tabaco
O tabaco chegou a Portugal, no séc. XVI, a partir do Brasil. Começando por ser usado como um produto de uso medicinal, foi, durante muito tempo, uma mercadoria de troca do comércio madeirense com o Brasil. Na Madeira, o seu consumo generalizou-se rapidamente a partir do séc. XVII, com o consumo do tabaco em pó. O cheiro ou o fumo do tabaco faziam parte dos fatores de prestígio social, pelo que todos o consumiam. Palavras-chave: comércio; estancos, tabaco. O tabaco chegou a Portugal, no séc. XVI, a partir do Brasil, tendo sido inicialmente usado como um produto de uso medicinal. O tabaco foi, durante muito tempo, uma mercadoria de troca do comércio madeirense com o Brasil. Trocavam-se pipas de vinho e de aguardente por tabaco, cacau e cravo. Foi o que sucedeu em 1673, com o governador e capitão-general da Madeira João Saldanha de Albuquerque, que requereu os bons ofícios do governador do Maranhão, Pedro César de Menezes, remetendo-lhe tabaco em troca de vinho. A importância deste produto está definida na existência da Alfândega do Açúcar e Tabaco, em Lisboa, que se extinguiu em 1761. A Madeira, que tinha contactos permanentes com o Brasil, passou também a receber este produto, que rapidamente se generalizou em termos de consumo a partir do séc. XVII, com o consumo do tabaco em pó. O cheiro e o fumo do tabaco tornaram-se fatores de prestígio social a que todos aderiam, até mesmo os escravos, pois, em 1694, é referido na nota de óbito de um escravo velho do provedor da Fazenda que este fumava tabaco com cachimbo. Os cachimbos de diversas proveniências que têm sido recolhidos em escavações arqueológicas revelam tal uso alargado. Também não devemos esquecer que o tabaco era conhecido como a “erva-santa” e usado como analgésico. Esta situação resulta das assíduas relações comerciais com o Brasil, assim como do facto de a venda do vinho dever ser feita a troco de mercadorias oferecidas pelos mercadores estrangeiros. Entre estas, surgia o tabaco, que, tendo-se tornado uma moda, viu o seu consumo ultrapassar as barreiras da clausura e chegar até aos conventos de Santa Clara e da Encarnação. Neste último, as freiras recebiam, pelo Dia de Reis, uma ração de sete libras e meia de tabaco. A partir da época filipina, deu-se início ao estabelecimento de contratos de arrematação para a sua comercialização. Em 1639, assistiu-se ao estabelecimento do estanco do tabaco. Estancar é impedir a venda livre de um produto, definindo assim o estanco a situação de monopólio de venda. Com o tempo, o estanco passou, também, a designar o espaço ou local de venda ao público do tabaco. Na Madeira, a R. do Estanco Velho guarda a memória desse lugar, que se manteve até à publicação da lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitida a plantação de tabaco nas ilhas da Madeira e dos Açores e o seu livre fabrico e comércio. Os chamados estanqueiros do tabaco aparecem como pessoas prósperas, o que pode ser revelador de que esta atividade mobilizava muito dinheiro. A título de exemplo, referimos que, em 1679, Aires de Ornelas e Vasconcelos arrendou este contrato na Madeira e Porto Santo a Manuel Escórcio, por 130.000 réis. A este contrato surgem ligados, no séc. XVIII, os nomes de Pedro Jorge Monteiro, António José Monteiro e Feliciano Velho Oldemberg. Tudo isto porque o tabaco se vendia nos estancos a preços elevados e o seu consumo, bem como o do rapé (tabaco em pó), estava generalizado e manteve-se por muito tempo na Ilha, como testemunha, por exemplo, em 1864, o alemão Rudolf Schultzen, na obra Die Insel Madeira: Aufenthalt der Kranken und Heilung der Tuberkulose daselbst. A situação de dependência económica insular face à metrópole manteve-se por muito tempo, determinada por decretos e medidas limitativas das relações com outros mercados. As ilhas continuaram sujeitas aos monopólios do tabaco e do sabão, sendo o fornecimento local feito através de um estanqueiro que estabelece uma rede em todas as freguesias rurais. Esta imposição e regularidade das relações com a metrópole, associada aos monopólios de fornecimento de alguns produtos, como o tabaco, o sabão e o sal, geraram uma subordinação e dependência que deram forma a um trato comercial desvantajoso, por falta de contrapartidas. Por outro lado, favoreceram o contrabando, que será praticado, ao longo dos tempos, um pouco por toda a costa madeirense. O estanco do tabaco foi estabelecido em 1639, como se disse, e extinto a 23 de agosto de 1642, sendo, no entanto, o contrato renovado em 26 de junho de 1644. A 14 de maio de 1650, foi adjudicado o contrato por sete anos, ficando excluídos do mesmo a Índia, o Brasil e alguns lugares de África. Por alvará de 14 de julho de 1674, foi criada a Junta da Administração do Tabaco, mantendo-se a lei de 28 de fevereiro de 1668, que regulamentava o contrabando desse produto. A sua composição e atribuições foram estabelecidas pelos regimentos publicados em 6 de dezembro de 1698 e 18 de outubro de 1702. A estrutura de funcionamento era definida por um presidente, cinco deputados e um secretário. A estes juntam-se os cinco ministros (um para cada província) superintendentes do tabaco, coadjuvados por meirinhos e seus escrivães, para fiscalizar a atividade comercial em torno do produto e evitar o contrabando, conforme regimento de 23 de junho de 1678. Por alvará com força de lei de 20 de março de 1756, que acabou com os ofícios de executores da Alfândega do Tabaco, foi criado o cargo de juiz executor das dívidas da Junta da Administração do Tabaco. No âmbito das suas competências e atribuições, destaca-se o facto de, durante a sua administração, lhe pertencerem todas as matérias e negócios relacionados com o produto, bem como as causas cíveis e crimes sobre o mesmo. Era também o juiz que provia todos os lugares da Junta, da Alfândega e dos conservadores do tabaco das comarcas. Todo o tabaco para consumo do reino era adquirido pela Junta do Tabaco, que depois o fazia vender nos diversos estancos, por meio de contratadores. O monopólio ou estanco do tabaco, que estava na superintendência da Junta da Administração do Tabaco, ficou, a partir da sua extinção em 15 de janeiro de 1775, a depender da Junta da Real Fazenda. A sua administração na Madeira estava entregue ao provedor da Fazenda, a que se associavam um meirinho do estanco, um escrivão das diligências, um juiz conservador e um administrador recebedor do tabaco. Foram juízes do estanco o célebre poeta Manuel Tomás, autor da Insulana, e Ambrósio Vieira, provedor da Fazenda. O fim do estanco do tabaco foi novamente decretado a 17 de junho de 1830, sendo restabelecido por decreto de 21 de abril de 1832 e contratado ao barão de Quintela, pelo decreto de 10 de dezembro de 1832. Foi depois, de novo, abolido por lei de 13 de maio de 1864, altura em que foi permitido o seu cultivo na Madeira e nos Açores. O contrato do tabaco era uma fonte significativa de rendimento, sendo usado como moeda de troca, como sucedeu, em 1834, ao ser estabelecido como garantia dos empréstimos feitos em Londres pelo Estado português. No séc. XIX, esta indústria teve grande incremento, surgindo duas importantes fábricas em Lisboa e no Porto. Em 1844, surgiu a Companhia Nacional de Tabacos, com sede em Xabregas, a que se juntaram outras três companhias nacionais. Durante esta centúria, esta foi a principal indústria nacional, de forma que, no inquérito industrial de 1881, são referidas 16 fábricas e 6 oficinas em todo o país. Em 1888, a medida de expropriação das fábricas de tabaco, dando-se a exploração à Companhia dos Tabacos de Portugal, gerou inúmeros conflitos no meio nacional. Segundo a lei de 27 de outubro de 1906, regulamentada pelo contrato de 8 de novembro, o Estado tinha uma participação nos lucros de 50 contos, para os anos de 1907 a 1910. Por decreto de 11 de julho de 1907, foi aprovado o contrato para o período de 1 de maio de 1907 a 30 de abril de 1926, em que a Companhia se comprometia, mediante o monopólio da produção do tabaco, a entregar ao Estado uma renda anual fixa de 620 contos e uma participação determinada nos lucros. Por decreto n.º 4510, de 27 de junho de 1918, autorizou-se o aumento do preço do tabaco, mediante um aumento mínimo na participação dos lucros. A 4 de agosto de 1924, foi feito um acordo em que foi fixada a renda para os anos seguintes e alteradas as regras de cálculo da participação nos lucros. A 24 de março de 1924, foi votado o decreto que regulamentaria o novo regime do tabaco, que só foi posto em prática a partir de março de 1926. A partir de 1 de maio de 1926, o Estado passou a administrar diretamente esta atividade, conforme ficou estabelecido no decreto n.º 11.766, de 24 de junho de 1926. A partir do decreto n.º 13.587, de 11 de maio de 1927, foi estabelecida a liberdade de produção e venda sob controlo do Estado. A partir de então, os lucros do Estado advinham do imposto sobre a produção e participação nos lucros das companhias. Assim, abriam-se as portas à liberdade do fabrico de tabaco que só estava permitido nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra. As licenças eram atribuídas, por 30 anos apenas, a empresas cujo capital fosse superior a 1000 contos-ouro. No concurso realizado para a administração das oficinas que pertenciam ao Estado, foi vencedora a Companhia Portuguesa de Tabacos de Lisboa. No caso das ilhas, foi autorizada a livre plantação do tabaco por lei de 13 de maio de 1864, reconfirmada pela lei de 15 de junho de 1864 e pelo decreto de 8 de outubro de 1885. Esta aposta na nova cultura, que não teve sucesso na Madeira, foi considerada uma forma de se procurar meios para segurar a economia agrícola do arquipélago face aos problemas com o comércio do vinho. Foi uma época de experimentação de múltiplas culturas com valor industrial, capazes de substituírem a vinha como factor animador da economia interna e de exportação do arquipélago. As primeiras plantações começaram a partir de 1877, altura em que se fundou a primeira fábrica de manipulação do produto. Com o estabelecimento, em 1908, da Companhia de Tabacos da Madeira e depois, a partir de 1913, da Empresa Madeirense de Tabacos Lda., a exploração ficou quase em regime de monopólio, sob o comando das famílias inglesas, com particular destaque para a Casa Leacock & Co. Ainda no período de 1959 a 1961, na Qt. do Bom Sucesso, propriedade da Junta Geral, se faziam ensaios com a plantação de tabaco. A lei de 13 de maio de 1864 havia estabelecido uma situação distinta para as ilhas no referente ao tabaco, dando-lhes a possibilidade de o cultivar, mas com um agravamento no imposto predial. A 15 de março de 1864, os deputados pela Madeira haviam apresentado uma proposta para a promoção da cultura do tabaco, estabelecendo um imposto de 250 a 500 réis por cada are de terra cultivada, de acordo com a sua qualidade. Entre 1865 e 1875, não houve qualquer tentativa de cultivo da planta na Madeira e era voz corrente a reclamação contra o referido decreto, sendo disso porta-voz o Gov. Civil Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro em ofício de 21 de junho de 1876 ao ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda. Por outro lado, tal como o havia indicado D. João da Câmara Leme, o tabaco, como outras culturas, não teria grande rentabilidade na Ilha: “Há plantas que, conquanto sejam cultivadas noutros países com muito proveito, e se deem bem neste clima não podem ser cultivadas aqui com vantagem; porque nos faltam condições importantes que, nesses países, favorecem tais culturas: assim não é para a Madeira a cultura em grande escala do algodão, nem a do tabaco, nem mesmo o chá” (LEME, 1876, 19). A Madeira passará, assim, a importar tabaco, especialmente dos Açores, chegando mesmo a importá-lo de Porto Rico, dos EUA, de Cuba e, na déc. de 60, de Angola. Outras vozes se levantaram contra esta situação considerada ruinosa para a Madeira, pelo que começaram a surgir plantações de tabaco um pouco por todo o lado. Desta forma, em 1877, foi criada a Fábrica de Tabacos Madeirense, seguindo-se outras em 1881 e em julho de 1919. Em 20 de janeiro de 1920, criou-se um imposto municipal de $50 por cada kg de tabaco despachado na Alfândega, que, no ano de 1922, rendeu à Câmara do Funchal 21.837$21. Pelo dec.-lei n.º 39.963, de 13 de dezembro de 1954, este foi aumentado para 8$00 por kg, dos quais 6$00 constituía receita das câmaras municipais, pertencendo o restante às juntas gerais. Assim, ontem como hoje, o tabaco mereceu diversas formas de tributação, assumindo-se como uma importante fonte de receita tributária na Madeira. Faltam, no entanto, dados que permitam entender o volume do seu consumo na Ilha. Os novos dados conhecidos referem-se já à déc. de 50 do séc. XX, em que a cobrança atingiu, mais especificamente em 1958, o valor mais elevado: 105.801$20. Será no séc. XX que este produto será alvo de diversas formas de tributação. Na lei n.º 1657, de 3 de setembro de 1924, ficou estabelecido o imposto de 80 réis ouro por cada quilo de tabaco manufaturado na Ilha ou importado dos Açores, coisa que não acontecia nos Açores, nem no continente. Pelas leis de 10 de julho de 1919 e 22 de janeiro de 1920, surgiu o imposto municipal de tabaco que onerava em $50 cada quilo de tabaco exportado na Alfândega. De acordo com o artigo 1.º do dec.-lei n.º 444/86, de 31 de dezembro, o tabaco manufaturado, destinado ao consumo no continente português e nas regiões autónomas, quer de produção nacional, quer importado, está sujeito ao imposto de consumo sobre o tabaco. O valor de 1 % desta receita está consignado ao Ministério da Saúde para a luta contra o cancro. Pelo artigo 7.º do citado diploma, foram fixadas as taxas do imposto de consumo relativo a cigarros, constituídas por dois elementos: um específico e outro ad valorem. O artigo 8.º fixou as taxas do imposto de consumo relativo aos restantes produtos de tabaco manufaturado. A administração do imposto de consumo compete à Inspeção-Geral de Finanças, no que diz respeito ao tabaco saído das áreas fiscalizadas referidas no artigo 19.º, situadas no continente, e à Direção-Geral das Alfândegas, nos restantes casos. Depois, destaca-se o imposto especial de consumo sobre o tabaco que se encontra regulamentado pelo Código do Imposto Especial de Consumo (CIEC), publicado pelo dec.-lei n.º 566/99, de 22 de dezembro. O imposto especial de consumo, ou IEC, é, na verdade, o conjunto de três impostos que incidem sobre certos produtos (tabaco, produtos petrolíferos e bebidas alcoólicas) fabricados ou colocados no território português. Em 2005, a taxa do imposto do tabaco era de 8,69 %, enquanto no continente era 6,6 %, ficando a percentagem ad-valorem em 35 %. As estampilhas fiscais eram usadas em diversas formas de pagamento, nomeadamente taxas e emolumentos, casos em que a receita não pertencia ao imposto do selo. Por lei n.º 150/99, de 11 de setembro, que estabeleceu o regulamento do imposto de selo, as estampilhas fiscais foram abolidas. Parte do imposto sobre o tabaco produzido no distrito do Funchal ou importado das ilhas dos Açores era uma receita repartida entre as câmaras municipais e a Junta Geral. A receita do imposto do tabaco fora atribuída por lei de 10 de julho de 1914 às obras da Junta Autónoma dos Portos da Madeira (JAPAM). Entre 1972 e 1981, entraram na contabilidade da JAPAM 46.400 contos de impostos aduaneiros (entre estes, o imposto sobre o tabaco), 532.980 contos de taxas portuárias e 350 contos de multas. A batalha pela reivindicação de mais receitas para a Junta Geral, que é o mesmo que dizer o retorno das receitas dos madeirenses, continuou. Assim, na sessão de 20 de setembro de 1920, reclamava-se que revertesse para a Junta Geral a totalidade dos impostos lançados pelo Governo central sobre produtos como o tabaco e estabelecimentos bancários, que na Madeira perfaziam cerca de 400 contos e que estavam destinados à assistência pública. O tabaco, por ser um produto sujeito a contrato exclusivo de venda, foi muito cobiçado e apetecido em termos do contrabando. Tal contrabando perdura no séc. XX, sendo uma das atividades ilícitas mais assinaladas e regulamentadas. Neste processo, até o clero intervinha, havendo referência a uma iniciativa nesse sentido por parte de Fr. António de S. Guilherme, em 1768. Recorde-se que, em 12 de novembro de 1768, o Gov. João António Sá Pereira refere que um guardião do convento, o P.e Manuel Joaquim de Oliveira, que contrabandeava tabaco, foi enviado para Lisboa, sob prisão. No séc. XIX, muito deste contrabando de tabaco era feito por Ingleses, nomeadamente a partir da possessão inglesa de Gibraltar. A 1 de fevereiro de 1876, regressava ao Funchal Leland Cossart, deixando o despacho das suas malas a cargo de um seu criado, como era costume. Pelo facto de se ter encontrado tabaco na bagagem, foi o empregado preso. Por força disto, movimentou-se o cônsul britânico em diligências, no continente e junto de autoridades britânicas, conseguindo-se a entrega das malas e, depois, a libertação do prisioneiro. O grande incentivo à cultura do tabaco aconteceu a partir da déc. de 70 do séc. XIX, altura em que surgiu a primeira fábrica, da responsabilidade do visconde de Monte Belo, a que se seguiu, em 1888, outra de João Sales Caldeira, que viria a tornar-se propriedade de Joe Berardo e Horácio Roque. Nos inícios do séc. XXI, a Madeira continua a ter um regime diferenciado no que respeita ao tabaco, existindo uma fábrica, a Empresa Madeirense de Tabaco S.A., que assegura o abastecimento local. Esta empresa, fundada em 1913 a partir da Companhia de Tabacos da Madeira, viu-se obrigada, em 1930, face à concorrência das empresas de tabaco açorianas, a comprar a fábrica Estrela, em São Miguel. Legislação: dec.-lei n.º 444/86, de 31 de dezembro: aprova o novo regime fiscal dos tabacos e revoga os decs.-lei n.º 149-A/78, de 19 de junho, 93/91, de 29 de abril, 196/83, de 18 de maio, 34/84 de 24 de janeiro, 115-A/85, de 18 de abril, e 172-D/86, de 30 de junho; dec.-lei n.º 49/90, de 10 de fevereiro; dec.-lei n.º 231/91, de 26 de junho; dec.-lei n.º 75/92, de 4 de maio; dec.-lei n.º 55/93, de 1 de março; dec.-lei n.º 325/93, de 25 de setembro; decs.-lei n.º 75/94, de 7 de março, n.º 221/94, de 23 de agosto, n.º 197/97, de 2 de agosto, pela lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro, e pela lei n.º 10-B/96, de 23 de março; dec.-lei n.º 103/96, de 31 de julho; dec.-lei n.º 197/97, de 2 de agosto; lei n.º 127-B/97, de 20 de dezembro; dec.-lei n.º 566/99, de 22 de dezembro; dec.-lei n.º 170/2002, de 25 de julho; diretiva n.º 2002/10/CE, do Conselho, de 12 de fevereiro; desp. normativo n.º 14/2005, de 24 de fevereiro; desp. normativo n.º 2/2004, de 10 de janeiro; dec.-lei n.º 155/2005, de 8 de setembro. Alberto Vieira (atualizado a 30.01.2017)
sousa, eurico fernando fernandes correia de
(1933-2015) Arquiteto, professor, poeta, Eurico de Sousa revelou interesse por todos os assuntos relacionados com a literatura e a arte, o cinema, a biologia (ecologia) e a etnologia. Desde cedo, a escrita e o desenho tornaram-se o veículo expressivo da sua preferência, tendo realizado diversos trabalhos nestas áreas, alguns deles apresentados em jornais, revistas literárias e na rádio. Depois da preparação básica e secundária, iniciou-se em Coimbra no curso de Medicina, ideia que rapidamente pôs de parte, por não se adaptar física e psicologicamente às condições que lhe eram exigidas. A propensão natural para seguir as artes levou-o a hesitar na escolha entre o curso de Pintura e o de Arquitetura. Decidiu-se finalmente pela arquitetura e partiu para o Porto, onde se matriculou na Escola de Belas-Artes, terminando o curso em Lisboa (ESBAL). Aqui frequentou o Café Gelo, centro de encontro de intelectuais da época, cuja convivência marcou de modo particular o seu percurso literário. Viajou pela Europa, Brasil e América Latina. Publicou dois livros de poesia e integrou algumas coletâneas. Nos últimos anos de vida, a fragilidade da sua saúde acentuou-se, o que o impediu de concretizar mais alguns projetos de publicação do seu espólio poético. Palavras-chave: Poesia; História da Arte; Biologia; Desenho; Arquitetura. Fig. 1 – Eurico Fernando Fernandes Correia de Sousa (arquivo particular). Eurico de Sousa nasceu no Funchal a 17 de maio de 1933, na R. da Levada dos Barreiros, n.º 32, casa paterna. Filho de Fernando de Sousa e de Alice Fernandes Correia de Sousa, ainda criança foi residir com os pais numa casa herdada pela mãe no Sítio do Papagaio Verde (S. Martinho), onde frequentou por curto espaço de tempo a escola mais próxima, situada no Areeiro. Mais tarde, o pai matricula-o no Colégio Nuno Álvares e aqui completa a instrução primária, com a Prof.ª Isabel Marina da Encarnação, que o considerava e distinguia pelo seu excelente aproveitamento. Permaneceu neste Colégio durante o tempo de terminar o Curso Geral (antigo 5.º ano), donde transitou para o Liceu de Jaime Moniz. Começou então a afirmar-se pelas suas nítidas tendências nas áreas do desenho e da pintura e era, por isso, solicitado para trabalhos extracurriculares, realizando cenários para récitas e colaborando assiduamente na revista escolar Presente, de que foi nomeado diretor. Nesta data, escreve um poema de carácter neorrealista onde avulta o interesse pelos problemas sociais dos habitantes da vila piscatória de Câmara de Lobos. De tal modo o absorviam essas tarefas, que se alheava do estudo obrigatório, pelo que achou por bem partir para Coimbra, em 1952, onde terminou duas cadeiras do 7.º ano (11.º atual). Dentre as disciplinas do currículo liceal, a Biologia atraía-o particularmente e proporcionava-lhe uma boa opção para a escolha dum curso. Apoiado pela decisão dum colega que se matriculara em Medicina, Eurico de Sousa tentou a experiência. Mas a sua fraca capacidade de resistência perante a degradação humana, nos processos de autópsia, e o ambiente frio e húmido desta região do país não lhe permitiram prosseguir na carreira. Ruma então ao Porto, em 1954, e é admitido na Escola Superior de Belas Artes. Os estudos iniciais eram comuns às várias disciplinas artísticas, e Eurico de Sousa hesitou entre Arquitetura e Pintura. Prevaleceu a Arquitetura e foi este um período promissor em que se revelou, com boas classificações. Trabalhos seus foram apresentados na Exposição Magna da Escola, o que, para um aluno principiante, constituiu um desejado estímulo. Segue-se uma interrupção em que cumpriu o serviço militar. Nesta época, 1956, de regresso à Madeira para um período de férias, conhece Herberto Helder e António Aragão. Escreve muito e colabora na revista literária Búzio, criada por António Aragão, e, a conselho de Edmundo Bettencourt, publica em Lisboa, nos cadernos Folhas de Poesia, dirigidos por António Salvado, cujo primeiro número veio a público em 1957. Esta publicação contava com um núcleo prestigiado de colaboradores, entre os quais, além do seu diretor e de Edmundo Bettencourt, também António Maria Lisboa, Fernando Echevarría, Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, João Rui de Sousa, José Carlos González, Helder Macedo, David Mourão-Ferreira, Herberto Helder e René Bertholo e Lourdes Castro na parte ilustrativa. Mais nomes se juntavam a esta plêiade, sendo que, segundo afirmam alguns investigadores, o estudo das Folhas de Poesia continua por fazer. Eurico de Sousa inicia nesta época (fins dos anos 50) uma interessante correspondência com Herberto Helder, que, a ser divulgada, constituirá um documento importante para a história da Madeira. Ao voltar ao Porto, vai frequentes vezes a Lisboa encontrar-se com este poeta, a quem dedica grande consideração e amizade, reconhecido também pelo acolhimento aos seus poemas – no extrato duma carta de Herberto Helder, lê-se “[…] saudando com entusiasmada surpresa a qualidade dos teus poemas”. É nesta fase que frequenta o café Gelo e conhece Mário Cesariny, Luiz Pacheco e outros surrealistas. Anuncia depois a desistência do curso e fixa-se na capital. No convívio com as ideias vanguardistas e certo cariz anárquico praticado pelos frequentadores do Café Gelo, que influenciaram a sua escrita e o estilo de vida, Eurico de Sousa foi desbaratando a mesada, alojado em quartos sórdidos e sobrevivendo mal, até que seu pai, ao emigrar para Caracas, resolveu criar-lhe a oportunidade de continuar ali os estudos. Eurico de Sousa começara a manifestar predisposição para estados depressivos, chegando a recusar oportunidades de colaboração em atividades que o valorizavam profissionalmente. Fig. 2 – Eurico Fernando Fernandes Correia de Sousa, Leblon, Rio de Janeiro (arquivo particular). Na Venezuela, devido à constante agitação, por vezes violenta, que se vivia nos meios académicos e à falta de intercâmbio cultural entre aquele país e Portugal, tornou-se impossível ali permanecer. Em 1960, outra tentativa de recuperação do curso, agora no Brasil, na cidade de São Paulo, onde tinha familiares. Ao procurar a faculdade que lhe permitisse concretizar esse objetivo, julgou tê-la encontrado no Rio de Janeiro, para onde parte. Novo desaire: a Faculdade de Arquitetura fora retirada para a ilha do Governador, e tão longo percurso era impraticável. Por aqui se manteve durante cinco anos. A última opção foi voltar ao Porto, onde realizou as cadeiras que lhe faltavam. Porém, era mais fácil economicamente fixar-se em Lisboa, onde, mais uma vez, hospedado em habitações insalubres, adoece, com um problema renal, que lhe exige uma cirurgia de urgência. Depois de ter ultrapassado toda esta atribulação, termina o curso de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Foi professor numa escola secundária em Santarém e em Tomar entre 1972 e 1974 e desejou voltar à Ilha. Entre julho de 1974 e outubro de 1981, trabalha no Gabinete de Urbanização da Câmara Municipal do Funchal, função que acumula com a de professor na Escola Industrial e Comercial desta cidade e no Instituto de Artes Plásticas da Madeira. Neste ano, tenta o estágio profissional para professor. É depois destacado para a biblioteca da Escola Secundária Ângelo Augusto da Silva e ali faz trabalhos de investigação literária de apoio ao currículo da disciplina de Português. Simultaneamente, apresenta na Radiodifusão local (atual Antena 1) um programa sobre temáticas literárias, interessando-se especialmente pela obra de Herberto Helder e Saint-John Perse e pelas propostas modernistas da Bauhaus. Publica, em 1980, o livro de poesia A Festa Sendo em Agosto (Ed. Eco do Funchal), com desenhos da pintora Alice Sousa, sua irmã, e prefácio de António Aragão, um volume espesso que contém quase toda a sua obra e que obteve boas referências de Eduardo Prado Coelho, Assis Pacheco, António Aragão e Herberto Helder. Em 1995, a Direção Regional dos Assuntos Culturais patrocina o seu segundo livro, intitulado Disgrafia Florestal, com desenhos da sua autoria. Integrou as coletâneas de poesia Ilha 4 (organizada por José António Gonçalves e editada em 1994 pela Câmara Municipal do Funchal), Ilha 5 (com organização de Marco Gonçalves e edição da Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008), O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses (com organização de José António Gonçalves, editada em 1989 pela Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigração), Poet’Arte 90: Poesia Madeirense (publicada pela Associação de Escritores da Madeira em 1990) e Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (organizada e traduzida por Giampaolo Tonini no Centro Internazionale della Grafica di Venezia em 2001). A poesia de Eurico de Sousa posiciona-se num cenário delirante, onde a manipulação das imagens se exerce completamente solta, integralmente livre, e as palavras, as suspensões, omissões, neologismos e sinais gráficos superam a norma significante, para se tornarem elementos estéticos especialmente apelativos. O pensamento expressa-se, assim, através duma sobrerrealidade que reinventa a tessitura da escrita de modo fulgurante, provocatório, criando uma propositada desordem, um ritmo caótico, automático, sufocante, que o poeta utiliza no sentido de denunciar o enigma e a ambiguidade do mundo e da própria natureza humana. Neste automatismo se vislumbram contornos de solidão, claustrofobia, uma velada mágoa que se expressa em versos como este, extraído do livro A Festa Sendo em Agosto: “(Tenho andado como quem não exista)./Só cortando o coração à noite/me apercebi desse absurdo” (SOUSA, 1980, 123). Obras de Eurico Fernando Fernandes Correia de Sousa: A Festa Sendo em Agosto (1980); Disgrafia Florestal (1995). Irene Lucília Andrade (atualizado a 28.02.2020)
sousa, antónio policarpo dos passos
Médico e poeta, Passos Sousa nasceu na freguesia da Madalena do Mar, Funchal, no dia 26 de janeiro de 1836 e faleceu a 26 de maio de 1875, com 29 anos, na freguesia da Ponta do Sol, também no Funchal. Era filho de Francisco Gomes de Sousa e de Francisca dos Passos e Sousa. Diplomado médico-cirurgião pela antiga Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, em 1859, foi secretário da administração do concelho da Ponta do Sol. Pertencendo a uma família da qual tinha emanado uma série de talentos, cedo mostrou uma enorme habilidade para a escrita literária, ainda que a falta de saúde e a morte prematura não lhe tivessem permitido cumprir a vocação com que nascera. Porém, apesar do seu curto tempo de vida, colaborou em vários jornais da Madeira, como O Direito, com os folhetins “O Mendigo”, “A Noite do Trovador”, “Vozes da Natureza”, “A Minha Aldeia”, “Morreu”, “O Homem e o Pecado”, “Arpejos Religiosos” e “O Sepulcro do Senhor na Ponta do Sol”, entre outros, e foi considerado no seu tempo um inspirado poeta, cujos poemas eram bastante apreciados. Pode ler-se uma composição sua no primeiro volume da coletânea Flores da Madeira e outras na Selecta de Poesias Infantis e no Álbum Madeirense. O seu longo poema “Lamento” surge na Musa Insular de Luís Marino. Este texto tem uma composição formal que confirma o cuidado estético do seu autor, dividindo-se em nove estrofes, sendo as duas primeiras irregulares (12 versos cada), as seis seguintes oitavas e a última uma quadra. O número de versos é equilibrado e coerente em ordem decrescente. Obras de António Policarpo dos Passos Sousa: “O Mendigo”; “A Noite do Trovador”; “Vozes da Natureza”; “A Minha Aldeia”; “Morreu”; “O Homem e o Pecado”; “Arpejos Religiosos”; “O Sepulcro do Senhor na Ponta do Sol”; “Lamento”. António José Borges (atualizado a 10.02.2017)
soares, laura veridiana castro e almeida (pseud. maria francisca teresa)
Maria Francisca Teresa é o pseudónimo literário de Laura Veridiana Castro e Almeida Soares (1870-1964). Cursou o liceu no Funchal, numa época em que não era vulgar uma rapariga, mesmo de boas famílias, prosseguir estudos. Casou-se com o jornalista e escritor Feliciano José Soares (1886-1952). Dedicou-se à literatura, centrando-se em trabalhos de tradução, em textos para a infância e em temas católicos. De acordo com o Visconde do Porto da Cruz, Laura Veridiana Castro e Almeida evoluiu no Funchal num círculo de senhoras refinadas, cultas e viajadas, como a escritora Luiza Grande (1875-1945). Durante as suas estadias em Lisboa, privava com intelectuais e artistas que encontrava em casa de sua prima, Virgínia de Castro e Almeida (1874-1945), ou na de Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921). Traduziu os romances A Cidade Eterna e O Apóstolo, de Hall Caine, ambos lançados em 1907 e reeditados várias vezes. Publicou três livros para a infância: Em Casa da Avó – na Ilha da Madeira, editado em 1923; Como Chica Conheceu Jesus, datado de 1925 e prefaciado pelo bispo do Funchal, D. Manuel António Pereira Ribeiro; e O Querido Tio Gustavo, do mesmo ano. Coordenou, no lapso de tempo que medeia outubro de 1927 e as vésperas da chamada “Revolta da Madeira”, em 1931, a secção quinzenal “Notícias Infantil” no Diário de Notícias do Funchal, então dirigido pelo marido, Feliciano Soares. Essa secção infanto-juvenil apresentava anedotas, adivinhas, poesias e sugestões de leitura. No contexto da literatura portuguesa para a infância do primeiro quartel do séc. XX, os três livros de Maria Francisca Teresa inscrevem-se na linha dos textos que vão apelar, como era prática corrente das autoras de ficção infantil da época, a um realismo quotidiano que instala a criança num universo que ela conhece e com o qual se encontra familiarizada. A intencionalidade didática da escritora revela-se nas situações e nos diálogos ilustrativos dos princípios ideológicos das famílias favorecidas desse período, com discursos de pendor moralizante, através dos quais se faz uma apologia das virtudes cristãs, visando moldar a consciência e o carácter dos jovens. Fig. 1 Capa do livro Em Casa da Avó na Ilha da Madeira As obras Em Casa da Avó – na Ilha da Madeira (provavelmente o primeiro livro de literatura infanto-juvenil que tem como cenário a Madeira), Como Chica Conheceu Jesus e O Querido Tio Gustavo apresentam, no seu frontispício, a menção “livro para crianças”. Dos três volumes, apenas o segundo não é ilustrado. A primeira monografia contém 27 pequenas gravuras e a última 7, todas elas a preto e branco e da autoria de Emanuel Ribeiro (1884-1972), insertas no desenrolar do texto com o propósito de, em regra, traduzir pictoricamente a cena correspondente. Como os títulos sugerem, a tónica aponta para a relação privilegiada entre pessoas de idade (a avó e o tio Gustavo), a criança (Chica) e o modelo de inspiração divina (Jesus), estabelecendo correlação entre jogos e ensinamentos, perguntas e respostas, histórias e experiências. A crença comum na possibilidade de educar a criança por meio de exemplos e de bons conselhos fundamenta o conteúdo e o estilo das cenas dialogadas, com um toque de moralidade, humor e carinho. Os livros visam, deste modo, abrir o espírito da criança à confiança na força do bem e alimentar-lhe a imaginação, quer com contos e lendas da tradição, quer aludindo a novas máquinas como os aeroplanos, o kodac e o malogrado vapor Titanic. No que diz respeito à transmissão de conhecimentos, o discurso ficcional investe no estudo do meio, nas regras de civilidade, na doutrina católica, bem como na sugestão de uma lista de leituras recomendadas. Podemos situar esta escritora “naquele movimento que esteve na origem do segundo grande fôlego da história descrita para a infância em Portugal”, de acordo com a periodização proposta por José António Gomes (GOMES, 2010, 10). Transitando do séc. XIX para o séc. XX, Maria Francisca Teresa vai evoluir nesse período “compreendido entre 1900 e os finais da década de 30 [que] constitui, em termos de qualidade e diversidade estética, a verdadeira época de ouro da literatura para crianças em Portugal” (Ibid.). Mulher da elite burguesa letrada, Maria Francisca Teresa participou nesse movimento empenhado e relacionado com a criação de uma moderna literatura para a infância, seguindo uma linha de pensamento aberto a uma pedagogia inovadora, mas defensora dos valores sociais e religiosos tradicionais. Além do mais, o pseudónimo adotado, Maria Francisca Teresa, parece reenviar para a então popularmente conhecida Santa Teresinha de Lisieux, nascida Marie Françoise Thérèse Martin, estabelecendo-se, assim, um forte vínculo espiritual católico. Fig. 2 - Em Casa da Avó (p. 268) O desenho representa o satélite da terra. Os livros de Maria Francisca Teresa reduzem a vida à descrição do quotidiano, firmado nos hábitos mais significativos das personagens (modo de expressão verbal, organização doméstica, convívios, passeios, visitas, festas, refeições, roupas, adereços e decoração da casa, entre outros), figurando, assim, traços essenciais da existência da classe alta da sociedade portuguesa nos alvores do séc. XX. Por via das narrações, descrições e extensos diálogos, os protagonistas prestam-se a adotar um comportamento exemplar face a modos rudes ou desprovidos de boa intenção, justificando o papel social das famílias de elite, a quem incumbe a responsabilidade de ilustrar o país. Essa valorização dos aspetos da vida privada das personagens revela-se através da seguinte divisão do tempo: os momentos de convivência familiar, as horas de estudo (as crianças de O Querido Tio Gustavo têm, por exemplo, explicações de inglês) e as horas de lazer. Se os familiares mais chegados das crianças protagonistas representam sempre caracteres de irrepreensível educação moral, tal não as impede de contactar com personalidades fisicamente diminuídas ou de feitio nem sempre fácil: uma «criança-velha», um idoso numa cadeira de rodas, uma sexagenária quase surda e desconfiada, relativamente às quais se espera dos jovens compreensão e paciência. Aquando desse cenário, a escritora contrapõe situações com desfecho cómico que visam aliviar a tensão do jovem público leitor, a exemplo da cena da noite de Natal passada em casa da prima Rita, na companhia de senhoras de idade: uma mesurada (a avó), outras tagarelas e aqueloutra surda e taralhouca, representativa do ridículo da velhice. No que toca aos tempos livres, ficamos a saber que os meninos em foco frequentavam o Jardim da Estrela em Lisboa e que, na Madeira, os jovens de boas famílias praticavam ténis. De resto, as meninas brincam com bonecas, os rapazes entretêm-se com o diábolo, com os jogos da berlinda, do gigante e do ferrolhinho. Quando é permitido às crianças de ambos os sexos estarem juntas, divertem-se com jogos de sociedade, tais como representações teatrais e disfarces, dominó e baralho de cartas (jogando ao “burro” e ao “diabrete”), charadas figuradas ou loto com prémios. Quando se encontram ao ar livre, organizam piqueniques, fazem jardinagem no quintal, jogam às escondidas, contactam com cães, caçam borboletas, dão um passeio a cavalo ou de burro. Em contrapartida, e apesar de os protagonistas apreciarem o artesanato e certas tradições na perspetiva de quem valoriza traços da sua identidade cultural, aferimos uma quase ausência de costumes das camadas populares, nomeadamente as de origem rural. A essas personagens são atribuídas funções serviçais. Além disso, a escrita de Maria Francisca Teresa não está isenta de preconceitos raciais e culturais, relativamente ao sotaque de madeirenses humildes, a meninos pobres trigueiros ou à comunidade cigana. Neste sentido, as suas narrativas fazem eco, nunca de forma proposital, dos desníveis sociais profundos existentes na Madeira e em Portugal, reveladores da mentalidade da época. Nos dois primeiros livros, a autora encena os mesmos protagonistas, como se de uma série se tratasse. Faz uso da técnica narrativa do gancho, ao recuperar um momento do último capítulo de Em Casa da Avó, ligando-o à abertura da nova história, Como Chica Conheceu Jesus. No final da primeira narrativa, o João, antes da viagem de regresso ao continente, pede à tia Valentina uma pequena anoneira que cresce na horta; na cena inicial do segundo livro, no jardim da casa dos pais, em Lisboa, Chica, desastradamente, arranca a anoneira, ao confundi-la com ervas daninhas. Do primeiro livro para o segundo, decorrem quase 20 anos entre o cenário de inícios de 1900 e o Natal de 1920, mas obliteram-se apenas 2 anos na vida dos petizes: a Chica, que tinha 3 anos, tem agora 5, o João, então de 8 anos, surge com 10, e o Manuel passa dos 9 para os 11 anos. Em O Querido Tio Gustavo, a escritora apresenta uma nova família. O protagonismo recai sobre uma mãe viúva, chamada Margarida, os seus quatro filhos, Vasco (15-16 anos, a cursar o liceu), Duarte (7 anos), Jorge (10 anos) e Marta (9 anos), e, como anunciado pelo título do livro, o tio Gustavo, tio-avô dos meninos. Vasco, o mais velho, cujo perfil se associa ao do morgado, é o sobrinho preferido e como tal será o seu herdeiro. Os três livros caracterizam-se por via da interseção de um conjunto de cinco fatores literários que, cruzados e unificados, individualizam a obra de Maria Francisca Teresa como um todo coeso: a representação da família burguesa tradicional; o carácter das personagens principais; a predominância do diálogo de ficção como mediação de valores e modo de legibilidade; a defesa e ilustração de um ideal católico; e, finalmente, a importância de contar histórias às crianças e de eles terem contacto com os livros. Visando um discurso narrativo acessível, sem nunca descuidar a linguagem e o estilo, o projeto literário de Maria Francisca Teresa parece conceber a eficácia da prática de leitura dos mais novos se esta for desempenhada em simultâneo na sua função de distrair, instruir e elevar (no sentido de construir o carácter do jovem leitor). Na sua ficção, encena-se a comédia da infância favorecida e faz-se uso de vários registos discursivos: o conto moral, o catecismo, o manual de bons costumes, a lição de coisas, histórias de animais. A autora procura explicar o mundo às crianças através da história, da geografia e da religião, constituindo uma espécie de “tratado de saber-viver e de saber comportar-se em voga nos meios literários femininos da época. Em vez de infundir ao jovem leitor um juízo crítico e ideias criativas, a voz do texto tenta propor modelos de conduta, visto, nos seus livros, a virtude ser sempre recompensada. Neste sentido, dado o quadro ideológico e a imagem da família que propõem, estes textos dificilmente encontrariam eco junto de jovens leitores do princípio do séc. XXI. Todavia, a obra de Maria Francisca Teresa não deixa de constituir um testemunho muito interessante, quer do modo como se concebiam os livros para a infância, quer dos discursos educativos que os enformavam. Obras de Laura Veridiano Castro e Almeida Soares: Em Casa da Avó - na Ilha da Madeira (1923); Como Chica Conheceu Jesus (1925); O Querido Tio Gustavo (1925). Thierry Proença dos Santos (atualizado a 11.02.2017)
silva, rui
Poeta madeirense que publicou os seus textos em vários periódicos da região, mas também em alguma imprensa brasileira. Era um escritor romântico, bucólico, sensível, com um sentimentalismo original e até estranho. Os seus versos, com valor poético, revelam espontaneidade e rigor ao nível da métrica e versam temas filosóficos e amorosos. Profissionalmente, foi desenhador de bordados numa firma funchalense. Faleceu quando se preparava para publicar uma coletânea de textos poéticos. Palavras-chave: poesia; sentimentalismo; filosofia; romantismo; bucolismo. De nome completo Rui Eleutério (ou Eleutero) da Silva, foi um poeta madeirense de finais do séc. XIX e inícios do séc. XX. Nasceu no Funchal, a 20 de fevereiro de 1884. Começou a singrar na vida literária quando escreveu os primeiros versos, sensivelmente na mesma época que Jaime Câmara. As suas poesias foram publicadas em jornais e almanaques da cidade, como o Diário Popular, Heraldo da Madeira, Diário da Madeira, Diário de Notícias, Novo Almanaque de Lembranças Madeirenses, Alma Académica e A Cruz, mas também há registo de publicações na imprensa brasileira, o que demonstra como foi um apreciado cultor de poesia. De acordo com as observações do Visconde do Porto da Cruz (PORTO DA CRUZ, 1953, III, 87), Rui Silva era um poeta romântico, bucólico, sensível e com um sentimentalismo imbuído de uma sensibilidade original que até apelida de estranha, própria de um poeta antigo, cujos versos revelam valor poético. Era um autor natural, espontâneo e formalmente rigoroso ao nível da métrica que se debruçava essencialmente sobre temas filosóficos e amorosos, primando pela originalidade. De facto, ao lermos uma das suas “Trovas” notamos a influência da lírica medieval e da vertente tradicional camoniana, até porque repete cada um dos quatro versos do mote (“Maria sacode a saia. / Maria levanta o braço, / Maria dá-me um beijinho, / Maria dá-me um abraço”) no primeiro verso de cada uma das glosas (cf. MARINO, 1959, 350). Esta poesia de temática amorosa apresenta quadras ao gosto popular, manifestando alegria, simplicidade, jovialidade e um tom humorístico, bem diferente dos lamentos, do sofrimento de amor e da infelicidade de outros poetas apaixonados. O “eu” poético chega ao ponto de advertir “Maria”, conduzindo-a até ao seu amor: “Maria dá-me um abraço, / Estreita teu peito ao meu; / Vem comigo e não te prendas / A quem nunca te mereceu…” (Id., Ibid.) Profissionalmente, Rui Silva foi funcionário da firma Farra & Marghab, na qual desempenhava o cargo de debuxador de bordados da Madeira, isto é, traçava ou desenhava esboços. Em 1930, foi erigido na Deserta Grande, por sua iniciativa, um pequeno padrão dedicado a N.ª S.ª da Paz. Faleceu repentinamente no Funchal, no dia 26 de agosto de 1931, portanto com 47 anos, vítima de uma angina de peito, quando preparava a publicação de uma coletânea com as suas melhores poesias. João Carlos Costa (atualizado a 03.02.2017)
silva, josé marmelo e
José Marmelo e Silva nasceu no Paul, concelho da Covilhã, a 7 de maio de 1911, tendo falecido em Espinho, a 11 de outubro de 1991. Frequentou o ensino secundário na Covilhã e em Castelo Branco, e o ensino superior em Coimbra e Lisboa, onde se licenciou em Filologia Clássica, com a dissertação Um Sonho de Paz Bimilenário: a Poesia de Virgílio. Fez serviço militar em Mafra, uma experiência com ecos em Depoimento, e na Madeira, vivência que ressoará em Desnudez Uivante. Regressa à Madeira já casado para, com a esposa, lecionar no Colégio Académico do Funchal, no ano letivo de 1946-1947. No ambiente insular, encontrou inspiração para escrever os Poemas da Ilha do Porto Santo, que publica na Seara Nova, na década de 1960. Foi, porém, em Espinho que exerceu funções docentes a maior parte do tempo, dando o seu nome à biblioteca local. De 1932 a 1983, publicou, com várias reedições, diversos livros, deixando inéditos os Memoriais, de carácter autobiográfico: O Homem que Abjurou a Sociedade – Crónicas do Amor e do Tempo, contos (Renegado); a novela Sedução; Depoimento, contos; O Sonho e a Aventura, narrativas; a novela Adolescente, título da 1.ª edição, alterado para Adolescente Agrilhoado na 2.ª edição aumentada; O Ser e o Ter Seguido de Anquilose, contos (a primeira versão de O Ser e o Ter é O Conto de João Baião, que teve uma única edição); o romance Desnudez Uivante. Foi agraciado, em 1987, com a medalha de ouro da cidade de Espinho e, em 1988, com o grau de Comendador da Ordem de Mérito, pelo então Presidente da República, Mário Soares. Obras de José Marmelo Silva: Poemas da Ilha do Porto Santo; O Homem que Abjurou a Sociedade – Crónicas do Amor e do Tempo (1932); Sedução (1937); Depoimento (1939); O Sonho e a Aventura (1943); Adolescente (1948) Adolescente Agrilhoado (1958); O Ser e o Ter seguido de Anquilose (1968); Desnudez Uivante (1983). António Moniz (atualizado a 03.02.2017)