias que as conservaram, passando a incorporá-las na procissão anual das Cinzas. Entre estas, encontra-se o busto relicário de Fr. Pedro da Guarda, aparentemente datável dos meados ou finais do séc. XVII, que pertenceu à família de Jorge Sabino de Castro, que em outubro de 2002 a doou ao antigo Convento de S. Bernardino. O edifício do Convento foi vendido em hasta pública, a 12 de março de 1872, por 811$000 réis, a Manuel Joaquim Lopes, sendo registado como Convento Velho, e não integrando a capela dos Terceiros e a casa dos romeiros, então registadas como Convento Novo. A venda já se enquadrava num outro contexto político e religioso, pois desde 1857 já funcionava no antigo convento uma escola feminina e, pelo menos desde 1867, se pretendia reedificar o convento e retomar o processo de beatificação do santo, editando-se folhetos sobre a vida do mesmo e reativando-se a devoção através da Ordem Terceira e dos Salesianos, que ali instalaram uma escola. Fig. 1 – Luís Bernes, Desenho do Convento de São Bernardino em Câmara de Lobos, Luís Bernes. Fonte: Semana Ilustrada, 9 out. 1898, 217. O edifício do velho convento, entretanto, arruinava-se decididamente, como comprova o desenho editado pelo pintor Luís António Bernes (1864-1936) na Semana Ilustrada de 9 de outubro de 1898, assim como algumas fotografias da época, mas que ao mesmo tempo demonstram o interesse que passara a haver pelo imóvel. Efetivamente, a 6 de julho desse ano de 1898, os proprietários tinham vendido o convento velho por 60$000 réis ao prelado diocesano D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), mas que era mais uma doação do que uma venda, pois foi vendido muito abaixo do preço pelo qual o haviam adquirido. As ruinas do velho convento vieram a ser pontualmente recuperadas por iniciativa da M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). O projeto de recuperação do edifício teve início por volta de 1911, mas só foi concretizado em meados de 1916 para funcionamento do curso preparatório para o seminário diocesano. Foi neste edifício que a M.e Mary veio a falecer, em 18 de outubro desse ano, não tendo assistido à chegada dos alunos. O edifício voltaria a ter obras de reabilitação, por iniciativa do pároco de Câmara de Lobos, P.e João Joaquim de Carvalho (1865-1942), entre janeiro de 1924 e meados de 1928. A igreja sofreria uma total remodelação, eliminou-se grande parte das preexistências, como a antiga tribuna e as armas dos Vasconcelos nas paredes norte e sul da capela-mor, removeram-se igualmente as lápides sepulcrais e encomendou-se em Braga um retábulo-mor com amplo camarim, executado naquela cidade pela antiga oficina do entalhador Leandro de Sousa Braga (1837-1897), que ainda usava o seu nome. O retábulo custou 12$000 réis e chegou ao Funchal a 24 de setembro de 1926, procedendo à montagem um dos mestres entalhadores da mesma oficina. No ano seguinte ainda haveriam de chegar os altares colaterais, em abril de 1927. A igreja seria de novo benzida pelo bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957), a 24 de outubro de 1926, durante as festas de S. Francisco, nesse ano ligeiramente adaptadas para coincidirem com as celebrações do 7.º centenário da morte do patriarca dos Franciscanos. Até 1933, continuou ali a funcionar o curso preparatório do Seminário Diocesano, que nessa data foi integrado no Seminário da Encarnação. O conjunto voltaria a sofrer reabilitação em 1960, para a instalação da paróquia de S.ta Cecília, tendo decorrido, em 2014 e 2016, novas obras de reabilitação geral do conjunto, a cargo da mesma paróquia e com o apoio da Ordem de S. Francisco, segundo projeto de 2006 do ateliê dos arquitetos Victor Mestre e Sofia Aleixo.     Rui Carita (atualizado a 20.02.2017)

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corpo santo

Ordenação de São Pedro Gonçalves Telmo. Capela do Corpo Santo do Funchal. Foto BF Corpo Santo é a denominação popular de S. Pedro Gonçalves Telmo (1190-1246), religioso leonês, em princípio, que teria nascido em Astorga ou Placência, tendo entrado para a ordem dos dominicanos e sido prior de S. Domingos de Guimarães. O seu culto aparece associado ao fogo-de-santelmo, eflúvio luminoso que aparece nos mastros dos navios em determinadas condições atmosféricas, bem como noutros lugares, e que deve o seu nome ao congénere padroeiro dos navegantes mediterrâneos, S. Telmo. O seu culto espalhou-se pelas comunidades marítimas do centro e norte de Portugal e da Galiza, sendo o padroeiro, por exemplo, da Diocese de Tui-Vigo. A capela do Corpo Santo do Funchal deve ser uma das capelas mais antigas da cidade, devendo datar dos finais do séc. XV, sendo já referência toponímica na vereação de 21 de fevereiro de 1497 e, em 9 de agosto de 1505, como limite oriental da vila. Entre os finais do séc. XV e os inícios do séc. XVI, os pescadores e marítimos madeirenses organizaram-se em confrarias religiosas sob a devoção do Corpo Santo, devendo a do Funchal ser a mais antiga da Ilha, pelo menos disso se vangloriando os seus membros, o que parece confirmar-se pela sua capela, onde o portal deverá ser pré-manuelino. Pouco depois, provavelmente, ter-se-iam organizado os marítimos da Calheta, que tiveram capela junto da praia, da qual sobreviveu a imagem do orago, dos meados do séc. XVI, e um livro de receita e despesa para os anos de 1738 a 1789, tal como os marítimos de Câmara de Lobos, embora se tenham organizado canonicamente apenas no século seguinte, e dos quais se conhece mais documentação. Os marítimos de Santa Cruz e a sua Confraria ainda foram mais tardios em se organizar, nunca tendo tido instalações próprias, funcionando no altar de N.ª Sr.ª da Conceição da igreja matriz do Salvador, onde ficou uma pequena cartela pintada a óleo com uma fragata, provavelmente dos meados a finais do séc. XVIII. Os marítimos de Machico parecem ter-se integrado nas confrarias ligadas à Misericórdia daquela vila, na capela dos Milagres, e os do Porto Santo ter-se-ão organizado na Confraria de S. Pedro, de que não conhecemos documentação, embora tenham subsistido festejos em honra desse orago. O mesmo parece ter-se processado com os marítimos da Ribeira Brava, organizados na Confraria de S. Pedro e fazendo-se representar nas procissões com a barquinha, miniatura de um barco de pesca, aspeto referido nos compromissos das confrarias do Corpo Santo, nomeadamente na do Funchal, de 1745: “para pompa e crédito da confraria”, quando sair “a bandeira e a barquinha serão acompanhadas por aqueles que se costumam reservar e destinar para esse efeito” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 2, § 2.º). A Confraria e a capela do Corpo Santo do Funchal deve ter gozado de um certo desafogo económico, fruto dos tradicionais “quartões”, ou seja, a quarta parte de quinhão do pescado, entregue pelos seus membros para as campanhas de obras a que a capela foi sendo sujeita. O edifício que sobreviveu parece confirmá-lo, com um portal de arquivolta apontada, muito simples e sem marcação dos capitéis, por certo do séc. XV. O edifício teve uma reconstrução manuelina, com campanário de desenho tardo-gótico sobre a empena da fachada e gárgulas em forma de canhão na abside (Arquitetura religiosa e Gárgulas). Interiormente, ostenta a tábua pintada do orago da primeira metade do séc. XVI, inclusivamente com o santo a abençoar uma nau manuelina em dificuldades, que será a mais antiga representação de uma embarcação na Madeira. Teto da Capela do Corpo Santo do Funchal. Foto BF Da mesma campanha de obras poderão ser as restantes tábuas do retábulo-mor com uma Nossa Senhora da Conceição, um S.to António pregando aos peixes, um S. Lourenço, provavelmente em memória da barca do primeiro reconhecimento feito à Madeira por Zarco e Tristão, e ainda outra tábua dificilmente identificável. O conjunto assenta em predelas igualmente pintadas sobre madeira, com S. Pedro e S. Paulo, havendo uma imagem de Deus Pai a encimar o retábulo, todos estes trabalhos parecendo de uma oficina portuguesa da primeira metade do séc. XVI, conjunto entretanto refeito ao gosto maneirista nos inícios ou meados do séc. XVII. Mais tardia deve ser a pintura da porta do sacrário, com um Senhor dos Passos. A capela do Corpo Santo teve obras em 1559, data que apareceu “na verga de uma fresta que se tapou na parte do norte”, como se registou no frontispício do “livro do compromisso e termos de entrada de irmãos”, tresladado de 1738 (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 1). Entre 1567 e 1570, a capela já apresentava a configuração geral que tem persistido, com um adro mais amplo, à frente e para o lado do mar, como aparece na planta do Funchal de Mateus Fernandes (III) (c.1520-1597), arquivada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNB, Cart. 1090203). A capela do Corpo Santo voltaria a ter obras nos finais do séc. XVI, encontrando-se uma das janelas da capela com a data de 1594. As duas décadas finais desse século teriam sido excecionais para os marítimos do Corpo Santo do Funchal, pois a Confraria possuía um fantástico cálice de prata dourada, com campainhas, datado de 1580, depois exposto no Museu de Arte Sacra e, entre os finais desse século e os inícios do seguinte, mandou executar nas oficinas madeirenses três lampadários de varetas (Ourivesaria e prataria). Por 1590, encomendou a um dos melhores pintores em atividade em Portugal, Fernão Gomes (1548-1612), um novo retábulo de S. Lourenço, que curiosamente já se encontrava pintado no retábulo-mor, o retábulo de Nossa Senhora da Estrela, talvez de outra oficina continental, mas dentro dessa época. Ora se Nossa Senhora da Estrela se encontra dentro das normais devoções dos marítimos e é igualmente invocada para casos de doença, funcionando a confraria com especial ênfase no apoio aos doentes, o recrudescimento da devoção de S. Lourenço encontra-se nessa época, por certo, ligado ao facto de ter assumido o trono de Portugal o Rei Filipe II de Castela (1527-1598). A tábua com um S. Lourenço no retábulo-mor parece indicar, assim, já haver a sua devoção entre os elementos da confraria antes de Filipe II assumir o trono de Portugal, devoção que se manteve no séc. XVIII, tendo o altar missa todas as sextas-feiras e, a 10 de agosto, dia do santo, missa cantada e sermão. Esta evocação, inclusivamente em altar próprio, parece poder confirmar a informação, depois divulgada pelos cronistas do final do séc. XVI, de ter tido a barca em que João Gonçalves Zarco e Tristão fizeram a primeira viagem à Madeira esse nome, que ficou depois como topónimo da primeira ponta que tiveram de dobrar para aportarem à Ilha. Parece também poder-se associar o protagonismo da confraria à estadia no Funchal do Cap. Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) como governador (Encarregado de negócios da guerra), que a partir de 1585 prolonga a muralha do Funchal para oriente (Muralhas da cidade). Por 1600, a muralha atingia as arribas por baixo da então igreja de Santiago Menor, dando origem à necessidade de construção de uma nova fortaleza: Santiago (Fortaleza de Santiago), tendo havido um forte investimento em obras em toda esta área urbana. As obras na capela do Corpo Santo também não pararam, tendo sido a capela-mor totalmente revestida com pinturas sobre a vida do santo protetor, algumas datadas de 1615 e 1616, com um monograma, provavelmente “LSA”, que não levou à identificação do autor. Uma das representações de S. Pedro Gonçalves Telmo, no teto, é acompanhada de uma detalhada representação de uma importante nau, com as armas de Portugal pintadas no castelo da popa e, no mastro grande, a bandeira pessoal dos Reis de Castela. As confrarias do Corpo Santo eram essencialmente constituídas por marítimos. O compromisso da Confraria de Câmara de Lobos, de 1691, que deve transcrever o do Funchal, também reformulado nesse ano, mas que não conhecemos, refere taxativamente que a entrada estava reservada aos homens do mar e pescadores. Pelo compromisso do Corpo Santo de Câmara de Lobos pode concluir-se que, por esse tempo, os pescadores e mareantes daquela localidade procuraram legalizar a sua confraria nos moldes da Confraria do Funchal, cujo compromisso tinha então sido confirmado pelo bispo da Diocese, D. Fr. José de Santa Maria (c. 1640-1708), que tomara posse em março de 1691. Desconhece-se o fundador da capela da Conceição de Câmara de Lobos, sede da Confraria local do Corpo Santo, bem como a data da primitiva construção desta capela, porém sabe-se em 1569 decorriam ali obras. Rui Mendes de Vasconcelos, um dos descendentes de Zarco (c. 1390-1471), deixou, por testamento de 16 de abril de 1569, 3$000 réis para ajuda do lajeamento da “casa de Nossa Senhora da Conceição” (ABM, Misericórdia do Funchal, liv. 684, fl. 52v.). Gonçalo Pires, em 8 de dezembro desse ano, legou, também por cláusula testamentária, 2$400 réis para aquelas obras. Duas sepulturas colocadas a descoberto em 1986, a primeira de António Garcia, tabelião público em Câmara de Lobos, e sua mulher Brásia Soares, datada de 1587, e a segunda de Joana de Atouguia (c. 1550-1631), mulher de Mendo Rodrigues de Vasconcelos (c. 1550-1609), indicam os Atouguia, pelo menos, como financiadores desta capela. Assim, Mendo Rodrigues de Vasconcelos, como neto de um primeiro Rui Mendes de Vasconcelos (c. 1460-c. 1520) e de Isabel Correia, que tinham instituído a capela-mor do convento de S. Bernardino, optara por ali ser sepultado com os pais e avós. Pela altura da oficialização ou reforma do compromisso de 1691, os homens do mar de Câmara de Lobos vão chamar a si a capela de N.ª Sr.ª da Conceição, que se encontrava em estado arruinado e onde já tinham a imagem do seu orago. Em 1702, o bispo do Funchal autorizou a confraria a reconstruir a capela, com a condição de manutenção da imagem de Nª Sª da Conceição no altar-mor e de se reservarem 12 sepulturas para se enterrarem os confrades dos escravos da Confraria da Conceição, mas desta Confraria não restou qualquer documentação. A 9 de maio de 1710, um mandado do Conselho da Fazenda autorizava a arrematação do muro da capela de Câmara de Lobos a João Bettencourt Perestrelo, por 1870$000 réis, sinal provável de que as obras já teriam terminado. O retábulo da capela, datado de 1723, foi executado pelo mestre entalhador açoriano Manuel da Câmara e seu filho e homónimo. No compromisso dos irmãos do lugar de Câmara de Lobos de 1691, a entrada na Irmandade ainda estava exclusivamente reservada aos homens do mar e pescadores. Contudo, no Funchal, o novo compromisso de 1745 admitia já irmãos não vinculados à atividade marítima, desde que pagassem de esmola de entrada $600 réis e um tostão de esmola anual, cobrada no dia da festa do patrono ou quando fosse pedida de porta em porta. Este alargamento a outras profissões, não previsto no compromisso antigo, fizera-se “por serem poucos os homens do mar, como para lhes suavizar as obrigações e poupar suas esmolas para a confraria” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 1.º, § 2.º). Pelos termos de entrada na Confraria do Funchal, concluímos que dos 335 irmãos, com profissão identificável, admitidos entre 1738 e 1772, apenas 49 não eram marítimos: 12 eram sacerdotes católicos, 11 alfaiates, 6 mercadores, 5 sapateiros, 4 barbeiros-sangradores, 2 pedreiros, 2 tanoeiros, 2 ferreiros e mais 4 homens, um de cada uma das seguintes profissões: vendeiro, oleiro, prateiro e carpinteiro, havendo ainda um estudante. Quanto aos clérigos, eram na sua maioria da colegiada de Santa Maria Maior, então Santa Maria do Calhau, cujo vigário presidia à mesa da Confraria do Corpo Santo. Os padres eleitos, capelães “de boa vida e costumes” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 4.º, § 1.º), entravam habitualmente para a irmandade. Assim, para a Confraria do Corpo Santo do Funchal, ao longo do séc. XVIII, tinham passado a entrar elementos não marítimos, mas com interesses relacionados com o mar ou de relevo para os confrades. Francisco Mendes, v.g., era oficial de tanoeiro, mas proprietário de uma embarcação de pesca que varava nas Fontes, e, em 20 de outubro de 1766, entrou para a Confraria sem dar esmola de entrada, por contribuir com o quartão do seu barco. A Confraria tinha conveniências na admissão de irmãos de profissões da terra, numa troca de benefícios recíprocos. Em 20 de abril de 1738, foi admitido na Irmandade do Corpo Santo do Funchal o mestre sangrador Ambrósio Homem, sendo-lhe dispensada a habitual esmola de entrada, mas com a obrigação “de sangrar e deitar ventosas a todos os irmãos homens do mar, suas mulheres e filhos, e a todos aqueles que cada um dos ditos irmãos homens do mar tiverem em sua taxa de obrigação” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 8). Quando não pudesse cumprir esta obrigação, teria de, à sua custa, contratar algum substituto. Só assim gozaria de privilégios idênticos aos que desfrutavam os homens do mar, nomeadamente os 3$000 reis para o hábito de defunto. Mais tarde, em 14 de agosto de 1770, Domingos João de Ornelas, barbeiro, morador em Santa Clara, fez-se irmão do Corpo Santo e também não pagou os $600 réis de entrada, sob a condição de fazer três sangrias por $100 reis aos “irmãos do sítio das Fontes” (Ibid., fl. 67v.), provável indicação de dois grupos de mareantes: os de Santa Maria do Calhau e os do sítio das Fontes de João Dinis. No dia 20 de março de 1772, Jerónimo José Tavares, oficial de barbeiro, foi admitido na Irmandade, sendo-lhe também dispensada a esmola de entrada, em troca da obrigação de sangrar aos irmãos da confraria, cobrando “por cada duas aventaduras”, que pensamos ser a aplicação de ventosas, $100 reis (Ibid., fl. 73v.). No ano de 1743, 6 alfaiates ingressaram também na Confraria, em troca de consertos nas capas de seda que vestiam os irmãos em momentos solenes. As confrarias do Corpo Santo, no entanto, eram essencialmente irmandades de homens do mar e contavam sobretudo com a contribuição destes. O compromisso do Funchal de 1737 determinava que todo o mareante e irmão entregasse $010 de cada 1$000 réis ganhos, e os pescadores dessem uma esmola de peixe, para além das esmolas particulares. Os irmãos de Câmara de Lobos cotizavam, de todos os barcos de pesca e de carreira, meio quinhão para a sua Confraria, o mesmo fazendo os da Calheta. No compromisso de 1745 do Funchal, estipulava-se o quinhão de cada barco, para os marítimos. O quartão, ou seja a quarta parte de um quinhão, era um excecional contributo dos barcos dos mareantes do sítio das Fontes do Funchal. Porém, antes de ser estipulado o quinhão, aquele donativo já era prática corrente. Reunidos em 12 de outubro de 1766, comprometeram-se os arrais daquele sítio, todas as vezes que fossem ao mar em pesca, a entregar ao tesoureiro da Confraria um quartão do pescado. Quando um arrais entrava para a Confraria, normalmente, toda a tripulação do seu barco ingressava também na Irmandade. As mulheres dos marítimos, a partir dos inícios do séc. XVIII, acompanhavam habitualmente os seus maridos na admissão à Confraria, não pagando a esmola de entrada. Pelos termos de entrada na Confraria do Funchal, concluímos que, entre 1738 e 1772, foram admitidos 335 homens e 183 mulheres, das quais apenas 28 ingressaram individualmente, sendo as restantes conjuntamente com os maridos. As confrarias madeirenses do Corpo Santo realizavam anualmente a festa solene do seu patrono, S. Pedro Gonçalves Telmo, e a do Funchal fazia também a festa de S. Lourenço, como estava estabelecido no compromisso e para o que, na sua capela, existia altar consagrado àquele mártir. Os irmãos, de opas brancas, deveriam acompanhar a confraria nas procissões em que habitualmente saía, com a bandeira e a barquinha, como na procissão do Corpo de Deus, e nos funerais dos irmãos falecidos. No Funchal tinham, para além das missas nos domingos e dias santos, missa todas as sextas-feiras no altar de S. Lourenço, nove Missas do Parto e três pelo Natal. No oitavário de Todos os Santos, a confraria ficava obrigada a celebrar um ofício de nove lições, com vésperas, em sufrágio dos irmãos defuntos, e de suas mulheres e filhos. As preces pelas almas dos mortos constituíam grande preocupação da gente marítima que, desprovida de bens materiais para uma capela vinculada, encontrava na confraria o dispositivo adequado para a celebração de missas e outras orações em sua memória. Por cada irmão que morria, por sua mulher, ou por filhos com idade superior a 18 anos e sob poder paternal, a confraria tinha a obrigação de mandar rezar um ofício de três lições, segundo os compromissos de Câmara de Lobos, de 1691, e do Funchal, de 1737, enquanto o seguinte desta cidade, de 1745, estabelecia quatro missas. Os filhos falecidos com mais de 10 anos e menos de 18 tinham direito a duas missas rezadas por suas almas, enquanto aos menores de 10 a confraria apenas facultaria dois círios para o funeral. O compromisso de 1745 do Funchal refere que anteriormente a obrigação por cada irmão defunto, sua mulher ou filhos menores de 18 anos sob a proteção do pai constava de um noturno, mas que se havia mudado, porque as missas “têm mais valor porque são infinitas” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 3.º, § 2.º). Contudo, em Câmara de Lobos, faziam-se habitualmente noturnos pelos irmãos defuntos, como atesta o tesoureiro João da Costa nas contas que presta entre 1776 e 1785. As viúvas dos marítimos desfrutariam destes sufrágios desde que não viessem a casar-se com homens de terra. Os filhos dos homens do mar receberiam idêntica penalização quando abandonassem o ofício de seus pais, e as filhas, quando se casassem com homens de terra. As confrarias do Corpo Santo serviam, assim, também para perpetuar o grupo e evitar ligações fora do mesmo. Os irmãos e suas mulheres tinham direito, por altura da sua morte, à quantia de 3$000 réis, para ajuda da mortalha ou do enterro. Em janeiro de 1742, a Confraria de Câmara de Lobos tornou este privilégio extensível aos filhos dos homens do mar, pescadores ou tripulantes de navios de carreira, contribuintes com o meio quinhão para a Irmandade. O tanger do sino à hora do enterro lembrava à Irmandade do Corpo Santo a sua obrigação estatutária de acompanhamento do funeral do irmão defunto, com as suas opas brancas, a cruz, as insígnias e os círios, “a cera que para essas funções deve se haver pronta”, como se refere no compromisso do Funchal de 1745 (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 2.º, § 2.º). Aos mareantes vítimas de naufrágios ou assaltos em viagem, a confraria tinha a obrigação de dar esmola para o seu sustento. Os irmãos pobres ou enfermos, as viúvas necessitadas e os órfãos recebiam igualmente esmolas, do fundo das sobras. No compromisso do Funchal de 1745, ficou estipulado que apenas uma quarta parte das sobras seria utilizada nestas manifestações de solidariedade. Ainda dentro deste espírito de socorros mútuos, mas já não como esmola, faziam-se empréstimos de dinheiro. Por alguns registos deduz-se que se procedia a cobrança de juros, à razão de 5 % ao ano, o que encontramos em outras confrarias. Estas confrarias contavam, aliás, como a maioria das restantes, com rendimentos oriundos de juros. Em 3 de junho de 1760, v.g., o Cap. João Bettencourt Herédia ingressou na Irmandade do Corpo Santo do Funchal, dando 2$000 réis de esmola de entrada, com a condição de não lhe cobrarem as anuais. Esses 2$000 réis seriam postos “a juro a razão de cinco por cento, que é um tostão, que será para a confraria e ainda depois de sua morte, ficar à dita confraria” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 38v.), conforme declaração do escrivão. Na conta apresentada por João da Costa, tesoureiro da confraria de Câmara de Lobos, dos anos de 1776 a 1785, o capítulo “Rendimento” subdivide-se em “Juristas e alugueres e meias partes” (ABM, Juízo dos Resíduos..., cx. 3). Em 1776, os “juristas” entregaram à confraria 34$830 réis, o que corresponde a 22,5 % das receitas desse ano. O rendimento principal da confraria era constituído pelas esmolas do quinhão, meio quinhão ou quartão. Porém, era uma receita suscetível de variações, por ser uma percentagem e depender do número de saídas para o mar. Outras receitas eram as esmolas anuais, $100 réis no Funchal, esmolas espontâneas, alugueres de casas e, claro, os juros do dinheiro emprestado. Sobre o pescado entregue à confraria, os compromissos estabeleciam normas a fim de se evitarem fraudes. Determinava-se no compromisso de Câmara de Lobos que o meio quinhão de cada barco deveria ser registado pelo escrivão “com toda a inteireza e verdade e se assentará por adições com distinção e clareza no livro” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 1, fl. 18v.). Na Calheta, em 11 de setembro de 1766, ficou determinado pelo juiz do resíduo secular, face ao procedimento pouco correto de alguns tesoureiros nas contas das meias partes, que o seu registo não se fizesse em papéis avulsos, por ocasião das arrematações em praça, mas num livro próprio e pelo escrivão. Em cada termo, deveriam constar os nomes do arrais e do proprietário do barco, do arrematante, que deveria assinar, e a respetiva importância. Para estas arrematações, realizadas na presença do vigário da colegiada da vila da Calheta, o povo deveria ser convocado com oito dias de antecedência. A partir dos finais do séc. XVII, as confrarias do Corpo Santo eram presididas pelo vigário da freguesia, que servia, assim, de juiz, e administradas pelos mordomos da mesa, um escrivão e um tesoureiro. Em Câmara de Lobos eram 3 os mordomos e no Funchal, 12. Os cargos de escrivão e tesoureiro – referindo o compromisso de Câmara de Lobos o escrivão e o arrecadador – eram eleitos em assembleia de irmãos, realizada no dia do patrono e presidida pelo vigário. Segundo o compromisso da confraria do Funchal, de 1745, os 12 irmãos da mesa e o escrivão deveriam ser irmãos da terra, enquanto o tesoureiro seria obrigatoriamente homem do mar. Esta regra criou alguns problemas ao normal funcionamento da Confraria, pois tornava-se difícil o recrutamento de tão grande número de homens da terra, quando a Irmandade se compunha maioritariamente de marítimos. Em 16 de maio de 1756, a Confraria reuniu na capela do Corpo Santo e deliberou retomar os preceitos estatutários antigos, ficando a administração cometida apenas ao escrivão e ao tesoureiro que os homens do mar escolhessem, sem, à partida, estar a elegibilidade condicionada pela atividade profissional em terra ou no mar. As razões apontadas e registadas em ata prendem-se com o reduzido número de irmãos da terra e o facto de estes, normalmente, pertencerem e servirem outras confrarias, recusando a eleição para a do Corpo Santo. Nesta assembleia, os homens do mar reafirmaram a sua posição hegemónica e fizeram valer o seu pragmatismo, para continuação e bom funcionamento da Irmandade “que foi erigida e feita pelos homens do mar e estes até agora, desde sua criação sempre a sustentaram à custa das esmolas que lhes dão do ganho de suas pescarias” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 79, fl. 43). O vigário, o tesoureiro e o escrivão detinham, cada um, uma das três chaves da arca onde se guardavam valores e o dinheiro da confraria, de que subsistiu uma pequena arca na capela do Corpo Santo do Funchal, talvez já dos inícios do séc. XX. Tanto o juiz, como o escrivão e o tesoureiro eram portadores de varas de prata quando participavam em atos públicos da confraria ou em cerimónias em que esta se fazia representar, das quais subsiste ainda uma, de meados do séc. XVIII, assinada por “VIF.”, marca de ourives não identificado. Ao escrivão cabia a guarda dos livros da irmandade, a admissão de novos elementos, e o acompanhamento do tesoureiro na cobrança dos quinhões dos barcos e na arrecadação das esmolas. O tesoureiro ficava ainda responsabilizado pelo inventário da prata e de outros bens móveis. No Funchal, os irmãos do Corpo Santo pertenciam também à Confraria do Santíssimo Sacramento da freguesia de Santa Maria Maior do Calhau, sem esmola de entrada, com direito a todos os sufrágios. Do quinhão que davam dos seus barcos, o tesoureiro da Confraria do Corpo Santo entregava, no final de cada ano, 1/6 ao tesoureiro da Confraria do Santíssimo, ficando assim “os homens do mar mais aliviados de fazerem as suas contas e pagar a 2 cobradores porque em tempos antigos pagavam também um quartão àquela Confraria” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 10.º, § 3.º). Nas confrarias do Corpo Santo os marítimos podiam assim contar com uma série de apoios em vida, quer em casos de naufrágios e de ataques corsários, quer na doença, onde “as necessidades não esperam nem sofrem demoras” (Ibid., § 7.º) e, depois, no sufrágio da sua alma e da dos seus parentes mais próximos, satisfação reconfortante em tempos de profunda crença na eternidade, e sabiam ter o seu corpo direito a um funeral condigno. Em vida, a confraria assegurava-lhe socorro em acidentes e contribuía para a sua sobrevivência, quando doentes ou na velhice, proporcionava cuidados médicos, concedia empréstimos e investia em casas de habitação para arrendamento. As confrarias começaram a conhecer dificuldades quando, ao longo do séc. XVIII, começaram a ser alvo de disputa entre os poderes eclesiásticos e reais, na base dos quais, essencialmente, se encontravam os aspetos económicos. As primeiras ações régias foram para chamar a si a aprovação dos compromissos, o que foi logo transmitido à Madeira e aceite pelo bispo jacobeu D. João do Nascimento (c. 1690-1753), ordem que, a 11 de julho de 1750, transmitiu às confrarias, mas que poucas cumpriram. A 17 de novembro de 1766, haveria nova ordem, então para o provedor das capelas da ilha da Madeira e do Porto Santo, registada na Câmara do Funchal. A Confraria do Corpo Santo do Funchal, v.g., só então enviou os seus estatutos para aprovação em Lisboa, recebendo a aprovação com data de 29 de agosto e a confirmação a 24 de outubro de 1767. A partir de então os conflitos institucionais dispararam, tornando muito difícil a vida das confrarias. A Confraria do Corpo Santo do Funchal ainda estava bem ativa entre 1881 e 1887, período da execução do conjunto dos lampadários e da cruz processional em prata, pelo ourives Guilherme Guedes Mancilha, ensaiador do Porto, e a Confraria de Câmara de Lobos, quando empreendeu, em 1908, uma ampla campanha de reabilitação da capela da Conceição, entregue ao pintor Luís Bernes (1864-1936). Os marítimos madeirenses estiveram, inclusivamente, na base da fundação do mutualismo moderno, quando, em reunião de 17 de outubro de 1897, 177 irmãos decidiram a instalação de uma caixa de montepio marítimo. Mais tarde, a 10 de dezembro de 1950, em cerimónia solene e numa iniciativa da Empresa do Cabrestante, Ld.ª, a gente do mar atribuía o título de arrais ao seu santo patrono, S. Pedro Gonçalves Telmo. A capela do Corpo Santo do Funchal foi classificada pelo dec. nº 30.762, de 26 de setembro de 1940, como imóvel de interesse público, e um decreto de 1974, por intercedência da DRAC, que esclarece que a capela não se designa de Corpo Santo, como normalmente é referida, mas do Espírito Santo; a razão deste esclarecimento é um enigma. Em 1954, a Direção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais procedera a obras de arranjo e reparação, com a demolição do alpendre e da antiga sacristia, a colocação do óculo sobre a porta principal e a substituição da cobertura. As obras prolongaram-se por 1955 e 1957, com beneficiações do exterior, e concluíram-se em 1960. Em 1987 foi efetuado levantamento sumário dos bens, entregue na Diocese e na paróquia de Santa Maria Maior, e nesse mesmo ano a DRAC e a oficina Arte e Restauro executaram a recuperação geral das telas da capela-mor. Em 1995, procederam à limpeza sumária da tábua central do altar-mor e à recuperação geral, para abertura ao público.   Rui Carita

Religiões

clarissas

A presença de Franciscanos e do seu ramo feminino, as Clarissas, desde muito cedo se fez sentir no arquipélago da Madeira. Os frades de S. Francisco acompanharam Zarco e Teixeira na sua jornada de (re)descobrimento das ilhas e foram os primeiros arrimos espirituais dos povoadores. As irmãs de S.ta Clara foram a Ordem escolhida por João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do donatário, para ocupar, na Madeira, o primeiro convento feminino. A intenção de dotar a Ilha de uma casa conventual começou a materializar-se a 4 de maio de 1476, quando a bula Eximiæ Devocionis Affectus foi publicada pelo Papa Sisto IV, em resposta a um pedido que lhe fora endereçado pelo capitão, o qual sentia a necessidade de prover a Ilha de um mosteiro onde se pudessem recolher duas das suas filhas, que então se encontravam no Convento de N.a S.ra da Conceição, em Beja, mas também outras jovens que decidissem seguir a vida religiosa. A mesma bula concedia, ainda, a João Gonçalves da Câmara e mulher, D. Maria de Noronha, o padroado do convento, o qual era extensível aos seus descendentes. Para este empreendimento pode, ainda, ter contribuído o empenho de D. Manuel, enquanto duque de Beja e mestre da Ordem de Cristo, que, a 17 de julho de 1488, enviava para a Madeira uma carta onde dizia que o próprio Pontífice se lhe dirigira a solicitar diligências para a fundação de uma casa de religiosas na igreja da Conceição de Cima, comprometendo-se o futuro Rei a doar esmolas para a manutenção das freiras. A localização escolhida foi, como se viu, a zona que circundava a igreja de N.a S.ra da Conceição de Cima, a qual, por sua vez, se situava muito perto da moradia do capitão, nas Cruzes. Determinado o local e em posse da autorização pontifícia, o início das obras foi, no entanto, adiado por razões que se desconhecem, e a edificação só teve lugar a partir da concessão de nova autorização, que o Papa Inocêncio III expediu a 1 de fevereiro de 1491, datando o princípio da construção desse mesmo ano, ou, o mais tardar, dos primeiros meses de 1492. Dadas as frequentes ausências do capitão para a corte, onde era conselheiro do Rei, o acompanhamento das obras ficou entregue a uma das suas filhas, D. Constança, o que talvez explique a demora na conclusão do edifício, que só se verificou em 1497. Uma nova bula, agora a Ex Injunto Nobis, de Alexandre VI, com data de 30 de março de 1495, concedia a licença definitiva e estipulava que o mosteiro fosse de clausura perpétua, subordinado ao guardião franciscano do Funchal, e obedecesse à Regra de Urbano IV, também chamada Segunda Regra de Santa Clara. Esta Regra, fundada em 18 de outubro de 1263, distinguia-se da Primeira pela concessão de benefícios às freiras, que incluíam o direito de receber e ter em comum “rendas e possessões”, o que contrariava o espírito muito mais restritivo e humilde que estava na mente de S.ta Clara, aquando da instituição da sua Ordem (FONTOURA, 2000, 27). Assim, e dentro do quadro da Segunda Regra ou Regra Urbaniana, às irmãs de S.ta Clara do Funchal era ainda autorizado o consumo de laticínios e ovos em todos os dias em que a Igreja permitisse esse tipo de alimentação aos seculares, bem como terem criadas para o seu serviço dentro dos muros do Convento. A inauguração das instalações deu-se com a entrada de quatro ou cinco freiras originárias do Convento de N.a S.ra da Conceição de Beja, entre as quais figuravam uma filha de João Gonçalves da Câmara, D. Isabel, que se tornaria a primeira abadessa do Convento. O facto de as primeiras irmãs terem vindo do Mosteiro de Beja prende-se com a ligação que esta casa monástica tinha à família de D. Fernando, grão-mestre da Ordem de Cristo, a que presidia na qualidade de sobrinho e filho adotivo do infante D. Henrique, sendo casado com D. Beatriz e pai de três senhores da Madeira, D. João, D. Diogo e D. Manuel. Fora, com efeito, por determinação conjunta de D. Afonso V, do irmão, D. Fernando, e da cunhada, D. Beatriz, que se obtivera, do Papa Pio II, autorização para a fundação de um mosteiro da Segunda Regra de Santa Clara, o qual veio a ser precisamente o já referido Mosteiro de Beja. Assim, sem sobressaltos de adaptação a novas condições de profissão, saíram de Beja para o Funchal a filha do capitão e outras quatro companheiras, que iniciaram a vida conventual em S.ta Clara, no Funchal. Uma vez que a Regra Urbaniana permitia a existência de propriedades entregues ao Convento, o património das freiras cedo se começou a consolidar, para o que muito contribuiu a anexação do dote das filhas de João Gonçalves da Câmara, sendo que o plural “filhas” se reporta não só à abadessa, D. Isabel, como a D. Constança, que ingressou também no Convento, embora não chegasse a professar, por ser doente, e a D. Elvira, que igualmente entrou na altura da fundação. Estas irmãs receberam de seu pai uma vasta extensão de terreno que o mesmo tinha adquirido para aquele fim a Rui Teixeira e mulher, D. Branca, a 11 de setembro de 1840, e que até então se chamava Curral Grande. A partir do momento em que passou a pertencer ao Convento, a propriedade mudou de nome e ficou conhecida pela designação de Curral das Freiras, tendo sido nela que, em 1566, aquando do saque dos corsários franceses, as religiosas se refugiaram, tirando partido do carácter recôndito da sua localização. Na senda desta primeira doação, outras muitas se lhe juntaram, tanto mais que D. Manuel, por carta de 17 de julho de 1488, determinara que as freiras que se haveriam de recolher no Mosteiro fossem recrutadas entre “as filhas e as parentes dos principais da terra” (Arquivo Histórico da Madeira, XVI, 1973, 212-213), o que, naturalmente, favorecia a acumulação de bens patrimoniais para a instituição. Do acervo de propriedades que foram entregues ao Convento, contam-se prédios rurais e urbanos, situados, nos sécs. XVI e XVII, no Funchal, em Câmara de Lobos e em Ponta do Sol; no séc. XVIII, foi enriquecido com doações em Santa Cruz, na Calheta e no Porto Santo. Destas terras, cultivadas por colonos ou arrendatários, provinham não só produtos que se exportavam – o açúcar e o vinho – como também bens alimentares fundamentais para a subsistência das freiras e de outro pessoal ao serviço do Convento, pois a pequena cerca situada no interior do Mosteiro não conseguia suprir todas as necessidades dos residentes. Outro recurso financeiro que ajudava a equilibrar a contabilidade conventual era o empréstimo de dinheiro a uns módicos 5 % de juros, montante que a Igreja consentia e que fazia de S.ta Clara uma espécie de casa bancária, permitia às irmãs uma vida desafogada e ainda autorizava as diversas campanhas de obras e melhoramentos que o edifício foi sofrendo ao longo dos tempos (Convento de S.ta Clara). O montante do dote necessário para o ingresso no Mosteiro é um dos critérios que sublinha o carácter elitista da casa religiosa. O montante em questão era, na altura da fundação do Convento, de 200.000 réis, mas, no princípio do séc. XVIII, já alcançava os 600.000, atingindo, mais tarde, o valor de um conto de réis, o que, como facilmente se depreende, não estava ao alcance de famílias com poucos recursos. A idade mínima de entrada no Convento era de sete anos, embora se tenham registado casos em que ingressaram meninas mais novas, e o destino das jovens que o demandavam podia seguir uma de duas vias: ou a educação esmerada, dispensada a quem se destinava, mais tarde, a ser mãe de família e senhora de sociedade, ou o prosseguimento da vida religiosa, alcançando o noviciado e, um ano depois, a profissão. Independentemente do percurso, as educandas do Mosteiro eram instruídas nas artes de ler, escrever e contar, seguidas da aprendizagem da música, do latim e da caligrafia, sendo as freiras famosas, ainda, pelos seus atributos nas artes decorativas, nos bordados e nos cozinhados. No âmbito das suas competências culinárias incluem-se os famosos doces do Convento, o mais célebre dos quais, e segundo Eduardo C. N. Pereira, seria o famoso bolo de mel, de reputação internacional. Confirmações dos atributos das religiosas nestas áreas são ainda obtidas por testemunhos, que foram ficando, de visitantes do Convento, um dos quais do médico inglês Hans Sloane, que, em 1707, se deslocou ao Convento a pedido da abadessa, a fim de observar o estado de saúde das irmãs. Pelo relato que deixou dessa incursão se fica a saber que achou que as freiras sofriam de tuberculose e “clorose” (anemia), motivada esta última por uma “vida melancólica, solitária, sedentária”, à qual faltava exercício. Mas constatou o médico, igualmente, que se tinha deliciado com uma refeição de frutas e compotas, consumida numa divisão cuja mobília tinha tido o contributo das irmãs, crê-se que na decoração, concluindo que “até agora, quer nas compotas, quer no mobiliário nunca vi coisas tão boas” (SILVA, 2008, 27). Um século depois, eram as flores, umas de cera, outras de penas pintadas, que, em conjunto com as compotas, eram compradas no locutório do Convento por visitantes, alguns dos quais Ingleses que passaram a incluir uma visita a S.ta Clara no seu itinerário insular, atraídos pela beleza singular, e muito nórdica, de uma freira em particular – a irmã Clementina. Para além desta irmã, cujo encanto ficou famoso, outras havia, donas também de grande formosura – de que são exemplo Genoveva e Cândida Luísa, cuja presença justificava o afluxo, às vezes enorme, junto do parlatório do Convento. No conjunto dos visitantes encontravam-se cavalheiros que, embora contentando-se com “um olhar do coro, uma palavra na grade, um suspiro no ralo”, não deixaram de ser apodados de freiráticos e seguidores de um movimento que já nascera no século anterior (SILVA, 1987, 178). Com efeito, encontram-se sinais destas práticas logo em 1734, quando uma visita ao cabido da Sé do Funchal, ordenada por D. Fr. Manuel Coutinho, identificou dois cónegos que mantinham “correspondência ilícita” com as freiras de S.ta Clara, tendo um deles sido visto a receber “uma cestinha… que parecia ser presentinho de freira” (ACDF, cx. 47-A, doc. 15, fls. 5-6v.). Esta interação entre o exterior e o interior do Convento vinha de longe e tinha muitos protagonistas. Por um lado, ao abrigo da Regra que professavam, estavam as freiras autorizadas a ter criadas e escravos para o seu serviço no Mosteiro, os quais, não estando limitados por votos de nenhuma espécie, saíam e entravam livremente na cerca, trazendo e levando notícias. Por outro, era também tradição que senhoras da sociedade, familiares ou não das professas, solicitassem autorização para permanecer alguns dias, anos, ou para sempre no Convento, aumentando assim o número de pessoas que passavam a residir no interior, situação que se agravava pelo facto de elas também se fazerem acompanhar de servidores. Assim, não admira que as instalações, que, nos finais do séc. XVI, registavam cerca de 60 residentes, passassem a contar, em 1722, com 170, das quais 100 supranumerárias, decrescendo depois o número para perto das 150, em 1764, embora, depois, as vicissitudes económicas e políticas que trouxe o séc. XIX acabassem por o reduzir para perto de 50. Com efeito, a conjuntura adversa para as congregações religiosas, que se registou com o advento do liberalismo, afetou profundamente a vida no Convento, que não conseguiu manter-se imune às circunstâncias que se alteravam fora dele, antes repercutindo o comportamento das freiras os reflexos das mudanças. A própria Ir. Clementina, já antes referida, admitia, perante os seus admiradores, ser apreciadora das obras de Madame de Staël, figura importante do Iluminismo francês, e a imprensa regional fazia-se palco dos desabafos de uma “Freira Constitucional” que, em 1821, utilizava as páginas de O Heraldo da Madeira para criticar a governação do Convento e a sua excessiva sujeição ao custódio de S. Francisco. Numa tentativa desajeitada para contrariar as denúncias, “Uma Freira Zeladora da Verdade” e um “Donato Constitucional da Portaria”, que se pensa ser o leigo que controlava os ingressos no Mosteiro, publicavam uma resposta que mais não fazia que confirmar as queixas da “Freira Constitucional”, quando repudiavam ser responsabilidade da abadessa o que se via no parlatório e que incluía “funções de comer, beber, tocar e cantar” (SILVA, 1987, 179). Para agravar este mal-estar contribuía, também, o descalabro das contas do Mosteiro, o qual, desde os finais do séc. XVIII, vinha a acumular uma série de anos de saldo negativo, que, em 1871, já atingia os dois contos de réis. Outra manifestação da conjuntura adversa encontra-se no aumento do número de pedidos para interromper a clausura por parte de freiras que alegavam motivos de saúde e necessidade de tratamento, reclamando igualmente para si os benefícios da liberdade conferida por D. Pedro IV na sua Carta Constitucional. A vitória definitiva do liberalismo produziu legislação muito lesiva da vida monástica, como se atesta pela publicação do decreto de 5 de agosto de 1833, que impedia os conventos de aceitarem candidatos ao noviciado, seguido, pouco depois, a 30 de maio de 1834, do decreto de Joaquim António de Aguiar, o “mata-frades”, que implicava o encerramento imediato das congregações masculinas. As femininas não foram atingidas por esta última determinação, tendo, porém, de seguir o estipulado no decreto de 1833, que as condenava a um lento agonizar. Desta longa caminhada para o fim, atingido em 1890, com a morte da derradeira freira, ficou um testemunho na visitação que o bispo fez ao Convento em junho de 1860, pela qual se constata que as freiras, idosas e doentes, apenas se queixavam de serem maltratadas pelas criadas, ao mesmo tempo que afirmavam nada haver a declarar como transgressão à regra e confirmavam a observância dos “atos corais” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 103, fls. 111v.-115). Apesar de falecida a última irmã, ainda havia no Convento um grupo de pessoas, no qual se contavam 31 senhoras, entre pupilas, servas e recolhidas, que pediram licença para que se pudessem conservar no edifício, a qual, depois de concedida, acabou por transformar o antigo Convento em recolhimento. Quando, em 1896, o prédio foi entregue à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas, elas continuaram a poder viver em algumas dependências, e ali se mantiveram até pelo menos 1940. Em 1898, a Associação conseguiu instalar em S.ta Clara a Congregação das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, que ali se entregaram à preparação de irmãs destinadas a prestar serviço nas colónias, bem como às outras finalidades contempladas na concessão do prédio: colégio, refúgio para retemperar as forças das freiras regressadas do ultramar e asilo para raparigas pobres. A implantação da república veio, no entanto, obrigar ao abandono do edifício por parte da Congregação, tendo o edifício passado sucessivamente para as mãos da Câmara Municipal, da Santa Casa da Misericórdia e do Auxílio Maternal. O reacender da necessidade de investimento em África determinou, em 1926, a passagem da construção para a tutela do Ministério das Colónias, que o devolveu à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas e às Franciscanas Missionárias de Maria. A partir de 1928, no antigo Convento de S.ta Clara esteve um lar para estudantes, uma escola primária, e finalmente um infantário. Convento de N.a S.ra da Encarnação O Convento de N.a S.ra da Encarnação nasceu do cumprimento de uma promessa que o Cón. Henrique Calaça Viveiros fizera, no sentido de instituir uma casa religiosa, caso conseguisse ver, de novo, um Rei português no trono de Portugal. Alcançado esse desígnio com o golpe de 1640, que devolveu o governo do reino a um representante da Casa de Bragança, D. João IV, o cónego deu, de imediato, andamento à concretização do seu projeto. Proprietário de uma quinta, “no melhor sítio da cidade”, em terreno anexo à capela de N.a S.ra da Encarnação e sobranceiro ao Funchal, o cónego logo tratou de nela fazer construir um recolhimento para donzelas, cujas obras se iniciaram em novembro de 1645 (FONTOURA, 2000, 152-153). Em 1652, já nele se encontravam as primeiras recolhidas, a quem o fundador dotou da Regra Terceira da Ordem do Carmo, e cujo número foi crescendo, pois, quando, em 1658, o cónego solicitou à Rainha autorização para que o recolhimento passasse a mosteiro, já se contabilizavam 20 entre as que lá residiam (GOMES, 1995, 18). Antes disso, porém, já Calaça Viveiros impetrara ao Papa Inocêncio X licença para que o recolhimento passasse a convento, a qual lhe foi concedida por breve de 16 de novembro de 1651, que autorizava, ainda, a saída de uma freira de S.ta Clara que pudesse desempenhar no novo estabelecimento as funções de abadessa, desde que houvesse o compromisso de que a Regra a professar fosse uma das existentes. A Ordem Terceira do Carmo cumpria esse critério, mas o facto de impedir o consumo de carne às suas seguidoras foi o fator que pesou na sua não adoção, pois, naquela altura, a falta de pescado existente na Ilha não permitia assumir um compromisso desse tipo. O Convento, devidamente autorizado pelo Pontífice e pela Rainha, e dotado dos rendimentos necessários ao funcionamento, cedidos pelo fundador, pôde receber as primeiras professas, por alvará de 15 de novembro de 1659, ainda que a Regra a que obedeceria tivesse deixado de ser a do Carmo, substituída pela Segunda Regra de Santa Clara, em razão das restrições alimentares já referidas. Uma outra razão que também contribuiu para a pronta aceitação da fundação de um mosteiro de freiras no Funchal prendia-se com a necessidade que a Ilha sentia de mais uma casa conventual feminina, pois a única existente, o Convento de S.ta Clara, era manifestamente incapaz de acolher todas as candidatas, cujo número aumentava na proporção do crescimento populacional que o arquipélago vinha registando. A demora no surgimento do segundo convento feminino não deixou, no entanto, de ser estranha, particularmente se se contrastar o que se passava na Madeira com o que sucedia nos Açores, onde, entre o séc. XVI e o séc. XVIII, surgiram pelo menos 16 casas de Clarissas, conforme registado em estudo de Margarida Lalanda, mas a intervenção do Cón. Calaça veio permitir o colmatar da lacuna. Outras condições subjacentes à fundação da casa monástica eram o número de professas, que deveria ser de 30, alterável com autorização régia, e a sujeição ao prelado da Diocese, ao contrário do que acontecia com S.ta Clara, que obedecia ao custódio franciscano. O padroado do Convento ficou para o cónego fundador, ainda que este se tivesse esforçado por prescindir dele, na medida em que tentou transferi-lo para a Coroa, a qual, contudo, pelo mesmo alvará de 15 de novembro de 1659, já atrás mencionado, lho voltou a atribuir. O cónego até renunciava a ser sepultado no Mosteiro, argumentando que, como membro do cabido, teria túmulo na Sé, mas as freiras nisso não consentiram, jazendo o seu corpo na capela da Encarnação. Por escritura mencionada no seu testamento se estipulou, ainda, que a família Andrada, possuidora do lugar da Provedoria da Fazenda régia na Madeira, se tornasse protetora do Mosteiro, o que explica que os provedores se tornassem amparos do Convento e nele se fizessem enterrar. O ingresso no Mosteiro podia fazer-se a partir de idade muito jovem, encontrando-se nos registos conventuais casos de meninas que ali entraram com idades que variavam entre os 5 e os 12 anos, de origem social diversa. Tanto podiam provir, e muitas eram essas situações, de meios familiares abastados e favorecidos, destinando-se a serem educadas para a sociedade, ou a professar, se essa viesse a ser a sua vontade, ou a da família, como se encontram jovens pobres, cuja estadia era subsidiada pela própria casa conventual ou pelo bispo. A organização interna do Mosteiro passava pela obediência à abadessa, eleita de três em três anos e impedida de permanecer dois períodos consecutivos à frente dos destinos da comunidade, sendo escolhido, para assessorar a superiora, um número variável de freiras, que podia oscilar entre três a oito, conforme o número de professas que o Convento ia tendo. Esse conjunto de auxiliares diretas intitulava-se “discretório”, e, para além deste conselho restrito, o normal funcionamento do Convento exigia, ainda, reuniões semanais do capítulo provincial, às quais compareciam todas as professas, que tinham de ser informadas sobre os atos maiores da administração, quer fossem de ordem material, quer espiritual. As jovens admitidas à vivência conventual eram, depois, sujeitas a um percurso educativo que as levava da aprendizagem do básico (ler, escrever e contar) até ao domínio de conhecimentos mais sofisticados, do latim e da música, e.g., necessários tanto às que saíam e se queriam superiormente instruídas, como às que permaneciam e tinham de colaborar em celebrações litúrgicas, lendo os textos em latim ou cantando para acompanhar os ofícios sagrados. Outras artes eram também ministradas no Convento: as decorativas (o desenho, a pintura, o bordado) e as da culinária, nas quais, mais uma vez, se celebrizou a produção conventual. Testemunhos dos consumos na área dos cozinhados ficaram exarados em documentos recuperados por Cabral do Nascimento, que os publicou e a partir dos quais se pode constatar a fartura e a variedade que ia à mesa das freiras. Os recursos materiais para manter aquele nível de vida vinham, como seria de esperar, da pertença do Convento à Segunda Regra de Santa Clara, o que implicava, como se viu, a posse de dotes vultosos para ingresso na comunidade, sendo esta casa monástica, à semelhança do que acontecia com S.ta Clara, beneficiada pela acumulação de propriedades rústicas. Estas situavam-se, sobretudo, na Calheta, em São Vicente, em Santana e em Câmara de Lobos, enquanto na cidade se localizavam alguns prédios urbanos, havendo outros no Porto Santo, terra de origem do Cón. Calaça. Das propriedades lhes vinham os legumes necessários ao quotidiano, mas também trigo, e outros cereais, açúcar e vinho, que se comercializavam. Outro produto que também figura nos bens transacionados pelo Mosteiro é o tabaco, que chegava ao Convento como forma de pagamento usada pelos Ingleses, que se serviam dele para pagar encomendas de vinho. Inicialmente considerado medicinal, uma vez que tinha propriedades relacionadas com o alívio da dor e adjuvantes da cicatrização, o seu uso, sobretudo inalado, vulgarizou-se, não só dentro, como fora do Convento, sendo também utilizado para presentear colaboradores da instituição. A vivência religiosa desta casa conventual registou momentos de grande elevação, compendiados por Noronha, que já fizera o mesmo em relação às freiras de S.ta Clara, e que elencou os casos mais assinalados de freiras que levaram vidas exemplares, mas também situações que não podem deixar de ser reprovadas e que resultavam, sobretudo, da forte contaminação que a vida intramuros sofria do exterior. Assim, em tempos de D. Fr. Manuel Coutinho (D. Fr. Manuel Coutinho), um bispo jacobeu que fora para a Madeira com intenções de “plantar nova cristandade” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, l. 1346, fl. 65), e que rapidamente se envolvera em conflitos, que, entre outras entidades, implicavam a Câmara Municipal, à frente da qual se encontravam parentes das freiras, registou-se um enfrentamento entre prelado e professas nunca dantes visto. Sendo a abadessa parente próxima de importantes homens da governança, as más relações entre o bispo e o senado ultrapassaram os muros do Convento e estiveram na origem de um rompimento de clausura que muito escandalizou a população da cidade. Os acontecimentos precipitaram-se quando o prelado, usando de uma prerrogativa sua que condicionava a nomeação de titulares de ofícios conventuais, decidiu mudar a porteira, numa tentativa de impedir o acesso indiscriminado às freiras por parte de elementos da sociedade civil. Entendendo que esta atitude violava privilégios que tinham como adquiridos, as freiras alvoroçaram-se e decidiram sair do Convento, descendo a Calç. da Encarnação em direção ao paço episcopal, sendo travadas já muito perto de atingirem o seu objetivo, e, depois de convencidas pelo desembargador José de Sequeira, acabaram por recolher a casa. Em tempos de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1756-1784) o bispo incumbiu dois sacerdotes vicentinos que o acompanhavam desde o reino, os padres José Alásio e José dos Reis, de visitar conventos, entre os quais o da Encarnação, e o relato que os sacerdotes deixaram das suas averiguações é muito pouco abonatório das práticas que lá encontraram. Segundo o que ficou registado, o P.e Alásio dava conta de que, no Convento da Encarnação, as freiras “traziam véus de seda, veiados de pano fino, e ornavam a testa (pouco juízo havia nela!) com um bico mui comprido. Andavam vestidas de azul (linda cor) e para afetar a sua gravidade, arrastavam uma grande cauda” (PEREIRA, 1993, 48). Se se tiver em conta que a cor dos hábitos das Clarissas é o castanho, com véu branco ou preto, conforme forem noviças ou professas, não é de estranhar o espanto do P.e Alásio, agravado, ainda, pela tomada de consciência de quanto os valores do mundo exterior se refletiam num universo que se desejava despojado, centrado na oração e no abandono das práticas mundanas. Talvez influenciado pelas notícias que recebera das formas de vida daquele Convento, o bispo seguinte, D. José da Costa Torres (1874-1796) em carta que endereçou ao ministro Martinho de Melo e Castro, com data de 10 de agosto de 1788, na qual abordava várias questões da Diocese, referia-se ao Convento da Encarnação, começando por afirmar que subscrevia a posição já tomada por D. Fr. Manuel Coutinho, que há mais de 50 anos deixara escrito que “melhor fora que não o houvesse” (AHU, Madeira, pasta 5, capilha 842). As razões em que apoiava a sua opinião prendiam-se com diversas irregularidades, nomeadamente a de o Convento ter sido fundado para 30 freiras, mas já ter atingido as 140, e de as freiras serem servidas por 30 criadas que lá ainda se mantinham, apesar de, à época, aquelas serem apenas 69. Como o número ainda era excessivo, o prelado fazia por se manter “surdo” aos apelos da abadessa, que queria deixar entrar mais noviças, acrescentando que se não fossem alguns condicionalismos que o embaraçavam, já teria mandado pôr na rua “uma grande parte delas”. Em termos económicos, o Mosteiro também deixava muito a desejar, pois as rendas eram muito escassas, ou por má gestão ou por roubo dos administradores, pelo que as freiras se encontravam sem o “necessário para viver”, padecendo muitas “necessidades”. Com alguma candura, o prelado confessava “estar tremendo” de ir visitar o Convento, pois temia que qualquer providência que pretendesse aplicar tropeçasse na falta do “necessário comum, que é a primeira causa de toda a relaxação”. A proposta do bispo para resolver esta situação aflitiva era a da fusão deste Mosteiro com o de S.ta Clara, que tinha “melhor governo”, o que permitiria utilizar o prédio da Encarnação para nele se instalarem Salésias, vocacionadas para o ensino de meninas, o que o bispo considerava de “suma utilidade”. Assim, pedia ao ministro que intercedesse junto da Rainha para que se autorizasse a vinda de quatro Ursulinas, cujo sustento o bispo providenciaria pelo menos por 10 anos (Ibid.). A opção episcopal quer por Salésias, quer por Ursulinas, duas Ordens vocacionadas para a educação de jovens raparigas, umas mais nobres (Salésias), outras mais pobres (Ursulinas), mostra bem onde se localizava parte das preocupações do bispo, para as quais ele considerava não haver resposta possível por parte das freiras da Encarnação, nem também das de S.ta Clara. A pretendida união dos Conventos da Segunda Regra de Santa Clara então existentes na Madeira não se operou com a proposta de D. José da Costa Torres, mas acabou por se verificar quando, fruto da ocupação inglesa, as tropas britânicas necessitaram das instalações da Encarnação para alojamento militar, pelo que, em janeiro de 1810, aquilo por que as autoridades eclesiásticas tanto tinham ansiado acabou por se concretizar, fruto de circunstâncias muito diversas. As duas comunidades viveram juntas até que, depois da saída dos britânicos, em 1814, as religiosas da Encarnação puderam regressar às suas antigas instalações e, assim, cumprir uma vontade que desde há muito as animava. Aquilo que as esperava não era, porém, o que haviam deixado. A presença inglesa e as obras de adaptação do Convento a hospital das tropas britânicas tinham modificado profundamente a estrutura do edifício e a sua requalificação para Convento foi feita a expensas das próprias religiosas. Esta circunstância, acrescida da mudança dos tempos, com a vitória do liberalismo, e a constante integração na comunidade de recolhidas e servas vindas do século, não fizeram senão agravar a já muito débil economia da comunidade, pelo que o conjunto cada vez mais diminuto de freiras residentes acabou por se extinguir com o falecimento da última religiosa, em 1890. Passado o edifício, que, de resto, estava “velho e desmantelado”, para a posse do Estado, encaminhadas as derradeiras recolhidas, umas para S.ta Clara, outras para a família, e ainda algumas para o labor de funcionárias públicas, era preciso decidir sobre o futuro do prédio. Depois de ponderada a sua passagem para a misericórdia e para as Oficinas de S. José, que ainda lá chegaram a instalar-se, ainda que por pouco tempo, em 1904, o bispo D. Manuel Agostinho Barreto intercedeu junto do Ministério da Fazenda para que lhe cedessem a posse do velho edifício, pois lhe parecia ideal para lá fazer edificar o Seminário Diocesano, que desde a sua fundação cumpria uma longa itinerância por vários locais do Funchal. Obtida a autorização, o bispo meteu ombros à tarefa e, com fundos seus, da Diocese e provenientes de dádivas de particulares, o novo edifício, uma vez que o velho fora demolido, foi crescendo a bom ritmo, de modo que, em 1909, embora ainda não estivesse pronto, pôde já recolher os primeiros estudantes. Escasso foi, porém, o tempo de funcionamento do Seminário, pois, logo em 1910, a implantação da república ditaria o seu fim, no imediato. A construção foi cedida para que nela se instalasse uma escola de Belas Artes, que principiou a funcionar em 1914, à qual se seguiu a utilização do prédio para a Junta Geral do Distrito, que o comprara ao Estado. Uma nova alteração das circunstâncias políticas da nação, proporcionada pelo golpe de Estado de 28 de maio de 1926, fez com que o edifício retornasse à posse da Diocese, o que não se concretizou sem que a Junta Geral apresentasse veemente protesto. Ultrapassados os entraves levantados, foi então possível que, em 1933, o Seminário lá voltasse a instalar-se. Aquela construção, sempre muito atingida pelas vicissitudes políticas de épocas diversas, voltaria a ser perturbada no pós-25 de Abril de 1974, quando um grupo de estudantes decidiu ocupar as instalações do Seminário, que pouco antes fora encerrado por decisão do bispo D. Francisco Santana. A partir de então, e até 2004, funcionou ali a Escola Básica de 2.º e 3.º Ciclos Bartolomeu Perestrelo, a qual, nessa data, e por ter sido dotada de edifício novo, se transferiu para novas instalações. Em 2015, o velho edifício da Encarnação estava na posse da Diocese, ainda que, à data, sem utilização. Convento de N.a S.ra das Mercês O Convento de N.a S.ra das Mercês foi, tal como o recolhimento que o antecedeu, fundado por Gaspar Berenguer, um descendente de Pedro Berenguer de Lemilhana, médico natural de Valência que, em finais do séc. XVI, se estabeleceu na Calheta, em lugar que se chama Lombo do Doutor. Vários membros desta família foram para o Brasil combater, quando os territórios portugueses se acharam ameaçados pela presença holandesa, e entre eles contava-se, precisamente, Gaspar Berenguer, o qual, pela bravura demonstrada em combate, foi agraciado com o título de fidalgo d’El-Rei e com o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo. Regressado à Madeira, tornou-se senhor do morgadio do Lombo do Doutor e casou-se com D. Isabel de França, mulher com quem se irmanava no fervor religioso. Juntos, determinaram fundar a capela de N.a S.ra das Mercês, a qual seria, posteriormente, acrescentada de um recolhimento, primeiro, e de um Convento, depois. A capela acabaria por ser erguida num terreno “ainda selva”, situado nas proximidades quer do Convento de S.ta Clara, quer da igreja de S. Pedro, e foi consagrada a N.a S.ra das Mercês, por estar esta invocação muito ligada ao resgate de cativos, e Gaspar Berenguer, dada a sua vida aventurosa de combatente, se sentir particularmente ligado a quem intercedia pela libertação dos prisioneiros. Pode, inclusivamente, e em abono desta tese, registar-se um episódio em que um parente de Gaspar Berenguer, António Berenguer de Andrade, tendo ficado prisioneiro no Arraial do Bom Jesus, conseguiu depois ser resgatado por uma quantia elevada, graças à intercessão de Nossa Senhora. A escolha da localização da capela está ligada à primeira lenda das várias que se entrelaçam com a história desta casa monástica. Segundo se contava, na altura, alguém, de “reconhecida virtude”, viu aparecer, durante algumas noites consecutivas, no local onde depois nasceria o Convento, a Virgem, rodeada de luz, a combater uma legião de demónios, que assim manifestavam a vontade de que ali se não construísse uma torre que abrigasse “uma milícia de virgens”. Esta convicção ficou tão enraizada na população que nem o liberal Álvaro de Azevedo ousou questioná-la, tanto mais que na primitiva igreja do Convento se encontrava uma figuração do episódio, representando a Virgem na mira de flechas disparadas pelos seres malignos, que o anotador de Saudades da Terra considerava não ser de “moderna data”, sendo, pois, respeitável pela antiguidade (FRUTUOSO, 2008, 591). Azevedo, contudo, e um tanto paradoxalmente, uma vez que reproduz muitas das lendas que rodeiam a fundação deste Convento, não se exime de reprovar que as Constituições do bispado não contenham qualquer alínea que impeça a proliferação de relatos fantasiosos que povoam a história eclesiástica da Madeira. Ainda que se desconheça a data da construção da capela, sabe-se que o Jesuíta João Ribeiro, amigo íntimo do casal Berenguer, logo incentivou Berenguer a que prosseguisse a obra, juntando-lhe um recolhimento para “donzelas nobres e virtuosas” (NORONHA, 1996, 283), tendo o projeto arrancado com dinheiro de família, a que se acrescentou mais algum, proveniente de contribuições de diversos particulares. De acordo com nova lenda, outros fundos teriam surgido por intervenção da própria Senhora das Mercês, que, numa noite, aparecera em sonhos a D. Isabel de França, na altura muito preocupada com o depauperado estado das suas finanças, o que ameaçava impedir a continuação da obra. A Virgem ordenou-lhe, então, que se desfizesse de todos os bens que pudessem ajudar à construção, inclusive da “camisa” (FRUTUOSO, 2008, 592), e, ao assim proceder, conseguiu D. Isabel o essencial para dar início à construção. A 12 de outubro de 1655, lançou-se a primeira pedra do edifício, e a obra foi progredindo, apesar de um variado número de obstáculos que se apresentavam, entre os quais estavam a oposição movida quer pelo governador, D. Francisco de Mascarenhas, quer pelo deão, Pedro Moreira. Para obviar à perseguição do governador, que ameaçava prender os trabalhadores da obra, aparece de novo uma outra lenda, que diz que D. Isabel de França recolhia, durante o dia, os homens envolvidos na construção em sua casa, os quais só de noite prosseguiam os trabalhos, ajudados pela própria patrona. Esta, que continuava com problemas de dinheiro, mais uma vez os viu resolvidos pela intervenção de Nossa Senhora das Mercês, que em sonhos lhe apareceu, informando-a de que, junto a uma pedra de moinho que havia no jardim, se encontrava o montante suficiente para a conclusão das obras. Depois de acordar, D. Isabel de França deslocou-se ao local indicado e lá encontrou um brinco de ouro e mais dinheiro, com os quais confortavelmente se pôde terminar a obra. Outras circunstâncias providenciais se encarregaram, no entanto, de prosseguir com a remoção das animosidades manifestadas à progressão do projeto. Do lado do governador, a sedição de 1668, encabeçada precisamente pelo deão, acabou por conduzir à sua prisão e deportação. No tocante ao deão, surge, mais uma vez, uma lenda que explica que, tendo o capitular ido ao Porto Santo, no desempenho das suas obrigações, sofreu um naufrágio na viagem. Vendo-se em grande aflição, atribuiu o sucedido à má vontade que manifestava em relação ao recolhimento das Mercês e logo ali se encomendou àquela Senhora, jurando mudar de atitude para com as recolhidas. Esta é, portanto, uma explicação para a futura disponibilidade que Pedro Moreira mostrará para com o recolhimento e o Convento das Mercês. Com o avanço das obras, foi possível que, a 15 de junho de 1656, nele entrassem as primeiras sete recolhidas, entre as quais se contava a irmã mais nova do fundador. A 12 de fevereiro de 1658, o deão, Pedro Moreira, visitou as instalações e, por as achar conformes, autorizou que o recolhimento assumisse um cariz religioso, com sacrário e outras graças concedidas a “lugares pios” (FONTOURA, 2000, 253). Cresceu a instituição em número de recolhidas e de práticas devocionais, manifestando as senhoras residentes uma vontade cada vez maior de se tornarem professas. Nesse sentido, o vigário geral prometeu tomá-las à sua responsabilidade, que se estendia também a futuros bispos da Diocese, e foi esta a conjuntura que levou Gaspar Berenguer a encetar diligências para transformar o recolhimento em Convento, para o que endereçou uma petição ao Rei, secundada pela Câmara Municipal, pelo governador e pelo provedor da Fazenda. Perante uma tal coincidência de vontades insulares, o Rei não demorou a conceder a mercê solicitada, estipulando que o Convento se fundasse com lugar para 21 professas, sob a Primeira Regra de Santa Clara, e tendo como padroeiros Gaspar Berenguer e a mulher, que beneficiavam de dois lugares para jovens da sua família, e vinculavam à manutenção da casa o rendimento de 130.000 réis por ano. O novo Convento ficava também, e à semelhança do da Encarnação, sujeito à jurisdição episcopal. Concedida a licença régia por alvará de 15 de agosto de 1661, posteriormente reafirmada a 19 de maio de 1662, só a 20 de dezembro de 1663 saiu de Lisboa o documento, o que explica a demora no pedido de autorização endereçado às autoridades eclesiásticas, as quais só a 5 de julho de 1664 receberam a petição do Cap. Berenguer. Depois de auscultados o comissário do Convento de S. Francisco e o vigário de S. Pedro que oficiava no recolhimento, o deão e vigário geral, Pedro Moreira, deu, então, a última das autorizações, i.e., aquela que finalmente possibilitava a ereção canónica do Convento. Como uma das condições para o seu funcionamento era a de estar dotado dos bens suficientes à sustentação das freiras, que, por serem da Primeira Regra de Santa Clara, a de mais rigorosa pobreza, não podiam ter propriedades, o fundador complementou a renda anual já anteriormente estipulada com mais 11 moios de trigo por ano, os quais, acrescentados aos 3 que já abasteciam o recolhimento, passaram, então, a ser 14. Seguiu-se o breve pontifício que legitimava todos os passos anteriormente dados, o qual foi dado em Roma a 17 de agosto de 1665, e chegou ao Funchal em finais de 1666. A 13 de junho de 1667, recebeu o Convento a sua primeira abadessa, novamente uma freira de S.ta Clara que para ali se mudou, a fim de dotar o Mosteiro das regras necessárias ao seu bom funcionamento. Com efeito, e de acordo com outra das várias lendas que se encontram associadas a esta casa monástica, as freiras, que começaram por professar a restritiva Regra de Santa Clara, cedo se interrogaram se nela deviam continuar, ou antes mudar para a Regra Urbaniana, bem mais generosa para com o quotidiano conventual. A fim de tomarem uma decisão sobre o assunto, reuniram-se em capítulo, mas então desencadeou-se uma tal tempestade que “de repente começaram a abalar os alicerces e a abanar o pavimento”, pelo que as freiras, “com sumo temor caíram na conta de que a vontade de Deus era que se fizesse de pobreza, como o fizeram, e se conserva”, ficando, pois, definitivamente estabelecida a obediência à Primeira Regra de Santa Clara (FRUTUOSO, 2008, 593). Dentro do espírito dos estatutos, o Convento acolhia não só jovens provenientes dos mais altos escalões da sociedade local, mas também meninas pobres, nas quais se verificasse uma forte vocação religiosa. Este estado de alma era, de resto, muito considerado pelas abadessas que se esforçavam para que este desígnio estivesse sempre presente aquando da admissão das candidatas e, quando tal não acontecia, muito se empenhavam em que as jovens fossem devolvidas ao seio da família. Uma gritante exceção a esta regra encontra-se, porém, no processo da M.e Isabel Filipa de Santo António, que, em inícios da déc. de 1740, foi obrigada, por familiares, a ingressar em N.a S.ra das Mercês, e cujo comportamento acabou por ser objeto de processo na Inquisição. Passou-se o caso no seio da família Câmara Leme, uma das principais da sociedade madeirense, quando uma jovem adolescente, órfã de pais e dependente do irmão mais velho, Jacinto Câmara Leme, se apaixonou por homem abaixo da sua condição. Determinado a proibir a união, o irmão tudo fez para que a jovem ingressasse no Convento, contra a sua expressa e reiterada vontade. Em profundo desespero, Isabel Filipa, conforme por diversas vezes afirmou ao comissário do Santo Ofício, fez um pacto com o demónio, ainda antes de entrar na casa religiosa, e, uma vez lá dentro, procurou, por todos os meios possíveis, forçar a libertação. Com esse fim em vista, confessou ao comissário ter tido relações carnais com o diabo, ter contribuído para a morte de dois dos seus irmãos, usando uns pós que o demónio lhe fornecera, ter cuspido no cruxifixo e pisado no chão partículas consagradas, até, finalmente, ter tentado matar toda a comunidade, fazendo uma sopa com vidro moído. O ruído produzido no processo de moer o vidro traiu-a e conduziu-a à prisão, onde se encontrava enquanto decorriam as diligências judiciais, processo em que conseguiu acesso a um advogado que tentou obter, junto do Papa, a anulação dos votos. Gorado este propósito, nada mais se sabe da dita freira, a não ser que deveria ser transferida de Convento, mas não libertada para voltar à condição de secular. Este episódio pungente mostra que, apesar de toda a boa vontade posta pela comunidade no sentido de só aceitar as verdadeiras vocações, o peso das circunstâncias familiares era, por vezes, excessivamente grande para ser evitado, acabando por condenar muitas jovens a uma vida de clausura que lhes repugnava e para a qual não sentiam a menor inclinação. Apesar de ser inegável que nem todas as mulheres que professavam o faziam por verdadeiro chamamento, a verdade é que, de um modo geral neste Convento, a Regra se observava sem sobressaltos, até porque o facto de ser de menores dimensões que os seus congéneres insulares, de receber muito menos educandas e senhoras do exterior, acrescido da impossibilidade de terem criadas, por exigência estatutária, proporcionava às professas um maior recolhimento e isolamento do mundo secular. Apesar disso, o Mosteiro acabou por se ver envolvido, sem que isso fosse por sua direta responsabilidade, em questões que se arrastaram pelos tribunais e que se prendiam com a posse do padroado. Com efeito, por morte de Gaspar Berenguer, ficara instituído que aquele título passaria para o filho mais velho, o P.e Bartolomeu César Berenguer, tendo transitado depois para o seu irmão José de França Berenguer, que o conservou até 1720. Fora este José Berenguer, pai de vários filhos, o mais velho dos quais falecera ainda em vida do pai, que, por testamento, entregara o padroado do Mosteiro ao seu filho segundo, Agostinho César Berenguer. Esta situação acabou por causar um grave conflito na família, quando os herdeiros do falecido primogénito, de seu nome João de Andrade Berenguer, sentindo-se preteridos na herança, levaram o caso a tribunal, por onde se arrastou cerca de 100 anos. Quando, em 1725, D. Fr. Manuel Coutinho se torna bispo do Funchal, é informado do diferendo, ainda agravado pela suspeita de que o protetor do Convento em funções, Agostinho César Berenguer, se estaria a aproveitar da situação para desviar verbas da sacristia do Convento em proveito próprio, prejudicando, assim, as condições de vida das freiras. O prelado logo impôs um inquérito à contabilidade conventual e, pouco depois, suspendeu o protetor, substituindo-o por um clérigo da sua confiança e seu familiar, o P.e António Mendes de Almeida. À situação da disputa do padroado se refere, ainda, D. José da Costa Torres quando, em 1788, se corresponde com o ministro Martinho Melo e Castro e menciona que “ainda corre litígio” por não se terem verificado as promessas dos instituidores no sentido da doação de certas rendas para “a sustentação das freiras” (AHU, Madeira, pasta 5, capilha 842). Apesar disso, o bispo não deixa de opinar que “floresce neste convento disciplina regular e religiosa […] com grande edificação desta cidade”, não necessitando as freiras dos familiares para sobreviver, porque “o convento lhe[s] subministra o necessário”, para além de que ainda recebem esmolas que de muito boa vontade lhes dão “muitos dos mesmos parentes e estranhos”. Em relação às finanças do Convento, os problemas criados por Agostinho César Berenguer parecem ultrapassados, pois o prelado declara que “além de dois legados perpétuos por cujos rendimentos têm todas as freiras túnicas e hábitos de dois em dois anos, tem o convento seiscentos mil reis cada ano […], juros dos dotes com que entram, que são de quatrocentos mil reis aplicados à sacristia e dos quais […] se sustentam; estes juros são bem pagos, o que é de admirar, se o síndico é zeloso, como o atual, e se não descuida”. E, a terminar, deixa o bispo escapar um desejo: “Assim fora o convento da Encarnação, que também me é sujeito” (Ibid.). A administração interna do Mosteiro fazia-se de acordo com a Regra de Santa Clara e era constituída por uma abadessa eleita por períodos de três anos, não imediatamente renováveis, coadjuvada por uma vigária, um discretório e a habitual reunião semanal do capítulo. O sistema eleitoral que vigorava não só para a abadessa, mas também para os outros cargos, procurava atribuir as funções a pessoas com o perfil certo para as cumprir, e isto, a juntar a um isolamento bem maior do exterior, fazia com que a vida corresse nesta casa monástica sem os sobressaltos que perturbavam a existência das suas congéneres madeirenses. A legislação pombalina de 1764 atingiu, de certo modo, a vida conventual, ao proibir o ingresso de noviças, mas a subida ao trono, pouco depois, de D. Maria I fez reverter o processo, pelo que, a 20 de agosto de 1777, já era autorizada a entrada de seis candidatas. Em 1786, porém, fruto do falecimento de quatro freiras, o número das professas tinha-se tornado demasiado pequeno, o que levou a abadessa a solicitar à Rainha a possibilidade de se admitirem mais algumas, pois nesta comunidade, como o trabalho era executado pelas próprias freiras, a necessidade de braços fazia-se sentir de forma mais aguda. Nesse sentido, argumentava a abadessa que as freiras estavam, de um modo geral, velhas, “seis se acham na enfermaria, e as demais não podem acudir às obrigações do convento, pelas suplicantes não terem servas e serem elas que fazem todo o serviço […] de cozinhar e servir as enfermas, por cuja razão só cinco das suplicantes vão ao coro e às vezes menos” (FONTOURA, 2000, 296). Consultado o bispo, ainda D. José da Costa Torres, este mostrou-se favorável à conservação do Mosteiro, “porque ele é observantíssimo e de singular exemplo de virtudes no meu Bispado” (Id., Ibid., 297). Deste modo, obtiveram as freiras autorização para irem repondo os lugares que fossem vagando, desde que se não ultrapassasse o limite de 24, o máximo autorizado. Apesar dos excelentes indicadores que se foram registando da vivência deste Convento de N.a S.ra das Mercês, ele também foi apanhado nas malhas do liberalismo e sujeito, como os outros, ao encerramento preconizado para aquando da morte da última freira. Acontece, porém, que, talvez graças ao respeito que esta comunidade merecia da população e das autoridades locais, esta casa monástica não sofreu o destino das restantes e continuou a receber candidatas, designadas “pupilas” para não desobedecer à proibição de aceitação de noviças, mas, no resto da vida conventual, a situação manteve-se como sempre fora, embora o ingresso no Convento fosse lentamente decaindo, até que, em 1910, data da implantação da república, já lá se encontravam apenas 15 religiosas. Em 1901, aquando da legalização dos institutos religiosos sob a forma de associações, o Convento de N.a S.ra das Mercês transformou-se em associação, permanecendo as religiosas, então designadas “sócias ativas”, na sede da associação, ou seja, no Convento, sendo responsáveis pela sua administração. A república veio, porém, pôr um ponto final a esta situação que se prolongava, de resto, para além do expectável, e, a 13 de outubro de 1910, as últimas freiras foram levadas do Convento para o palácio de S. Lourenço, onde aguardaram que as famílias as resgatassem. O edifício do Mosteiro foi, a pedido da Câmara Municipal do Funchal, destinado a cadeia, desígnio que se gorou quando se constatou o elevado montante que seria preciso despender até lhe dar a configuração exigida pelas novas funções. Assim, destinou-se, depois, a “Escola Modelo, Biblioteca Popular ou Museu Municipal”, mas também estas ambições não foram adiante, preferindo-se antes atender a um pedido da edilidade para que se demolisse uma parte do prédio para alargamento das vias circundantes. A outra parte, abandonada durante algum tempo, acabou igualmente por ser demolida, construindo-se de raiz, naquele espaço, um edifício destinado ao Auxílio Maternal do Funchal (FONTOURA, 2000, 384-385).   O Convento de N.a S.ra da Piedade, na Caldeira O destino das freiras provisoriamente acolhidas em S. Lourenço foi o regresso a contextos mais ou menos familiares, i.e., enquanto algumas, entre as quais se contava a M.e Virgínia Brites da Paixão, superiora do Convento, regressaram de facto a casa dos pais, outras conseguiram retomar a vida em comunidade, partilhando habitações particulares da posse de parentes seus. Assim aconteceu em Câmara de Lobos, onde, no sítio da Palmeira, um grupo de sete freiras se juntou em casa que havia pertencido aos pais da Ir. M.a Matilde da Circuncisão, enquanto um outro núcleo, desta vez com três professas e uma candidata, fixou residência no lugar da Caldeira, em casa dos pais da Ir. M.a Francisca da Anunciação. Aí se mantiveram juntas, usando hábito – risco que corriam apesar da legislação anticongreganista da Primeira República –, rezando e trabalhando como sempre haviam feito. A M.e Virgínia, apesar de se manter instalada em casa de família, era visita assídua quer de uma quer de outra das comunidades, ajudando a manter vivo o espírito da Primeira Regra de Santa Clara. A propriedade da Caldeira ficava junto de uma capela consagrada a N.a S.ra da Piedade, fundada em finais do séc. XVIII pelo P.e Manuel Gonçalves Henriques, que a dotara de todos os requisitos para nela se celebrarem os ofícios divinos. Por altura da expulsão das freiras do seu Convento das Mercês, pertencia a referida capela ao P.e António Rodrigues Dinis Henriques, o qual, quando deixou a paróquia de que estava encarregado, se devotou ao acompanhamento espiritual das freiras suas vizinhas e igualmente se comprometeu com o desígnio de dotar as madres de novo convento. Com esse fim em vista, deixou, em testamento, a propriedade onde se encontrava a capela à paróquia de Câmara de Lobos, estratégia encontrada para salvaguardar a posse dos terrenos que, se entregues à Diocese, poderiam ser retomados pelo Estado. O tempo político não era, porém, favorável a projetos congreganistas, pelo que foi preciso esperar por nova mudança de regime, operada com o golpe de 28 de maio de 1926, para que o desejo do P.e Dinis e das freiras egressas pudesse começar a tomar forma, o que veio a suceder logo em 1927-1928, altura em que começaram as obras da nova casa conventual, as quais sempre contaram com o apoio do bispo da Diocese, D. António Manuel Pereira Ribeiro. O Mosteiro foi, assim, nascendo, fruto da colaboração de muitas vontades, entre as quais a da própria população da zona, que contribuía com o que podia, quer doando materiais, quer oferecendo dias de trabalho. A 16 abril de 1931, as oito freiras que ainda viviam, do pequeno grupo que saíra do Convento das Mercês, puderam finalmente voltar a reunir-se entre muros conventuais, conseguindo assim o feito único em Portugal de uma comunidade que ultrapassou as adversidades, reorganizando-se, uma vez mais, sob a Primeira Regra de Santa Clara. Com o aumento das solicitações para ingressar no Convento, houve necessidade de proceder a um redimensionamento das instalações, o que veio a acontecer em 1954, embora, pouco tempo depois, um incêndio, ocorrido em 1959, viesse, uma vez mais, obrigar a comunidade a ultrapassar outra dificuldade. Recebidas pelas Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, então instaladas no Convento de S.ta Clara, as freiras aguardaram pela reconstrução, e, uma vez mais ou menos terminada, regressaram à Caldeira e às suas costumeiras ocupações de fabrico de hóstias, tratamento de roupa para a Sé e outras paróquias, bordados, jardinagem e lavoura. Por ter o bispo D. David de Sousa, Franciscano como elas, constatado que a população vizinha do Convento vivia muito isolada, com dificuldades de acesso à catequese e até ao ensino primário, solicitou às freiras a prestação desse serviço social, ao que elas prontamente acederam, tendo ficado responsáveis por aquelas missões durante 19 anos. Nos inícios do séc. xxi, a comunidade permanece instalada no sítio da Caldeira, mas o crescimento do número de candidatas à profissão determinou que se expandisse, dando origem a novas casas de religiosas, uma das quais em Santo António, nos arredores do Funchal.   O Mosteiro de S.to António A M.e Virgínia Brites da Paixão foi viver, conforme se disse, para casa de seus pais, no Lombo dos Aguiares em Santo António, onde continuou a levar uma vida muito próxima da de clausura, dedicada à oração e pontuada das experiências místicas com visões de Nossa Senhora que a acompanhavam desde muito nova. O seu modo de viver despertava a admiração não só das suas correligionárias de Câmara de Lobos, como da população em geral, e, anos depois da sua morte, ocorrida a 17 de janeiro de 1929, começou a germinar a ideia da fundação de um Convento junto da casa onde habitara e que se encontrava na posse de umas sobrinhas. Apresentado o projeto ao bispo do Funchal, D. João Saraiva, este logo se entusiasmou e envidou esforços no sentido de se concretizar o desígnio, para o qual igualmente contribuiu a doação da propriedade por parte das sobrinhas. Em março de 1967, transferiram-se para instalações ainda provisórias as primeiras três irmãs oriundas do Convento de N.a S.ra da Piedade, e, em 1971, o prelado funchalense começou a equacionar a possibilidade de aquela casa passar a mosteiro autónomo. Com este fim em vista, diligenciou a obtenção de licença junto da Congregação dos Religiosos e Institutos Seculares, em Roma, que respondeu a 21 de julho, confirmando a aceitação do pedido. Em posse do documento, D. João Saraiva tudo fez para tornar realidade o novo Convento e, a 2 de outubro do mesmo ano, em reunião da comunidade, o bispo procedeu à nomeação da madre abadessa. A ereção canónica tardou ainda quatro anos, mas, em 1975, por ação do bispo D. Francisco Santana foi alcançada, passando, desde então, a Madeira a contar com mais uma casa conventual de Clarissas.     Ana Cristina Trindade (atualizado a 25.02.2017)

Religiões

missões internas

As missões internas são as missões entre fiéis (ad fideles, distintas das missões ad gentes), chamadas paroquiais por alguns, ou populares por um grande número de teólogos pastorais: “Por missões populares propriamente ditas entende-se formas organizadas e metódicas de pregação extraordinárias e periódicas, que se afirmaram a partir do final do século XVI e realizadas por ‘missionários’ bem preparados, nas áreas rurais e urbanas, com o consentimento do ordinário do lugar por um espaço de tempo mais ou menos longo segundo as épocas, os ambientes e as condições religiosas das populações” (FAVALE, 1988, 961). Como se depreende, o conceito de missão interna corresponde a uma forma de ação eclesial datada, pelo que depende da época em que surgiu. Importa, por conseguinte, determinar a partir de quando se pode falar de missões internas em sentido próprio. A criação das missões internas As pregações de Advento e Quaresma da Alta Idade Média eram reservadas aos párocos e demais curas de almas. Só com Francisco de Assis (1181-1226) e seus frades menores (Franciscanos), e Domingos de Gusmão (c. 1170-1221) e seus pregadores, o ministério da palavra se abre a pessoas que não tinham sido ordenadas. Facto é que as missões dos sécs. XI e XII permaneceram ao nível da espontaneidade de Roberto d’Abrissel (c. 1045-1116), S. Domingos de Sora (951-1031) e S. Roberto Belarmino (1542-1621). Os Franciscanos, no séc. XIII, tiveram em S.to António de Lisboa o expoente dos tantos pregadores seus contemporâneos. Contudo, impõe-se distinguir a missão interna da pregação missionária itinerante – desenvolvida sobretudo depois da missio dada pelo Papa Inocêncio III aos Franciscanos, em 1209-1210, e aos Dominicanos, em 1216 –, pelo método segundo o qual se desenrolam, pela sua duração, os assuntos propostos e os meios de conversão. A pregação mendicante dos sécs. XIV e XV caracterizou-se pela quantidade de pregações, mas não pela sua qualidade; S. Vicente Ferrer (1350-1419) e S. Bernardino de Sena, pelo contrário, fizeram escola entre os vindouros. A pregação de um dia era comparada ao soar de trombetas que chama à conversão e à confissão. A introdução da reconciliação (sacramental e não só) como objetivo da pregação ficou a dever‑se a S. Vicente Ferrer, que se fazia acompanhar de muitos colaboradores. Contudo, segundo Carmelo Conti Guglia com Meiberg, na sua Historiæ Missionis Parœcialis Lineamenta (CONTI GUGLIA, 1990, 9), prevalecia o carisma pessoal e a espontaneidade das intervenções do ministro, condicionadas pela variedade das circunstâncias. De métodos propriamente ditos ainda não se podia falar, pois faltava um ordenamento de assuntos, motivos e meios coordenados e destinados a ajudar o processo psicológico da conversão, como acontecerá, durante o período pós-tridentino, nos exercícios e nas missões de S.to Inácio. Vicentinos, Oratorianos, Capuchinhos e Jesuítas parecem todos reclamar‑se criadores e especialistas das missões internas, o que ficará a dever‑se à diversidade de contextos em que aquelas formas de pastoral extraordinária se desenvolveram no séc. XVI. Capuchinhos e Barnabitas, v.g., intensificaram a pregação por ocasião da Adoração das Quarenta Horas, que se disseminou pela Europa após 1537; o venerável Silvestre Landini sj (m. 1554) percorreu a Itália central, e compôs o catecismo que os Jesuítas difundiram por toda a parte com a sua pregação; em França, S. João Francisco Régis (m. 1640) foi o apóstolo da catequese; em Espanha o beato João de Ávila (m. 1569) dedicava‑se à pregação missionária com os padres da escola sacerdotal. Embora se confunda amiúde pregação missionária com missões internas, e destas se fale referindo‑se datas anteriores ao seu aparecimento, as pregações itinerantes e penitenciais foram, de facto, sofrendo alterações que lhes deram a fisionomia de missão interna. Do pregador carismático, mesmo seguido de colaboradores e confessores, passava‑se ao grupo organizado, com distinção de ministérios, especialmente os de instrutor e pregador. Embora se situe esta mudança no tempo de S. Vicente de Paulo (m. 1660), Segneri (m. 1694) e outros, a descrição poderia aplicar‑se perfeitamente aos Jesuítas portugueses do segundo quartel de Quinhentos. Conti Guglia apresenta duas fases subsequentes desta evolução: primeiro, a passagem do dia único ao curso orgânico de instruções e meditações de uma semana a um mês e mais, com iniciativas que resultarão em modalidades e métodos diversos; depois, a passagem da pregação itinerante durante os tempos fortes da liturgia às missões em tempo oportuno para os ouvintes. As missões de Segneri, v.g., escolhiam os meses estivais por serem celebradas em campo aberto; outras preferiam os meses invernais porque os homens estavam mais livres, especialmente nas zonas agrícolas. Mais uma vez, encontramos convergências com as missões portuguesas dos Jesuítas quinhentistas, celebradas, v.g., do verão ao outono, até que a pluviosidade se tornasse um obstáculo intransponível aos missionários e às populações. O Portugal quinhentista parece ter partilhado da evolução que B. Peyrous descreve como emergente por toda a cristandade no decurso do séc. XVI. Graças às suas transformações progressivas, a missão tornou-se instrumento privilegiado do apostolado católico, especialmente depois de S. Vicente de Paulo. Entre os Jesuítas, o português Simão Rodrigues de Azevedo, o basco Inácio e o itálico Silvestre Landini foram contemporâneos. Azevedo nasceu em 1510, em Vouzela, foi cofundador da Companhia de Jesus e primeiro provincial em Portugal, de 1546 a 1552; morreu em Lisboa, em 1579. Historiadores jesuítas atribuem a instituição e o início das missões internas ao fundador, Inácio de Loyola (m. 1556) e aos seus companheiros, depois da sua chegada a Roma em 1537, reportando‑se às suas Constituitiones Circa Missiones, inseridas mais tarde nas Constituições da Companhia de Jesus, e ao livrinho dos Exercícios; e consideram como primeiro grande missionário ad fideles Silvestre Landini (m. 1554). Segundo Conti Guglia, porém, o documento que assinala o nascimento, a finalidade e a organização das missões metódicas (Instructio XII iis Qui ad missiones Fructificandi Causa Proficiscuntur, de 1595) deve‑se a Cláudio Acquaviva, nascido em Nápoles, em 1543, eleito superior geral em 1581, falecido em 1615, em Roma. De facto, já em 1590 a Epistola de Jubileo et Missionibus determinava que se fundassem em todas as províncias missões de 6 a 12 padres, devendo estes ir 2 a 2, a pé, às aldeias mais necessitadas da palavra de Deus, aí ficando o tempo necessário, pregando à maneira de S. Vicente Ferrer. A instrução de Acquaviva sobre as missões não dava a este termo nenhuma conotação ad gentes. Eis os elementos do método das missões internas que, no dealbar do séc. XVII, se desenvolveria e enriqueceria: tinham como fim salvar as almas que, por ignorância das coisas necessárias à salvação, viviam em estado de pecado e em perigo de condenação; deviam ser preparadas indagando junto do pároco quais os vícios mais difundidos entre os fiéis, e escolhendo algum leigo de confiança que pudesse ajudar especialmente na pacificação; queriam-se metódicas, consistindo o seu programa em ensinar a doutrina cristã, ouvir de confissão e fazer a paz; desenvolviam-se pela concentração vespertina do povo, o anúncio dos objetivos da missão, sem fins lucrativos inclusive pequenas ofertas, a promulgação da indulgência jubilar e a exortação à confissão, com o seguinte plano: pela manhã, confissão; à tarde, doutrina aos rapazes, raparigas e mulheres; para os homens, à tardinha, depois das ave-marias, à volta de uma hora de pregação acerca dos mistérios da fé, do credo e das consequências do pecado; cuidavam da formação do clero, especialmente no que diz respeito à validade dos sacramentos, às confissões e à pregação; deviam durar quanto aconselhasse a prudência, de modo a dar frutos. Em 1599, ainda no tempo de Acquaviva, a experiência acumulada permitiu escrever a epístola De Modo Instituendarum Missionum, em que se estabelecia que todos os Jesuítas, especialmente os professos, tendo em conta a sua idade e saúde, deviam participar em alguma missão, sem prejuízo do ensino nos colégios já existentes. Cada província devia fundar, pelo tempo de evangelização de determinada zona, residências dedicadas exclusivamente às missões internas. As missões internas jesuíticas Em 1540, Simão Rodrigues de Azevedo, sj, e Francisco Xavier, sj chegaram a Portugal; em 1541, fundaram a primeira casa da Companhia de Jesus em todo o mundo (S.to Antão); a 3 de setembro de 1759, o marquês de Pombal expulsaria os Jesuítas de Portugal, acusados de tentativa de regicídio de D. José I. Entretanto, “logo que houve pregadores suficientemente habilitados, enviou‑os Simão Rodrigues [de Azevedo] a evangelizar os povos, como Cristo enviara os seus discípulos a pregar a toda a criatura” (RODRIGUES, 1932, I, I, 639; itálico acrescentado). Estas palavras pareceriam indicar o envio de missionários ad gentes (aos povos), não fosse o contexto: “A atividade que desenvolveram os religiosos da Companhia de Jesus nas missões com que evangelizavam todas as províncias do norte ao sul de Portugal, é um acontecimento de relevo notável nos fastos da história portuguesa” (Id., Ibid., 638). De facto, o mesmo empenho, uma tão adequada preparação, a mesma radicação evangélica, a mesma relevância cultural presidiam à missão dirigida à metrópole e ad gentes. A fundação da Província Portuguesa da Companhia de Jesus data de 1546. Secundado pelo governo central da Companhia, um longo escol de missionários jesuítas calcorreou as paróquias de Portugal, ao longo de quase um século, de modo que, no generalato inaugurado em 1616, a própria Companhia de Jesus, com as reformas do geral Acquaviva, foi lentamente evoluindo numa linha de adaptação às exigências do seu tempo. De um só gesto, organizou os grupos dos místicos regenerados e as formas de ação espiritual que se destacaram desde 1630. Surgiu, então, uma série de estruturas de apoio à evangelização, designadamente: congregações – de casados e solteiros, e depois segundo categorias socioprofissionais –, casas de retiros, residências missionárias, e as missões internas, quer rurais quer urbanas. A avaliação do tecido social conduziu a um tipo de missão interna em áreas limitadas, durante três ou quatro semanas, visando objetivos determinados pela crescente secularização do séc. XVII: aprendizagem das orações e devoções essenciais, prática frequente dos sacramentos, sobretudo da confissão e da comunhão. Até aqui, nada de novo em relação às missões internas do séc. XVI. Porém, havia a perceção de que não bastava a catequização e iniciação fervorosa na fé, pois era necessário conseguir a perseverança na vida cristã dessas populações recém‑missiona­das. Tratava-se de fazer face às convulsões quietista, jansenista e iluminista (sécs. XVII e XVIII). Neste segundo período, os missionários portugueses eram já secundados por companheiros europeus na Suíça, na Alemanha, em Espanha, na França de Julien Maunoir (m. 1683) e de Jean‑François Régis (m. 1640), na Itália de Paolo Segneri (m. 1694). Os seus resultados foram consideráveis e profundos: conversões repentinas, reconciliação de inimigos desavindos, restituições, frequência de sacramentos, culto eucarístico, difusão de devoções marianas, da devoção ao coração de Jesus e aos santos da congregação inaciana. Apesar de divulgadas noutros moldes desde Quinhentos, estas missões internas difundiram‑se muito, em Portugal, desde 1710 e mesmo antes. Este incremento parece ser comum a toda a Europa, nos sécs. XVII e XVIII. As missões internas constituíram um fascinante fenómeno psicológico de massa e receberam uma estrutura mais orgânica. Segundo a historiografia posterior, havia nessa época três formas principais de missão interna, com as respetivas variantes: em Itália, Espanha e Portugal predominava uma única forma penitencial, dramática e emotiva; na Alemanha e em França, a pregação, mais racional, orgânica e formativa, era equacionada de uma forma mais catequética, sistemática e construtiva do que naqueles países mediterrânicos; a terceira forma de missão interna, desenvolvida, desde 1528, pelos Capuchinhos, caracterizava‑se pela vivacidade e adequação de linguagem, pela fundamentação bíblica e pela solenização da Adoração das Quarenta Horas. Em Portugal, os temas principais das pregações eram o fim do homem, a gravidade do pecado, a Paixão e morte de Jesus Cristo, a opção de vida, a necessidade da graça para alcançar a salvação eterna, a morte, o juízo, o Inferno e o Paraíso. O conteúdo geral inspirava-se nos Exercícios de S.to Inácio de Loiola. O género literário com que eram apresentados tais temas mostrava-se austero e imaginoso, sugestivo e comovente. Acompanhavam a missão várias práticas e manifestações religiosas: o uso de caveiras e evocação dos danados, procissões penitenciais onde os participantes levavam sinais de compunção – tais como cruzes, flagelos, correntes, roupa escura, capuchos e véus que cobriam o rosto; fogueiras de livros reprováveis, de lembranças de amor, de ligaduras mágicas, de feitiços; beijo do crucifixo por todos; pacificações com apertos de mão e abraços; confissões e comunhões gerais; solenes promessas de perseverança no bem, etc. Havia um forte apelo penitencial, carregado de drama e de emotividade, com o fim de mover os afetos dos ouvintes e os tornar ativamente participantes no seu caminho de conversão. Deste incremento dá‑nos conta, e.g., A. Franquelim S. Neiva Soares, num estudo acerca das missões jesuíticas a partir do Colégio de São Paulo, entre 1742 e 1748. Preparação e desenvolvimento das missões internas As missões internas, segundo testemunhos epistolares coevos, eram inauguradas com o envio de um grupo razoável de missionários, com fun­ções definidas. Nas reco­mendações dadas pelos superiores à despedida, encontramos referências à pobreza e ao proveito espiritual dos próprios missionários, e sobretudo um apelo à martyría , quando António Gomes, sj, v.g., os exor­tava a que procurassem guardar o evangelho à letra, e que não voltassem das suas missões senão apedrejados. Já no terreno, a primeira fase consistia na chegada dos missionários, quase sempre em grupos de dois, e no anúncio da missão: um levava o encargo da pregação; o outro servia‑lhe de auxiliar. Iam geralmente a pé e viviam do que lhe ministrava a caridade. A chegada às paróquias era invariável: em primeiro lugar, visitava-se o Santíssimo Sacramento nas igrejas a missionar, anunciava‑se o santo jubileu aos paroquianos congregados, e celebrava‑se missa com cânticos. No dia seguinte o missionário responsável confessava, por vezes durante várias horas. Num segundo tempo, operadas já algumas conversões, os missio­nários ao minis­tério da palavra, partilhando a tarefa de visitar as pessoas nos seus diversos ambientes: desavindos, doentes, en­carcerados. Os missionários, sem “palavras estudadas nem aformoseadas de cores retóricas”, suscitariam nos fiéis o desejo de “serem ensinados em suas vidas” (RODRIGUES, 1932, I, I, 660). Estes primeiros Jesuítas, mercê da sua só­lida formação, eram pedagógicos no uso da palavra, reduzindo os seus sermões a alguns itens, com ordem e clareza, para que facilmente se fixassem na memória. As autoridades civis tanto mandavam chamar à pregação, sob certa pena que se impunha, quanto eram, com a mesma radicalidade, alvo do pregador. É o caso daquele que pregou com veemência contra os “amancebados” e, em remate, dirigiu uma apóstrofe aos governadores da vila e, a grandes vozes, os intimou a que acudissem a “tamanha perdição” (RODRIGUES, 1932, t. i, vol. i, 640-668). No séc. XVIII, como no XVI, a vida austera dos próprios missionários, a sua vivência religiosa transbordante e a palavra inflamada arrastavam multidões, enchendo‑se as igrejas por onde passavam. Casos houve em que os procuraram pessoas que tiveram de andar légua e légua e meia debaixo de chuva. O pós‑missão – a verificação do sucesso de uma missão interna Da missão interna fazem parte a preparação, o desenrolar e o pós‑missão. Do modelo jesuítico de missão interna, não é fácil inferir a forma como, após o tempo em que a missão se desenrola, se verificavam os resultados da ação missionária. Porém, os ecos dos resultados, quer imediatos quer a médio e longo prazo, foram registados pelos missionários que rodeavam as povoações já missionadas ou que, sendo chamados a desenvolver nas mesmas comunidades uma nova missão interna, tinham ocasião de verificar a evolução dessas comunidades. Das missões internas dos Jesuítas portugueses de Quinhentos, pudemos verificar que a pregação – o kérygma e apelo à conversão – resultava na frequência de sacramentos e prática das boas obras, como subsídios a hospitais, visita a enfermos em necessidade, aos quais designadamente os missionários levavam a reconciliação de Deus, bem como esmolas recolhidas entre a população, com vista à conversão interior e à persistência dos frutos da missão, que era uma das preocupações dos missionários. Veja-se a descrição que Francisco Rodrigues faz de um destes processos: “Toda a vila deu uma volta, confessando‑se toda e quedando o costume de se confessar e comungar muito amiúde” (RODRIGUES, 1932, I, I, 651.). Nas palavras de outro historiador: “Os relatos destas duas missões parecem confirmar a mesma conclusão. O fervor dos missionários, as raras exceções referentes a amancebados e a outros desregrados enfraquecem sobremaneira a generalização de uma sociedade em decomposição moral. Muito pelo contrário, havia ânsia de palavra de Deus, de vida espiritual, de fervor religioso” (SOARES, 1997, 161ss.). O resultado das missões internas não era, porém, deixado só à livre iniciativa dos que lhe tinham aderido; para assegurar a duração dos seus frutos instituíam-se confrarias cujos estatutos obrigavam os seus membros a confessar‑se e comungar todos os meses e nas festas principais. Do Iluminismo às missões internas pós‑Vaticano II Com a expulsão dos Jesuítas de Portugal, em 1759, e sua supressão em todo o mundo, em 1773, as missões internas foram privadas das suas melhores forças. A Revolução Francesa (1789) trouxe uma onda de perseguição religiosa, de consequências prolongadas no tempo e para além do território francês, levando à suspensão de toda a atividade missionária. Quando esta recomeçou, os missionários regressaram aos métodos dos grandes líderes desaparecidos havia pouco tempo e cujo processo de beatificação estava em curso, com todos os estudos e a propaganda que tal comportava. Era o caso de S.to Afonso Maria de Ligório (Nápoles, 27/09/1696-Pagani, 01/08/1787), canonizado em 1839, declarado doutor da Igreja em 1871 e patrono dos confessores e moralistas em 1950. Em 1923, Pio XI proclamou padroeiro das missões entre os fiéis o franciscano S. Leonardo (Porto Maurício, 20/08/1676-Roma, 25/11/1751), canonizado, a 29 de junho de 1867, com S. Paulo da Cruz (Ovada, 03/01/1694-Roma, 18/10/1775). Paulo fora beber à espiritualidade dos Capuchinhos e de S. Francisco de Sales, segundo Tito Paolo Zecca, e juntou a si outros companheiros ad titulum missionis, com especial atenção para as zonas pastoralmente mais abandonadas e subdesenvolvidas, e os pobres, militares e fora de lei. Isto desmente o lugar-comum segundo o qual o séc. XVIII não teria sido pródigo em ardor apostólico. Na segunda metade de 1800, além do referido conservadorismo dos remanescentes institutos missionários, os novos não foram além da suplência daqueles que, entretanto, tinham desaparecido. Aliás, adotaram-lhes alguns métodos sem grande criatividade, que não fosse adaptá‑los às exigências da época: entraram em voga as conferências apologéticas e dialogadas para se opor às acusações e às lutas do racionalismo; utilizaram‑se cantos, procissões, calvários, renovação das promessas batismais, consagração a Nossa Senhora, frequência de sacramentos e procissão eucarística solene; boa imprensa, confrarias e associações. Diminuíram as coreografias e as manifestações públicas de penitência. Os institutos missionários já existentes viram‑se a braços com o espírito anticongregacionista, além das moléstias causadas pelas invasões e ocupações napoleónicas, um pouco por toda a Europa. Juntou‑se a esta conjuntura desfavorável a dificuldade de adaptação do modus faciendi à sociedade, cultura e religiosidade entretanto emersas. Tratava‑se de conciliar três valores: a fidelidade aos métodos canonizados pela tradição, a distinção entre a missão e outras formas de pastoral extraordinária, e as novas exigências em ordem aos frutos da ação missionária. A reorganização das instituições eclesiásticas, nomeadamente da Companhia de Jesus (1814), o crescimento numérico do clero secular e dos membros dos institutos já existentes e o nascimento de novos estiveram na origem de um relançamento das missões internas nalguns países da Europa depois do Congresso de Viena (1815). Contudo, as supressões, dispersões e secularizações – a que, intermitentemente, foram sujeitos os institutos religiosos no séc. XIX e no início do séc. XX em várias nações, nomeadamente Portugal, com as leis antirreligiosas da Monarquia Constitucional (1820-1910) – impediram-nos de prosseguir a sua ação, designadamente as missões internas. De facto, neste período, “dos institutos que entraram de novo em Portugal, nem todos tiveram tempo ou condições para se desenvolver” (OLIVEIRA, 1994, 213). Missão interna na Diocese do Funchal Congregação da Missão – uma presença atribulada na história portuguesa Entre esses institutos, encontra‑se uma sociedade de vida apostólica, os Vicentinos; também chamados Lazaristas ou Congregação da Missão, conservam, desde a sua fundação e atribulada entrada em Portugal, entre 1717 e 1738, o carisma da missão interna, e consagraram‑se especialmente a missões entre a gente dos campos. Concretamente no Funchal, a partir do segundo quartel de 1700, D. Fr. Manuel Coutinho (1725-1740) intensificou metodicamente o ensino da doutrina cristã (a catequese) e as missões religiosas (ad fideles) nas paróquias pelo clero regular. D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1757-1785), na linha do seu antecessor, introduziu exercícios espirituais pela Congregação da Missão ao clero da Diocese, que foi evangelizado durante 10 anos, não sem inúmeras dificuldades. O mesmo bispo sofreria pressões por parte do marquês de Pombal no sentido da expulsão dos Jesuítas, bem como por parte da maçonaria, já em expansão. À semelhança dos demais institutos e sociedades, os padres vicentinos foram expulsos em 1834, em consequência da aprovação do decreto de extinção das ordens religiosas, reentraram em 1857 e sofreram violentas perseguições por parte da maçonaria, que incluíram assassinatos. A Província Portuguesa da Congregação da Missão só seria restaurada em 1927, contribuindo para a reforma que D. Manuel Agostinho Barreto (1877-1911) levou a cabo no Seminário do Funchal. Eduardo Pereira regista, em 1939, os efeitos que tiveram na Diocese do Funchal estes acontecimentos: “A mais de um século de distância da extinção das congregações em Portugal verifica‑se que as freguesias rurais mais crentes e piedosas são as das circunscrições eclesiásticas da Calheta, Câmara de Lobos, Machico, Ribeira Brava e Santa Cruz, onde os frades da Ordem Primeira de São Francisco tiveram conventos e exerceram o ministério sagrado” (PEREIRA, 1968, 455). A fé só se teria mantido, por conseguinte, graças à profundidade das suas raízes; onde era mais superficial teria sucumbido. A Congregação da Missão no Hospício D.ª Maria Amélia A importância das ditas raízes seria crucial, pois a evangelização de fundo só foi possível com a pacificação das relações entre a Igreja e o Estado português. Contudo, uma investigação mais acurada das fontes revela que o espírito antirreligioso deste século liberal e republicano deixou grandes brechas na ação pastoral. A história dos Vicentinos no arquipélago da Madeira é prova disso, atendendo a toda a atividade aí desenvolvida, designadamente às largas dezenas de missões internas realizadas. Tendo regressado a Portugal em 1857, a Congregação da Missão só em 1862 volta à Diocese do Funchal, graças ao facto muito particular de a princesa D. Maria Amélia de Bragança, filha de D. Pedro (I do Brasil, IV de Portugal) e de D. Maria Amélia Napoleão Beauharnais, ter procurado cura para uma tuberculose no clima da Madeira, onde chegou em 1852 com sua mãe. Passados cinco meses, a 4 de fevereiro de 1853, morria a princesa, aos 21 anos, tendo a Rainha sua mãe perpetuado a memória da filha num hospício destinado a doentes pobres, vítimas da mesma doença. A soberana quis que as enfermeiras desta instituição fossem religiosas de S. Vicente de Paulo e foi assim que, em 1862, os Vicentinos voltaram à Madeira como capelães do Hospício D. Maria Amélia. Mas, segundo Bráulio Guimarães, logo em 31 de julho, os padres e as irmãs tiveram de sair do país por ordem do Governo português. O Elucidário Madeirense acrescenta que o Estado abrira “uma exceção para a Madeira, mas M. Étienne, superior geral da congregação, ordenou que as Irmãs da Caridade deixassem a direção do Hospício da Princesa D. Maria Amélia e recolhessem sem demora ao seu país, tendo saído do Funchal a 2 de agosto de 1862” (SILVA e MENEZES, 1921, 486). Facto é que a 15 de novembro de 1871 já tinham regressado. D. Manuel Agostinho Barreto, bispo do Funchal de 1877 a 1911, servir-se-ia dos padres vicentinos para o precederem em todas as freguesias onde ele mesmo fosse fazer a visita pastoral e presidir à administração do sacramento da confirmação. A Congregação da Missão reconhecia nesta missão uma necessidade pastoral a que o carisma de S. Vicente de Paulo poderia responder. Mercê deste encargo, e perante sucessivos pedidos, tanto do bispo como do P.e Ernst Johann Schmitz, irá para a Madeira um segundo sacerdote, o P.e Prévot; estava constituída a comunidade dos padres da Missão, podendo o P.e Schmitz dedicar-se às missões nas paróquias mais recônditas, a par das tarefas da capelania e, depois, do seminário, que dirigiu desde 1881. O lazarista distinguiu-se nesta instituição pelo seu trabalho científico no âmbito da zoologia, colaborando com o P.e Prévot e o P.e Varet, chegado em 1883. Desde sempre houve a preocupação da parte do bispo diocesano e da congregação de enviar para o Hospício confrades considerados capazes de missionar, pelo que entre eles houve, não só diretores e mestres, mas ministros do púlpito, em retiros espirituais, sermões de circunstância e missões. Distinguiram-se particularmente os padres José Maria Garcia e Pereira da Silva e, nas missões internas, os padres Prévot, Schmitz, Sebastião Mendes, e outros. À medida que foram regressando a Portugal, os Vicentinos viram restaurada a sua plena autonomia provincial. No Funchal, para uma frutuosa catequese, os padres do Hospício organizaram e editaram, curiosamente em 1911 – o ano da promulgação da Lei da separação das Igrejas do Estado –, um Catecismo Pequeno de Doutrina Cristã, extraído do catecismo mais completo da Diocese do Funchal. O centro catequético da Penha de França tornou-se exemplo e estímulo para as paróquias da Diocese, envolvendo, além dos 300 alunos de catequese, crianças e adultos que ali afluíam por ocasião das festas. Estas constavam de teatro e recitais, música e canções, tendo uma delas contado com distribuição de prémios e a presença de D. Manuel Pereira Ribeiro. Até à década de 1920, a atividade evangelizadora dos Vicentinos madeirenses estendia-se do ministério da palavra à promoção humana: duas bibliotecas, uma infantil e uma segunda que recebeu o nome de Utile Dulci (da expressão do poeta latino Horácio que significa “juntar o útil ao agradável”); sessões literárias e de animatógrafo; círculo de estudos; o Boletim Eclesiástico da Madeira (1911-1919) e a revista Esperança (1919-1939), do P.e Schmitz; a Obra de São Francisco de Sales para a imprensa e assistência infantil; as escolas populares do P.e Prévot e as escolas das Filhas da Caridade; o Seminário Diocesano e a União Sacerdotal Madeirense, agregada à União Apostólica de Paris em 1922; conferências e retiros para as Filhas de Maria e a Associação de São José; União Madeirense de Bordadeiras (1921); obra da Santa Infância, Conferência de São Vicente de Paulo, Associação Católica; Liga da Ação Social Cristã; Patronato de São Pedro que, ao longo dos anos 30, continuou a ser objeto da solicitude do P.e Manuel da Silveira, da comunidade dos padres da Missão na cidade do Funchal. No salão-cinema eram, de vez em quando, exibidos filmes selecionados, de valor artístico, recreativo e apologético. De facto, esta como outras atividades dos Vicentinos visavam a educação humana em geral e especificamente cristã, o que não destoava da sua missão, feita ad fideles e paroquial durante o período estival. Missões vicentinas na Diocese do Funchal (1879-1916) Estas missões enquadram-se numa série de missões quaresmais e preparativas das visitas pastorais de D. Manuel Agostinho Barreto, bispo do Funchal entre 1877 e 1911, que encarregou o P.e Tomás Vital, sj, de organizar as missões internas pelo menos desde 1879; no ano seguinte, convidou o P.e Schmitz, cm, para secundar o Jesuíta. Em 1880, junta-se-lhes outro Jesuíta, o P.e Villela, que permanece até 1882. Em 1880, o P.e Pinto também participou nas missões internas. Em 1883, tiveram lugar as missões orientadas, pela primeira vez, por dois padres da Congregação: o P.e Varet e o P.e Ernesto Schmitz. Se não contarmos os eventuais confessores e o clero diocesano, normalmente eram dois os missionários encarregados de uma missão interna, ou às vezes três. Só encontramos uma missão interna de que não se diz ter sido convocada pelo bispo diocesano, que teve lugar em São Roque. Algumas missões eram anunciadas de véspera e, em alguns casos, o povo tinha medo e vergonha de comparecer. A missão começava quando chegavam os missionários ou na manhã imediata, sendo anunciada pela comitiva que, não raro, os acompanhava , expediente usado amiúde para chamar a gente da paróquia. Durava, em média, 6 dias, atingindo um máximo de 10 ou ficando-se por um mínimo de 3 (tríduo). A jornada começava pelas 04.00 h, com meditação; às 05.00 h, havia missa, enquanto o outro padre confessava; às 07.00 h, era celebrada uma segunda missa, com homilia acerca dos mandamentos; às 08.30 h, o almoço; às 12.00 h, meia hora de cânticos; às 14.00 h, jantar; às 15.00 h, terço e ladainha com cânticos; pelas 15.30 h, prática e, em seguida, sermão até depois das 17.00 h; reconciliação, de novo, às 18.30 h. A necessidade de vários confessores – em regra escassos – determinava o envolvimento dos presbíteros das redondezas e mesmo de longe. Para “não ficar no abstrato, São Vicente propôs aos seus missionários o ‘pequeno método’. Ele divide o discurso em três pontos: motivos – natureza – meios [...]. O santo demonstra conhecer os três fins da eloquência, docere (converter o intelecto) – movere (estimular a vontade) – delectare (comover o sentimento), e assumi-los no seu método, se bem que o delectare seja substituído na tríade pelos meios. No fundo, o deleitar, o comprazer o sentimento, foi substituído por algo mais útil aos ouvintes: o serem ajudados a traduzir no concreto o que se disse” (MEZZADRI, 1998, 1663ss.). De facto, da análise feita ao caderno dos padres do Hospício, não sobressai nenhuma referência à eloquência dos missionários, mas tão-só à sensibilidade e ao entusiasmo do auditório. De emoção fala-se muito, sobretudo a respeito da habitual “despedida afetuosa”, mas sem complacência, como deixa transparecer a expressão “choradeira geral!” (FIGUEIRA, 1999, 63). O ministério da palavra nas missões madeirenses assume um papel eminentemente catequético, estendendo-se da doutrina à catequese sobre a penitência, passando pelo sermão acerca dos mandamentos, dos novíssimos, do juízo final, do perdão das injúrias e das grandes verdades da fé. Também de S. Vicente de Paulo se dizia que “o fruto da missão ia-o buscar principalmente ao catecismo” (MEZZADRI, Ibid., 1662). Havia igualmente o estilo mais devocional, como o sermão das bênçãos ou do jubileu. Em certa circunstância, um missionário jesuíta deparou com espíritos mal dispos­tos para ouvirem a doutrina, o que o obrigou a passar à moral. Um relator vicentino viu neste episódio aquela certa ductilidade que, segundo Mezzadri, permitia alguma adaptação às situações concretas quanto ao tipo e frequência das ações pastorais e do auditório, sempre ao serviço do critério de eficácia pastoral. Este critério era apanágio de S. Vicente de Paulo, bem como de Inácio de Loyola e de Azevedo, que também passou pela Madeira. As missões internas realizadas entre 1879 e 1910 atravessaram o conturbado período de transição da Monarquia Constitucional para a República, épocas de anticlericalismo exacerbado ou, pelo menos, de anticongregacionismo, em que o clima social geral era tenso, mercê das vicissitudes políticas. Em 1884, tumultos por causa das eleições (realizadas no final de junho), com cinco mortos entre os civis, na Madeira, levaram à suspensão das missões internas, por decisão do bispo do Funchal, D. António Agostinho Barreto. Em 1883, nas seis paróquias missionadas, só um dos párocos se confessou, ao passo que, no ano seguinte, se deu “um progresso”, segundo palavras do próprio bispo: confessaram-se cinco dos sete “vigários” e um “cura” (FIGUEIRA, 1999, 58ss.). Dado universal na verificação das missões internas era o número de comunhões e confissões, e de aderentes às Confrarias de Nossa Senhora da Caridade e da Caridade, fundadas em França, em 1617, por S. Vicente de Paulo. Posteriormente, os fiéis eram confiados, depois da missão, a associações como a do Coração de Jesus ou do Apostolado da Oração. Na ilha da Madeira, mais que na do Porto Santo, a passagem dos missionários a caminho da missão ad gentes era outro expediente que garantia a manutenção do espírito da missão interna no período que se lhe seguia. Novas missões internas As missões internas não primaram, até à década de 1960, pela novidade dos métodos, excetuando o jubileu de 1950, altura em que a Congregação dos Religiosos incentivou, a partir de Roma e com algum sucesso, a realização de missões internas nas diversas Igrejas locais. Na Diocese do Funchal, D. João António Saraiva (bispo do Funchal desde 1965 até 1972) promoveu a “missão diocesana em todas as paróquias”, confiando esta tarefa a Capuchinhos, Dehonianos e Redentoristas, como consta dos Livros dos Provimentos ou da Visitação do bispo diocesano a cada paróquia (PEREIRA, 1968, 431-437). Tais missões internas tinham já um carácter de corresponsabilidade, tanto em si como na articulação com a pastoral ordinária. O fim da década de 1960 trouxe uma profunda crise na Europa, que também pôs em causa as missões. A posterior retoma das mesmas ficou a dever‑se a uma renovada consciência da sua utilidade, sobretudo por parte dos que conservavam a memória desta forma de pastoral extraordinária, nomeadamente os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica, que as mantiveram no próprio carisma. O Magistério contemplou a retoma das missões internas periódicas. Identificam-se em seguida as caraterísticas comuns entre as diversas formas de missão interna, que, no seu conjunto, as tornam uma específica forma de ação eclesial. Universalidade É destinatário da missão interna o povo todo, sobretudo os que estão mais próximos dos locais de culto, mas de forma especial os que, apesar da proximidade geográfica, são excluídos sociológica e psicologicamente. Os métodos das missões internas do começo do séc. XXI parecem tender menos para a prática sacramental que para a construção da comunidade e para a atenção aos que andam afastados dos ambientes classicamente eclesiais. A corresponsabilidade substituiu o anterior papel subordinado dos consagrados e dos leigos. A ação missionária tomou por destinatário preferencial a família, indo ao encontro das pessoas nos bairros, nos domicílios ou em infraestruturas públicas, levando a palavra de Deus a pequenos grupos. Pretendeu-se penetrar no tecido social, saindo dos espaços eclesiásticos e procurando o homem pós-cristão, que “não só abjurou os princípios da religião cristã mas é propenso à negação de qualquer princípio moral e metafísico. É o homem que faz profissão de agnosticismo, de niilismo, de ‘pensamento débil’” (MONDIN, 1994, 51). Para isso, a família que dá acolhimento à missão convida pessoalmente as famílias que habitam no próprio bairro, dando preferência às que estão afastadas da prática religiosa. Os grupos e centros de escuta não se confinam ao tempo em que a missão se desenrola, sendo uma tentativa de evangelização, sobretudo dos adultos, uma ocasião de catequese: passada a curiosidade de um encontro para falar sobre a fé e a vida do dia-a-dia, passa-se à formação sistemática em torno da palavra de Deus, à oração, à celebração da missa, à vivência da fraternidade e do serviço eclesial e à evangelização do próprio meio, em concreta ligação com toda a paróquia de pertença. Eclesialidade A missão interna pôs com toda a acuidade a questão da territorialidade e das oportunidades da ação pastoral, i.e., a paróquia e pastoral ordinária, por um lado, e, por outro, os movimentos e acontecimentos que extravasam aquele âmbito. Segundo alguns autores, a itinerância, excecionalidade e periodicidade são caraterísticas a missão interna no conjunto da pastoral; outros preferem-na eclesial, local e estável, com vista a uma verdadeira e eficaz inculturação da mensagem a anunciar a partir do território. A eclesialidade também se afere pela organicidade entre a missão interna e a ação eclesial local. Se não provém de uma comunhão íntima e profunda com a Igreja diocesana, a missão arrisca‑se a nascer diminuída ou, pelo menos, privada de consistência eclesial e, por conseguinte, pobre de verdadeiros valores teológico-pastorais. A paróquia entra na categoria de eclesialidade enquanto estiver em plena comunhão com o bispo. A ela devem referir‑se, por sua vez, os grupos eclesiais, pois uma pastoral unitária é condição indispensável da eclesialidade de toda a missão. Os Vicentinos portugueses colocam uma interessante nota eclesial na própria equipa missionária, constituída por presbíteros, consagradas e leigos Territorialidade Dentro da Igreja particular, a marca local que João Paulo II reconheceu à paróquia na exortação Christifideles laici (n.º 26) faz dela o sujeito unitário da missão interna no território, mesmo no âmbito de arciprestados, unidades pastorais, ou entre paróquias de uma terra ou de uma cidade paroquial. Projetualidade As missões internas clássicas, realizadas apenas por consagrados, corriam o risco de ter pouca estabilidade, na ausência de um projeto de vida paroquial. Foram por isso criados grupos de escuta, com a dupla dificuldade de chegar aos que estão mais afastados, mas também àqueles que, estando próximos, se sentem incapazes de ser testemunhas do evangelho. Percebeu-se que a relação de proximidade só é possível a partir dos pequenos grupos. Carismaticidade Não se podia esquecer a dimensão profética que os consagrados e alguns movimentos laicais assumem como proprium, sem que tal signifique perder a simbiose entre missão e comunidade. O missionário, consciente do seu papel, exercita o discernimento num equilíbrio entre as exigências da comunidade local e o particular dom que entende comunicar‑lhe. Este discernimento é posto em ação sobretudo na fase da pré‑missão. A comunidade é o sujeito primeiro da missão, o que significa que toda a pastoral deve preparar a comunidade para a missão, a fim de esta não ser obra de especialistas ou delegados, mas de toda a população. Os carismas não podem, portanto, resumir-se aos ministeriais e aos de consagração. “O crescimento no Espírito exige (e, por sua vez, produz) uma comunidade atenta no dar largo espaço aos dons do Espírito [...] numa realidade onde a personalidade de cada um se exprime e desenvolve, não se refugiando numa interioridade separada (narcisismo espiritual) ou lançando-se de cabeça no empenho do fazer (ativismo), mas integrando as grandes polaridades (sujeito/comunidade, quotidiano/eterno) que caraterizam a espiritualidade cristã autêntica” (LANZA, 1998, 133). Essencialidade A missão interna é anúncio kerygmático e catequético porque visa o “anúncio global da fé para a salvação-conversão” e/ou a “primeira conversão ou reconversão contínua” (TACCONE, 1997, 193). O segredo da persistência da missão interna é visar a conversão individual e comunitária, a vivência dos tria munera. Lorenzo Chiarinelli, partindo do cenário de religiosidade genérica, de privatização da fé e das fraturas entre a fé e a vivência traçado pelo Magistério para o princípio do séc. XXI, identifica a prioridade: “antes de mais dizer Jesus Cristo”. Centrando o primeiro anúncio prevalentemente no âmbito do ministério da palavra, o autor convida a “abandonar-se na pobreza radical de ser forte só com a força da ‘palavra’. Não teria sentido organizar a ação evangelizadora à maneira das grandes campanhas publicitárias, com os meios habituais da propaganda e os recursos do poder” (CHIARINELLI, 1998, 140). Em suma, as pregações itinerantes e eminentemente laicais dos mendicantes foram dando lugar à sistematicidade da ação eclesial pós‑tridentina, por obra designadamente das missões internas desenvolvidas um pouco por toda a Europa de matriz latina. O Portugal de Simão Rodrigues de Azevedo, a Espanha de Inácio de Loyola, a Itália de Cláudio Acquaviva deram muitos companheiros para a missão entre fiéis. A França viu nascer a Congregação da Missão, de S. Vicente de Paulo, e tanto esta sociedade de vida apostólica como a Societas Jesu desenvolveram uma profícua atividade nas missões internas madeirenses num período nacionalmente conturbado para a vida cristã, em geral, e consagrada, em particular, como foi o do Liberalismo e da Primeira República.     Héctor Figueira (atualizado a 05.02.2017)

Religiões

sintaxe

    Variação sintática em variedades do português A investigação sobre a variação no domínio da sintaxe do português, sobretudo nas suas variedades europeias, ou Português Europeu (PE), não tem merecido a atenção dos linguistas. Como sublinha Ernestina Carrilho, “As informações disponíveis sobre aspetos da sintaxe do PE dialetal são, assim, normalmente escassas e encontram-se, em grande parte, dispersas em muitos trabalhos monográficos” (CARRILHO, 2003, 19), ocupando um lugar muito marginal nos trabalhos dialetológicos. Assinale-se, a título de exemplo, as poucas páginas consagradas à sintaxe por Leite de Vasconcelos na sua tese de doutoramento Esquisse d'une Dialectologie Portugaise, de 1901 (VASCONCELOS, 1987, 121-122), obra de referência na dialetologia portuguesa, ou ainda a ausência de critérios de tipo sintático na caracterização sistemática de dialetos portugueses proposta por Manuel de Paiva Boléo e Maria Helena Silva (1961) e por Luís Filipe Lindley Cintra (1971). A investigação em variação sintática tem sobretudo privilegiado o contraste entre variedades nacionais do português, o PE e o Português do Brasil (PB), não só no âmbito da Teoria da Variação e da Mudança Linguística, proposto no clássico artigo de Uriel Weinreich, William Labov e Marvin Herzog (1968), “Empirical Foundations for a Theory of Language Change”, pioneiro da sociolinguística variacionista, mas também na perspetiva do Modelo de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1981) ou doutros modelos compatíveis com os pressupostos teóricos da Gramática Generativa. Os principais fenómenos que têm chamado a atenção de investigadores portugueses e brasileiros encontram-se na secção “Colóquio Português Europeu/Português Brasileiro: Unidade e Diversidade na Passagem do Milénio”, integrada no volume dedicado às Actas do XVI Encontro da APL (CORREIA e GONÇALVES, 2001), e prendem-se, entre outros, com o parâmetro do sujeito nulo (BARBOSA et al., 2001, 539-550), as estratégias de realização de objeto direto (KATO e RAPOSO, 2001, 673-686), o artigo antes de possessivo (BRITO, 2001, 551-575), as construções relativas (CORRÊA, 2001, 615-626), a concordância verbal com a gente (COSTA et al., 2001, 639-656) e o uso do gerúndio (NETO e FOLTRAN, 2001, 725-735). O primeiro trabalho de referência sobre sintaxe dialetal, sob o título de “Aspectos da Sintaxe do Português Falado no Interior do País”, foi realizado por João Malaca Casteleiro (CASTELEIRO, 1975), a partir de uma amostra de dados de português falado coletados no âmbito do projeto corpus Português Fundamental (NASCIMENTO et al., 1987). O seu estudo focaliza-se, entre outros aspetos sintáticos, na estrutura da frase e na sintaxe verbal, mais especificamente nos usos dos tempos e modos verbais, e permite observar algumas tendências da sintaxe do português falado por 45 informantes com nível baixo de escolaridade (4.ª ano do ensino básico) ou analfabetos, de oito distritos do interior de Portugal Continental, tais como o uso do “gerúndio precedido de em, isto é, em + gerúndio. [...] com valor e é muito utilizada na linguagem popular”, como em “Entra às nove, e em sendo aí meia-noite, uma hora, tem ali cama, vai-se deitar (Rececionista de um hotel, instrução primária, de Beja, R-297)” (CASTELEIRO, 1975, 62), ou ainda o recurso de “frases simples justapostas, sem coordenação explícita [...]” (Id., Ibid., 64) e da repetição como forma de se fazerem entender, sendo a frase passiva pouco utilizada. No que se refere à sintaxe do verbo, são de referir o uso frequente dos pronomes pessoais, as formas sujeito, com os verbos, embora tal não seja necessário, uma vez que no português as desinências verbais fornecem a informação relativa às categorias gramaticais de pessoa/número, como em “Mas nós temos a impressão que nem toda a gente se adapta ao nosso ambiente, porque felizmente nós temos aqui um ambiente bom (Bordadora, 4ª classe, Castelo Branco L-183)” (Id., Ibid., 65), ou ainda o uso de a gente com o verbo na 1.ª pessoa do plural, sobretudo no Sul do país, como em “A gente não tivemos festa, andamos de luto (Trabalhadora rural, analfabeta, de Sta Suzana, Évora, Q-42)” (Id., Ibid.). Os resultados deste estudo são, segundo o autor, “apesar da exiguidade da amostragem, [...] no domínio sintático, [...] pertinentes” (Id., Ibid., 58). O autor chama ainda a atenção para algumas características linguísticas de falantes pouco instruídos, cuja fala “não é nem mais pobre, nem mais rica do que a dos falantes média ou altamente alfabetizados. É apenas diferente em vários aspetos da organização das estruturas sintácticas. [...]. As dificuldades de comunicação só surgem – e surgem nos dois sentidos – quando há intercâmbio entre falantes de meios sociais diferentes. Neste aspeto, tanto tem que aprender o falante altamente alfabetizado com o pouco ou nada alfabetizado, como vice-versa. A linguagem de uns e doutros tem, por conseguinte, o mesmo valor linguístico e deve ser igualmente descrita pela Gramática” (Id., Ibid., 74). Merece igualmente destaque a publicação de João Andrade Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa (PERES e MÓIA, 1995), na qual os autores selecionam seis áreas críticas do português contemporâneo a partir da análise de material linguístico retirado de uma amostra de textos jornalísticos produzidos entre 1986 e 1994. As áreas selecionadas, nas quais se observa o uso de variantes não normativas, são indicadas em (1), seguidas de alguns exemplos: 1) a. estruturas argumentais: e.g., “supressão de argumentos”, como em “Desta vez atuaram no Porto, espancando um jovem negro até ficar inconsciente, colocando posteriormente sobre uns carris da linha de comboio” [Diário de Lisboa, 24/11/1989, p. 10] vs. “Desta vez atuaram no Porto, espancando um jovem negro até ficar inconsciente, e colocando-o posteriormente sobre uns carris da linha de comboio”[versão padrão proposta] (PERES e MÓIA, 1995, 60); b. construções passivas: por exemplo, “supressão de preposição”, como em “A nova onda chama-se Peugeot 309 Chorus. Uma onda fácil de entrar (apenas 1.460 contos) e agradável de estar” [Expresso, 31/12/1988, p. C-7 (publicidade)] vs. “A nova onda chama-se Peugeot 309 Chorus. Uma onda em que é fácil entrar (apenas 1.460 contos) e agradável estar” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 233); c. construções de elevação: como em “As conclusões deste estudo estavam previstas virem a ser apresentadas ainda no decorrer deste mês […]” [O Independente, Dinheiro, 23/12/1993, p. 5] vs. “Estava previsto as conclusões deste estudo virem a ser apresentadas ainda no decorrer deste mês […]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 266); d. orações relativas: e.g., “supressão de preposição de constituinte relativo”, como em “Os temas que os portugueses gostam [...]” [O Jornal Ilustrado, 31/3/1989, p. 35] vs. “Os temas de que os portugueses gostam [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 290); e. construções de coordenação: e.g., “supressão de constituintes relativos”, como em “[…] é o caso de Aspects of Love, que estreou-se no mês passado em Londres e já foram vendidos cinco milhões de libras de bilhetes [...]” [Europeu, 18/5/1989, p. 24] vs. “[…] é o caso de Aspects of Love, que se estreou no mês passado em Londres e de que já foram vendidos cinco milhões de libras de bilhetes [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 413); f. concordâncias: como em “Desta vez coube-nos em sorte três novelas de Mateus Maria Guadalupe [...]” [O Jornal Ilustrado, 12/5/1989, p. 20] vs. “Desta vez couberam-nos em sorte três novelas de Mateus Maria Guadalupe [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 453). Cerca de 20 anos depois deste texto de referência, o projeto CORDIAL-SIN (Corpus Dialectal para o Estudo da Sintaxe), coordenado por Ana Maria Martins, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL), vem dar ênfase à investigação em variação sintática no PE. Iniciado em 1999, este projeto visa estudar a variação sintática dialetal do PE, com recurso a dados empíricos, no âmbito da Teoria de Princípios e Parâmetros da Gramática Generativa. Para tal, foi constituído um corpus anotado de PE (CARRILHO e MAGRO, 2010), cuja extensão atual é de cerca de 600.000 palavras (70 horas de gravações que incluem um conjunto geograficamente representativo (42 pontos) de excertos de discurso livre e semi-dirigido). Estes dados foram selecionados a partir do arquivo sonoro do CLUL, construído ao longo de 30 anos, contendo no total cerca de 4500 horas de gravações, obtidas em mais de 200 localidades do território português, no âmbito dos projetos ALEPG (Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza, coord. de João Saramago), ALLP (Atlas Linguístico do Litoral Português, coord. de Gabriela Vitorino), ALEAç (Atlas Linguístico-Etnográfico dos Açores, coord. de João Saramago) e BA (Fronteira Dialectal do Barlavento do Algarve) (SEGURA, 1988). O desenvolvimento de uma área de interesse como a da descrição sintática do português trouxe, ao longo das duas últimas décadas, “avanços relevantes no conhecimento empírico dos dialetos e da variação sintática que as línguas naturais apresentam” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 125), e tal deve-se em grande parte ao projeto CORDIAL-SIN. Este recurso permitiu observar a dimensão geográfica da Sintaxe Dialetal, nomeadamente a distribuição geográfica de algumas construções sintáticas não-padrão do PE (CARRILHO e PEREIRA, 2011 e 2013). Para além destes trabalhos, há a registar, no domínio da sintaxe do gerúndio, e com recurso a dados do CORDIAL-SIN e a monografias dialetais, a presença da variante flexionada, numa área relativamente extensa do Sul de Portugal Continental e, pontualmente, no arquipélago dos Açores (LOBO, 2000, 2001, 2002 e 2008), de que são dados alguns exemplos a seguir, retirados de LOBO (2000): 2) a. orações adjuntas modificadoras da frase sem conector: “Sendem dois, são dois feixes, sendem quatro, são quatro feixes. (Odeleite, in Cruz (1969))”; “Tu querendos, podemos namorar às descondidas. (Monte Gordo, in Ratinho (1959))”. b. orações adjuntas introduzidas por preposição em (ou ende): “vendem a pessoa assim {pp} ou com uma idade {pp} [AB|ou, ou] ou mal ou qualquer coisa, {pp} uns têm consciência, outros não têm. (Cordial, PAL7)”; “Em sendem crescidos, levo-os a Lisboa. (Baixo Alentejo, in Delgado (1951))”. c. orações adjuntas introduzidas por advérbios: “Onde é que eles mesmo /trabalhandem/ /trabalhando/, em ganhando o dinheiro, podiam semear alguma coisinha para eles. (Cordial, PAL11)”. d. orações relativas livres introduzidas por onde e quando: “Onde estando a menina está alegria. (Nisa, in Carreiro (1948))”; “Quando ele estando demais, já cheira a azedo. (Cordial, PAL30) (27)”. Por fim, merece ser sublinhado o trabalho realizado por Eva Arim, Maria Celeste Ramilo e Tiago Freitas, do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), publicado em 2004, a partir de dados retirados do corpus Rede de Difusão Internacional do Português: rádio, televisão e imprensa (REDIP) (que contempla materiais de fala produzidos na rádio, televisão e imprensa, em Portugal, em 1998), sobre construções relativas em PE. Este trabalho põe em evidência o uso de construções relativas não-padrão nos meios de comunicação social portugueses, algo que já tinha sido observado para o PB. Com efeito, esta variedade, e de acordo com o trabalho de Marcos Bagno (2001), referido pelos autores, cujos resultados tiveram por base o corpus de PB falado do Projeto NURC (Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro) aponta para o uso de uma percentagem elevada de relativas não-padrão (79,5 %), com a seguinte distribuição: variante relativa cortadora, com supressão da preposição (94 %) e variante relativa resuntiva, com marcação não-padrão do caso do constituinte relativo (6 %). O mesmo autor mostra que na língua escrita, com base em material jornalístico, a percentagem de variantes não-padrão se mantém elevada (94 %). Tal como no PB, observa-se o uso de variantes de relativas não-padrão em PE, sendo a cortadora a mais frequente, com 59 % no registo oral, mas apenas 3 % no registo escrito, a seguir ilustrado, com dados retirados da publicação: 3) a. Relativa não-padrão (cortadora), oral: “A linha de crédito que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares” [Noticiário, RDP]; padrão: “A linha de crédito de que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares”; “O audiovisual também está neste conjunto que eu chamo multimédia e comunicações interativas” [Dinheiro Vivo, RTP2]; padrão: “O audiovisual também está neste conjunto a que eu chamo multimédia e comunicações interativas”; “São passos no sentido daquilo que se chama mais união política” [Noticiário, RDP]; padrão: “São passos no sentido daquilo a que se chama mais união política”; b. Relativa não-padrão (cortadora), escrita: “Os investigadores encontraram quatro linhagens diferentes que chamaram A, B, C e D” [Expresso, secção de ciência e tecnologia]; padrão: “Os investigadores encontraram quatro linhagens diferentes a que chamaram A, B, C e D”; “O diretor de O Jogo aumentou de dois para quatro pontos a vantagem que dispõe sobre o trio perseguidor” [Expresso, secção de desporto]; padrão: “O diretor de O Jogo aumentou de dois para quatro pontos a vantagem de que dispõe sobre o trio perseguidor”. Já a variante resuntiva é a menos produtiva e mais marcada. Como afirmam os autores, “das duzentas e sessenta e cinco orações relativas encontradas no corpus, apenas as duas que se seguem são claramente resuntivas” (ARIM et al., 2004): 4) Relativa não-padrão (resuntiva), oral: “É sobretudo a síntese de tudo aquilo e das pessoas que viveram à minha roda e que eu consegui dar-lhes forma” [“Acontece”, RTP2]; padrão: “É sobretudo a síntese de tudo aquilo e das pessoas que viveram à minha roda e que eu consegui dar forma”; “Pôr em causa um princípio que antes não pensavam muito nele” [Debate sobre o Referendo sobre a Regionalização, RDP]; padrão: “Pôr em causa um princípio em que antes não pensavam”. Variação sintática e sintaxe não-padrão nas variedades do português falado na Madeira Os estudos descritivos e sistemáticos sobre variação sintática da variedade do Português falado na Madeira (doravante, PFM), sobretudo sobre a “Variedade do Português Europeu falada no Funchal” (ou PE-Funchal), são muito recentes, como sublinhado por Aline Bazenga (BAZENGA, 2014b). As principais referências surgem após as coletas de dados empíricos realizadas por investigadores do CLUL nos anos 70 e 80 do séc. XX e no início do séc. XXI. Projeto CORDIAL-SIN (CLUL) O projeto CORDIAL-SIN, dedicado ao estudo da variação sintática, permitiu a reflexão e estudo de fenómenos variáveis do PE nos quais surgem algumas particularidades em uso na variedade do PFM. De entre os trabalhos publicados no âmbito deste projeto, merecem especial atenção aqueles que mostram a existência de algumas construções não sintáticas mais confinadas à Madeira e aos Açores, tais como os usos de (i) ter existencial, ilustrado pelo exemplo de uma ocorrência deste tipo num informante do Porto Santo, “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e (eu) não via a casa da minha mãe! (PST)” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 129); (ii) as construções com possessivo pré-nominal sem artigo, como no exemplo a seguir, de um informante de Câmara de Lobos: “Ah, meus filhos já vieram daí para cá. (CLC)” (Id., Ibid., 132); e (iii) com o uso do gerúndio, precedido de verbos aspetuais como “estar”, “ficar”, “andar”, como, por exemplo, no seguinte enunciado produzido por um falante madeirense do Porto Santo: “[…] toda a gente estava desejando de chegar ao Natal, que era para comer massa e arroz e um bocadinho de carne” (Id., Ibid., 130). Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias (CLUL-Portugal e UFRJ-Brasil) O estudo da variação sintática na variedade madeirense tem vindo a desenvolver-se essencialmente desde 2008, data de início do Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias, projeto internacional coordenado por investigadores do CLUL (Portugal) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (Brasil) e financiado pelo CAPES/GRICES (Brasil), mais concretamente a partir de 2010, data em que a Universidade da Madeira (UMa) passa a integrar o projeto, através da investigadora do CLUL e docente desta Universidade Aline Bazenga. Os primeiros estudos variacionistas sobre sintaxe do português insular, a partir de dados da variedade falada no Funchal, capital do arquipélago da Madeira, começaram a ser publicados a partir desta data. Os trabalhos publicados enquadram-se na perspetiva variacionista e laboviana da variação, na qual a heterogeneidade sistemática observada nos sistemas linguísticos é condicionada por fatores sociais. Para o corpus Concordância-Funchal, foram realizadas as primeiras entrevistas sociolinguísticas de informantes madeirenses do Funchal. O projeto de constituição do corpus, inicialmente previsto para obtenção de dados de falantes insulares e urbanos, tem vindo a ser alargado a outros pontos de localização na ilha da Madeira (Calheta/Paul do Mar, Porto Moniz, Funchal, Santa Cruz, Boaventura, Ribeira Brava, Caniçal, Santana e Câmara de Lobos), com vista à constituição de um corpus Madeira. Em 2014, o corpus Concordância-Funchal passa a ser designado por corpus Sociolinguístico do Funchal (CSF) e integra-se no Corpus Madeira, que inclui amostras de outras localidades insulares. No mesmo ano, o CSF contém dados de 60 informantes, num total de 34 horas e 45 minutos de gravações. Os informantes foram escolhidos em função dos critérios sociais defendidos por Labov, atendendo às variáveis idade, género, localidade e nível de escolaridade. Os dados recolhidos têm sido objeto de estudo e analisados em trabalhos de investigadores, não só por Aline Bazenga, em publicações, comunicações e trabalhos de alunos sob sua orientação, como também por Juliana Vianna, em Semelhanças e Diferenças na Implementação de a gente em Variedades do Português (dissertação de doutoramento, defendida em 2011), Lorena Rodrigues, sobre os pronomes e clíticos em variedades do português (dissertação de doutoramento, em curso em 2016), e Catarina Andrade, em Crenças, Perceção e Atitudes Linguísticas de Falantes Madeirenses (dissertação de mestrado, defendida em 2015), todos membros do Centro de Investigação em Estudos Regionais e Locais da Universidade da Madeira (CIERL-UMa), dirigido por Paulo Miguel Rodrigues. Construções sintáticas não-padrão em uso na Madeira A investigação realizada no âmbito dos projetos anteriormente referidos permitiu aprofundar a investigação em torno de algumas áreas da gramática do PE, para as quais os falantes madeirenses mais contribuem, através de usos de variantes sintáticas não-padrão. Assim, para além da variante com gerúndio em construções aspetuais com o verbo estar e do uso de possessivo pré-nominal sem artigo, são de assinalar, nas construções existenciais, o uso da variante com o verbo ter e, nas construções pronominais, o uso de a gente e variantes com ele e lhe em função objeto direto (OD), entre outras particularidades ligadas à sintaxe posicional dos clíticos. São de referir ainda as variantes de terceira pessoa do plural (PN6) na morfologia verbal, em vogal [u], com ou sem traço de nasalidade, e em ditongo nasal [ɐ̃j̃] alargado a outros paradigmas verbais, o que conduz à regularização das classes temáticas dos verbos no presente do indicativo e no pretérito imperfeito, para além da variante em vogal, isomorfa de terceira pessoa do singular (PN3), cuja produção parece estar motivada por fenómenos de fonética sintática. Muitos destes fenómenos, que serão apresentados de modo mais sucinto nas secções seguintes, são referidos no trabalho de Elisete Almeida, publicado em 1998, sobre as “Particularidades dos Falares Madeirenses, na Obra de Horácio Bento de Gouveia”, elaborado a partir da recolha de dados retirados da escrita de Horácio Bento de Gouveia, escritor madeirense que, tendo a perceção do uso de algumas variantes não-padrão, sobretudo por informantes menos escolarizados da ilha da Madeira, procurou integrá-las na caracterização de personagens do povo nos seus romances. Construção com possessivo pré-nominal sem artigo O exemplo atestado em Câmara de Lobos “Ah, meus filhos já vieram daí para cá.” (CLC), e citado por Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 132), ilustra a variante da construção-padrão, com realização do artigo definido a preceder o possessivo, como em “Ah, os meus filhos já vieram daí para cá.”. As autoras acima referidas, apesar de observarem a realização da construção sem artigo em várias localidades situadas em Portugal continental, reconhecem “um padrão de distribuição geográfica predominante na área insular, em especial no arquipélago da Madeira” (Id., Ibid.), sobretudo quando os possessivos são seguidos de nomes de parentesco. Outras ocorrências desta variante não-padrão são citadas por Aline Bazenga (BAZENGA, 2011c), tendo por base uma amostra do CSF: 5) a. tava eu tua avó e teu avô [padrão: a tua avó e o teu avô] tava-se ali sentades (FNC11_MC1.1 159-60); b. mas mê maride [marido] [padrão: o meu marido] não podia ajudar em nada (FNC11_MC1.1 200); c. minha mulher [padrão: a minha mulher] teve seis filhes [filhos] (FNC11_HC1 207); d. salete _mas [mais] minha prima [padrão: a minha prima] (FNC11_MA1 016); e. quande mê [meu] pai faleceu [padrão: o meu pai] mê [meu] pai [padrão: o meu pai] foi tratado pior que um cão (FNC11_MB2 079-80). Construção aspetual estar + gerúndio Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (CARRILHO e PEREIRA, 2011), com recurso a dados de informantes madeirenses integrados no corpus CORDIAL-SIN, observam também, em algumas zonas de Portugal Continental, sobretudo nas variedades dialetais centro-meridionais e insulares, o uso da variante da construção aspetual com o verbo “estar” seguido de gerúndio, para além da variante-padrão, com verbo no infinitivo. Na Madeira, esta construção está também atestada, conforme o exemplo a seguir indicado e retirado deste trabalho: 6) “[…] toda a gente estava desejando [padrão: estava a desejar] de chegar ao Natal, que era para comer massa e arroz e um bocadinho de carne (PST)” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 130). A propósito desta construção e do seu uso no PFM, Elisete Almeida crê que esta se deve ao contacto linguístico e cultural da comunidade madeirense com os ingleses, a um processo de transferência linguística da construção inglesa “it’s rainning” para “está chovendo” (ALMEIDA, 1999, 75). Construção com ter existencial A construção com ter existencial tem sido referida como uma variável que permite contrastar duas variedades normativas do português, PE e PB, como nos exemplos a seguir indicados e retirados de Maria Helena Mira Mateus (2002): 7) a. PB: tem fogo naquela casa; PE: há fogo naquela casa. b. PB: no baile tinha muitos homens bonitos; PE: no baile havia muitos homens bonitos. Yvonne Leite, Dinah Callou e João Moraes observavam que o “uso de ter por haver tem sido objeto de estudo sistemático e costuma-se dizer que essa substituição, em estruturas existenciais, constitui uma das marcas que caracterizam o português do Brasil [sublinhado nosso], afastando-o do português de Portugal e aproximando-o do de Angola e Moçambique” (LEITE et al., 2003, 101). Muito estudada no âmbito do PB (VIOTTI, 1999; MATTOS e SILVA, 2002; DUARTE, 2003; LOPES e CALLOU, 2004; CALLOU e DUARTE, 2005; AVELAR, 2006a, entre muitos outros), só recentemente esta construção foi objeto de análise no âmbito do PE. O artigo de Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (2011), com base no CORDIAL-SIN, mostra que esta construção está presente em variedades do PE, nos arquipélagos dos Açores e Madeira (fig. 1): Fig. – Mapa com a distribuição de “ter” impessoal e existencial no CORDIAL-SIN (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 130). Trata-se de uma construção em que o verbo ter é usado não com o seu valor de posse, como na gramática da variedade normativa do PE, mas sim como verbo existencial, em vez da variante normativa com haver, fenómeno que se encontra ilustrado através dos exemplos, em (7), retirados deste trabalho: 7) a. “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e não via a casa da minha mãe! (PST16)”; b. “Mas tinha muitos moinhos por aqui fora. (CLH03)” (Id., Ibid., 129). Aline Bazenga (BAZENGA, 2012a, 2012b), com base no CSF, confirma a vitalidade desta construção: 8) a. “nunca tive oportunidade só_só italiano lá em baixo no centro onde tem [padrão: há] um italiano espetacular. (FNC11_HA1)”; b. “Porque no Continente tem as discotecas onde vai toda a gente e tem [padrão: há] as discotecas que são escondidas só vai quem quiser. (FNC11_HA2)”; c. “no meu trabalho onde eu trabalho tem [padrão: há] muita gente de idade e há velhotes que têm pensões. (FNC11_MB2)”; d. “tem [padrão: há] bastantes colégios aqui na Madeira. (FNC11_MA3 111-2)”; e. “tem [padrão: há] pessoas com estudos e não têm trabalho. (FNC11_MC1.2 177)”; f. “na rua dos ilhéus onde tem [padrão: há] dez_vinte prédios de apartamentos. (FNC_CH 3.1 102)”. Em trabalhos de mestrado realizados em 2014, sob a orientação de Aline Bazenga, foi possível realizar um estudo sociolinguístico, recorrendo a duas amostras de seis informantes cada. Estas duas amostras, uma com informantes pouco escolarizados (TER-Funchal 1) e a outra com informantes licenciados (TER-Funchal 3), permitiram obter os primeiros dados quantitativos e configurar a variação no domínio das construções existenciais na variedade do PFM. A seguir (cf. figs. 2 e 3), são apresentados os resultados globais obtidos, em termos de percentagens: [table id=84 /] Estes resultados permitem concluir que o uso da variante construção existencial com ter é frequente na variedade popular do Funchal, i.e., junto de informantes pouco escolarizados e, por esse motivo, com menor contacto com a variante-padrão veiculada pela escola, sobretudo do sexo masculino (63,70 %) e mais jovens (faixas etárias A e B, com 68,3 % e 53,8 %, respetivamente). É, também, de salientar a preferência deste grupo de falantes pelo uso do verbo ter neste tipo de construções com o verbo no presente do indicativo (58,5 %) e quando seguido de um sintagma nominal (SN) cujo nome (N) apresenta um traço semântico [+ animado] (62,3 %). Os dados deste tipo de informantes contrastam com os produzidos por informantes com formação universitária e maior contacto com a variante-padrão (fig. 3). Neste conjunto, observa-se uma percentagem reduzida de ocorrências da variante com ter. [table id=85 /] A variante com ter com valor existencial estava presente na língua portuguesa nos sécs. XV e XVI, em concorrência com a variante em haver, primeiro com valor de posse, mas também com valor existencial, conforme exemplos dados em (9) e em (10): 9) valor de posse (dados do séc. XV) a. ter: “quanta herdade eu ey” (MATTOS e SILVA, 1997, 270); b. haver: “Ele non pode aver remedio” (MATTOS e SILVA, 1989, 591). 10) valor existencial (dados do séc. XVI retirados de VIOTTI (1988,46)) a. haver: “Hum dos nobres que hy ha ca este aiuda os dous” (AX 120.5); “Avya hi hua donzella muy fremosa” (CGE 93.12/13); “Ouve hy muitos mortos e feridos” (CGE 94.17); b. ter: “Antre esta coroa darea e esta ilha tem canal pera poder sahir” (MNS 314.2); “Para cima tendo dous bons canais hum aloeste e outro ao leste” (MNS 324.9); “Na sua ponta da banda da sua tem hua terra alta” MNS 326.19. De acordo com Evani Viotti (1988) e Rosa Virgínia Mattos e Silva (1989), a percentagem de uso da variante com ter (42 %) em construções de posse no séc. XV já se aproximava da variante com haver. No séc. XVI, o uso de ter de posse (86 %) suplanta o de haver, começando também a ser usado em construções impessoais com valor existencial. Nas variedades do PE continental, observa-se uma fixação nos usos destes dois verbos: o verbo ter em construções de posse e o verbo haver em construções existenciais impessoais, o que não ocorre de modo categórico na gramática de alguns falantes madeirenses. Nas variedades insulares do PE e nas variedades extraeuropeias do português, manteve-se o uso conservador da variante ter existencial, com maior ou menor frequência, segundo as situações discursivas e a influência exercida por fatores linguísticos e extralinguísticos anteriormente referidos. Construções pronominais Neste domínio da gramática do português, alguns dos fenómenos que mais têm sido estudados na variedade do PFM prendem-se com (i) as diferentes estratégias de marcação da função OD e as construções sintático-semânticas com o pronome a gente. Estratégia de marcação de OD de terceira pessoa: pronome ele, clítico lhe e OD nulo – O CSF permitiu observar o uso de variantes não-padrão (BAZENGA, 2011c), tais como a variante com o pronome ele, em (11), e a variante com o clítico lhe, em (12): 11) a. “ponho ele [ponho-o] a ver bonecos. (FNC11_MA1 243)”; b. “meto ele [meto-o] a andar de bicicleta. (FNC11_MA1 243)”; c. “e depois o marido deixou ela [deixou-a] e ficou na quinta. (FNC11_MC1.1 453)”. 12) a. “Tento-lhe explicar e lhe informar [informá-lo] sobre as coisas. (FNC11_HA1426)”; b. “Levo-lhe [levo-o] à escola. (FNC11_MA1 006)”; c. “eu não gostava dele nem lhe [nem o podia] ver à frente. (FNC11_MA1 204-5)”. Outras estratégias utilizadas são a variante em OD nulo, em (13), e a repetição lexical, em (14): 13) a. “faço o jantar sirvo [sirvo-o] à família. (FNC11_MA1:010)”; b. “a minha licenciatura termina-se antes do tempo pretendido_ tive que me enquadrar no bolonha e tive que [a] acabar mais cedo – (FNC-MA3.1:013)”. 14) a. “gostava de comprar uma mota_ e os meus pais detestam [detestam-nas] motas – (FNC-HA1:004)”; b. “queria a minha roupa vestia a minha roupa [vestia-a]. (FNC11_MA1:067)”. A seguir, apresentam-se os resultados de estudos quantitativos realizados com amostras retiradas do CSF – OD-Funchal-A(jovens), OD-Funchal-C(idosos) e OD-Funchal-1(pouco escolarizados) –, cada uma composta por seis informantes, que permitem observar as principais tendências no que se refere às estratégias de marcação de OD, por falantes inseridos numa comunidade urbana e insular do PE, o Funchal, capital da ilha da Madeira.   Fig. 4 – Gráfico OD-Funchal-A(jovens) (NÓBREGA e COELHO, 2014).     Fig. 5 – Gráfico OD-Funchal-C(idosos) (CAIRES e LUIS, 2014).       Fig. 6 – Gráfico OD-Funchal-1 (pouco escolarizados) (AVEIRO e SOUSA, 2014).     Os resultados mostram que o uso do clítico em função OD (-o, -a, -os, -as e as suas variantes contextuais, -no, -na, -nos, -nas e -lo, -la, -los, -las), e que corresponde à variante-padrão, é a estratégia, logo a seguir à variante com lhe (9 % (fig. 4), 2 % (fig. 5) e 4,2 % (fig. 6)), menos utilizada pelos falantes do Funchal, quer sejam jovens (cf. fig. 4, com 16 %), idosos (cf. fig. 5, com 18,2 %) ou com nível de escolaridade baixo (cf. fig. 6, com 2,8 %). As estratégias preferenciais traduzem-se pelo recurso à repetição lexical e à não-marcação desta função ou OD nulo. O uso da variante com ele apresenta valores mais expressivos quando se trata de falantes mais idosos (16,4 %) e pouco escolarizados (19,6 %); já a variante em -lhe regista a sua maior percentagem de uso na amostra dos seis informantes jovens (9 %). O fator “nível de escolaridade” (que categoriza os falantes em três níveis: com formação até ao ensino básico (nível 1), secundário (nível 2) e superior (nível 3)) parece ser aquele que maior incidência tem no uso da variante-padrão com clítico -o. A título de exemplo, podemos observar os resultados obtidos quando se tem em conta este fator na amostra de informantes mais idosos (fig. 7), no gráfico a seguir apresentado:   Fig. 7 – Gráfico OD-Funchal-C(idosos) e variável nível de escolaridade (CAIRES e LUIS, 2014).     Os falantes idosos mais escolarizados (com estudos do ensino superior) não recorrem, por exemplo, à variante com ele, muito utilizada por aqueles que têm poucos estudos (22 %); inversamente, utilizam a variante-padrão (25 %), em contraste com o uso pouco significativo (5,6 %) por parte de falantes menos escolarizados. Um estudo posterior, de Lorena Rodrigues (RODRIGUES, 2015) e da mesma autora juntamente com Aline Bazenga (RODRIGUES e BAZENGA, 2016), realizado junto de 412 estudantes da UMa, permite observar a forma como as variantes em ele e em -lhe, do PFM, sobretudo na variedade do Funchal, ou PE-Funchal, são avaliadas (fig. 8):   Fig. 8 – Gráfico com os resultados globais da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016).     A fig. 8 mostra que a variante não-padrão em ele é avaliada como de menor prestígio, sendo também maior o número de informantes que admite utilizar a variante em -lhe na oralidade. Relativamente à variante -lhe, dos 29 % que manifestam a sua discordância com a hipótese 1, a de se tratar de uma variante errada, e declaram não a usar nem na fala nem na escrita, são os jovens do sexo masculino aqueles que mais a aceitam (31 %), com 12 % dos inquiridos a afirmar a sua utilização na fala e na escrita e 8 % a considerar que se trata de uma variante correta (fig. 9).   Fig. 9 – Gráfico com os resultados da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016): fator social (género dos inquiridos).   A percentagem de aceitação desta variante aumenta quando estão reunidas duas propriedades linguísticas de N anafórico: nome [+humano] e do género masculino (vi-lhe [o Pedro] na missa). Assim, quando reunidas estas condições, 15 % dos inquiridos afirma utilizar esta variante na oralidade, em situações do discurso informais, e 11 % considera-a como sendo correta. Fig. 10 – Gráfico com os resultados da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016): fatores linguísticos (traço semântico [humano] e género de N).     Estes resultados parecem configurar uma ainda ténue distribuição na perceção social das duas variantes: a variante ele é mais estigmatizada pela jovem elite insular e a variante -lhe parece estar a progredir em termos de aceitabilidade. A variante a gente, forma estigmatizada e alternante com nós, é também muito usada na oralidade. Ambas as variantes podem denotar uma entidade plural, mas requerem, do ponto de vista normativo, formas verbais na 3PS (terceira pessoa do singular, no caso de a gente) e 1PP (primeira pessoa do plural, no caso de nós). No entanto, os falantes utilizam muitas vezes na oralidade uma estratégia regularizadora, transferindo os traços de nós para a variante a gente, de que resulta, por exemplo, a gente vamos. O trabalho de Juliana Vianna (VIANNA, 2011), intitulado Semelhanças e Diferenças na Implementação de a Gente em Variedades do Português, com recurso aos dados coletados em 2010 para o Projeto Concordância (UFRJ – CLUL), que integram o CSF atual, permite observar que, dentro das variedades do PE, o uso de a gente adquire maior expressão na variedade falada no Funchal (fig. 11). [table id=86 /] Este facto ganha ainda maior visibilidade quando considerados alguns fatores sociais, nomeadamente o fator nível de escolaridade (fig. 12) e género (fig. 13) dos informantes.     Fig. 12 – Tabela com os resultados dos usos das variantes a gente e nós em variedades do PE, atendendo ao fator nível de escolaridade dos informantes (VIANNA, 2011). Os resultados mostram que a variante a gente é utilizada pelos setores mais marginalizados da sociedade insular, ou seja, maioritariamente por informantes com um nível de escolaridade baixo (52 %) e do sexo feminino (51 %), gozando, por este motivo, de pouco prestígio social. Outra construção sintática não-padrão e na qual se encontra a forma pronominal a gente, estudada por Ana Maria Martins (MARTINS, 2009), encontra-se em (15), a seguir, com dados de um falante de Câmara de Lobos: 15) a. “Não sabem o que a gente se passámos aí. (CORDIAL-SIN. CLC)”; b. “Este pode ser a coisa que a gente se diz peixe-cavalo. (CORDIAL-SIN. CLC)”.   Este tipo de construções, designadas por “duplo sujeito”, observada nos dados do CORDIAL-SIN, cujos informantes obedecem a um perfil social específico (geralmente idosos, analfabetos e que nunca saíram da região onde nasceram, sendo por este motivo considerados mais autênticos), está muito presente na ilha da Madeira, embora não seja específica da variedade insular, como referido pela autora em nota de rodapé: “The double subject SE construction is found in the archipelagos of Azores and Madeira as well as in continental Portuguese. It is much more common in the Centre and South of Portugal than in the North (where nonetheless it is also attested). It is fully ungrammatical in standard EP and has gone totally unobserved by philologists and linguists who dealt with dialect variation in European Portuguese” [A construção de duplo sujeito SE pode ser observada nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, bem como no português continental. Esta é muito mais frequente no Centro e no Sul de Portugal do que no Norte. É totalmente agramatical no PE-padrão, tendo passado despercebida a filólogos e linguistas que trabalham a variação dialetal no Português Europeu] (Ibid.). O CSF fornece mais exemplos deste tipo de construção, o que atesta a sua vitalidade, que não se limita ao seu uso por parte de falantes de comunidade rurais ou piscatórias, mas também de uma comunidade urbana, como a do Funchal: 16) a. “eu ainda falo um pouco lá como a gente fala-se lá na Calheta. (FNC11_HA1152-3)”; b. “a gente pede-se o bilhete de identidade tira-se o nome tira-se tudo gravas e depois vão dormir. (FNC11_MC1.1 099)”; c. “e cada vez a gente ouve-se  mais falar sobre isso. (FNC-MA3.1 271)”. Variantes de terceira pessoa do plural no verbo em contexto de concordância verbal O estudo da aplicação variável da regra de concordância verbal de 3PP (ou PN6) é o fenómeno morfofonológico e sintático mais estudado na variedade do PE-Funchal, sendo possível observar algumas tendências, em termos quantitativos e qualitativos, no que se refere aos padrões de variantes em coexistência nesta variedade urbana e insular do PE. Em termos de resultados globais de realização da concordância verbal com PN6, incluindo produções padrão e não-padrão da marca de Pessoa e Número (PN) no verbo neste contexto, Aline Bazenga (BAZENGA, 2012b) registou, a partir de uma amostra de dados retirados do Corpus Concordância, 84 % de concordância, percentagem que se relaciona fundamentalmente com o facto de ter incluído ocorrências do tipo tem/têm e construções com o verbo ser antecedido de SN topicalizado. Num estudo posterior, Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA, 2013), recorrendo também a uma amostra do mesmo corpus, mas adotando critérios uniformizados, registaram um índice de concordância de 94,7 %, valor que se situa numa posição intermédia, quando comparado com os resultados obtidos nas outras amostras, tanto europeias, como brasileiras e africanas: 99,1 % (Oeiras) e 99,2 % (Cacém), as duas amostras do PE continental; 89,1 % (Copacabana) e 78,2 % (Nova Iguaçu), do PB; e 92,1 % na amostra de São Tomé. Estes índices gerais permitem observar o contraste entre variedades do português, quanto ao tipo de regra (LABOV, 2003): as variedades do PE continental caracterizam-se por apresentarem uma regra semicategórica de concordância de terceira pessoa do plural, enquanto as variedades não europeias exibem uma regra variável. A variedade do PE-Funchal apresenta um comportamento que se situa no limite entre uma regra semicategórica e variável. Fica patente também neste trabalho, tal como em outros estudos variacionistas da concordância verbal de PN6 (MONGUILHOTT, 2009; RUBIO, 2012; MONTE, 2012), que o conjunto de fatores em atuação nas variedades do PE parece obedecer a condicionamentos morfofonológicos (sândi externo, um fenómeno de fonética sintática que ocorre no encontro de duas palavras, envolvendo uma vogal ou consoante final de uma palavra e uma vogal ou consoante inicial da palavra que está imediatamente a seguir, como em “bebe bem”, com a seguinte alteração ['bɛbɨ 'bɐ̃j̃]  ['bɛ 'bɐ̃j̃], ou em “gosta da amiga”, ['gɔʃtɐ dɐ ɐ’migɐ]  ['gɔʃtɐ da'migɐ]) e sintático-semânticos do tipo genérico ou de natureza “universal” (sobretudo posição e tipo de sujeito), restrições que afetam as línguas, independentemente da sua tipologia, como referido no trabalho de Greville Corbett (CORBETT, 2000). No entanto, tanto no trabalho de Aline Bazenga (BAZENGA, 2012b) como no já referido de Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (RODRIGUES e BAZENGA, 2013), a variedade do PE-Funchal distingue-se das variedades urbanas do PE por apresentar um conjunto de padrões de variantes flexionais de terceira pessoa do plural mais rico, comparável com os dados de subvariedades rurais ou semiurbanas (MOTA et al., 2003; MOTA e VIEIRA, 2008; MOTA, 2013) ou da variedade de Braga, estudada por Celeste Rodrigues (RODRIGUES,2012). Com efeito, na variedade do Funchal, para além das variantes flexionais-padrão (falam), foi possível constatar o uso de variantes não-padrão, marcadas pela realização de (i) um ditongo nasal não conforme com a morfologia verbal-padrão (falem, ou variante -EM) e (ii) da vogal oral (comero) ou nasal (comerõ) (variantes -U), para além da variante em vogal oral, resultante da não realização do traço de nasalidade, isomorfa de PN3, observada, ainda que de forma pouco produtiva, nas variedades do PE continental e normalmente analisada como não contendo a marca de número exigida pelo contexto de concordância verbal de PN6 (fala). Variantes flexionais não-padrão em contexto de concordância verbal de PN6 – A comparação das variantes flexionais não-padrão de PN6 (-EM e -U) atestadas no CSF (VIEIRA e BAZENGA, 2013) com as ocorrências observadas em amostras das subvariedades rurais/semirrurais do PE continental (dialetos setentrionais e dialetos centro-meridionais), retiradas de corpora (PE1, BB e AA) referidos no trabalho de Celeste Rodrigues e Maria Antónia Mota (RODRIGUES e MOTA, 2008), revela alguma especificidade da variedade urbana insular, caracterizada por uma maior diversidade, no que se refere tanto ao número de variantes como ao dos paradigmas verbais. Nesta variedade, o pretérito imperfeito do indicativo é objeto de maior variação, não só em termos quantitativos, mas também qualitativos. As gramáticas de falantes madeirenses do Funchal incluem neste tempo verbal, para além da variante-padrão e a variante isomórfica de PN3, as variantes -EM e -U. Na fig. 14, onde consta o conjunto de variantes atestadas no Funchal no trabalho de Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA, 2013), é possível observar que, depois da variante de PN6-padrão, inequivocamente com a realização canónica da concordância verbal (85,7 %), a variante mais expressiva, em termos quantitativos, é a que corresponde à forma verbal com uma terminação em ditongo nasal “deslocada” do seu paradigma e estendida a outros, representada por -EM (8,2 %), logo seguida da variante em vogal oral, isomórfica de PN3, analisada no referido trabalho como de não aplicação da concordância verbal de PN6.   Variantes não-padrão em vogal oral = isomórfica de PN3 Variante não-padrão em –EM Variante não-padrão em –U Variantes-padrão N.º de oc. % N.º de oc. % N.º de oc. % N.º de oc. % 48 /914 5,3 % 75/914 8,2 % 8/914 0,9 % 783/914 85,7 %   Fig. 14 – Tabela com as variantes flexionais em contexto de concordância verbal PN6 (VIEIRA e BAZENGA, 2013). As duas variantes (-EM e -U) representam cerca de 9 % dos dados, ou seja, 83 em 866 ocorrências totais de marcação explícita da concordância verbal, nos dados analisados por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA 2013), e quase o dobro das realizações sem a marca de número de PN6 (5,3 %). A realização em [ɐ̃j̃], presente no paradigma do presente do indicativo dos verbos com vogal temática (VT) /e/ e /i/, estende-se aos verbos com VT /a/, estabelecendo uma convergência na marcação PN6 Este processo de nivelamento na marcação de PN6 é também observado nos paradigmas do pretérito imperfeito do indicativo e do pretérito perfeito do indicativo (fig. 15), ilustrados pelos exemplos atestados em (17)-(19).   Variante PN6 não-padrão Presente Ind. Pretérito Imperfeito Ind. Pretérito Perfeito Ind. Totais VT /a/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ -EM [ɐ̃j̃] 19 oc. 24 oc. 16 oc. 9 oc 4 oc. - 3 oc. 75 oc. Totais 19 49 7   Fig. 15 – Tabela com a variante flexional -EM não-padrão na variedade do Funchal (VIEIRA e BAZENGA, 2013). 17) Presente do indicativo a. “aqueles carres [carros] que andem [andam] de noite. (C1h)”; b. “os próprios portugueses massacrem [massacram] os outros.” (C2m). 18) Pretérito imperfeito do indicativo a. “tanto é qu’as minhas primas elas diziem [diziam]. (B1M)”; c. “eles me chamavem [chamavam] madeirense de segunda. (C2m)”. 19) Pretérito perfeito do indicativo a. “as casas caírem [caíram]. (C1m)”; b. “depois eles mandarem-me [mandaram-me] reformar. (C1h)”. Os paradigmas verbais do PE dispõem de duas formas para marcação de PN6, ambas ditongos nasais, [ɐ̃w̃] e [ɐ̃j̃], mas com distribuições distintas. No português-padrão, a variante [ɐ̃j̃] integra os paradigmas do presente do indicativo dos verbos com VT /e/ e /i/, os do presente do conjuntivo dos verbos com VT /a/ e os do futuro do conjuntivo e do infinitivo pessoal, no conjunto das três conjugações (verbos com VT /a/, /e/ e /i/). Observam-se ainda alterações nas realizações fonéticas dos radicais dos verbos pôr (no pretérito perfeito) e ter (no pretérito imperfeito), transcritas como em (20): 20) a. “ponhem [punham] em terra gastava no calhau. (C1h)”; b. “todos eles tenham [tinham] dom. (B2h)”. Estas alterações poderão estar condicionadas por uma combinatória de restrições, relacionadas com as alterações que sofrem as realizações fonéticas das vogais tónicas /u/ e /i/ na variedade madeirense, por um lado, e pela estratégia de regularização de radicais (p[o]nhem/p[o]r; t[e]nham/t[e]r), por outro. As variantes com ditongo de PN6 da não-padrão realizam-se maioritariamente em contextos sintáticos em que o sujeito expresso está anteposto ao verbo (53,3 % e 40/75 ocorrências). Também ocorrem em 45,3 % (34/75) em contexto de sujeito não expresso, sendo de registar apenas uma ocorrência com sujeito posposto. A realização desta variante não parece ser condicionada por esta variável sintática. O mesmo não acontece em amostras de localidades situadas na zona dos dialetos centro-meridionais do interior do PE analisados por Maria Antónia Mota, Matilde Miguel e Amália Mendes, nas quais “a realização de vogal nasal está relacionada com a presença de sujeito nulo, o que indica a necessidade de se aprofundar o estudo das relações entre o marcador de PN6 e o tipo de sujeito (no caso, uma ‘redução’ fonética, do tipo ditongo nasal > vogal nasal ou uma não ditongação da estrutura /vogal n/): 54 % das ocorrências estão em frases com sujeito nulo; 24 %, com sujeito nominal; 20 %, com sujeito pronominal” (MOTA et al., 2012, 172). Quando considerados os contextos fonéticos adjacentes (forma verbal seguida de palavra iniciada por vogal, consoante (C) nasal, consoante não nasal e de pausa), observa-se a seguinte distribuição das ocorrências (fig. 16):   Variante de PN6 não-padrão + vogal + C nasal + C não nasal Pausa # -EM [ɐ̃j̃] 30 oc. 8 oc. 25 oc. 12 oc.   Fig. 16 – Tabela com a variante flexional -EM não-padrão e contextos fonéticos adjacentes (BAZENGA, 2015b). Esta variante não parece ser sensível ao contexto fonético à sua direita. Na variedade geográfica do Funchal, o ditongo [ɐ̃j̃], forma “peregrina” ou de “empréstimo” aos verbos com VT /e/ e /i/ cuja realização se estende aos verbos com VT /a/, insere-se num padrão marcado pela uniformização do marcador de PN6 no verbo, nos paradigmas verbais do presente, pretérito imperfeito e pretérito perfeito do indicativo. As variantes com final verbal em -U atestadas, no total oito, incidem apenas sobre o pretérito imperfeito (fig. 17), todas de um informante da faixa etária (36-55 anos), do sexo feminino e com escolaridade básica: 21) a. “quando os meus pais moravo na casa”; b. “eles vinho brincare”; c. “alevantavo-se durante a noite cede”.     Variante PN6 não-padrão Presente Ind. Pretérito Imperfeito Ind. Pretérito Perfeito Ind. Totais VT /a/ VT /e/ VT /i/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ -U [u] ou [ũ] - 5oc. 1 oc. 2 oc. - - - 8 oc.   Fig. 17 – Tabela com a variante flexional -U não-padrão e paradigmas verbais no CSF (BAZENGA, 2015b). Tal como a variante -EM, a variante em -U realiza-se maioritariamente em contexto de sujeito expresso (5/8 dos dados), situação que não parece corresponder ao observado por Maria Antónia Mota, Matilde Miguel e Amália Mendes em dados de variedades centro-meridionais, nos quais existem “indícios de que a realização de vogal nasal está relacionada com a presença de sujeito nulo, o que indica a necessidade de se aprofundar o estudo das relações entre o marcador de PN6 e o tipo de sujeito” (Ibid.). De acordo com as autoras, as realizações fonéticas em vogal nasal de PN6 corresponderiam a uma fase do processo morfofonológico anterior à realização canónica de ditongo nasal da forma fonológica /vogal N/. A variante em -U está também presente no conjunto de variantes observadas em fala espontânea informal na variedade urbana de Braga, que integra os dialetos setentrionais do PE, como mostra o estudo de Celeste Rodrigues (2012), com dados retirados do CPE-Var, um corpus que inclui 180 entrevistas sociolinguísticas de falantes de Lisboa e Braga, coletadas entre 1996 e 1998 (fig. 18). Variantes de PN6 [ɐ̃w̃] [ɐ̃w̃] 53 % [õ] 35,7 % [u] 8,1 % [ũ] 1,4 % Sem produção da terminação verbal = 1,6 % Variantes de PN6 [ɐ̃j̃] [ɐ̃j̃] 41,4 % [ẽ] 41,4 % [ẽj̃] 4,4 % Sem produção da terminação verbal = cerca de 12 % Fig. 18 – Tabela com as variantes flexionais de PN6 atestadas na variedade de Braga – PE (Corpus CPE-Var, utilizado em RODRIGUES, 2003; 2012, 221-222). Atendendo ao conhecimento histórico das mudanças ocorridas no português, a variante em -U (oral ou nasal) da forma padrão PN6 poderá ser considerada “histórica” ou “conservadora”, podendo ser associada às vogais nasais existentes no período arcaico da história do PE (-ã, -õ e -ão) (fig. 19), antes da convergência em ditongo nasal [ɐ̃w̃], que já no séc. XVI integrava a variedade-padrão do PE (português literário e língua culta do centro do país).   Nomes Flexão verbal -ã -áne -ánt -ant Indicativo presente dos verbos dar e estar e futuro de todos os verbos; Indicativo presente dos verbos da 1.ª conjugação, imperfeito, futuro do pretérito e pretérito mais-que-perfeito de todos os verbos e conjuntivo presente dos verbos da 2.ª e 3.ª conjugações. -õ -one - udine -unt -úm -unt Indicativo presente do verbo ser; 1.ª pessoa do singular do indicativo presente do verbo ser; Pretérito perfeito de todos os verbos. -ão -anu - anu   Fig. 19 – Tabela com as vogais nasais do português arcaico (CARDEIRA, 2005, 113). Clarinda de Azevedo Maia, fundamentando-se nas observações de Duarte Nunes de Leão, um gramático do séc. XVI, refere que “a pronúncia -õ era tida pelos gramáticos da época como característica da região interamnense” (MAIA, 1986, 604), o que leva Rosa Mattos e Silva a supor que durante o processo de convergência teriam convivido “como variantes no diassistema do português o ditongo [ɐ̃w̃], proveniente do etimológico [-anu], e do [ɐ̃], do etimológico [-ane] e [-ant]; e o ditongo [õw̃] de [õ], do etimológico [-one] e [-unt]”, com a norma que se estabelece no séc. XVI a selecionar o ditongo [ɐ̃w̃] como forma de prestígio em detrimento do ditongo [õw̃], avaliado negativamente e ainda hoje marcado como “popular, arcaizante e regional” (MATTOS e SILVA, 1995, 76). De salientar ainda o facto de as variantes em -U (vogal nasal [ũ] e vogal oral [u]) atestadas na amostra do Funchal analisada por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (2013) corresponderem à realização de PN6 apenas do pretérito imperfeito do indicativo, o que não está em conformidade com a vogal etimológica -o < -UNT) do pretérito perfeito de todos os verbos (fig. 19). Assim, apesar de poderem ser consideradas variantes não-padrão arcaizantes, as formas em -U da variedade urbana insular contêm traços inovadores. As variantes flexionais de PN6 não-padrão realizadas por uma vogal oral isomórfica de PN3 correspondem a 5,3 % dos dados atestados na variedade do Funchal (VIEIRA e BAZENGA, 2013), ou seja, a 49/914 ocorrências. Neste tipo de variantes, poderá estar em causa apenas a associação ou não do autossegmento flutuante /N/, tal como a representação formulada para o PE-padrão de Maria Helena Mira Mateus e Ernesto d’Andrade. Segundo esta proposta, as variantes sem ditongo podem resultar da propriedade de leveza que caracteriza os ditongos nasais finais não acentuados, de PN6 em formas verbais do PE-padrão. Estes ditongos, mas também aqueles que ocorrem em formas nominais simples (homem) ou com sufixo -agem (paragem, lavagem), são considerados pós-lexicais pelo facto de se encontrarem em palavras marcadas pela ausência de constituinte temático, por oposição aos ditongos nasais lexicais, gerados no léxico e que atraem o acento para o final de sílaba (pão) e admitem, como único segmento em coda, a fricativa /S/ (pães). Nos ditongos pós-lexicais, a semivogal é epentética, atendendo à sua inexistência a nível lexical, e surge após o processo de ditongação, ocupando os dois segmentos uma única posição no núcleo. O autossegmento flutuante /N/ projeta-se sobre o núcleo silábico, nasalizando os dois segmentos em simultâneo. O facto de este autossegmento nasal apenas se projetar no núcleo impede que qualquer segmento em posição de coda possa ser nasalizado (MATEUS e ANDRADE, 2000, 133). Considerando o efeito do contexto fonético à direita, observa-se que o contexto que mais favorece a realização da variante flexional em vogal oral é aquele em que a palavra seguinte se inicia por vogal (fig. 20).   + vogal + C nasal + C não nasal Pausa # 29/48 oc. 60,4 % 8/48 oc. 16,6 % 8/48 oc. 16,6 % 3/48 oc. 6,25 %   Fig. 20 – Tabela com as variantes PN6 não-padrão em vogal oral (isomórficas de PN3) e contextos fonéticos à direita da forma verbal (BAZENGA, 2015b). Atendendo a que “o contexto precedendo pausa […] é o que mais favorece a ativação do padrão com ditongo nasal” (MOTA et al., 2012, 171) e que, no âmbito da fonética sintática (sândi externo), podem ocorrer alterações fonéticas, nomeadamente quando a palavra seguinte se inicia por vogal ou consoante nasal, podemos considerar que, do ponto de vista da realização da forma verbal requerida em contexto sintático de concordância verbal em contexto sintático de PN6, apenas 11 das 49 ocorrências com vogal oral final nas formas verbais correspondem à não aplicação da regra de concordância, desprovidas da ambiguidade (oito ocorrências em 49, seguidas de consoante não nasal e três ocorrências seguida de pausa). Esta questão será abordada posteriormente, quando considerada a hipótese de concordância implícita, já referida na análise das variantes em -EM e -U, mas na sua versão mais recente e desenvolvida no artigo de Maria Antónia Mota de 2013. As variantes em vogal oral não-padrão de PN6 (isomórficas de PN3) correspondem maioritariamente a verbos com VT /a/ e /e/, representadas por -A e -E, respetivamente, cuja distribuição pelos paradigmas verbais consta da fig. 21, em contexto de palavra seguinte iniciada por vogal (21 das 29 ocorrências), registando-se ainda um exemplo com o verbo ir (quando vai aqueles pa agarrar o coisa – C1m):   Variante em vogal oral Presente do Indicativo Pretérito Imperfeito do Indicativo Pretérito Imperfeito do Conjuntivo vogal -A 2/21 11/21 - vogal -E 5/21 - 2/21   Fig. 21 – Tabela com a realização de variantes não-padrão em vogal oral (isomórficas de PN3) e paradigmas verbais (BAZENGA, 2015b). Nestes paradigmas, a distinção entre PN3 e PN6 na morfologia verbal-padrão resulta apenas da ancoragem ou não do autossegmento nasal /N/. Por outro lado, o contexto [+vogal] corresponde, na sua maioria (15 das 21 ocorrências de variantes -A e -E, realizadas foneticamente pelas vogais átonas [-ɐ] e [-ɨ]), às realizações fonéticas [a] e [ɐ]. Este encontro intervocálico na fronteira de palavra (sândi externo) resulta na elisão das finais verbais átonas e na ressilabificação das duas sílabas em contacto, como exemplificado a seguir: 22) a. “as mercearias na altura fechava às onze. (B1m)”; [fɨʃavɐ + aʃ] [fɨʃavaʃ] b. “os outros tinha as costas quentes. (C2m)”; [tiɲɐ + ɐʃ] [tiɲɐʃ] c. “das consequências que daí pode advir. (C2h)”. [podɨ + ɐdvir] [podɐdvir] Observa-se ainda que muitas das ocorrências com vogal oral -E correspondem ao item verbal inacusativo existir. Atendendo unicamente ao contexto de sujeitos pospostos, regista-se um total de 20 ocorrências de existir em 34, ou seja, 58, 8% (11 dados com ditongo-padrão de PN6 e nove dados não-padrão com vogal oral -E), no presente do indicativo (19 dados), registando-se apenas uma ocorrência no imperfeito do indicativo (“voltou a se provar que existia ainda substâncias” – B2h) (BAZENGA, 2015). Para além do verbo existir, observa-se a ocorrência de alguns itens verbais, tais como ter (dois dados) e vir no imperfeito do indicativo, cujos radicais contêm a consoante nasal palatal (-nh-) e que em princípio deveriam induzir a realização do segmento nasal do PN6-padrão, como afirma Jorge Morais Barbosa, a propósito da nasalização de vogais em contacto com consoantes nasais: “il semble que celle-ci [a nasalização] soim de règle lorsque la consonne nasale précède la voyelle, et que par contre dane le type voyelle + consonne la voyelle se maintienne souvent pratiquement orale” [parece que este fenómeno [a nasalização] segue a regra quando a consoante nasal precede a vogal e que, pelo contrário, no tipo vogal +consoante, a vogal mantém-se muitas vezes praticamente oral] (BARBOSA, 1965, 82). Um outro verbo parece ser bastante vulnerável. Trata-se do verbo ser, com seis dados no total, todos seguidos de uma palavra iniciada por consoante não nasal. 23) a. “enquanto elas fosse pequenas. (B1m)”; b. “as brincadeira era poucas. (C1m)”; c. “os professores chamados oficiais que era do_dos públicos. (C3m)”; d. “mas os dias foi [foram] passando. (A1m)”. Para além destes dados, é de registar o dado com o verbo ser, em (23d.), por ser semelhante a um dos tipos referidos (eles vai; eles cantou) por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga, como não sendo observado em variedades do PE, contrariamente ao que ocorre em algumas variedades do PB e em variedades africanas do português. Outros dados no pretérito perfeito do indicativo, sem o ditongo nasal final [ɐ̃w̃] de PN6, também são atestados, mas em contexto de sujeito posposto (“quando vai aqueles pa agarrar o coisa” (C1m); “caiu casas ali” (C1h); “aconteceu situações de tar [estar] em casa” (A1m)) (VIEIRA e BAZENGA, 2013, 23). Atitudes linguísticas de falantes madeirenses face à diversidade sintática da variedade insular do português: o continuum dialetal percetivo No âmbito da realização da dissertação de mestrado de Catarina Andrade, intitulada Crenças, Perceções e Atitudes Linguísticas de Falantes Madeirenses (2014), foi possível proceder à avaliação percetiva de construções sintáticas não-padrão em uso em variedades do português falado na Madeira, por parte de falantes madeirenses. Esta avaliação realizou-se através da aplicação de um questionário a uma amostra de 126 informantes, 18 por cada um dos sete pontos de inquérito na ilha da Madeira (Funchal, Santa Cruz, Machico, Câmara de Lobos, Santana e São Vicente e Calheta). Neste trabalho, a autora propõe um continuum dialetal através do qual apresenta as variantes sintáticas não-padrão alinhadas desde o polo à esquerda, onde se encontram as mais estigmatizadas, até às que gozam de maior prestígio, à direita, a partir de dados percetivos de informantes madeirenses (fig. 23).   Código Variante não-padrão Descrição Q.C.1.A “Comprei na feira.” Ausência de OD Q.C.6.A. “Porque estava chovendo.” Preferência para a forma do verbo estar + gerúndio Q.C.4.B. “Sim, eu sei, eu vi ele ontem.” Realização de OD com o pronome ele Q.C.5.A. “Tem muito trânsito nas ruas.” Preferência para o ter existencial Q.C.2.A. “Porque só no verão é que vai-se à praia.” Preferência para o uso do clítico se em posição incorreta Q.C.4.C. “Sim, eu sei, eu o vi ontem.” Realização de OD com o clítico o em posição incorreta Q.C.2.B. “Porque só no verão é que a gente vai-se à praia.” Realização da forma a gente com o se impessoal Q.C.3.A. “Não deve-se usar o telemóvel.” Realização do clítico se em posição incorreta Q.C.4.A. “Sim, eu sei, eu vi-lhe ontem.” Realização de OD com o clítico lhe Q.C.1.B. “Comprei-lhe na feira.” Realização de OD com o clítico lhe Fig. 22 – Quadro com as variantes sintáticas não-padrão consideradas para a construção de um continuum percetivo de falantes madeirenses (ANDRADE, 2014). A fig. 22 reúne o conjunto de variantes não-padrão consideradas para análise, cada uma associada a um determinado domínio gramatical do português. A forma de OD nulo parece ser privilegiada pelos madeirenses, especialmente na oralidade. Na sua dissertação, Catarina Andrade verificou, na sua abordagem geral no que se refere ao OD nulo, que, “dos 126 inquiridos, 59 % tem preferência para a omissão de OD e apenas 8 % para a sua realização com o clítico lhe” (ANDRADE, 2014, 151). A fig. 23 contém os resultados da avaliação realizada, com as variantes mais aceites à esquerda e as menos aceites e mais estigmatizadas à direita:   Fig. 23 – Gráfico com o continuum percetivo de variantes sintáticas não-padrão (ANDRADE, 2014).     Em traços gerais, as opções Q.C.1.A. (ausência de realização de OD), com 59 %, Q.C.6.A. (estar + gerúndio), com 58 %, e Q.C.4.B. (pronome ele OD), com 48 %, foram as variantes avaliadas de forma positiva pelos falantes madeirenses, em termos de aceitabilidade. Por seu turno, as opções/variantes Q.C.4.A. (12 %) e Q.C.1.B. (8 %), ambas relacionadas com a realização de OD através do clítico lhe, parecem ser fortemente estigmatizadas pelos inquiridos. Apesar de os falantes madeirenses terem acesso à norma-padrão através da escola, as variedades faladas na Ilha distanciam-se, em vários pontos do sistema linguístico, da variedade normativa, e os madeirenses têm consciência destas diferenças.   Considerações finais Tal como em outras variedades geográficas do português, a variação sintática está presente nas variedades faladas na Madeira, contribuindo para a caracterização sociolinguística e cultural da comunidade insular no seu todo. É notória também a presença de algumas variantes conservadoras, já não atestadas no PE continental, mas presentes também em variedades extraeuropeias do português (brasileira mas também africanas). As variantes inovadoras resultam, em muitos casos, de fenómenos de simplificação de subsistemas de marcação morfológica de categorias verbais e nominais, sendo os falantes menos escolarizados os que mais produzem este tipo de variantes. A presença destas características linguísticas no espaço insular deve-se provavelmente a uma história de contacto linguístico, social e cultural individualizante, quando comparada com outros territórios onde se fala o português. Parece clara também, tal como ocorre no PB, amplamente estudado por linguistas variacionistas, a influência de fatores sociais na variação sintática observada. Deste ponto de vista, as variantes, produzidas por falantes iletrados ou pouco escolarizados, mais velhos e do sexo feminino na comunidade de fala urbana do Funchal, podem ser consideradas como indicadores de localidade e de classe, ou seja, combinam o traço típico de “madeirensidade”, por se tratar de variantes não atestadas em variedades do PE continental até agora estudadas, e de “popularidade”, ou de grupo social, cuja variedade falada é marcada por usos de formas linguísticas não prestigiadas, excluídas da variedade-padrão do PE e objeto de estigma social. Embora as formas não marcadas manifestem uma tendência para sobreviverem à custa das formas marcadas por uma maior saliência percetual, esta tendência pode estar em risco, sob a influência de estereótipos sociais e regionais. Assim, as variantes flexionais não-padrão mais marcadas, de tipo -EM, por exemplo, tendem a ser produtivas, em detrimento de nivelamento linguístico, desejado pela elite madeirense desde o início do séc. XX. Funcionam como “indício” (no sentido que é dado pela semiótica de Peirce) de um sentimento de pertença a um território social. Numa comunidade de fala com as características marcadas pela insularidade, a mudança linguística poderia, assim, ser mais lenta, observando-se uma tendência para preservar as formas fortes e identitárias. A Dialetologia Percetual e os três estudos atitudinais e percetivos sobre a diversidade dialetal do PE (CABELEIRA, 2006, HADDAR, 2008 e FERREIRA, 2009), baseados em amostras com falantes que vivem em regiões de Portugal, fornecem outros argumentos para a individualização dos dialetos insulares, de um modo geral, e dos da Madeira, em particular. Nestes trabalhos, e no que se refere ao atributo “inteligibilidade”, as variedades do português falado nas ilhas portuguesas são avaliadas como menos inteligíveis, quando comparados com outras variedades do PE continental. Para tal contribuem não só alguns traços fonéticos e prosódicos, o léxico, mas também fenómenos morfossintáticos que efetivamente fazem parte da realidade linguística insular. O estudo similar, mas realizado junto de uma amostra de 126 informantes madeirenses, de Aline Bazenga, Catarina Andrade e António Almeida (2014) revela uma tendência para avaliar positivamente, em termos de prestígio, a variedade do português falado na Madeira, imediatamente a seguir à variedade-padrão (de Lisboa). A variedade dos Açores, contrariando a descrição linguística que a considera próxima da madeirense, é avaliada, pelos informantes madeirenses, como a menos compreensível e a mais distante da sua própria maneira de falar. Parece desenhar-se, assim, nos madeirenses uma representação de dupla filiação linguística: portuguesa, em primeiro lugar, seguida da “madeirensidade” (RODRIGUES, 2010), simbolizada por uma variedade falada distinta, também ela considerada de prestígio, um centro (regional/insular) dentro do centro do todo nacional – Lisboa, a capital –, a variedade de prestígio legitimado. A atitude positiva manifestada pelos madeirenses em relação à sua variedade falada poderia ser entendida a partir do conceito de “prestígio encoberto” (couvert), introduzido por Labov e também desenvolvido por Trudgill (1972), que procura explicar o uso de formas linguísticas não-padrão por parte de alguns grupos de uma comunidade de fala (os homens mais do que as mulheres, em particular). Estes usos constituem um padrão de prestígio implícito dentro da comunidade, com um valor simbólico de solidariedade para o grupo, em contraste com os valores de autoridade (clareza, elegância, pureza, competência) que caracterizam o prestígio legítim     Aline Bazenga Catarina Andrade (atualizado a 03.02.2017)  

Linguística Literatura

tabaco

O tabaco chegou a Portugal, no séc. XVI, a partir do Brasil. Começando por ser usado como um produto de uso medicinal, foi, durante muito tempo, uma mercadoria de troca do comércio madeirense com o Brasil. Na Madeira, o seu consumo generalizou-se rapidamente a partir do séc. XVII, com o consumo do tabaco em pó. O cheiro ou o fumo do tabaco faziam parte dos fatores de prestígio social, pelo que todos o consumiam. Palavras-chave: comércio; estancos, tabaco. O tabaco chegou a Portugal, no séc. XVI, a partir do Brasil, tendo sido inicialmente usado como um produto de uso medicinal. O tabaco foi, durante muito tempo, uma mercadoria de troca do comércio madeirense com o Brasil. Trocavam-se pipas de vinho e de aguardente por tabaco, cacau e cravo. Foi o que sucedeu em 1673, com o governador e capitão-general da Madeira João Saldanha de Albuquerque, que requereu os bons ofícios do governador do Maranhão, Pedro César de Menezes, remetendo-lhe tabaco em troca de vinho. A importância deste produto está definida na existência da Alfândega do Açúcar e Tabaco, em Lisboa, que se extinguiu em 1761. A Madeira, que tinha contactos permanentes com o Brasil, passou também a receber este produto, que rapidamente se generalizou em termos de consumo a partir do séc. XVII, com o consumo do tabaco em pó. O cheiro e o fumo do tabaco tornaram-se fatores de prestígio social a que todos aderiam, até mesmo os escravos, pois, em 1694, é referido na nota de óbito de um escravo velho do provedor da Fazenda que este fumava tabaco com cachimbo. Os cachimbos de diversas proveniências que têm sido recolhidos em escavações arqueológicas revelam tal uso alargado. Também não devemos esquecer que o tabaco era conhecido como a “erva-santa” e usado como analgésico. Esta situação resulta das assíduas relações comerciais com o Brasil, assim como do facto de a venda do vinho dever ser feita a troco de mercadorias oferecidas pelos mercadores estrangeiros. Entre estas, surgia o tabaco, que, tendo-se tornado uma moda, viu o seu consumo ultrapassar as barreiras da clausura e chegar até aos conventos de Santa Clara e da Encarnação. Neste último, as freiras recebiam, pelo Dia de Reis, uma ração de sete libras e meia de tabaco. A partir da época filipina, deu-se início ao estabelecimento de contratos de arrematação para a sua comercialização. Em 1639, assistiu-se ao estabelecimento do estanco do tabaco. Estancar é impedir a venda livre de um produto, definindo assim o estanco a situação de monopólio de venda. Com o tempo, o estanco passou, também, a designar o espaço ou local de venda ao público do tabaco. Na Madeira, a R. do Estanco Velho guarda a memória desse lugar, que se manteve até à publicação da lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitida a plantação de tabaco nas ilhas da Madeira e dos Açores e o seu livre fabrico e comércio. Os chamados estanqueiros do tabaco aparecem como pessoas prósperas, o que pode ser revelador de que esta atividade mobilizava muito dinheiro. A título de exemplo, referimos que, em 1679, Aires de Ornelas e Vasconcelos arrendou este contrato na Madeira e Porto Santo a Manuel Escórcio, por 130.000 réis. A este contrato surgem ligados, no séc. XVIII, os nomes de Pedro Jorge Monteiro, António José Monteiro e Feliciano Velho Oldemberg. Tudo isto porque o tabaco se vendia nos estancos a preços elevados e o seu consumo, bem como o do rapé (tabaco em pó), estava generalizado e manteve-se por muito tempo na Ilha, como testemunha, por exemplo, em 1864, o alemão Rudolf Schultzen, na obra Die Insel Madeira: Aufenthalt der Kranken und Heilung der Tuberkulose daselbst. A situação de dependência económica insular face à metrópole manteve-se por muito tempo, determinada por decretos e medidas limitativas das relações com outros mercados. As ilhas continuaram sujeitas aos monopólios do tabaco e do sabão, sendo o fornecimento local feito através de um estanqueiro que estabelece uma rede em todas as freguesias rurais. Esta imposição e regularidade das relações com a metrópole, associada aos monopólios de fornecimento de alguns produtos, como o tabaco, o sabão e o sal, geraram uma subordinação e dependência que deram forma a um trato comercial desvantajoso, por falta de contrapartidas. Por outro lado, favoreceram o contrabando, que será praticado, ao longo dos tempos, um pouco por toda a costa madeirense. O estanco do tabaco foi estabelecido em 1639, como se disse, e extinto a 23 de agosto de 1642, sendo, no entanto, o contrato renovado em 26 de junho de 1644. A 14 de maio de 1650, foi adjudicado o contrato por sete anos, ficando excluídos do mesmo a Índia, o Brasil e alguns lugares de África. Por alvará de 14 de julho de 1674, foi criada a Junta da Administração do Tabaco, mantendo-se a lei de 28 de fevereiro de 1668, que regulamentava o contrabando desse produto. A sua composição e atribuições foram estabelecidas pelos regimentos publicados em 6 de dezembro de 1698 e 18 de outubro de 1702. A estrutura de funcionamento era definida por um presidente, cinco deputados e um secretário. A estes juntam-se os cinco ministros (um para cada província) superintendentes do tabaco, coadjuvados por meirinhos e seus escrivães, para fiscalizar a atividade comercial em torno do produto e evitar o contrabando, conforme regimento de 23 de junho de 1678. Por alvará com força de lei de 20 de março de 1756, que acabou com os ofícios de executores da Alfândega do Tabaco, foi criado o cargo de juiz executor das dívidas da Junta da Administração do Tabaco. No âmbito das suas competências e atribuições, destaca-se o facto de, durante a sua administração, lhe pertencerem todas as matérias e negócios relacionados com o produto, bem como as causas cíveis e crimes sobre o mesmo. Era também o juiz que provia todos os lugares da Junta, da Alfândega e dos conservadores do tabaco das comarcas. Todo o tabaco para consumo do reino era adquirido pela Junta do Tabaco, que depois o fazia vender nos diversos estancos, por meio de contratadores. O monopólio ou estanco do tabaco, que estava na superintendência da Junta da Administração do Tabaco, ficou, a partir da sua extinção em 15 de janeiro de 1775, a depender da Junta da Real Fazenda. A sua administração na Madeira estava entregue ao provedor da Fazenda, a que se associavam um meirinho do estanco, um escrivão das diligências, um juiz conservador e um administrador recebedor do tabaco. Foram juízes do estanco o célebre poeta Manuel Tomás, autor da Insulana, e Ambrósio Vieira, provedor da Fazenda. O fim do estanco do tabaco foi novamente decretado a 17 de junho de 1830, sendo restabelecido por decreto de 21 de abril de 1832 e contratado ao barão de Quintela, pelo decreto de 10 de dezembro de 1832. Foi depois, de novo, abolido por lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitido o seu cultivo na Madeira e nos Açores. O contrato do tabaco era uma fonte significativa de rendimento, sendo usado como moeda de troca, como sucedeu, em 1834, ao ser estabelecido como garantia dos empréstimos feitos em Londres pelo Estado português. No séc. XIX, esta indústria teve grande incremento, surgindo duas importantes fábricas em Lisboa e no Porto. Em 1844, surgiu a Companhia Nacional de Tabacos, com sede em Xabregas, a que se juntaram outras três companhias nacionais. Durante esta centúria, esta foi a principal indústria nacional, de forma que, no inquérito industrial de 1881, são referidas 16 fábricas e 6 oficinas em todo o país. Em 1888, a medida de expropriação das fábricas de tabaco, dando-se a exploração à Companhia dos Tabacos de Portugal, gerou inúmeros conflitos no meio nacional. Segundo a lei de 27 de outubro de 1906, regulamentada pelo contrato de 8 de novembro, o Estado tinha uma participação nos lucros de 50 contos, para os anos de 1907 a 1910. Por decreto de 11 de julho de 1907, foi aprovado o contrato para o período de 1 de maio de 1907 a 30 de abril de 1926, em que a Companhia se comprometia, mediante o monopólio da produção do tabaco, a entregar ao Estado uma renda anual fixa de 620 contos e uma participação determinada nos lucros. Por decreto n.º 4510, de 27 de junho de 1918, autorizou-se o aumento do preço do tabaco, mediante um aumento mínimo na participação dos lucros. A 4 de agosto de 1924, foi feito um acordo em que foi fixada a renda para os anos seguintes e alteradas as regras de cálculo da participação nos lucros. A 24 de março de 1924, foi votado o decreto que regulamentaria o novo regime do tabaco, que só foi posto em prática a partir de março de 1926. A partir de 1 de maio de 1926, o Estado passou a administrar diretamente esta atividade, conforme ficou estabelecido no decreto n.º 11.766, de 24 de junho de 1926. A partir do decreto n.º 13.587, de 11 de maio de 1927, foi estabelecida a liberdade de produção e venda sob controlo do Estado. A partir de então, os lucros do Estado advinham do imposto sobre a produção e participação nos lucros das companhias. Assim, abriam-se as portas à liberdade do fabrico de tabaco que só estava permitido nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra. As licenças eram atribuídas, por 30 anos apenas, a empresas cujo capital fosse superior a 1000 contos-ouro. No concurso realizado para a administração das oficinas que pertenciam ao Estado, foi vencedora a Companhia Portuguesa de Tabacos de Lisboa. No caso das ilhas, foi autorizada a livre plantação do tabaco por lei de 13 de maio de 1864, reconfirmada pela lei de 15 de junho de 1864 e pelo decreto de 8 de outubro de 1885. Esta aposta na nova cultura, que não teve sucesso na Madeira, foi considerada uma forma de se procurar meios para segurar a economia agrícola do arquipélago face aos problemas com o comércio do vinho. Foi uma época de experimentação de múltiplas culturas com valor industrial, capazes de substituírem a vinha como factor animador da economia interna e de exportação do arquipélago. As primeiras plantações começaram a partir de 1877, altura em que se fundou a primeira fábrica de manipulação do produto. Com o estabelecimento, em 1908, da Companhia de Tabacos da Madeira e depois, a partir de 1913, da Empresa Madeirense de Tabacos Lda., a exploração ficou quase em regime de monopólio, sob o comando das famílias inglesas, com particular destaque para a Casa Leacock & Co. Ainda no período de 1959 a 1961, na Qt. do Bom Sucesso, propriedade da Junta Geral, se faziam ensaios com a plantação de tabaco. A lei de 13 de maio de 1864 havia estabelecido uma situação distinta para as ilhas no referente ao tabaco, dando-lhes a possibilidade de o cultivar, mas com um agravamento no imposto predial. A 15 de março de 1864, os deputados pela Madeira haviam apresentado uma proposta para a promoção da cultura do tabaco, estabelecendo um imposto de 250 a 500 réis por cada are de terra cultivada, de acordo com a sua qualidade. Entre 1865 e 1875, não houve qualquer tentativa de cultivo da planta na Madeira e era voz corrente a reclamação contra o referido decreto, sendo disso porta-voz o Gov. Civil Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro em ofício de 21 de junho de 1876 ao ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda. Por outro lado, tal como o havia indicado D. João da Câmara Leme, o tabaco, como outras culturas, não teria grande rentabilidade na Ilha: “Há plantas que, conquanto sejam cultivadas noutros países com muito proveito, e se deem bem neste clima não podem ser cultivadas aqui com vantagem; porque nos faltam condições importantes que, nesses países, favorecem tais culturas: assim não é para a Madeira a cultura em grande escala do algodão, nem a do tabaco, nem mesmo o chá” (LEME, 1876, 19). A Madeira passará, assim, a importar tabaco, especialmente dos Açores, chegando mesmo a importá-lo de Porto Rico, dos EUA, de Cuba e, na déc. de 60, de Angola. Outras vozes se levantaram contra esta situação considerada ruinosa para a Madeira, pelo que começaram a surgir plantações de tabaco um pouco por todo o lado. Desta forma, em 1877, foi criada a Fábrica de Tabacos Madeirense, seguindo-se outras em 1881 e em julho de 1919. Em 20 de janeiro de 1920, criou-se um imposto municipal de $50 por cada kg de tabaco despachado na Alfândega, que, no ano de 1922, rendeu à Câmara do Funchal 21.837$21. Pelo dec.-lei n.º 39.963, de 13 de dezembro de 1954, este foi aumentado para 8$00 por kg, dos quais 6$00 constituía receita das câmaras municipais, pertencendo o restante às juntas gerais. Assim, ontem como hoje, o tabaco mereceu diversas formas de tributação, assumindo-se como uma importante fonte de receita tributária na Madeira. Faltam, no entanto, dados que permitam entender o volume do seu consumo na Ilha. Os novos dados conhecidos referem-se já à déc. de 50 do séc. XX, em que a cobrança atingiu, mais especificamente em 1958, o valor mais elevado: 105.801$20. Será no séc. XX que este produto será alvo de diversas formas de tributação. Na lei n.º 1657, de 3 de setembro de 1924, ficou estabelecido o imposto de 80 réis ouro por cada quilo de tabaco manufaturado na Ilha ou importado dos Açores, coisa que não acontecia nos Açores, nem no continente. Pelas leis de 10 de julho de 1919 e 22 de janeiro de 1920, surgiu o imposto municipal de tabaco que onerava em $50 cada quilo de tabaco exportado na Alfândega. De acordo com o artigo 1.º do dec.-lei n.º 444/86, de 31 de dezembro, o tabaco manufaturado, destinado ao consumo no continente português e nas regiões autónomas, quer de produção nacional, quer importado, está sujeito ao imposto de consumo sobre o tabaco. O valor de 1 % desta receita está consignado ao Ministério da Saúde para a luta contra o cancro. Pelo artigo 7.º do citado diploma, foram fixadas as taxas do imposto de consumo relativo a cigarros, constituídas por dois elementos: um específico e outro ad valorem. O artigo 8.º fixou as taxas do imposto de consumo relativo aos restantes produtos de tabaco manufaturado. A administração do imposto de consumo compete à Inspeção-Geral de Finanças, no que diz respeito ao tabaco saído das áreas fiscalizadas referidas no artigo 19.º, situadas no continente, e à Direção-Geral das Alfândegas, nos restantes casos. Depois, destaca-se o imposto especial de consumo sobre o tabaco que se encontra regulamentado pelo Código do Imposto Especial de Consumo (CIEC), publicado pelo dec.-lei n.º 566/99, de 22 de dezembro. O imposto especial de consumo, ou IEC, é, na verdade, o conjunto de três impostos que incidem sobre certos produtos (tabaco, produtos petrolíferos e bebidas alcoólicas) fabricados ou colocados no território português. Em 2005, a taxa do imposto do tabaco era de 8,69 %, enquanto no continente era 6,6 %, ficando a percentagem ad-valorem em 35 %. As estampilhas fiscais eram usadas em diversas formas de pagamento, nomeadamente taxas e emolumentos, casos em que a receita não pertencia ao imposto do selo. Por lei n.º 150/99, de 11 de setembro, que estabeleceu o regulamento do imposto de selo, as estampilhas fiscais foram abolidas. Parte do imposto sobre o tabaco produzido no distrito do Funchal ou importado das ilhas dos Açores era uma receita repartida entre as câmaras municipais e a Junta Geral. A receita do imposto do tabaco fora atribuída por lei de 10 de julho de 1914 às obras da Junta Autónoma dos Portos da Madeira (JAPAM). Entre 1972 e 1981, entraram na contabilidade da JAPAM 46.400 contos de impostos aduaneiros (entre estes, o imposto sobre o tabaco), 532.980 contos de taxas portuárias e 350 contos de multas. A batalha pela reivindicação de mais receitas para a Junta Geral, que é o mesmo que dizer o retorno das receitas dos madeirenses, continuou. Assim, na sessão de 20 de setembro de 1920, reclamava-se que revertesse para a Junta Geral a totalidade dos impostos lançados pelo Governo central sobre produtos como o tabaco e estabelecimentos bancários, que na Madeira perfaziam cerca de 400 contos e que estavam destinados à assistência pública. O tabaco, por ser um produto sujeito a contrato exclusivo de venda, foi muito cobiçado e apetecido em termos do contrabando. Tal contrabando perdura no séc. XX, sendo uma das atividades ilícitas mais assinaladas e regulamentadas. Neste processo, até o clero intervinha, havendo referência a uma iniciativa nesse sentido por parte de Fr. António de S. Guilherme, em 1768. Recorde-se que, em 12 de novembro de 1768, o Gov. João António Sá Pereira refere que um guardião do convento, o P.e Manuel Joaquim de Oliveira, que contrabandeava tabaco, foi enviado para Lisboa, sob prisão. No séc. XIX, muito deste contrabando de tabaco era feito por Ingleses, nomeadamente a partir da possessão inglesa de Gibraltar. A 1 de fevereiro de 1876, regressava ao Funchal Leland Cossart, deixando o despacho das suas malas a cargo de um seu criado, como era costume. Pelo facto de se ter encontrado tabaco na bagagem, foi o empregado preso. Por força disto, movimentou-se o cônsul britânico em diligências, no continente e junto de autoridades britânicas, conseguindo-se a entrega das malas e, depois, a libertação do prisioneiro. O grande incentivo à cultura do tabaco aconteceu a partir da déc. de 70 do séc. XIX, altura em que surgiu a primeira fábrica, da responsabilidade do visconde de Monte Belo, a que se seguiu, em 1888, outra de João Sales Caldeira, que viria a tornar-se propriedade de Joe Berardo e Horácio Roque. Nos inícios do séc. XXI, a Madeira continua a ter um regime diferenciado no que respeita ao tabaco, existindo uma fábrica, a Empresa Madeirense de Tabaco S.A., que assegura o abastecimento local. Esta empresa, fundada em 1913 a partir da Companhia de Tabacos da Madeira, viu-se obrigada, em 1930, face à concorrência das empresas de tabaco açorianas, a comprar a fábrica Estrela, em São Miguel. Legislação: dec.-lei n.º 444/86, de 31 de dezembro: aprova o novo regime fiscal dos tabacos e revoga os decs.-lei n.º 149-A/78, de 19 de junho, 93/91, de 29 de abril, 196/83, de 18 de maio, 34/84 de 24 de janeiro, 115-A/85, de 18 de abril, e 172-D/86, de 30 de junho; dec.-lei n.º 49/90, de 10 de fevereiro; dec.-lei n.º 231/91, de 26 de junho; dec.-lei n.º 75/92, de 4 de maio; dec.-lei n.º 55/93, de 1 de março; dec.-lei n.º 325/93, de 25 de setembro; decs.-lei n.º 75/94, de 7 de março, n.º 221/94, de 23 de agosto, n.º 197/97, de 2 de agosto, pela lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro, e pela lei n.º 10-B/96, de 23 de março; dec.-lei n.º 103/96, de 31 de julho; dec.-lei n.º 197/97, de 2 de agosto; lei n.º 127-B/97, de 20 de dezembro; dec.-lei n.º 566/99, de 22 de dezembro; dec.-lei n.º 170/2002, de 25 de julho; diretiva n.º 2002/10/CE, do Conselho, de 12 de fevereiro; desp. normativo n.º 14/2005, de 24 de fevereiro; desp. normativo n.º 2/2004, de 10 de janeiro; dec.-lei n.º 155/2005, de 8 de setembro.   Alberto Vieira (atualizado a 30.01.2017)

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