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grabham, george walter

George Walter Grabham foi um cientista madeirense reconhecido internacionalmente. Nasceu na freguesia de Santa Luzia, no Funchal, a 28 de junho de 1882. Era filho do médico Michael Comport Grabham, autor de vários livros, entre os quais um sobre a Madeira, e de Mary Anne Blandy Grabham, que pertencia a uma família ligada à produção e exportação de uma reputada marca do vinho madeirense. Estudou Geologia no University College School e no Saint John’s University College de Cambridge. Trabalhou na Geological Survey of Great Britain, na Escócia (1903-1906), e foi para o Sudão anglo-egípcio como geólogo oficial (1906-1930). Tornou-se membro da Royal Society of Edinburgh e da Geographical Society e foi agraciado com a Ordem do Império Britânico. Colaborou no Geology of Edinburgh and East Lothian, com o artigo “The Geology of the Neighbourhood of Edinburgh” (1910), no The Geology of the Glasgow District, (1911), no The Journal of Geology, na Geological Magazine, com o artigo “The Geology of Knapdale, Jura, and North Kintyre” (1911), no The Geology of Ben Nevis and Glen Coe – Memoirs of the Geological Survey, Scotland (1916), e na revista Nature. Publicou o seu trabalho “Esboço da Formação Geológica da Madeira” no Boletim do Museu Municipal. O seu interesse pela botânica levou-o a estudar as árvores da serra da Encumeada, em S. Vicente, na ilha da Madeira, concluindo que a sua antiguidade excedia os cinco milhões de anos. Faleceu no Sudão, a 29 de janeiro de 1955, tendo merecido notícia nos obituários do Geographical Journal, publicado por The Royal Geographical Society (com o Institute of British Geographers), no Stanford, K. S. Obituary, Proceedings of the Geological Society e no Proceedings of the Geologists Association. Obras de George Walter Grabham: “The Geology of the Neighbourhood of Edinburgh” (1910); “The Geology of Knapdale, Jura, and North Kintyre” (1911); “Esboço da Formação Geológica da Madeira” (1948).   António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 13.12.2017)

Biologia Terrestre Geologia

gray, john edward

John Edward Gray John Edward Gray foi um naturalista britânico, que nasceu em Walsall, Staffordshire, a 12 de fevereiro de 1800, e que faleceu a 7 de março de 1875, tendo sido sepultado em St. Mary, Lewisham. Era filho de Samuel Frederick Gray, naturalista e farmacologista, e de Elizabeth Forfeit, filha de um comerciante. Em 1826, casou-se com Maria Emma Smith, que era viúva de seu primo Francis Edward Gray. Em criança, foi viver para Londres com os pais e o irmão, quando o pai conseguiu um emprego naquela cidade. J. E. Gray recebe a sua formação escolar em casa, ministrada por seus pais, com quem aprendeu a ler e a escrever. Gray trabalhou na farmácia de seu pai, localizada nos arredores de Londres, tendo colaborado na redação de obras como A Natural Arrangement of British Plants (1821). Trabalhou ainda com um médico, em Shoreditch, e, posteriormente, num laboratório químico. Encorajado pelo progenitor, J. E. Gray tenta estudar medicina, mas acaba por abandonar os estudos e dedicar-se à zoologia, começando a sua carreira de zoólogo como voluntário no British Museum. Em 1824, passa oficialmente a trabalhar no departamento de zoologia do British Museum, como assistente de John George Children (1777-1852), colaborando na redação de um catálogo sobre répteis. Em 1840, com a aposentação de Children, passa a chefiar o departamento, cargo que ocupou até ao Natal de 1874. Gray teve uma profícua atividade no Museu Britânico, na organização, redação e publicação de vários catálogos descritivos das coleções. Durante a sua direção, contribuiu para o incremento das coleções de zoologia, que se tornaram das mais importantes do mundo. Foi um escritor prolífico, que descreveu um grande número de novas espécies de animais que introduziu no Museu Britânico. É autor de mais de 1000 títulos, incluindo livros, memórias e artigos, sobretudo relacionados com a zoologia, que divulgou em periódicos ingleses de história natural e em catálogos do Museu Britânico. A sua contribuição para o conhecimento das ciências naturais da Madeira surgiu em 1862, com a publicação do artigo “Notice of a Second Species of Paragorgia Discovered in Madeira by James Yate Johnson” em Annals and Magazine of Natural History. Neste artigo, J. E. Gray divulga estudos do naturalista inglês James Yate Johnson (1820-1900), que chegou à Madeira por volta de 1850, onde estudou diversas espécies animais, marinhas e terrestres. Johnson enviou para o Museu Britânico uma coleção de peixes da Madeira, incluindo um espécime de animal marinho do género Paragorgia, que terá dado origem ao referido artigo de Gray. O diretor do Museu Britânico descreve aquele exemplar, que considera semelhante ao modelo norueguês em alguns aspetos, mas aponta diferenças em relação a este, e atribui-lhe o nome científico de Paragorgia Johnsoni. J. E. Gray era membro de várias sociedades científicas: em 1826, foi um dos fundadores da Zoological Society, da qual foi vice-presidente de 1865 a 1874; em 1830, tornou-se membro da Royal Geographical Society; em 1832, foi eleito para a Royal Society; em 1833, tornou-se membro da Entomological Society, tendo sido presidente em 1858-1859; em 1836, tornou-se membro da Botanical Society of London, à qual presidiu de 1836 a 1857; e, em 1874, tornou-se membro da Palaeontological Society. Em 1854, Gray foi distinguido com um doutoramento honorífico em Filosofia, atribuído pela Universidade de Munique. Obras de John Edward Gray: “Notice of a Second Species of Paragorgia Discovered in Madeira by James Yate Johnson” (1862).   Sílvia Gomes (atualizado a 13.12.2017)

Biologia Terrestre

formas de tratamento

O Sistema das Formas de Tratamento (SFT) em Português Europeu (PE), como referido por vários investigadores, entre outros, Lindley Cintra CINTRA, 1972), Gunther Hammermüller (HAMMERMULLER, 1993), Maria Helena Araújo Carreira (CARREIRA, 1997, 2001, 2002, 2008, 2009) e Isabel Margarida Duarte (DUARTE, 2010, 2011), é muito complexo. A sua complexidade, essencialmente de natureza pragmática, reside no facto de nem sempre o falante saber selecionar a forma que mais se adequa ao seu interlocutor. Este saber pragmático implica também uma competência de natureza sociolinguística e o conhecimento de várias formas para nos dirigirmos a outra pessoa, como ilustrado nos enunciados fornecidos em baixo: a. A senhora gosta de café ou prefere chá? Ø Gosta de café ou prefere chá? Ø Gostas de café ou preferes chá? A senhora Maria gosta de café ou prefere chá? A Maria gosta de café ou prefere chá? A dona Maria gosta de café ou prefere chá? A senhora dona Maria gosta de café ou prefere chá? Você gosta de café ou prefere chá? Tu gostas de café ou preferes chá?   A escolha de “tu”, “você”, “o/a senhor/a” ou “ø”, cujo conhecimento se relaciona com o domínio léxico-morfológico, é motivada pela maior ou menor familiaridade vs. distanciamento social, para além de fatores como a idade, o sexo/género, o nível de escolaridade e a posição social, existentes entre os interlocutores. No processo de adequação à situação discursiva, o falante terá “de possuir, no seu acervo lexical, um conjunto rico e variado de alternativas pelas quais possa optar, depois de avaliar devidamente a situação enunciativa, o estatuto e a relação entre os interlocutores entre os quais decorre a troca comunicativa” (DUARTE, 2011, 85). A 3.ª pessoa gramatical, a forma de tratamento mais frequente em português, contrariamente ao que ocorre, e.g., em espanhol, onde a forma “tu” é a mais usada, combina-se, no discurso: (i) com as diferentes formas nominais de nos dirigirmos ao outro (em 1a., 1d., 1e., 1f., 1g.); (ii) com o pronome “você” (em 1h.); (iii) e, sobretudo, com o sujeito nulo Ø (em 1b.), uma opção que permite evitar os mal-entendidos decorrentes de um uso inapropriado de “você”. Com efeito, o pronome “você”, quase generalizado no Português do Brasil (PB), coloca muitos problemas nas variedades do PE, sendo aceitável apenas em certas regiões e em certas variedades diastráticas, enquanto o seu uso na variedade-padrão se encontra muito condicionado a situações nas quais se está em presença de relações simétricas e de uma certa proximidade, de igual para igual, verificando-se como inaceitável na maior parte dos casos em que exista uma dissimetria social ou de idade entre os interlocutores. No Norte do país, que normalmente mantém os traços arcaizantes na língua, o uso de “você” é considerado uma enorme falta de educação. No entanto, nem sempre o uso de “você” pode ser depreciativo. Em certas situações, é até considerado apropriado, o que já não acontece com a variante “vossemecê”, que deve ser evitada em situações formais. Paiva Boléo (BOLÉO, 1946) confirma este uso, entre senhoras e senhores da chamada boa sociedade, se entre eles existir familiaridade. Refere também o facto de o uso de “você” ser mais urbano, em conversas informais entre jovens, embora seja mal considerado, ou mesmo visto como insultuoso, se for usado num ambiente rural. Por sua vez, Maria Helena Araújo Carreira (CARREIRA, 1997) defende que a estigmatização de “você” em PE é diferenciada em todas as regiões de Portugal e que as suas regras de uso dependem das classes sociais, das regiões, da idade e do género. Para Gunther Hammermüller (HAMMERMÜLLER, 1993), com base nos resultados de dois tipos de questionários realizados no Norte de Portugal, existiriam sete tipos de “você”: o “você” de respeito; o “você” de igualdade; o “você” de inferioridade; o “você” que elimina a ambiguidade (nas situações ambíguas onde não queremos ser informais, tratando a pessoa por “tu”, ou ser muito formais, tratando alguém por “o/a senhor/a”); o “você” afetuoso, com pessoas conhecidas dentro da família; o “você” de distanciamento, quando o locutor quer manter a distância com a pessoa a quem se dirige; e, por fim, o “você” metalinguístico, ou seja, quando usado para referir um “você”, como em “Você é um pronome” ou “Você é o sujeito da frase”, sendo desprovido de significado. De referir, por fim, que este problema só se coloca quando se usa “você” no singular. Na 3.ª pessoa do plural (3PP), “vocês” é perfeitamente aceitável, quando o locutor se dirige a vários destinatários. Em contrapartida, o uso da variante com pronome de 2.ª pessoa do plural, “vós”, relativamente confinado, nos princípios do séc. XXI quer geograficamente, quer do ponto de vista do tipo de discurso, é uma forma perfeitamente aceitável, e.g., na situação discursiva em que um sacerdote se dirige aos fiéis. Classificações Do ponto de vista morfossintático, segundo Lindley Cintra (CINTRA, 1972), o SFT do PE divide-se em três categorias: (i) o tratamento pronominal (“tu”, “você”, “vocês”, “Vossa Excelência”, “Vossa Alteza”, “Vossa Majestade”, “Vossa Senhoria”); (ii) o tratamento nominal (“o senhor”, “a senhora”, “o doutor”, “a dona”, “a doutora”, “o senhor ministro”, “o professor”, “o pai”, “a mãe”, “o avô”, “o Carlos”, “a Joana”, “a minha amiga”, “o patrão”, “a menina”, etc.); e (iii) o tratamento verbal (em português, o uso da 3.ª ou da 2.ª pessoa do verbo no singular, como em (1b.) e (1c.), sem sujeito expresso). O tratamento nominal é sempre acompanhado pela 3.ª pessoa verbal e distingue-se dos outros dois tipos por fazer sempre referência a algo relacionado com a pessoa a quem nos dirigimos. Esses traços individuais podem ser, e.g., o sexo/género: “o senhor”/“a senhora”; a profissão ou a categoria social: “o senhor doutor”/“o senhor ministro”; o parentesco: “o pai”/“a mãe”; o nome próprio: “o Joaquim”/“a Maria”; o nome de relação especial: “a menina”/“a minha amiga”. Gunther Hammermüller (HAMMERMÜLLER, 1993 e 2004) classifica as formas de tratamento em nominais, pronominais e verbais, como Lindley Cintra (CINTRA, 1972), mas propõe também a integração no sistema de uma nova categoria, designada por tratamento de evitação, que corresponde ao emprego da 3.ª pessoa (“Ø Deseja açúcar?”), uma forma alternativa utilizada para evitar a escolha de formas pronominais ou nominais que se referem aos estatutos sociais dos interlocutores. A perspetiva semântico-pragmática permite observar como o SFT se relaciona com a hierarquização da sociedade portuguesa. Neste plano, Lindley Cintra (CINTRA, 1972) distingue, e.g., formas de tratamento como: “você”, adequada para relações interpessoais que se se caracterizam como sendo de igual para igual, ou de superior para inferior, e que não implicam intimidade; “tu”, enquanto forma própria de intimidade; ou ainda as formas de cortesia que implicam uma distância entre os interlocutores, e.g.: “o senhor”, “o senhor doutor”, “o Joaquim”, “a Maria”, “a senhora Maria”, “a dona Maria”, “a senhora dona Maria”, “Vossa Excelência”, etc. O PE apresenta um sistema ternário para o tratamento alocutivo, ou o destinatário do discurso (“tu”/“você”/“o senhor”). A sua escolha realiza-se em função dos vários graus de aproximação e de distanciamento social entre o locutor e o alocutário, sendo “tu” empregue para o grau mais elevado da familiaridade, “você” para um grau intermédio e o “senhor” para o grau mais elevado de cortesia. A variedade PB apresenta um sistema mais reduzido, marcado pelo binómio “você”/“o senhor” nas suas variedades-padrão. A Figura 1, a seguir, sintetiza os dois sistemas nestas duas variedades do português, atendendo ao fator “grau de distância/proximidade” entre os interlocutores. [table id=96 /] No que se refere ao tratamento nominal, o português apresenta uma grande variedade de formas (Fig. 2, em baixo), cujo uso depende de vários fatores que definem a situação comunicacional e o funcionamento das relações sociais. As formas nominais, ou nomes vocatórios, podem ser acompanhadas de determinantes definidos e/ou possessivos, de adjetivos e de uma partícula interjetiva. O determinante utilizado pode aumentar ou reduzir a relação de proximidade ou de afastamento entre as pessoas. Os enunciados “ele é o meu caro amigo” e “ele é um amigo” distinguem-se, porque a escolha do possessivo precedido de artigo definido, no primeiro exemplo, implica uma familiaridade entre os interlocutores, enquanto o uso de um artigo indefinido, no segundo exemplo, implica a ausência de proximidade. O fator “nível de escolaridade/educação/habilitações académicas” implica formas de tratamento distintas, consoante alguém possua o título de doutor ou não, e.g.: “O senhor doutor tem tempo para mim?”/“O senhor tem tempo para mim?”/“Ø tem tempo para mim?”. Fatores como a formalidade ou informalidade da situação são também relevantes. Numa situação formal, é necessário tratar as pessoas com o respeito apropriado (“Vossa Excelência”, “o senhor”/“a senhora”) e, numa situação informal, usa-se, em geral, o tratamento de “tu”. As relações de respeito e de cortesia implicam sempre o tratamento formal (“o senhor”/“a senhora”). Uma situação de protocolo exige o tratamento mais formal possível (“Vossa Excelência”, “Vossa Santidade”, “Excelentíssimo Senhor Professor”, “Magnífico Reitor”, etc.). Atendendo ao grau de parentesco, usa-se o tratamento por “tu”, na maioria dos casos, embora se observe também, em algumas famílias, o uso de um tratamento respeitoso (“o senhor”/“a senhora”) com membros mais idosos (pais, tios, avós). É de notar ainda, em PE, a distinção semântica entre o uso do nome precedido ou não por artigo definido, com 2.ª ou 3.ª pessoas do singular, em função da situação comunicacional: “Maria, queres sair hoje à noite?”/“A Maria quer sair hoje à noite?”. Tanto no PB como no PE, observa-se o uso de títulos académicos, quer seja para homens quer seja para mulheres, embora haja alguma assimetria nestes usos, quando considerado o fator “género”. Para as mulheres, está reservado o uso do primeiro nome após o título profissional (“senhora doutora Sílvia”) e, excecionalmente, seguido do apelido (“senhora doutora Sílvia Vieira”); já para os homens, é a utilização do apelido que predomina (“senhor doutor Vieira”). Outra assimetria ligada ao género ocorre também quando se usam as formas “senhor”/“senhora”, que não são equivalentes socialmente. A gradação da distância é feita para o homem pelo uso do primeiro nome e/ou do apelido (e.g.: “ó Senhor António”, “ó Senhor Fonseca”, “ó Senhor António Fonseca”), enquanto para as mulheres a gradação é feita com base na hierarquia social (“a senhora”, “a dona”, “a senhora dona Ana” e, por vezes, seguido do apelido). No que diz respeito ao tratamento verbal, nota-se que, na variedade-padrão do PB, o singular só se usa na 3.ª pessoa, independentemente do grau de cortesia (“você”/“o senhor”/“Ø fala português?”), ao passo que, em PE, a oposição entre a 2.ª e a 3.ª pessoas do singular marca a distinção entre um contexto informal e um contexto formal (“Ø falas”/“Ø fala português?”). No plural, emprega-se a 3.ª pessoa em ambas as variedades do português para referir o alocutário em contextos formais e informais (“os senhores”/“vocês”/“Ø falam português?”). A forma verbal na 3.ª pessoa sem sujeito expresso, ou com sujeito nulo, constitui, em PE, uma estratégia que neutraliza o grau de deferência ou, em outras palavras, a expressão linguística com “grau zero de deferência” (CARREIRA, 2002, 175). [table id=97 /] De acordo com Maria Helena Araújo Carreira (CARREIRA, 2001), do ponto de vista dos participantes na interação verbal, as formas de tratamento podem ser classificadas nas seguintes categorias: elocutivas – EU designo EU – (designação do locutor, em português “eu” e “nós”); alocutivas – EU designo TU – (designação do alocutário, em português “tu”, “você”, “o(a) senhor(a)”, “o(a) doutor(a)”, “o João”, “a Maria”, etc.); e delocutivas – EU designo ELE – (designação do delocutário, em português “ele(s)”, “ela(s)”, “o(s) senhor(es)”, “a(s) senhora(s)”, etc.). A autora, face aos condicionamentos de tipo social que interferem na escolha da forma de tratamento adequada à situação, introduz dois novos planos de análise: o plano do eixo vertical, que representa a hierarquização dos lugares – relações sociais/profissionais, familiares e etárias –, e o plano do eixo horizontal, que dá conta da regulação da distância social – relações de proximidade ou distância social. SFT: Aspectos diacrónicos O SFT constitui um domínio muito sensível à mudança linguística por estar muito dependentes de variáveis sociais, em plena evolução. Na história do SFT em PE, podem ser delimitados, segundo Lindley Cintra, três grandes períodos: O primeiro período (finais do séc. XIII  até o começo do séc. XV): privilegia o sistema de tratamento pronominal, com recurso a “tu” e “vós”, usados entre íntimos e próximos, sendo a segunda forma utilizada entre pessoas cuja relação não permitia o uso de “tu”, fosse ela o Rei, um arcebispo ou um rústico; O segundo período (desde o séc. XV até aos finais do séc. XVIII): para além das formas pronominais “tu” e “vós”, surgem as primeiras formas de tratamento nominais de elevada cortesia, e.g.: “vossa mercê”, “Vossa Senhoria”, “Vossa Excelência”, “Vossa Majestade”, “Vossa Alteza”; No terceiro período (a partir da segunda metade do séc. XVIII): assiste-se à profusão de novas formas nominais de cortesia. A forma “vós” como tratamento cortês da 2.ª pessoa, dirigida só a uma pessoa, desaparece. Ao mesmo tempo, aumenta a degradação de “vossa mercê”, com o correspondente alargamento no emprego de “você”. Ficava assim aberto o caminho para o uso e para a expansão de formas nominais típicas do português dos princípios do séc. XXI, que exigem o verbo na 3.ª pessoa, e.g.: “o senhor”, “o senhor doutor”, “a mãe”, “o meu amigo”, “o Joaquim”, “a Maria”, “a dona Maria”, “a senhora dona Maria”, etc. O estudo de Lindley Cintra (CINTRA, 1972) configura, no que se refere à evolução do SFT no PE, as seguintes tendências: (i) uma progressiva eliminação do tratamento por “Vossa Excelência”, principalmente na língua corrente, conservando-se no registo oral apenas em certas profissões (telefonistas, empregados de comércio, etc.) e contextos (diplomacia, academias, tribunais, etc.) e na variedade escrita; (ii) o alargamento do uso do pronome “tu” e da 2.ª pessoa do singular, com perda do traço “intimidade”, que o caracterizava até então; (iii) a ampliação e, ao mesmo tempo, a redução do emprego do pronome “você”, com perda do seu carácter depreciativo e aumento do seu uso afetuoso, como se regista no PB; (iv) a manutenção dos tratamentos nominais variados e também uma lenta, mas progressiva, eliminação de tratamentos assentes na diferenciação social, tal como a que diferenciava o tratamento “a senhora Maria” (condição social inferior) de “dona Maria” ou “senhora dona Maria” (condição social superior). Algumas destas tendências seriam confirmadas mais tarde por Carlos Gouveia (GOUVEIA, 2008), para quem a mudança no sistema ocorre em direção a um maior nivelamento e reciprocidade sociais entre interlocutores. Este autor observa a extensão do uso de “você” em Portugal, especialmente entre os jovens, socialmente de classe média e popular, o que provoca alguma tensão junto de falantes mais idosos ou de estratos sociais elevados. No entanto, a continuação do uso de “senhor/a Dr./Dr.ª” e “senhor/a doutor/a” no local de trabalho, a primeira para alguém que é licenciado e a segunda para se dirigir a alguém que possui o doutoramento e/ou um médico, compensa o nivelamento apontado anteriormente. Parecem existir, assim, em PE, duas forças opostas que podem ocorrer no mesmo falante: uma que vai no sentido de minimizar as hierarquias sociais e outra que expressa a vontade da sua manutenção, parecendo atingir o sistema triádico que o caracteriza. Um dos aspectos mais notáveis do sistema antigo é a total ausência de tratamentos nominais, o que significa que não havia ainda separação entre os planos da intimidade e da cortesia/distância social. “Tu” ocupava o sector de intimidade, quando havia um certo grau de confiança entre as pessoas, e “vós” tinha um duplo emprego: como um singular de cortesia, destinado a pessoas importantes e a desconhecidos, e como plural indiferente ou forma para alguém se dirigir a várias pessoas. A componente nominal tem as suas raízes no final do séc. XV. De acordo com Lindley Cintra (CINTRA, 1972), as formas nominais, e.g. “vossa mercê”, “Vossa Alteza”, “Vossa Alteza Real”, “Vossa Senhoria”, remontam ao português medieval, tendo sido já atestadas no séc. XIV, como é o caso da forma “vossa mercê”, cujo primeiro registo data de 1331, em textos pertencentes à Corte, com carácter honorífico. No entanto, seria só a partir da segunda metade do séc. XV, período em que se observou a tendência para uma maior hierarquização social, que viria a ocorrer a expansão das formas nominais de tratamento. Assim, “vossa mercê”, a forma que teria dado origem ao “você”, atestada já no séc. XVII (mas cujo início de processo de pronominalização remonta ao séc. XVIII e cuja efetiva gramaticalização aconteceu no início do séc. XIX), era, nos sécs. XIV e XV, a forma nominal apropriada para falar com o Rei, deixando de ser usada, nesta situação, a partir do final do séc. XV, em 1490, altura em que passou a ser empregue para se dirigir a alguém nobre, estendendo-se o seu uso, no séc. XVI, aos burgueses. Nenhuma forma de tratamento passou por tantas transformações lentas e graduais como “vossa mercê”. Esta foi, no fim do séc. XV, substituída por outras formas, como “Vossa Senhoria” (usada pela primeira vez numa carta dirigida ao Rei, em 1434), “Vossa Alteza” (atestada pela primeira vez, também em relação ao Rei, nas Cortes de 1455), “Vossa Excelência” e “Vossa Majestade”. O documento que melhor ilustra esta expansão de formas nominais é a carta dedicatória da Crónica da Guiné, dirigida, em 1453, por Zurara. O cronista empregou, para o Rei, os tratamentos de “Vossa Alteza”, “Vossa Senhoria”, “vossa mercê” e também “vós”, e misturou os tratamentos nominal e o pronominal num mesmo parágrafo, enganando-se igualmente na concordância gramatical, uma vez que usou as fórmulas que exigem a 3.ª pessoa do singular (3PS) com a 2.ª pessoa do plural (2PP): “Como melhor sabe Vossa Alteza que uma das propriedades do magnânimo é querer antes dar que receber [...] E, como quer que em vossos factos se pudessem achar coisas assaz dignas de grande honra, de que bem poderes mandar fazer volume, Vossa Senhoria, usando como verdadeiro magnânimo, a quis antes dar que receber. E tanto é vossa magnanimidade mais grande quanto a coisa dada é mais nobre e mais excelente. Pelo qual, estando Vossa Mercê o ano passado e nesta cidade, me dissestes quanto desejáveis ver postos em escrito os feitos do Senhor Infante dom Henrique vosso tio” (ZURARA, 1949, 9-10). Com as mudanças nas relações políticas, sociais e culturais que decorrem do fim do feudalismo, assiste-se também a uma degradação das formas de tratamento, sendo necessário regular o seu uso. Em 1597, o filho do imperador Carlos V, Filipe II, publicou as leis, conhecidas por “leis das cortesias”, que estabeleciam os limites do emprego de cada forma de tratamento. Fixavam, para o Rei e a Rainha, o tratamento de “Vossa Majestade”; para os príncipes e as princesas, para os infantes e as infantas, para os genros e os cunhados de reis e para as suas noras e as suas cunhadas, fixavam o tratamento de “Vossa Alteza”; para os filhos legítimos dos infantes e para o duque de Bragança, a forma “Vossa Excelência”; e para os bispos, arcebispos, duques, marqueses, condes, governadores, embaixadores e vice-reis, a fórmula “Vossa Senhoria”. Em 1739, o Rei D. João V registou uma nova lei que também ameaçava de castigo cada pessoa que empregasse os pronomes de tratamento para com outras entidades além das enumeradas. Nela, transformou e alargou o emprego de “Vossa Senhoria” e de “Vossa Excelência”. A maior revolução no SFT do português foi provocada, a partir do séc. XIX, pelo aparecimento da 3PS, aplicada à segunda pessoa do discurso. Este tipo de forma de tratamento, acompanhado pelo primeiro nome, apelido ou nome de parentesco do interlocutor, passou a usar-se com bastante frequência em PE, entre as pessoas da mesma idade e categoria social entre as quais existia uma certa proximidade, permitindo a substituição não só das formas “você”, “o senhor”, mas também de “tu”, por outras formas nominais, e.g.: “O tio quer café?”/“A Maria não vai sair?”/“O Rodrigues está a brincar comigo?!”. A forma sem o sujeito expresso também passou a ser frequentemente utilizada, sendo adequada a todas as situações que não se pautem pela intimidade entre os interlocutores, como já anteriormente referido: “Ø Quer café?”/“Ø Não vai sair?”/“Ø Está a brincar comigo?!”. Formas de tratamento regionais O estudo do SFT do português falado, na variedade madeirense, está ainda por realizar. O conhecimento que se tem sobre esta questão é muito parcelar. Relativamente às características regionais na aplicação do sistema em PE-padrão (“tu”, “você”, “o/a senhor/a” e “Ø”) e nas suas correlações sociais de grau de proximidade/familiaridade e respeito, há que assinalar o estudo realizado por Alcina Sousa (SOUSA, 2012), com base num inquérito, cujo questionário segue o modelo da Eurolinguistix, aplicado junto de informantes madeirenses. Este trabalho permite observar as seguintes tendências, no que se refere às formas de tratamento usadas por falantes madeirenses em três tipos de situações: (i) de filhos para pais, com relações de maior intimidade e proximidade: uso de “tu” (mais frequente), sendo referidas pelos inquiridos outras formas, tais como “o senhor”/“a senhora”, “você”, “o pai”/“a mãe”; (ii) de crianças para familiares, onde estão em causa relações de respeito, relacionadas com a dissimetria das idades e da proximidade: o uso de “você” (o mais frequente), seguido de “o Senhor”/“a Senhora”, “o avô”/“a avó”; (iii) de patrão para empregado, ou seja, de superior para inferior, com maior distância social: “você”, seguido de nome + forma verbal na 3PS. Esta diversidade de usos nas três situações contempladas mostra que o próprio SFT do PE, no qual se incluiria a variedade regional, está sujeito a uma grande pressão social e que uma mesma situação poderá dar origem a várias possibilidades interpretativas e à escolha de formas de tratamento diferenciadas, consoante as características sociais (género, idade, escolaridade) dos falantes. Para além do SFT em PE-padrão e das suas micro-variações, ilustradas pelos resultados do estudo de Alcina Sousa (SOUSA, 2012), a variedade regional contempla também expressões vocatórias, seguidas de interjeições, tais como “amecê”, “apaz” (rapaz)/“apariga” (rapariga), “home”. Todas estas formas, pela sua configuração elíptica, parecem enquadrar-se na categoria de nomes hipocarísticos, descrita por Leite de Vasconcelos (VASCONCELOS, 1928). Trata-se de nomes informais, muito usados na linguagem infantil, razão pela qual seriam marcados por um traço semântico-pragmático de afetividade, adequado a situações em que se observa proximidade entre os interlocutores. O processo de hipocorização envolve o apagamento, ou truncação, de uma parte da palavra de base, que pode situar-se no início ou no fim da palavra, e.g.: Marissol > Sol; António > Tó; José > Zé; Fernando > Nando. Este processo pode ainda envolver duas palavras, e.g.: Maria Antónia > Mitó; Maria de Lurdes > Milu. Das expressões em uso nas variedades do português falado no arquipélago da Madeira acima referidas, “amecê” é a única palavra que se encontra registada na obra Vocabulário Madeirense, de Fernandes Augusto da Silva (SILVA, 1950), tendo sido também apontada por Canuto Soares, no seu artigo “Subsídios para o cancioneiro do arquipélago da Madeira. Tradições populares e vocábulos do arquipélago da Madeira”, publicado na revista Lusitana (SOARES, 1914), como sendo equivalente a “vossemecê”, ambas variantes do antigo “vossa mercê”. Também se encontra referida por José Rosado como estando em uso na ilha do Porto Santo, fazendo parte do artigo “Linguagem popular portossantense”, publicado, em 2003, na revista Xarabanda (ROSADO, 2003). Já “apaz” (<rapaz)/e “apariga” (<rapariga), expressões com truncação do segmento fonético inicial, encontram-se referidas no site Madeirense Puro, de onde foram retirados igualmente os seguintes exemplos, que representam varintes gráficas: “Ahpaz, tá-te dande?; “Ahpazzz tu tem cuidado para não emborcares essa tigela no chão”; “Ahpazz! Na’ tires os casques do talho!!”; “Ahpaaazzz... Grupe!”. A palavra que se destaca nestes exemplos é também parte integrante do título do blogue madeirense Apaz! Vais à Vila?. Quanto a “home” (< homem), trata-se de uma forma antiga, já atestada em português arcaico e integrada no seu sistema pronominal como forma de 3PS. É usada, na variedade regional, como um alocutivo/vocativo, e.g.: “Ah hôme, na m’atentes!”. O romance Canga, de Horácio Bento Gouveia (GOUVEIA, 1975), faz referência a uma forma pronominal “si”, também já atestada no PA, inicialmente delocutiva, mas usada como alocutiva, conforme pode ser observado nos seguintes exemplos, retirados desta obra: (1) - Antão que lh’aconteceu daí p’ra cá? - Si o sabe! - […] - Mei não acredita nei minhas intenções? - Cuma acraditar se si tem tão má fama!” (p. 50) - Si na diz a verdade! - Digo, digo - Mas si nã me disse ainda o que me quer!” (p. 63) (3) - Já ia tarde. Nem vua à Chapoeirada, a casa de me padrinho. - Se lh’agrada vua mai si.” (p. 64) O pronome de tratamento “si” parece funcionar, tal como surge nos diálogos acima, como uma variante popular e de respeito, relacionada com outras variantes que se caracterizam por requererem uma forma verbal na 3PS (“você” ou “senhor”), consoante a maior ou menor proximidade existente entre os interlocutores da interação verbal. Tal como nos outros domínios da variedade do Português Falado na Madeira (Sintaxe; Regionalismos ;Fonética), os dados provenientes das formas de tratamento, no plano léxico-pragmático, apontam, assim, para a coocorrência de traços arcaizantes (uso de “senhor” nas relações filhos/pais e uso de vocativos “home” e “si”) e de traços inovadores (uso de vocativos “apaz”, “apariga”).   Aline Bazenga (atualizado a 07.12.2017)

Linguística

fischer, sebastian

Sebastian Fischer foi um médico de clínica geral e investigador científico que viveu algum tempo na Madeira, durante o séc. XIX  e realizou estudos sobre o arquipélago madeirense na área da zoologia. Nasceu a 10 de novembro de 1806, em Munique, onde veio a falecer, a 8 de outubro de 1871. Em 1846, casou-se com Augusta Mulzer, que faleceu em janeiro de 1849. Em abril desse mesmo ano casou-se, em segundas núpcias, com Johanna Behse. Teve seis filhos, um do primeiro casamento e cinco do segundo enlace, dois dos quais sobreviveram apenas alguns meses. Após terminar os estudos, em 1830, na Univ. Ludwig-Maximilian, em Munique, foi para o Egito, onde permaneceu cerca de 10 anos. Durante esse tempo, esteve a trabalhar como médico de regimento no Exército egípcio, tendo participado, em 1835-1836, como chefe dos serviços de saúde, na expedição egípcia contra Hejaz. Foi ainda professor de Anatomia e Cirurgia na escola de medicina de Abu-Zabel. Foi nomeado chefe do corpo médico do exército e exerceu, até 1841, o cargo de diretor do Hospital Central Militar em Kasr El-Aini. De 1843 a 1853, em São Petersburgo, assumiu as funções de médico particular de Maximilian Eugen Joseph Napoleon, duque de Leuchtenberg (1806-1852). Sebastian Fischer acompanhou o duque em quase todas as suas viagens, durante o tempo em que esteve ao seu serviço. Foi numa dessas jornadas, em 1849, que o médico bávaro chegou à Madeira, Ilha que o duque procurara para fins terapêuticos. A fragata da marinha russa Kamtchatka fundeou no Funchal no dia 23 de agosto, mas os passageiros só puderam desembarcar quatro dias depois, devido a o navio ter estado de quarentena (SILVA e MENESES, 1998, 234-235). Na Madeira, S. Fischer permaneceu até 1850 e, como cientista especializado em entomostráceos (uma subclasse dos crustáceos de corpo mole e geralmente parasitas, que inclui os copépodes, as pulgas-de-água, os ostracodes, os trilobites, as cracas e os percebes), realizou investigações na área da zoologia, publicando depois o livro Ueber Entomostraken Madeiras (Munique) e o estudo “Beiträge zur Kenntniss der Entomostraceen”, em Abhandlungen der Mathematisch-Physikatischen Classe der Königlich Bayerischen Akademie der Wissenschaften (Munique). Após a morte do duque, em 1853, Fischer voltou para Munique, onde viveu até ao final da sua vida, dedicando o seu tempo à medicina e às investigações sobre os entomostráceos, tendo sido nomeadas em sua honra as espécies Paradoxostoma fischeri (descrita por Sars em 1866), Loxocorniculum fischeri (descrita por Brady em 1869) e Cypris fischeri (descrita por Lilljeborg em 1883). S. Fischer foi membro da Imperial Society of Naturalists of Moscow; da Academy of Sciences of St. Petersburg, membro correspondente da Royal Bavarian Academy of Sciences e da Royal Bavarian Botanical Society. Entre as suas contribuições para a ciência incluem-se a descrição de 1 novo género (Paradoxostoma Fischer, 1855) e de 31 novas espécies. Da sua vasta bibliografia fazem parte vários estudos científicos, publicados em revistas especializadas e em volume. Obras de Sebastian Fischer: Ueber Entomostraken Madeiras (1855); “Beiträge zur Kenntniss der Entomostraceen” (1860).     Sílvia Gomes (atualizado a 07.12.2017)

Personalidades Biologia Terrestre Ciências da Saúde

falar(es) na escrita

As duas faces de uma língua viva Constituída por uma vertente oral e outra escrita, uma língua é, por princípio, bifacial. Contudo, nem sempre os dois lados coexistem. Se for uma língua viva, a face oral, tem-na por inerência, mas pode não contemplar a escrita. Os crioulos cabo-verdianos constituirão um caso paradigmático disso mesmo, embora a situação se esteja a alterar com a tendência crescente para a fixação da fala do criouléu cabo-verdiano de Santiago, divergente, por exemplo, do de São Vicente. Se se tratar de uma língua morta, sucederá o inverso. É assim com a língua latina, que, grosso modo, subsiste apenas na escrita. Pela sua prolífera cisão, esta deu origem às línguas românicas, que, inicialmente, eram apenas faladas e que, por razões históricas, ganhando dimensão nacional ou regional, se tornaram, na sua maioria, escritas. A língua portuguesa, com 800 anos de história contados a partir do Testamento de D. Afonso II, datado de 1214, é exemplificativa de uma língua latina com escrita fixada, havendo percorrido um longo percurso para o efeito. Todavia, há línguas que estavam mortas e que voltaram a ganhar vida, ou seja, readquiriram uma vertente oral. Foi o que aconteceu com a hebraica, aquando da criação do Estado de Israel. É possível contar com outras línguas que nunca foram escritas e que desapareceram ad aeternum com a extinção da sua comunidade de falantes (cf., p. ex., DN, 7 fev. 2011, 49). Algumas mantêm-se vivas pontualmente, como os versos sânscritos recitados em exercícios de ioga. Neste conjunto de línguas, seria igualmente viável inserir o latim, já que a Santa Sé o usa ocasionalmente, sendo a sua língua oficial, embora o italiano a substitua em grande parte das ocasiões em que é indispensável recorrer a um registo linguístico de viva voz. Assim sendo, compreende-se que a dinâmica de um idioma é dada pelo facto de ele ser falado, usado na comunicação diária dos membros de uma comunidade. Esta evidência reencontra-se na relação dos termos “comum”, “comunidade” e “comunicação”, ao integrarem a mesma família. Entre línguas naturais mortas (desaparecidas ou conservadas), ressuscitadas e vivas, a relação entre as suas duas faces, os dois registos, é incontestável. Podem esses dois lados (ou apenas um deles) encontrar-se num estado latente/implícito (sem escrita ou sem oralidade) ou patente/explícito (com escrita e com oralidade). No geral, é à comunidade de falantes (os usuários das línguas numa ou nas duas facetas) que cabe decidir o que pretende fazer. Acontece que, nas trocas linguísticas quotidianas, a variedade da língua empregue raramente corresponde, com completude, à que está padronizada nos dicionários e nas gramáticas, nos compêndios e nos prontuários, já que os membros de uma comunidade vão recorrendo quer a diversos níveis da linguagem, consoante as situações de comunicação em que se encontram – das mais formais às mais informais –, quer a variedades sociais ou diatópicas com cunho específico. É preciso ter em conta que estas últimas recebem a influência da área geográfica onde os falantes nasceram e vivem ou onde passaram a residir, sem aí terem nascido. Assim, sucede que na Região Autónoma da Madeira (RAM) se fala de uma maneira que não é integralmente comum à do restante território nacional, embora também se recorra, nesta área geográfica insular, à variedade padrão, de modo mais premente na escrita documental e oficial. Compreende-se, consequentemente, a razão por que a variedade regional tem somente registo oral, não possuindo nenhum registo escrito oficial. É famosa a frase “O grade azougou e foi atupido na manta das tenerifas”, apresentada como um exemplo ilustrativo do falar regional usado pela população, sendo incompreensível a quem seja de fora, isto é, estranho à comunidade. Aliás, vão-se divulgando textos escritos “à madeirense” (incluindo do Porto Santo: cf., p. ex., ROSADO, 2003). É também esta a ideia que perpassa, por exemplo, no texto “Linguagem Popular da Madeira”, da obra homónima (SILVA, 2013, 23-27), e na crónica “Falares Ilhéus” (JARDIM, 1996, 23-24). No arquipélago, é frequente ouvir dizer, mesmo numa situação formal de comunicação, que determinada tarefa leva “horas de tempo” (“Esse trabalho leva duas horas de tempo”), mas a expressão não se deverá escrever, já que, no plano da escrita, vigorará a norma que aceita unicamente “horas” (“Esse trabalho leva duas horas”). Esta discrepância é fácil de entender, visto que as entidades que controlam o idioma, nomeadamente no que se refere ao ensino, para o manterem homogéneo, o mais uniformizado possível, optaram por uma grafia única, a da norma, um padrão imposto às restantes variedades. Assim, a qualidade bifacial do Português assume, do lado da escrita, à partida, a invariabilidade, mas reconhece, do lado da fala, a variabilidade. Infere-se, daí, que a norma é a única variedade com menos variação. Todavia, a este propósito, sublinhe-se que a definição de “norma” pode não ser unânime. Embora este conceito tenha uma base incontestável, quando a definição remete para “que serve de modelo, de padrão”, foi posto em causa, ultimamente, devido à população referencial que a consubstancia. A que falantes corresponde a norma? Reporta-se aos mais instruídos, sejam eles de que parte do país, e do mundo, forem? Tem origem, em exclusivo, nos falantes mais escolarizados (estrato social médio-alto) de uma área geográfica precisa (Lisboa ou Coimbra-Lisboa)? Para o Português Europeu, equivaleu à variedade usada pela classe alta do eixo Lisboa-Coimbra, e para o Português do Brasil, à das classes altas do Rio de Janeiro (CUNHA e CINTRA, 1995). Como já referido, este conceito de cariz social e geográfico tem sido alvo de alguma refutação, estando, claramente, a ser reequacionado (cf., p. ex., EMILIANO, 2009), o que é compreensível numa sociedade do séc.XXI que, pesem embora as enormes desigualdades sociais, tende para a existência de uma classe média mais forte, com diminuição dos extremos no que toca ao poder económico. Este é, pelo menos, o cenário generalizado na sociedade ocidental. Esquecendo, momentaneamente, a problemática colocada pelo conceito de “norma linguística” e centrando a temática na questão das variedades, sabe-se que, habitualmente, os falantes regionais dominam, pelo menos, duas variedades linguísticas: a exógena (a normativa) e a endógena (a nativa). Diz-se, então, que existe um fenómeno de diglossia, muito semelhante ao bilinguismo. Torna-se evidente, porém, que isso se aplica em exclusivo ao registo oral, uma vez que, na escrita, predominará a ortografia estabelecida para a língua oficial. Por exemplo, num bilhete para um familiar, um madeirense poderá escrever algo como “Vamos ir lalá lalém com Maria. Junta a mochilha!”, hesitando na grafia de “lalá”: “lá-lá”/“lá lá” e de “lalém”: “l’além”/“lá-além”/“lá além”. Todavia, se ele tivesse de transmitir esta mensagem a alguém que não fosse da mesma variedade diatópica, encontrando-se, além disso, numa situação de comunicação que requeresse adequação linguística, deveria alterá-la, adaptando-a com uma proposta como “Vamos dar um passeio acolá com a Maria. Apanha a mochila!”. Numa comparação geral destas duas possibilidades, observa-se que as divergências existentes entre o registo exógeno e o endógeno são substanciais e mereceriam a elaboração de um dicionário (Regionalismos Madeirenses) e de uma descrição gramatical (REBELO, 2014a). Esta deveria dar conta de todas as marcas linguísticas que individualizam a variedade regional a nível da Fonética, da Morfologia, da Sintaxe e da Semântica, incluindo os outros campos dos Estudos Linguísticos, o que os vários trabalhos existentes, de que fazem parte as dissertações académicas, tenderam a fazer de modo parcial. Fica claro que a norma de uma língua viva tem uma vertente oral e uma escrita, mas tal não sucede com as variedades diatópicas, uma vez que possuem unicamente, em termos oficiais, registo oral. Pontualmente, quando se vê escrita nas mais diversas situações de comunicação, nem sempre, por diversas razões, é evidente a variante a fixar (REBELO, 2014b). Aliás, as corruptelas, ou seja, “pronúncia ou escrita de palavra, expressão, etc. distanciada de uma linguagem com maior prestígio social” (HOUAISS, 2001), presentes nas entradas de vocabulários e glossários são prova disso mesmo. Com frequência, surgem na imprensa (cf. os jornais regionais publicados diária ou semanalmente na RAM) hesitações. É o caso de “persiana”, um vocábulo que não se usa no arquipélago e que é, sistematicamente, substituído pelo termo tido como regional “tapa-sol” ou “tapassol”, parecendo difícil escolher entre uma ou outra variante. Acontece de igual modo com muitos outros termos registados nos vocabulários existentes (cf. RIBEIRO, 1929; SILVA, 1950; SOUSA, 1950; PESTANA, 1970; e CALDEIRA, 1993, entre outros). Esta variação gráfica assinala-se, inclusive, nos estudos linguísticos, como os de Käte Brüdt (1938) e de Millet Rogers (1940, 1946 e 1948), que anotaram as palavras da forma como as ouviram pronunciadas pela população. A audição com apontamento foi a metodologia seguida por grande parte dos estudiosos da variedade insular madeirense. Aliás, estes dois investigadores, como quase todos os outros dos três primeiros quartéis do séc. XX, arranjaram uma transcrição sui generis para grafar a dinâmica da fala madeirense (REBELO, 2002b). Este método de registo do(s) falar(es) faz lembrar o da “pronúncia figurada” (REBELO e SANTOS, 2013, submetido), que se empregou extensivamente antes de haver alfabeto fonético internacional. Veja-se o seguinte exemplo para “vinho”, evidenciando a diferença entre a pronúncia figurada, como a expressa em “vâinho” (BRÜDT, 1937-1938), e uma transcrição fonética que se poderá considerar equivalente: ['vɐjɲu]. Sinteticamente, a expressão “pronúncia figurada” significa aquilo que os termos constituintes evidenciam, ou seja, é a representação escrita (figurada), através das letras do alfabeto latino e de determinados sinais adicionais, como acentos gráficos, usada para poder ser reproduzido por meio da leitura (articulação) um modo de dizer (pronúncia) de uma língua estrangeira ou de uma variedade geográfica. A única face visível da variedade diatópica madeirense A variedade insular madeirense, no seu todo, tem, consequentemente, patente a face oral, uma vez que é exteriorizada através da verbalização, e latente (invisível) a faceta escrita, dado que não possui gramática oficial, nem ortografia definida. O mesmo se verifica para as restantes variedades regionais portuguesas ou para as outras realidades não diatópicas lusófonas, como as africanas ou as asiáticas. Podem existir estudos que descrevam ou registem particularidades da oralidade das variedades, mas são restritos e pontuais. Aliás, a “transcrição alinhada” que acompanha as gravações dos CD’s Português Falado (BACELAR DO NASCIMENTO, 2001) normaliza consideravelmente a vitalidade da fala, distanciando-a bastante da grafia que surge a acompanhar o registo oral dos falantes gravados. Porém, esta situação tem vindo a ser alterada, dando-se visibilidade ao registo da variedade, como aconteceu para São Vicente (cf. FREITAS, 1994), embora não se tenha acesso às gravações realizadas pela pesquisadora. Quase todos os trabalhos, incluindo os académicos, curiosamente, facultam o registo escrito (transcrição), mas não dão o registo oral gravado que motivou a transcrição, sucedendo o mesmo com os trabalhos dos atlas linguísticos (REBELO e NUNES, 2009), em que apenas se publica a transcrição fonética dos termos cartografados. É assim desde o início das investigações, mas ressalva-se que, antigamente, os meios técnicos eram praticamente inexistentes. Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo e Lindley Cintra interessaram-se pelo estudo da variação diatópica portuguesa, procurando atestar (por escrito) estas realidades linguísticas ultradinâmicas. Quanto à existência de uma única variedade madeirense ou de muitas, uns preferem o singular (VASCONCELOS, 1901, 1970) e outros o plural (CINTRA, 1990, 2008). Escreveu Lindley Cintra que “[...] não parece certo afirmar sem hesitação que o grupo de dialetos madeirenses (como, aliás, os açorianos) pertence ao grupo dos dialetos meridionais do continente, como também será inexato associá-los sem reservas ao grupo dos setentrionais. Misturam-se neles características próprias de ambos os grupos, o que obriga a situá-los num grupo à parte – ‘insular’. Dentro desse grupo os dialetos madeirenses isolam-se dos restantes devido à existência, que procurei rapidamente apresentar, de fenómenos raros, ausentes dos dialetos de outras ilhas, do continente e por vezes até – podemos acrescentar – do resto daquilo a que chamamos România” (CINTRA, 2008, 104). No entanto, apesar de optar pelo plural, não os identifica, nem os localiza. Indicar, unicamente, diversas particularidades não parece suficiente para justificar a existência do plural “dialetos madeirenses”. Foi testado o reconhecimento auditivo da variação na variedade insular madeirense (REBELO, 2011) e comprovou-se que dificilmente os ouvintes conseguem identificar, simplesmente pelo falar, a origem regional dos falantes. Assim, por falta de provas e de estudos consistentes sobre este assunto, opta-se por referir a variedade no geral e, consequentemente, no singular. Aliás, a designação “madeirense” (até prova em contrário) serve perfeitamente para o efeito, fazendo equivaler a linguagem regional ao identificativo do habitante (língua e gentílico), como acontece com a maioria das línguas vivas (REBELO, 2014a). Antes de os estudos pós-saussurianos centrarem a análise linguística na parole (fala), em vez de se concentrarem na langue (língua), os filólogos debruçavam-se sobre os textos escritos, em especial os literários. Deles colhiam informações pertinentes para o estudo da langue, em particular da sua diacronia e história. Criando-se a Linguística como disciplina científica, o que passa a interessar não são os textos fixados em suportes deterioráveis como o papel, mas a riqueza sincrónica da fala multivariável, com um suporte físico “imaterial” (o ar). Este afastamento da escrita levou os especialistas da linguagem, sobretudo os dedicados à análise da fala, num plano sincrónico, a olvidarem totalmente os registos literários. Ora, para os linguistas que têm procurado estudar o português falado na RAM, através de transcrições e de gravações, é de todo conveniente observar, igualmente, os contributos dos escritores regionais. No séc. XX, sobremaneira na primeira metade, indo mesmo aproximadamente até à déc. de 70, as transcrições linguísticas presentes em dissertações de licenciatura, e noutros trabalhos académicos, como se referiu, não diferiam muito das propostas presentes em textos literários, nos diálogos de personagens tipicamente regionais, estando ambos (trabalhos académicos e textos literários) muito próximos do método da “pronúncia figurada”. A descrição da fala regional importa aos estudiosos da linguagem e a um número considerável de escritores, embora numa abordagem menos científica do que a que orienta um linguista. Logo, é a Literatura que vai permitir registar a escrita do modo regional de falar, mesmo se algumas produções literárias não têm seguido esta via, o que aconteceu na recolha de contos populares (FREITAS, 1996) ou de rimances (FERRÉ e BOTO, 2008). Não se almeja, no entanto, abordar a questão da “Literatura Madeirense” (cf., p. ex., HOMEM, 1999 e SANTOS, 2007, 2008), mas tão-somente valorizar, para o falar da variedade madeirense na escrita, o contributo de textos literários de alguns escritores, mais ou menos conhecidos, consagrados ou não, relevantes ou insignificantes quanto ao cânone literário (SANTOS, 2008). A escrita da variedade madeirense: a relevância do texto literário Em termos linguísticos, se o português falado na RAM é apenas unifacial por possuir exclusivamente a face oral, quando olhado sob o prisma literário, torna-se bifacial. Contudo, a dimensão escrita que adquire não é ortográfica, mas fonográfica ou grafofónica (REBELO, 2013 e 2014, no prelo). Estes dois últimos termos estabelecem uma íntima relação entre a dimensão “gráfica” (representação escrita) e a “fonia” (produção oral) para dar conta das características regionais ou locais de um modo de falar. Consistem, por assim dizer, no mesmo processo empregue no registo da “pronúncia figurada”. Posto isto, convém, todavia, clarificar que as representações escritas do registo oral regional vão variando consoante os escritores e a maneira como captaram as sonoridades insulares, não havendo, portanto, uma relação unívoca entre estas duas faces. As causas para este fenómeno serão múltiplas e não se equacionam de momento. A poligrafia literária faz lembrar o polimorfismo próprio do Português Arcaico (cf., por exemplo, VÁZQUEZ CUESTA e LUZ, 1988). Por exemplo, o Dicionário Houaiss apresenta a evolução histórica dos significantes e verifica-se que nem sempre um determinado vocábulo (ex.: “igreja”) se escreveu da mesma maneira, tendo tido, num mesmo período ou em mais, várias formas (ex.: “egreja” e “ygreja”, entre outras possibilidades). Em parte, isso verifica-se porque os diversos autores tidos como regionais foram fixando e dando corpo gráfico, visibilidade impressa, às sonoridades insulares, segundo a sua própria captação da fala. Este processo de materialização dos diversos níveis da variedade insular (como o social: calão, gíria, etc.) na escrita literária sucedeu no plano internacional (p. ex., em França, com Raymon Queneau, e em Moçambique, com Mia Couto) e nacional, com escritores como Lídia Jorge ou Aquilino Ribeiro. Aliás, é sabido que já Gil Vicente procurara conferir um estilo linguístico a determinados tipos de personagens, moldando a grafia segundo traços de pronúncia. Logo, esta especificidade não se observa unicamente na RAM, uma vez que é comum a outras variedades, registos ou línguas. Deste modo, não é uma estratégia exclusiva do espaço criativo madeirense. Contudo, é aqui que a interessa observar, esboçando-lhe os contornos para a configurar. São, sobretudo, as personagens representativas das camadas sociais mais baixas, tipicamente populares, que, nos textos literários, vão “falar à madeirense”. O valor científico da linguagem popular (BOLÉO, 1942) e a problemática da relação entre “popular” e “regional” (VERDELHO, 1982) são tópicos prementes para o estudo do registo escrito das variedades. A escrita ficcional tende a querer assumir traços de realismo linguístico (REBELO, 2008, 2013, 2014 no prelo). Portanto, as personagens, enquanto entidades literárias intratextuais, ganham pujança extratextual, representando um modo de falar de um povo de uma região. Têm entidade individual, muitas vezes com nome próprio, mas identificam o conjunto, a comunidade. O texto adquire, então, um colorido regional quando estas personagens populares, quer iletradas quer pouco ou nada instruídas, falam, sendo recriadas pelos autores. A grafia da fala representada passa a ser desviante porque é uma “transgressão ortográfica”, visto corresponder a uma transcrição gráfico-fónica. As letras do alfabeto latino são usadas para escrever a pronúncia regional que se afasta da representação ortográfica normativa (como no processo da “pronúncia figurada” e de modo distinto da transcrição alinhada, representação ortográfica que acompanha linha a linha a produção de um texto oral). São, assim, as sonoridades específicas da variedade diatópica madeirense que passam a ser escritas. É complexo saber quem terá sido o primeiro autor a procurar registar o falar regional madeirense na escrita, nomeadamente literária, uma vez que a tendência foi quase sempre a de normalizar a grafia. Sem considerar o registo pontual de Mariana Xavier da Silva (1884), Ricardo Jardim, que passou alguns anos em Inglaterra, apresenta-se, com Saias de Balão, como o percursor, até que se descubra outra referência. Este autor regista a fala na escrita de maneira muito incipiente e de forma esporádica. Esta acontece, essencialmente, quando os “criados” falam, como se verifica no seguinte excerto: “Menêina, nã vaia p’ra riba!... Menêina, vai-se pisar!... Menêina, aprante-se p’ra aí! Esteja quètinha!... Credo! Abrenúncio!” (JARDIM, 1946, 32). Desta deixa, sobressai, entre mais particularidades, a ditongação do <i> tónico (êi), considerada como tipicamente madeirense. Em contraponto com Ricardo Jardim, indubitavelmente, um dos autores que mais empregaram este processo da escrita do falar terá sido, por certo, Horácio Bento de Gouveia (SANTOS, 2007). Se não o fez em todos os contos, usou-o, pelo menos, sistematicamente nos seus romances (ALMEIDA, 2000). Apresenta-se um excerto da obra Torna-Viagem: o Romance do Emigrante (GOUVEIA, 1995, 56): - Q’ aconteceu? - O navoeiro matou mê filho! - Aonde? - Na beira da rocha. - Antão ’tá no fundo da ribeira. – E chamou, repentinamente, com toda a força da arca do peito: - Manel? Manel? - O quia, mê pai? - Vem cá. Neste breve diálogo, além de outros fenómenos, regista-se a ditongação com crase em “quia” (que é), sendo notória, no início do diálogo, a ausência do artigo definido antes do possessivo (Sintaxe) com a frequente monotongação deste (“mê filho”). Estes traços são correntes na variedade madeirense, embora, como se sabe pelos trabalhos de vários estudiosos e linguistas como, p. ex., Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo ou Lindley Cintra, comuns a outras variedades portuguesas. Entre estas duas tendências extremas (usar pouco – Ricardo Jardim – e empregar muitíssimo – Horácio Bento de Gouveia), diversos autores foram escrevendo a variedade diatópica madeirense. No entremeio, estará, p. ex., António Marques da Silva, com a “crónica romanceada” Minha Gente, obra póstuma, mas cuja finalização data de 1951. Dando voz às gentes da zona de São Jorge (Santana), reproduz o autor o falar do povo local, como evidencia a citação que se transcreve (SILVA, 1985, 13): – O mê digosto é nã poder botar-me desta terra pá rua. Ainda cum queira mercar um casaco pá missa, nã se pode. Anda-se atolado em lameiro todo loi dias e o que se ganha mal dá pá barreiga... – E si que dê graças a Deus em ter uma buxada para meter na boca... – acrescentou o outro, no mesmo tom melancólico. – Si amode canda reinando ca vida, Man’leinho? – soltou de lá um mais folgazão. – Ora! Cadmiração! Por aquei é com ’um porco que tá dentro do chequeiro. No há com’as outras terras! O Rodrigues, porém, insistia: – Poi sim... Mas si que veja o prove do João Perfeiro, do Farrobo, um homem como um teil, que veio arrebentado daquelas terras do fasteio!... Destaca-se também nesta amostra da escrita da fala a ditongação de <i> tónico (“Man’leinho” – Manuelinho, “barreiga” – barriga, “aquei” – aqui, “teil” – til, “fasteio” – fastio). Este ditongo, com semivogal divergente da palatal ou da velar normativas, reencontra-se, p. ex., no estudo acústico sobre o falar do Porto Santo (REBELO, 2005). Sobressai o uso da forma de tratamento com “si”, entre vocabulário típico (“mercar”, “um lameiro” ou “reinando”) e diversos fenómenos fonéticos, como mudanças de timbres, supressões, etc. Realça-se a forma do artigo definido masculino plural “loi” e a monotongação do possessivo “mê” (meu), mas, aqui, antecedido do artigo (“o mê”). Como se verifica, a exploração das particularidades linguísticas registadas deveria ser alvo de uma investigação aprofundada, podendo, crê-se, ter um considerável interesse para o linguista. A reaproximação da Linguística à Literatura merece, assim, para o estudo da variedade insular, uma atenção especial. Além destes três autores mencionados, apontam-se outros por serem, porventura, os que mais ilustram esta estratégia linguístico-literária, recorrendo a uma transcrição linguística reconstruída (ficcionada) que aproxima a grafia da fonia. Decerto, os autores que viveram o período da Revolução dos Cravos, em meados da déc. de 70 do séc. XX, experimentaram uma revalorização de tudo o que se relacionava com o povo. Textos publicados nesse período tenderam, por isso, a sobrevalorizar o falar regional, na sua vertente popular e regional. É o que acontece com Pernas Ceifadas, de Maurício Melim Teixeira, com prefácio de Horácio Bento de Gouveia. Nesta obra, o autor, conferindo-lhe um cunho de realismo, afirma que “[...] a história apresentada se baseia em factos reais [...]. À parte algumas criações minhas, outros arranjos e outra disposição, ela sustenta-se num (entre tantos) caso real, bem funesto da sociedade madeirense” (TEIXEIRA, 1975, 9-10). O pendor realista é ainda salientado por Horácio Bento de Gouveia no prefácio da obra: “A prova evidentíssima reside no conteúdo da novela, no realismo das cenas, no aspecto fónico do linguajar das personagens”. Acrescenta Gouveia, a propósito: “Nota-se uma natural preocupação de gosto pelo termo raro, muitas vezes forçado. Infere-se, da sintaxe, muita leitura, bem que não completamente escoimada dos prejuízos inerentes à busca da verdade linguística” (Ibid., 12-13). Reencontra-se esta tendência nos diálogos que dão conta de um falar divergente do registo normativo (Ibid., 153-154): – Olhe nã repare nesta desarrumação qu’ at’ ia ûa vergonha! ’Tava [sic] acabande d’almoçar, sabe cuma ia... Mas antão o qu’ ia qu’ a trai pro cá? Precisa dalgûa coisa, ia? S’ iu puder ajudar ia só dezer, faça-se de casa, nã faça cirmónia! [...] – Eu gostava de tilfonar... Hesitava. – Pôs ia tilfonar... ora venha daí... largue lá esses acanhamentes... por ’quei, por ’quei... – e balançava-se, afanada. – Sabe qu’ o nosso... quer dizer... o mê pai trancou o tilfone e iu preciso muito tilfonar... desculpe vir incomodar... – Ora essa! Ora essa! Incomodar, proquia? Nã incomoda nada, nem um belisque... Ah, mas o sê pai trancua? Ora essa! – repetia – Mas antão proquia? – [...] – Tudo por causa do mê namorado... O qui é que quer? Ele é assim! Embirrou e agora? É teimoso que nem um jerico! Vá lá entender-se isto! O diabo do homem pendeu prá ‘li e tirem-lho da carcaça! – Ah, e iu a pensá qu’o sinhô Francisque era um home compreensive, honeste! Olhe que nem parece ser o qu’ ia! – estava despeitada – Sabe o qu’ ia: a gente vê, fala, mei nunca ia cuma se vivesse cum ele, nã se lhe conhece ei manhas. Aparências... Olhe menina: nem tude o que luz ia oure! Ora, são todes bons! Homes! Todes iguais, nem um só s’ escapa! Ia tude ûa súcia de bandides, ûa canhalha! Concluía por fim: – Mei vá lá, vá lá, nã demore mais aquei, qu’a meinha c’riosidade já lhe tirua munte tempe. Ia aquei, ia aquei! Pegue, ‘teija à vontade! Neste diálogo, assinala-se, de novo, a ditongação de <i> acentuado (“aquei”, “meinha”), que, porém, nem sempre ocorre (“compreensive”, “bandides”), assim como a de “é” (“ia”), entre múltiplas outras especificidades, como a mudança de timbre de <o> em posição final absoluta ou não (“todes”, “tempe”). Certos traços ocorrem igualmente no conto de Jorge Sumares “Mai Maiores qu’ essei Serras”, que data também do mesmo período de mudança política, assim como de paradigma estético-literário e linguístico, já que foi escrito em finais da déc. de 60 e publicado, parcialmente, em 1974, no Diário de Notícias da Madeira. Não sendo escritor de profissão, Sumares redigiu este texto aproximando os grafemas dos fonemas, ou melhor, as letras dos fones, como se constata da leitura do passo que se recortou da integralidade textual (um diálogo em que se “ouve” apenas uma das duas vozes, um dos dois interlocutores, o idoso popular, marcadamente regional): “Filhos? Tive nove. Seis homes e três melheres. Tudo se criua à conta de Deus. Inté a nossa Rosaira já tava criada cando Deus a chamua à sua devina presença. Já andava nui vinte. Veio-le um bicho no estâmego – lá foi” (SUMARES, 2005, 177). Curiosamente, a ditongação de <i> tónico não se verifica neste excerto, mas ocorre no decorrer do conto (REBELO, 2013). Porém, o fenómeno da ditongação sucede, p. ex., com o fonema [o] (<ou>) em “criua” (criou), “chamua” (chamou). Também sobressai a mudança de timbre vocálico por, na maioria dos casos, assimilação ou dissimilação, o que é evidente em “melheres” (mulheres), “devina” (divina) e “estâmego” (estômago). Dá-se ainda, e apenas, relevo ao plural “nui” (nos), assinalando um traço que é identificado como madeirense, isto é, o plural em <i>. Este fenómeno gerou controvérsia quanto à sua explicação, nomeadamente entre Millet Rogers e Eduardo Antonino Pestana (PESTANA, 1970) (Sintaxe). É indispensável referir que, antes destes autores, Ernesto Leal, no conto com o título homónimo da obra O Homem que Comia Névoa, de 1964, experimentara este exercício, mesmo se, como Ricardo Jardim, não lhe conferiu grande relevo na sua obra. No entanto, não se pode deixar de mencionar, ilustrando esta escrita fónica com um breve trecho (LEAL, 1964, 68-69): Na Portela das Mantas, à hora da névoa da manhã, o vilão grita assim e os sons ficam no ar, a baloiçarem-se: – Ó Maruia!... […] E a viloa responde: – Qu’é? […] – Onde estás, que não te vejo, ca névoa? […] – Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro. Mais uma vez, o <i> tónico surge ditongado (“Maruia” – Maria, “ruiba” – riba) e sobressai enquanto marca madeirense perante fenómenos populares geograficamente mais amplos, como a elisão em “Qu’é?” ou a aglutinação presente em “ca”. Estranhamente, as formas verbais “estás” e “Estou” mantêm-se intactas, quando correntemente se reduzem a “tás” e “Tou”. O mesmo acontece com o ditongo de “não”, que tende a monotongar na oralidade (“nã”). O vocábulo “couves” é, popularmente, por certo, mais empregue com a variante do ditongo “oi”, mas, neste excerto, mantém-se inalterado. Esta observação, aplicada a outros fenómenos e vocábulos, é válida para os restantes autores que seguem o processo de escrever o falar, já que, por vezes, não assinalam traços que se sabe serem comuns no registo da fala. Aliás, isso é notório em Francisco de Freitas Branco, que, embora não tenha escrito textos literários, seguiu esta estratégia em crónicas com alguma literariedade. Orientou-se este autor por uma transcrição alfabética do falar madeirense (da Madeira e do Porto Santo) inconstante e cambiante, muito versátil, como o comprovam a leitura das crónicas “Sobre Habitantes da Ilha: Apontamento Linguístico”, “Ê Tenho esta Ideia Comeio (Crónica Literária)” e “Ainda nam Teinha Trêzianes, Comecei Cêde: Tentativa para Reprodução Escrita da Fala Viva” (REBELO, 2002a, 2004, 2008, 2013, 2014 no prelo). O processo terá desagradado aos falantes que se sentiram desvalorizados por considerarem que aquela escrita estava repleta de “erros”. Ora, o facto de as transcrições de Freitas Branco se reportarem a pessoas (reais – entidades extratextuais) e não a personagens (de papel e palavras – entidades intratextuais) terá criado equívocos difíceis de resolver, já que estas transcrições queriam sublinhar a riqueza da dinâmica da fala. Parece, então, que, se se sair do plano ficcional, a variedade diatópica continua a ser unifacial. Caberá aos linguistas ultrapassar esta dificuldade, se se pretender que a variedade endógena seja bifacial fora dos limites da Literatura, que, porém, tem continuado a alimentar o processo de transcrição da fala. Mais recentemente, um dos últimos autores que procuraram passar para a escrita o falar dos ilhéus do arquipélago terá sido Lídio Araújo, que recorre, abundantemente, ao processo em Filhos do Mar. A leitura deste livro é animada pelos diálogos recriados, que, além de serem muito enfáticos, como à partida o são os reais, transmitem um colorido local. As marcas do nível popular preenchem o discurso dialógico, como o seguinte excerto o evidencia (ARAÚJO, 2002, 83-84): – Pedro, acorda! Al’vãta-te O [sic: sem ponto] pae leiva-t’ô maar! [...] – O qu’ia pae, ô maar? – Seim! Êu t’prom’tei, um deia. Hôje vaes c’agênte! [...] – Ia ve’dade, pae? – interrogou, incrédulo, arregalando os olhos. – Ia seim! – E a mãe já saabe? – Já! D’spacha-te! Ao ler-se estas deixas das personagens, é como se se ouvisse as pessoas a expressarem-se nos seus modos de falar marcadamente sincopados e com múltiplos fenómenos estudados pela fonética combinatória (Fonética). A supressão de fonemas é assinalada pelo apóstrofo, como em “Al’vãta-te” (Levanta-te) e “t’prom’tei” (te prometi/prometi-te). A duplicação vocálica poderá indiciar vogais longas e/ou com um grau de abertura considerável, representando para o leitor a necessidade de as “dizer” duas vezes (“maar” – mar, “saabe” – sabe), como se houvesse duas vogais/duas sílabas. Este último fenómeno confere melodia ao falar, alongando os vocábulos por parecerem ganhar uma sílaba. Como para os autores já mencionados, além de o nível popular se destacar, surgem também nesta obra de Lídio Araújo particularidades regionais, como a ditongação de <i>, quer oral – “deia” (dia) –, quer nasal – “seim” (sim). Regista-se ainda a da vogal anterior semiaberta, que se encontra, p. ex., em “qu’ia” (que é) e em “leiva” (leva). Poderia alargar-se a exemplificação, mas esta parece ser suficiente para comprovar o valor deste livro, que, através da recriação do autor, reproduz o falar das gentes do mar madeirense de Câmara de Lobos. Nesta síntese, fica claro ser inviável referenciar todas as obras de cunho madeirense (que começam a ser em número considerável) em que o recurso da escrita da fala ocorre. Pelo traço característico que as permite reagrupar aqui, os escritores mencionados e as obras citadas, além de todos os restantes não referidos, aguardam um estudo linguístico aprofundado. Seguindo as pegadas dos filólogos do passado, o linguista do presente, dedicado à variação regional, terá todo o interesse em analisar as diversas transcrições literárias para a representação gráfica do falar insular, que revelam constituir um rico património (REBELO e GOMES, 2014). Muitas vezes, são dados impressionistas (REBELO, 2003, 2011) e intuitivos, já que, p. ex., a palatalização da lateral antecedida de [i] nem é comum (ANDRADE, 1994) nos textos transcritos. No entanto, não se distanciam substancialmente dos que as dissertações de licenciatura apresentaram (MACEDO, 1939; ROGERS, 1940, 1946, 1948; MONTEIRO, 1945, 1950; PEREIRA, 1952; PESTANA, 1954; NUNES, 1965). A título meramente exemplificativo, veja-se, em baixo, a Tabela 1, com algumas representações literárias da autoria de Ricardo Jardim, Ernesto Leal, Jorge Sumares e Francisco de Freitas Branco. A variação no modo de grafar a vogal indica uma pronúncia particular que cada autor escreve à sua maneira, como a ouve. A tabela foi elaborada a partir de um levantamento de dados anteriormente realizado (REBELO, 2008) e nela facultam-se exemplos, destacando-se a negrito os segmentos a considerar. [table id=95 /] Assim, constata-se que há todo um trabalho de sistematização linguístico-literário a realizar para dar visibilidade à face escondida (a escrita da fala) da variedade insular madeirense, que, todavia, figura em vários textos literários, segundo os critérios individuais dos seus autores. É urgente compará-los para compreender em que pontos são credíveis, ou não, as suas propostas de escrita da fala da variedade diatópica madeirense. Enquanto isso não suceder e não houver interesse em escrever o falar madeirense (os falares madeirenses?), a variedade insular continuará a ser apenas unifacial, sobrevivendo no registo oral, até a comunidade regional assim o desejar.   Helena Rebelo (atualizado a 07.12.2017)  

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laboratório de genética humana

O Laboratório de Genética Humana (LGH) é uma unidade de investigação, na área da genética humana, da Universidade da Madeira. Foi fundado em 2001, com o objetivo de dotar a Região de um laboratório no qual fosse possível a realização de testes genéticos para apoio à população madeirense. Desde a sua criação, o laboratório foi dirigido pelo seu fundador, o Prof. Doutor António Brehm, investigador e docente na Universidade da Madeira. A partir desta data, passou a ser possível realizar na Madeira muitos testes genéticos que eram realizados apenas em território continental. É o caso dos testes de paternidade, dos testes para a deteção de anomalias genéticas e de testes de patologias diversas. O LGH tem duas linhas de atuação: investigação e prestação de serviços. Assim, como resultado de um protocolo estabelecido com o Instituto Nacional de Medicina Legal, o LGH presta serviços na área de genética forense e, em articulação com o serviço de saúde da Região Autónoma da Madeira, nomeadamente com o Hospital Central do Funchal (Hospitais) realiza testes genéticos para diagnóstico precoce de malformações congénitas em fetos humanos com apenas 10 semanas de gestação.   Ana Londral (atualizado a 11.02.2017)

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