Mais Recentes

contacto linguístico

A coexistência de línguas é um facto. Existe desde sempre e desempenha um papel importante na variação inerente a qualquer sistema linguístico, nomeadamente quando esta variação ocorre ao longo do tempo. A publicação de Languages in Contact (1953), de Uriel Weinrich, constitui um marco nesta área de estudos linguísticos e na investigação sobre multilinguismo. Os principais temas relacionados com o contacto linguístico tinham sido abordados já na sua tese de doutoramento, Research Problems in Bilinguism with Special Reference to Switzerland (1951), obra que teve por base o trabalho de campo feito pelo autor na Suíça e que contém uma descrição detalhada da situação linguística naquele país, sobretudo nos espaços de fronteira e de contacto linguístico. O contacto entre línguas mereceu, desde então, a atenção de vários investigadores, que procuraram observar e descrever, de modo sistemático, as suas propriedades – origens, processos e resultados. Contacto linguístico (conceitos) Uma situação de contacto linguístico pode ser definida como “aquela em que pelo menos algumas pessoas usam mais do que uma língua” (THOMASON, 2001, 1). Tal acontece em várias situações do quotidiano, e.g., por via de vários tipos de mobilidade humana (emigração e imigração, turismo, etc.), em que os falantes de uma determinada língua materna se encontram em contacto com falantes de outras línguas. Este fenómeno ocorre também na escola, em situações de aquisição formal de uma segunda língua, não materna, ou L2, e ainda na comunicação digital (Internet). Na era da globalização, podemos entender que, de acordo com Maria Antónia Mota (1996), as sociedades de começos do séc. XXI são, na sua maioria, plurilinguísticas e que as línguas são sistemas marcados por grande variação interna, pois a relação comunicacional entre comunidades linguísticas é tão grande que é quase impossível não se influenciarem umas às outras. Trata-se de um processo que decorre da coexistência temporal e espacial de duas ou mais línguas ou variedades linguísticas, para o qual é necessário não só “definir a natureza [como também] a escala e o grau desse contacto e determinar quem entra em contacto com quem, se indivíduos, famílias, comunidades ou sociedades inteiras”, como observam René Appel Pieter Muysken, em obra citada por Glaucia Santos (SANTOS, 2008, 23). A dinâmica do contacto pode ser descrita como a passagem de uma situação de monolinguismo para uma de bilinguismo, existindo ainda a possibilidade de um regresso ao monolinguismo (manutenção da língua de origem, anterior ao contacto). Os processos e resultados linguísticos envolvidos nesta dinâmica, descritos na bibliografia de referência e referidos por Amália de Melo Lopes (2011), são os seguintes: (i) manutenção da língua de origem (LO) como única língua da comunidade; (ii) mudança de língua (language shift, FISHMAN, 1964), em que a LO é substituída pela língua de outro grupo em contacto, pelo facto de a comunidade considerar a língua adotada mais funcional ou mais prestigiada socialmente, ou por outro tipo de circunstâncias; (iii) mistura de línguas (language mixing), que pode dar origem a outros produtos linguísticos, marcados pela influência mútua das duas línguas, tais como: bilinguismo, pidgins e crioulos. Vários fatores, tais como a quantidade de migrantes e a duração da coabitação, o prestígio ou o poder económico e político das comunidades migrantes e daquelas que as recebem, intervêm nos resultados do contacto. Este assunto tem sido particularmente debatido no âmbito da ecologia do contacto de línguas, que faz parte da disciplina de ecolinguística, que consiste no estudo das relações entre língua e meio ambiente (ou território), e foi detalhadamente discutido, e.g., por Jean-Louis Calvet e Salikoko Mufwene. Assim, nem todas as comunidades respondem ao contacto linguístico da mesma forma. Há aquelas nas quais ocorrem processos de hibridismo, quando os falantes não diferenciam os diferentes códigos, constituindo-se então uma mistura de línguas – de tipo code-switching ou alternância de códigos e/ou de tipo code-mixting – que resultam de um maior e mais permanente contacto linguístico. É o caso dos crioulos e dos pidgins, que resultam do “surgimento de uma nova entidade linguística qualitativamente distinta de todas as línguas envolvidas na situação de contacto de onde ela emergiu” (LUCCHESI, 2004, 157). Noutras situações, podemos assistir à coabitação entre duas línguas na mesma comunidade linguística – bilinguismo – ou de duas variedades da mesma língua – diglossia. Bilinguismo O bilinguismo, situação muito comum no mundo dos alvores do séc XXI, corresponde ao conhecimento e uso de duas ou mais línguas por um indivíduo – bilinguismo individual – ou por uma comunidade – bilinguismo social –, quando esta se caracteriza pela existência de um número significativo de falantes bilingues. Os falantes bilingues podem apresentar diferentes graus de proficiência e uma grande variedade de uso das duas línguas, manifestando, na sua fala, interferências e alternâncias de línguas. Assim, o code-switching é uma manifestação de bilinguismo e consiste em trocar de língua no decurso de uma mesma produção linguística, mesmo que não haja mudança de interlocutor ou de situação. Em alguns casos, esta influência pode criar uma dualidade dentro de uma comunidade linguística, que, sendo “monolingue pode tornar-se bilingue pela conservação da sua língua autóctone e da língua forasteira” (LOPES, 2011, 14). Relativamente ao bilinguismo social, é de assinalar que um país pode ser bilingue ou multilingue/plurilingue, mas parte da sua população ser monolingue, assim como pode ser predominantemente monolingue sem que tal signifique que todos os cidadãos desse país falem só uma língua ou que todos os que vivem nesse país tenham essa língua como materna. Podem configurar-se situações estáveis de bilinguismo, de bilinguismo mútuo ou assimétrico, e outras situações que se situam entre esses dois extremos. Diglossia A diglossia é uma variante de bilinguismo, sendo um termo usado para classificar situações de comunicação em comunidades que recorrem ao uso complementar de variedades e/ou línguas distintas na vida quotidiana. Nestas circunstâncias, uma variedade/língua só pode ser usada em situações em que a outra variedade/língua está excluída. Esta definição abrange muitas situações que ocorrem na maioria das sociedades. A ilha da Madeira, e.g., no âmbito do português europeu (PE), poderá ser caracterizada, do ponto de vista linguístico, por uma situação de diglossia, uma vez que os falantes madeirenses usam uma variedade falada do português, distinta da variedade padrão e excluída das trocas comunicacionais em que é exigido o uso da variedade padrão (conferências, escrita). Este tipo de situação poderá gerar um conflito, uma vez que as duas variedades não gozam do mesmo prestígio, sendo a variedade falada e informal (conversas com familiares próximos etc.) objeto de maior estigma. Interlíngua A probabilidade de ocorrer uma ou outra das três situações referidas pode estar relacionada com condições socio-históricas e políticas específicas, com as atitudes dos falantes em relação à variação linguística observada, e com as relações de força que se estabelecem entre as comunidades de falantes de línguas ou variedades distintas. A estes fatores extralinguísticos juntam-se fatores de natureza linguística, tais como a importância da distância tipológica entre a língua materna (LM) e a língua não materna, ou língua alvo (LA), e os que estão relacionados com os efeitos linguísticos da interferência na LA, dando origem ao surgimento de uma outra variedade nessa língua. Assim, no processo de aquisição de uma segunda língua, como destaca Sara Thomason (2001), os falantes podem permanecer numa fase de interlanguage (ou “interlíngua”, SELINKER, 1972), um processo de variação linguística no qual se incluem os empréstimos lexicais e mesmo interferências estruturais, resultado da transposição de alguns traços da LM para a LA. Este processo poderá dar também origem à mudança linguística; tal ocorre quando traços de interferência são conservados e transmitidos às gerações seguintes, construindo-se, assim, uma nova versão da LA. No entanto, estar em contacto com outras línguas não implica necessariamente mudança. De assinalar também que todos os níveis dos sistemas linguísticos – fonológico, morfossintático e lexical – podem ser afetados (SANKOFF, 2001). O contacto linguístico é, normalmente, mais saliente ou dinâmico em zonas fronteiriças, onde duas línguas interagem constantemente, em comunidades onde a afluência de estrangeiros é grande, e ainda em espaços marcados pela ocorrência de fluxos migratórios (emigração para o estrangeiro e o seu regresso), bem como naqueles que foram objeto de colonização ou de ocupação por parte de outros países e, como anteriormente referido, em situações de aprendizagem de outra língua (MOTA, 1996). A língua portuguesa, e.g., tal como hoje se apresenta no começo do séc. XXI, resulta de séculos de contacto com o latim vulgar e com línguas de outros povos. Emergiu no Noroeste da península Ibérica, por volta do séc. IX, numa comunidade linguística que incluía também a língua falada na Galiza. A língua escrita continuou a ser o latim, e a primitiva produção escrita em português de que há conhecimento, de natureza notarial, data do séc. XIII. A partir da constituição do reino de Portugal, em 1143, o português foi acompanhando a configuração de novas fronteiras para o reino, passando a ser falado em espaços cada vez mais alargados. O repovoamento do Sul do território reconquistado aos árabes e a situação de contacto linguístico com os falares moçárabes que dele resultou criaram novas condições para a transformação e mudança na língua. A norte e a sul desenharam-se variedades distintas: nas áreas dialetais setentrionais, a norte, a mudança tinha levado, e.g., à perda da oposição etimológica entre /b/ e /v/; no centro e sul, emergiram variantes inovadoras, como foi o caso da monotongação do ditongo [ej] em [e] em palavras como “ceifar” [sefar] e “feito” [fetu]. Estabelecidas as novas fronteiras, também a capital do reino se mudou para sul do rio Mondego, fixando-se em Lisboa. Esta mudança histórica iria determinar novos caminhos para a língua: o modelo unificador do português desloca-se, a partir do séc. XVI, para esta região, que se torna pólo inspirador da sua norma culta e ponto de partida do padrão linguístico posterior. A partir do séc. XV, a língua conquistadora foi povoando ilhas e sendo também acolhida em sociedades distintas, em África, na Ásia e na América. As diferentes situações de contacto com as línguas faladas pelos nativos nos novos espaços ocupados enriqueceram o português, tendo tido um papel muito relevante na construção das suas variedades geográficas extra-europeias – brasileiras e africanas. No âmbito do PE, as variedades insulares, afastadas do contacto com as variedades peninsulares, desenvolveram traços linguísticos próprios. Deles fazem parte a manutenção de traços conservadores nas suas variedades populares, como no caso da variante nasal [õ] nas finais verbais de terceira pessoa do plural (“comeram” [kumerõ]) – também atestada em variedades peninsulares setentrionais –, que correspondem a uma fase da língua na qual ainda não tinha ocorrido a ditongação em [Œ)w)], variante que viria a ser integrada na norma do português apenas no séc. XVI. As variedades insulares ostentam também aspetos inovadores, como a mudança manifesta na ditongação das vogais altas acentuadas /i/ e /u/, em palavras como “aqui” e “rua”, pronunciadas [Œ’kŒj] e [{’ŒwŒ], respetivamente. Tal como a estrutura sonora da língua, também o léxico está em permanente renovação, com ganhos e perdas de palavras, e com outras a gerarem novos sentidos. No português, a herança lexical latina incorporou, no início da sua formação, os contributos de povos colonizadores – germânicos (nomes como “guerra”, “luva”, “roupa”) e árabes (“alcatifa”, “arroz”, “açúcar”, “atum”, “armazém”, “aldeia”). Mais tarde, na sua expansão marítima, os contactos com outras comunidades linguísticas enriqueceram a língua portuguesa e as suas variedades, sendo introduzidos novos itens: empréstimos das línguas ameríndias (“canoa”, “amendoim”, “tapioca”, “mandioca”, “goiaba”, “pitanga”), africanas (“banana”, “berimbau”, “cachimbo”, “cubata”) e asiáticas (“leque”, “chá”, “bengala”, “azul”, “bambu”, “chávena”, “xaile”). Em diversos momentos da sua história, provenientes de outras línguas europeias de cultura e de prestígio, outros empréstimos foram importados e integrados, sendo de notar, e.g., os galicismos (“monge”, “joia”, “blusa”, “soutien”, “envelope”), os italianismos (“soneto”, “aguarela”, “bússola”, “piano”, “violoncelo”) e os anglicismos (“pudim”, “bife”, “lanche”, “futebol”, “andebol”, “penalti”). Aspetos socio-históricos dos contactos linguísticos no espaço insular atlântico Na altura dos Descobrimentos, como referido, os Portugueses levaram a língua para as terras por onde passavam, que conquistavam e povoavam. Tal aconteceu na ilha da Madeira, descoberta em 1418. Os primeiros colonos, oriundos tanto do Norte como do Sul do reino, terão chegado pouco depois, por volta de 1420 ou 1425. Sendo as suas fronteiras traçadas pelo mar, poder-se-ia pensar que, quando comparada com outros espaços não insulares, a ilha da Madeira, e assim as suas comunidades de falantes, se caracteriza pelo isolamento e a falta de qualquer tipo de contacto. Porém, historicamente, a Madeira estabeleceu, desde o seu povoamento, no séc. XV, vários tipos de contacto linguístico, não só com falantes de outras variedades regionais do português europeu continental, como também com falantes de outras línguas, graças a fatores relacionados com o seu desenvolvimento socioeconómico (comércio, turismo, emigração). Assim, tal como outras ilhas situadas em alto mar, mas localizadas no centro de rotas marítimas, a ilha da Madeira nunca ficou completamente isolada, porque, beneficiando das condições económicas internas oferecidas pelas culturas da cana-de-açúcar, primeiro, e da vinha, mais tarde, constituiu-se num lugar de passagem obrigatório nos caminhos traçados no oceano Atlântico. O Funchal, uma cidade portuária, era um lugar de paragem quase obrigatória para a maioria das pessoas que viajavam pelas principais rotas do Atlântico. Esta situação manteve-se quase inalterada até ao séc. XIX, tornando a Ilha, na periferia da Europa, um ponto estratégico de ancoragem, um microcentro atlântico. A sociedade madeirense pode ser vista como resultado de fluxos migratórios constantes desde o início da sua história, regulados pelos ciclos económicos. Para além da presença de comerciantes, sobretudo europeus, e de escravos vindos inicialmente das Canárias (os guanches) e, mais tarde, do Norte de África (árabes) e da Costa da Guiné (negros), é de assinalar o alto nível de mobilidade social dos madeirenses. Povoamento do arquipélago da Madeira Aquando do descobrimento do arquipélago da Madeira, no séc. XV, houve a necessidade de o povoar, tal como aconteceria posteriormente noutros espaços atlânticos portugueses: os arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde. Inicialmente, foram enviadas para a Madeira pessoas de variadas origens sociais. Como afirma Joel Serrão, “o primeiro grupo de povoadores da pequena nobreza, pelo menos, uns catorze, e os restantes, gente de condição modesta, entre a qual, antigos presos das cadeias do Reino, e aos quais se destinavam as tarefas mais humildes e ingratas” (SERRÃO, 1961, 2). As origens geográficas da população madeirense teriam sido, como observado por Luís de Sousa Melo, sobretudo as “províncias do Minho e do Algarve” (MELO, 1988, 20). Pinto e Rodrigues (1993) apresentam também evidências de que os distritos a norte de Portugal terão contribuído em maior quantidade para a ocupação humana do espaço insular. [table id=108 /] Apesar do decréscimo de matrimónios de imigrados ao longo dos decénios, podemos observar que Faro tem uma representação mais baixa, comparativamente aos imigrantes provenientes das zonas mais a norte de Portugal. Crê-se que a importância dos indivíduos oriundos do Algarve estivesse ligada à atividade marítima e a dos emigrantes do Norte de Portugal à atividade agrícola. Por outro lado, registou-se a presença de Espanhóis na ilha da Madeira entre os anos de 1539 e 1600, como podemos comprovar no gráfico apresentado por Luís de Sousa Melo no mesmo artigo: [caption id="attachment_16108" align="aligncenter" width="661"] Fig. 2 – Gráfico representativo do movimento migratório para a Madeira no séc. XVI.Fonte: MELO, 1988, 26.[/caption]   A presença espanhola na Madeira estaria ligada sobretudo à chegada de indivíduos da Galiza. Talvez tenha sido significativa anteriormente, sobretudo pelo comércio de escravos com o arquipélago das Canárias. O povoamento teve início no perímetro entre Machico e Calheta, portanto, na costa sul, por ser mais apropriada para o arroteamento. Porém, é à cidade do Funchal que se manifesta uma maior afluência de falantes vindos de todas as partes, uma vez que ali se encontrava o porto de embarque e de desembarque. Presença de escravos (canários e africanos) A chegada dos primeiros colonos à Madeira não pareceu ser suficiente para a mão-de-obra necessária ao desenvolvimento agrícola, bastante exigente no seu início, devido à orografia e densidade florestal da Ilha. Julgou-se então necessário recorrer, para esse fim, à introdução do escravo na região. No fim do séc. XV, a população de escravos ascendia a cerca de 2 milhares, perfazendo 12 % da população total da altura. Veja-se, na fig. 3, a evolução global da população madeirense entre os finais do séc. XV e o séc. XVI: [table id=109 /] Foram, aliás, os escravos, os negros do Golfo da Guiné, os mouros cativos do Norte de África e ainda os canários quem mais contribuiu para o desenvolvimento do arroteamento de terras e, mais tarde, para a produção de cereais e de açúcar. Crê-se que até da Índia foram escravos, pois, segundo se lê no Elucidário Madeirense, “Tristão Vaz da Veiga, que foi governador-geral do arquipélago em 1582 tinha doze escravos indianos para serviço particular da casa” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Alberto Vieira, citando Alberto Sarmento, adianta que a escravatura na Madeira se apresenta como “um regresso à História Antiga, ao tempo patriarcal, com o escravo doméstico; à velha Grécia, com o escravo lavrador do Império Romano, com o escravo industrial” (VIEIRA, 1996). Os escravos guanches, marroquinos e africanos foram os primeiros a chegar à Ilha, porque a localização geográfica da Madeira, perto do continente africano, a posicionava idealmente para a receção do mercado escravo, sendo também de referir a intervenção de escravos vindos do Brasil e das Antilhas. Aos escravos deve-se, na sua maioria, o crescimento e o desenvolvimento da economia do arquipélago, que podem ser vistos por duas perspetivas: primeiro, como uma “economia de aproveitamento imediato daquilo que se apresenta com valor mercantil (madeiras, pastel, urzela) ou valor alimentar (peixe); segundo, como uma economia de produção (trigo, gado, mais tarde açúcar e vinho)” (PINTO e RODRIGUES, 1993, 408). A afluência de escravos foi tão acentuada na Ilha que muitos terão aí casado e permanecido. Inventariam-se 593 casamentos, dos quais uns ocorriam entre escravos da mesma condição, outros entre escravos e forros ou libertos, e outros ainda entre escravos ou ex-escravos e não escravos. O primeiro casamento no seio desta comunidade teria ocorrido em 1539, na igreja da Sé, e o último em 1830. Influência europeia através da história económica e social (comércio e turismo) A presença de estrangeiros na Ilha remonta ao seu povoamento. Os primeiros mercadores estrangeiros que aí apareceram eram florentinos, genoveses e venezianos, todos comerciantes do açúcar, o que originava muitas vezes na sua naturalização. Assim, refere o Elucidário Madeirense: “Os estrangeiros contribuíam consideravelmente, embora com proveito próprio, para o estado de prosperidade a que chegou esta ilha desde os fins do século XV até meados do século seguinte. Entregaram-se a diversos ramos de negócio, montaram muitos engenhos de açúcar e era por seu intermédio que se fazia uma boa parte da exportação desse produto para os países estrangeiros” (SILVA e MENESES, 1998, 422). Os Ingleses adquiriram um lugar de relevo na burguesia cosmopolita da cidade desde o séc. XVII, e a ilha da Madeira transformou-se numa escala obrigatória nas rotas marítimas da Inglaterra. A expansão do comércio, através dos negócios de exportação de produtos diversos, como o trigo, as madeiras, o açúcar, o vinho e o bordado Madeira, foi uma forma de a comunidade madeirense entrar em contacto, não só com os escravos, mas também com estrangeiros europeus que pela Madeira passavam. O comércio açucareiro terá tido início logo no dealbar do séc. XV, acentuando-se a sua produção depois da crise económica na última metade do séc. XVI, que decorreu da falta de trigo e, consequentemente, de pão. Os madeirenses viram-se para a produção do açúcar, uma vez que a produção cerealífera não prosperava nas frondosas e acentuadas montanhas da Ilha. A produção subiu, assim, em grande escala, não só para consumo próprio, como também para exportação, sendo de registar, a este propósito, o despacho enviado em 1461 ao Rei de Portugal, D. Fernando, a pedir autorização para “carregar vinhos açuquares madeyra pam e todo ho q avees de vosas nouidades pera hu vos mais prouuer sem me pagardes dizima da carregaçam”, acrescentando ainda: “taes carregações […] pera fora destes reynos” (PEREIRA, 1991, 91). Durante algum tempo, a produção e a exportação de açúcar seguiram bom porto e estenderam-se pelas cidades mediterrânicas e nórdicas, bem como para o reino, fomentando um grande interesse da burguesia estrangeira pelo comércio do açúcar. O mercado açucareiro, e principalmente a exportação deste produto para Flandres, Inglaterra, Ruão, Rochela e Bretanha, deram grande visibilidade à Madeira, sobretudo entre 1450 e 1550. Contudo, o comércio do açúcar não vingou nos séculos seguintes, devido à forte concorrência de outros locais, com maior produção. A Madeira, por ser uma ilha de pequenas dimensões, não conseguiu competir, pelo menos em grande escala, com os novos produtores da América do Sul (Caraíbas e Brasil). Com o declínio do açúcar, é a vinha que, enquanto cultura, passa a predominar, já nos fins do séc. XVI. O clima da Madeira, ameno em qualquer estação do ano, para além de favorecer as culturas, também não passou despercebido aos estrangeiros do Norte da Europa, cujos invernos eram muito mais rigorosos. De acordo com Albert Silbert, citado por António Marques da Silva, as características peculiares do clima da Madeira devem-se à “presença dos ventos alísios que emolduram o arquipélago da Madeira” (SILVA, 2007, 35). Apesar da grande afluência de Ingleses à Madeira, não foram apenas estes que tiveram interesse na beleza, no clima e no comércio que a Ilha podia oferecer. Os Alemães também mostraram essa vontade. A presença alemã na Madeira, tal como a inglesa, remonta ao seu povoamento, no séc. XV; com efeito, há registo de duas figuras lendárias, Henrique e André Alemão, tendo este etnónimo por referência “um indivíduo natural de Além-Reno” (VERÍSSIMO, 2012, 17). Henrique Alemão, cavaleiro de Santa Catarina, recebeu terras na ribeira da Madalena, em sesmaria de Gonçalves Zarco; uma outra terra, situada entre a Madalena e o Arco da Calheta, teria sido doada a André Alemão. A presença alemã nesta zona da Ilha “ficou assinalada através do topónimo Fajã do Alemão, hoje designada, por corruptela, Fajã do Limão” (VERÍSSIMO, 2012, 16). Mais tarde, já no séc. XVI, o comércio internacional do açúcar fica associado aos Alemães da família Paumgarther de Augsburg e à sua companhia, que mantinha relações entre a Madeira e as Canárias. Outros nomes associados à companhia são Welser Lucas Rem, Hans Rem e os feitores Leo Ravensburger e Hans Schmid. No século posterior e até ao séc. XIX, sabe-se que a presença alemã em território português vigorou principalmente nos Açores. A partir do séc. XVIII, a Madeira recebe um outro tipo de visitantes europeus: cientistas, sobretudo britânicos, mas também franceses e alemães. De facto, no séc. XIX, a permanência de Alemães na Ilha relaciona-se sobretudo com a chegada de cientistas cujos estudos incidem sobre a Madeira e têm como objeto o clima e a tuberculose; Alemães como Karl Mittermeier (que esteve na Madeira em 1855) e Rudolph Schultz (que ali esteve em 1864), entre outros, acreditavam que a Ilha possuía condições favoráveis para a sua cura. De acordo com Eberhard Wilhelm (1997), durante o período de 1815 a 1915, foram imensos os visitantes de língua alemã na Madeira, sobretudo naturalistas e médicos, que mostraram grande interesse pela botânica insular, sendo de referir, e.g., Johann Reinhold Foster e Johann George Adam Foster, e ainda, na área geológica, Leopold Von Buch. Na fig. 4, apresentam-se alguns nomes importantes de figuras alemãs que estiveram na Madeira e que em muito contribuíram para o seu desenvolvimento em diversas áreas: [table id=110 /] No séc. XIX, devido à vasta literatura científica e de viagem que inclui a ilha da Madeira, é possível reconstruir a situação da mesma nessa altura. Os viajantes que por lá passavam descreviam vários aspetos, como a natureza, a topografia, o relevo, as tradições, as vestimentas e os hábitos alimentares, e acrescentavam detalhes muito significativos, que representavam as suas ideias sobre determinadas situações do quotidiano madeirense: “De facto, o século XIX trouxe à Madeira muitos viajantes que julgaram oportuno proceder em termos dum ‘fifty-first’ e, assim, o número dos que deixaram registado em livro o seu ‘glimpse’ madeirense ascende a umas boas dezenas. Entre eles e para mencionar apenas os mais representativos em campos literários diferentes e perseguindo também diferentes objetivos temos Robert Steele, James Edward Alexander, o Dr. Wilde, James Golman, John Osborne, Wiliam Hadfield, Henry Vizetelly” (BRANCO, 1989, 201). Para além do grande número de estrangeiros interessados no arquipélago da Madeira, inicialmente pelo comércio do açúcar, do vinho, do bordado Madeira, e pelas características naturais do território (clima, botânica, geologia, medicina), na viragem do séc. XIX para o séc. XX, a Madeira começou a ser pensada como um espaço de lazer. É nesta altura que tem início o turismo na Madeira, uma nova era em que se começa a desenvolver um ciclo económico ligado a esta atividade. Se, por um lado, o turismo pode ser visto como algo motivador e revitalizador de práticas estagnadas, através do processo de aculturação, por outro, podemos inferir que o mesmo processo poderá influenciar e motivar a comunidade linguística a que se destina. Esta atração pelo turismo permitiu que houvesse, a nível económico e urbanístico, principalmente na cidade do Funchal, um grande investimento na construção de hotéis, levado a cabo sobretudo por Ingleses, que fez surgir na cidade uma realidade nova. A atividade turística transforma, assim, a capital insular num centro cosmopolita e num palco de muitas culturas. A emigração madeirense entre os séculos XV e XX Desde o séc. XV que a Madeira viu os filhos da sua terra partirem em busca de novos rumos, num movimento normalmente associado a crises socioeconómicas. A primeira crise do trigo, logo no séc. XVI, forçou os madeirenses a partirem, sendo a falta de cereais, que perdurou pelos séculos seguintes, responsável pelo facto de a Madeira se ter tornado refém da importação cerealífera vinda dos Açores. Nos sécs. XVI e XVII, os madeirenses foram essenciais no Brasil, pois contribuíram com as suas aptidões como lavradores e mestres de engenho, bem como na exportação de cana-de-açúcar, tendo tido um papel relevante no comércio açucareiro do Brasil. No séc. XVII, com a invasão holandesa do Brasil, o comércio teve dificuldades. Houve necessidade de enviar novamente madeirenses para a reconstrução dos engenhos, e eles contribuíram para a expulsão dos Holandeses do Maranhão em 1642, em particular o madeirense António Teixeira Mello; em Pernambuco, em 1645, a organização de resistência foi feita pelo madeirense João Fernandes Vieira. No séc. XVIII, a fome e a crise persistiam, consequência, ainda, da falta de trigo, como afirma Maria Licínia dos Santos: “logo nos primeiros anos do século XVIII, ou seja, 1806, a Madeira foi intensamente ameaçada pelo espectro da fome” (SANTOS, 1999, 16). A emigração para o Brasil foi, portanto, uma fuga à fome e uma forma de ascender social e economicamente. Por esta razão, os madeirenses optam por levar os seus cônjuges, decisão que beneficiou e garantiu as terras do Sul do Brasil, que estavam quase à mercê dos Espanhóis com o Tratado de Madrid. Daqui resultou uma grande afluência de madeirenses para as regiões de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Maranhão e Rio de Janeiro. A chegada dos madeirenses ao Brasil foi difícil, tendo esta situação ficado conhecida como “escravatura branca” (VIEIRA, 2004a). Na tabela seguinte, apresentam-se os dados fornecidos por Alberto Vieira relativamente ao número de emigrantes para este destino, entre os anos de 1835 e 1860. [table id=111 /]   A par do Brasil, outro destino procurado pelos madeirenses foi o sul de África, nomeadamente a extensa colónia angolana, onde se regista presença madeirense desde 1664. Até ao séc. XIX, a emigração (imigração/emigração) para esta região não se fazia de forma acentuada, quando comparada com esse século e os seguintes. O processo de emigração, resultado da continuada crise económica e das várias calamidades naturais que afetaram a agricultura, especialmente a vinícola, levou os insulares a procurarem em massa, comparativamente aos séculos anteriores, outros destinos para obterem melhores condições de vida. Para além dos problemas acima enunciados, a Madeira sofreu ainda o impacto do conflito político entre liberais e absolutistas, tornando o arquipélago vulnerável e dando aso às investidas de ocupação por parte dos Ingleses, em 1801 e em 1810. A crise permitiu que as diferenças sociais aumentassem e as classes sociais se diferenciassem mais umas das outras, levando a que as classes mais baixas, famintas, procurassem outros rumos. A meio do século (1846 e 1847), a Madeira sofre nova crise, desta vez no cultivo da semilha, o meio de sustento dos pobres, levando a mais um surto de fome e, consequentemente, a nova vaga de emigração. As Antilhas britânicas foram um dos locais procurados pelos madeirenses para emigrar, até porque, na altura, os ingleses tinham falta de mão de obra para as suas plantações. Assim, os destinos de emigração mais frequentes dos madeirenses foram as Antilhas, Demerara, os países da América Central, o Brasil, o Havai e Angola. Nas tabelas seguintes, podemos observar o número de emigrantes distribuídos pelos vários países entre 1834 e 1847 (fig. 6) e pelas colónias britânicas entre 1843 e 1866 (fig. 7): [table id=112 /] [table id=113 /]   No outro lado do oceano, a colonização de Angola era um assunto premente, pelo que, em 1884, se fixaram nessa terra os primeiros 222 colonos saídos do porto do Funchal. Ainda no mesmo ano, chegariam mais 349 emigrantes e, até 1890, registaram-se mais de 704 indivíduos. Ainda no séc. XIX, outro destino procurado pelos madeirenses foi o Havai, que, na segunda metade da centúria, recebeu 400.000 emigrantes de todo o mundo. A emigração madeirense deveu-se em grande parte ao trabalho de Wilhem Hillebrand. Em 1978, este promoveu uns panfletos denominados “Breve notícia acerca das ilhas Sandwich – e das vantagens que elas oferecem à emigração que as procure”. Segundo Susana Caldeira, “Primeiro, foram os chineses, em 1852. A emigração portuguesa começou com o primeiro grupo de 120 madeirenses que chegaram lá [ao Havai] no dia 29 de setembro de 1878, a bordo do navio Priscilla, respondendo [ao apelo de] mão de obra [para as] plantações de açúcar”. A predominância dos madeirenses durou até ao início do séc. XX, e “o português, que foi ensinado, na universidade do Havai, até 1956 e, mesmo depois, por alguns tutores privados, ainda é falado por alguns descendentes, sendo que o sotaque e os termos utilizados podem denotar-se de origem madeirense” (CALDEIRA, 2011). Se, por um lado, a emigração madeirense se acentuou no séc. XIX em países da América Central e nas colónias ingleses, já no séc. XX os destinos emigratórios serão predominantemente o Brasil, Curaçau, a África do Sul e a Venezuela. No início do séc. XX, com as guerras mundiais à porta, a emigração viu-se fechada e será apenas a partir de 1940 que irá acentuar-se, consequência dos danos colaterais provocados pela Segunda Guerra Mundial. Neste período, o turismo diminuiu, assim como a exportação do vinho, o que fez agravar a situação económica na Ilha e aumentar a necessidade de saída dos madeirenses. Na fig. 8, podemos ver o número de emigrantes para a Venezuela e para o Brasil no período compreendido entre 1943 e 1954.   [table id=114 /]   No séc. XIX, apesar de muitos madeirenses terem saído da Madeira, muitos regressaram também; já no séc. XX, e segundo os censos 2011, a população de nacionalidade portuguesa residente na Madeira que já tinha residido no estrangeiro é de 18,2 %; a maior fatia corresponde aos que tinham emigrado para a Venezuela (37,1 %), seguindo-se os indivíduos que tinham estado no Reino Unido (17,5 %). A Madeira é, portanto, uma porta aberta para o mundo, para o fluxo de entradas e saídas de várias comunidades linguísticas e culturais, caracterizada por um contacto persistente e acentuado com outras comunidades linguísticas ao longo do tempo. Desta forma, é possível entender o contacto linguístico na Madeira como um facto que poderá estar na origem de vários fenómenos linguísticos variáveis, sobretudo a nível lexical, mas também fonético, morfológico e, porventura, sintático. Os produtos resultantes dos contactos etnolinguísticos no arquipélago da Madeira serão exemplificados a seguir.   Produtos linguísticos resultantes do contacto linguístico Os estrangeirismos correspondem a empréstimos, porque são termos importados de outras línguas, podendo ou não sofrer adaptações para se adequarem às características fonéticas e morfológicas da língua de acolhimento; surgem por necessidades denominativas e comunicativas. Um dos empréstimos mais usados e generalizados no arquipélago será, sem dúvida, o nome “semilha” (batata), empréstimo do espanhol “semilla” (semente), a partir do qual surgem as formas derivadas “semilheira” (de “semilha” + sufixo -eira), para designar a planta que dá a semilha, e “semilhal” (de “semilha” + sufixo -al), para denominar uma grande quantidade de semilhas. Património linguístico ligado à presença britânica No séc. XVII, uma considerável comunidade inglesa afirma-se na Madeira. Para tal contribuiu também a conjuntura favorável ao comércio colonial inglês, definida em 1663 por D. Carlos II, que lança o vinho madeirense como um importante produto do Atlântico. O vinho ganha hegemonia na cultura madeirense, substituindo o açúcar, tal como refere, em 1727, António Cordeiro, citado por Alberto Vieira: “a abundância de frutos já não é tanta, como nem é tanto açúcar, […] mas a principal de todas é a dos muitos, e excelentes vinhos” (VIEIRA, 2004a, 44). O vinho da Madeira ganha grande relevo e atrai investidores estrangeiros, nomeadamente Ingleses, à Ilha. Aliás, António Ribeiro Marques da Silva, falando da perspetiva de um estrangeiro, afirma que: “Hancock parece ter razão em referir o vinho Madeira como um dos mais importantes motivos da deslocação do comércio atlântico” (SILVA, 2007, 38). Nos séculos que se seguem ao ciclo do açúcar, a Madeira continua a receber imensos estrangeiros, na sua maioria Ingleses, que se fixaram na Ilha e que contribuíram significativamente para o comércio vinícola. Estas comunidades estrangeiras terão provavelmente começado a influenciar linguisticamente a comunidade madeirense. A língua inglesa é, assim, depois da portuguesa, a que é mais falada e a que detém mais prestígio na Ilha. Os elementos da comunidade britânica aí assentaram primeiro como comerciantes e, mais tarde, como naturalistas. No séc. XVIII, a Madeira era vista como um centro político e social em transformação, o que se deveu à presença de duas comunidades linguísticas diferentes. Aliás, a comunidade inglesa na Madeira contribuiu maioritariamente para o desenvolvimento da economia insular, desde o séc. XVII até ao séc. XX, tendo estabelecido uma organização conhecida como British Factory. A narrativa segundo a qual a descoberta da ilha da Madeira é tributária dos Ingleses, ou a lenda de Machim, reforça a ideia da ligação mítica e histórica à cultura anglicana, ideia que tem sido explorada sobretudo na literatura britânica. Alberto Gomes (1950) menciona que uma revista britânica sugere que a conservação da Cruz do túmulo de Anne d’Arfet e Robert Machim na capela da Ordem de Cristo em Machico poderá ser um sinal de que os madeirenses consentem na tese de que o descobrimento foi feito pelo casal inglês. Esta lenda poderá também explicar a forte adesão de Ingleses ao arquipélago. De acordo com David Hancock (2012), a comunidade inglesa fixada na Madeira no início do séc. XIX deveria rondar os 500 indivíduos, muitos deles a viverem nas suas quintas, próximas ao Funchal. Embora a comunidade britânica tivesse poucos membros, a sua influência na construção e no desenvolvimento da sociedade insular foi enorme. Na verdade, não foi só o vinho que os interessou. No séc. XIX, em 1850, apareceram numa exposição no Funchal uns bordados madeirenses que chamaram a atenção de Elisabeth Phelps. No mês de junho do mesmo ano, nos dias 29 e 30, o Cons. Silvestre Ribeiro promoveu os bordados numa feira com o objetivo de fomentar o comércio interno, feira que, de acordo com Luísa Clode (1968), foi visitada por 15.000 pessoas. Posteriormente, Elisabeth Phelps deu a conhecer o bordado madeirense aos Ingleses e, a partir 1854, deu-se início à produção de bordados em larga escala. Com o continuar dos anos, e apesar dos altos e baixos que a sua produção conheceu, pode considerar-se que, de um modo geral, houve um aumento significativo do número de bordadeiras e da sua produção, que se refletiu numa maior afluência de estrangeiros, em especial de Ingleses, ao Funchal para a compra do bordado, assim como na exportação. O património natural insular também resulta, em grande parte, da atividade científica conduzida por naturalistas britânicos que viveram na Ilha, tal como o Rev. Lowe, ou que nela permaneceram algum tempo, e.g., sir Joseph Banks, no séc. XVIII e, no séc. XIX, Morgan Lemann, James Yate Johnson, sir Dalton Hooker, entre outros, a fim de coletar dados que integram várias taxonomias científicas (botânica, fauna, geológica, etc.). Os Ingleses estiveram, assim, ligados à história socioeconómica da Madeira nas suas diferentes fases (açúcar, vinho, bordados e turismo). Logo no final do séc. XVII, a economia da Madeira beneficiou da sua integração no sistema comercial do Atlântico inglês, através do acordo conhecido como Lei da Navegação de 1660, usufruindo, posteriormente, do Tratado de Methuen. No entanto, é de salientar que, apesar da influência da comunidade inglesa na economia insular, os contactos com os ilhéus eram superficiais. Como afirma David Hancock “Interactions between strangers and natives […] were more restrained. […] The Portuguese had ‘a strong aversion’ to the British in particular, specially British Protestants, and the British held a similar view in reverse [As interações entre os estrangeiros e os nativos […] eram mais contidas. […] Os Portugueses tinham ‘uma forte aversão’ aos Britânicos em particular, especialmente aos protestantes britânicos, e os Britânicos tinha uma visão semelhante, simétrica]” (HANCOCK, 2009, 18). Destes tipos de contacto linguístico e intercultural há a registar vários produtos linguísticos, entre os quais regionalismos como “bambote” e “bamboteiro” (de “bum boat”). Aline Bazenga, João Adriano Ribeiro e Miguel Sequeira (2012) referem também o uso de etnónimos, tais como “inglês” e “britânico”, tanto no domínio da antroponímia como da toponímia. No que concerne ao primeiro caso, são de sublinhar os registos da alcunha “o inglês” em arquivos notoriais da Região; no caso dos topónimos, são de assinalar a antiga R. dos Ingleses, a igreja inglesa e o cemitério dos Ingleses. O etnónimo “inglês” também integra nomes de estabelecimentos comerciais, e.g., Botica Inglesa. Os patrónimos de figuras de prestígio da comunidade britânica insular foram também celebrados através do seu uso na toponímia regional. É o caso de Blandy (levada do Blandy), de Phelps (Lg. do Phelps) e de Murray (fontanário Carlos Murray, na freguesia do Monte, no Funchal). O legado da comunidade britânica contempla referências onomásticas de naturalistas britânicos nas descrições taxonómicas de plantas endógenas da ilha da Madeira, e.g. nomes de espécies, como Arachniodes webbiana (A. Braun) Schelpe, de Philip Barker Webb (1793-1854); Dryopteris aitoniana Pic. Serm., de William Aiton (1731-1793); Limonium lowei R. Jardim, M. Seq., Capelo, J.C. Costa & Rivas Mart.; Monanthes lowei (A. Paiva) P. Pérez & Acebes; Lotus loweanus Webb & Berthel; Peucedanum lowei (Coss.) Menezes; Scrophularia lowei Dalgaard; Phagnalon lowei DC.; Koeleria loweana Quintanar, Catalán & Castrov., todas dedicadas ao Rev. Thomas Lowe (1802-1874), naturalista britânico que viveu alguns anos na ilha da Madeira, Convolvulus massonii F. Dietr. e Cheirolophus massonianus (Lowe) A. Hansen & Sunding, ambas em nome de Francis Masson (1741-1805), e ainda Musschia wollastonii Lowe 1856, do mesmo autor, cujo naturalista celebrado é T. Vernon Wollaston (1822-1878). Influência do castelhano na variedade insular madeirense O arquipélago madeirense possui, ainda no séc. XXI, um grande número de emigrantes a residir na Venezuela. As segundas e terceiras gerações, já de nacionalidade venezuelana, quando regressam, esporádica ou definitivamente, à terra natal dos pais ou avós apenas falam castelhano. O bilinguismo é raro nesta comunidade, que, mesmo a residir no espaço insular, conserva a língua daquele país da América do Sul. Quem emigrou jovem fala, normalmente, português com muitas interferências castelhanas, mas o inverso também acontece, porque há quem opte pelo castelhano com, inevitavelmente, interferências portuguesas. De qualquer modo, sucede que, quando regressam para residir no arquipélago, formam comunidades, essencialmente familiares, mas também de vizinhança, mantendo tradições venezuelanas e conservando o idioma que falam entre si. Diz-se que o hábito madeirense de cozer milho terá origem venezuelana, mais precisamente na polenta; não será por acaso que muitas marcas de farinha de milho usadas neste prato madeirense têm nomes castelhanos. Estes “madeirenses venezuelanos” são reconhecidos e identificados pelos locais como “mira”, a exclamação castelhana usada para chamar a atenção de outrem. Congregando a comunidade, o Consulado da Venezuela joga um papel determinante na valorização da mesma, que inclui madeirenses casados com venezuelanos de outras origens que não a madeirense, havendo, portanto, outros contactos linguísticos. Esta influência castelhana é notória, e.g., nos nomes próprios de muitos madeirenses, sobretudo os de dupla nacionalidade, que se destacam no conjunto dos nomes próprios tipicamente portugueses dos madeirenses que não emigraram. Quando se ouvem nomes como “Melita”, “Reina”, “Estefani”, “Nancy”, “Juan” e “Juan Carlos”, reconhecem-se, sobretudo, lusodescendentes, cujos pais passaram por aquele país da América Latina. Para além disto, é na culinária que se destaca a ocorrência de vocábulos de origem castelhana; assim, a empanada, que se reencontra em restaurantes da ilha da Madeira, é um exemplo claro deste contacto linguístico motivado pela aquisição de novos hábitos culturais. Apesar do forte peso que tem, não se deverá, contudo, apenas à Venezuela a influência castelhana na variedade insular madeirense. Segundo Deolinda Macedo, tal influência remontará ao séc. XVII, aquando do domínio filipino; é uma convicção da autora, embora não exemplifique: “Em algumas regiões, nomeadamente, no norte, existem certos vocábulos que parecem acusar influência espanhola. O caso não deve parecer-nos muito estranho, porquanto é facto averiguado que durante o domínio filipino se foram estabelecer, na Madeira, várias famílias daquela nacionalidade. É natural, pois, que a estada dessas famílias na ilha tivesse deixado entre os seus habitantes alguns vestígios” (MACEDO, 1939, 3). Quando enuncia, e.g., “particularidades fonéticas”, a autora refere que “no norte, especialmente em S. Vicente, é vulgaríssima a pronúncia de tu e su para designar respetivamente os pronomes teu e seu ou tua e sua, o que denota certamente influência espanhol [sic]” (Id., Ibid., 14). No entanto, não fica bem demonstrada esta influência. Aliás, Helena Rebelo (2007), procurando influências do castelhano na variedade insular madeirense pela consulta de alguns vocabulários madeirenses, realça isso mesmo. O exemplo mais flagrante é o caso de “semilha”, que, comprovadamente, tem origem castelhana, mas pelo contacto, de novo, com a América Latina. Contudo, a presença de falantes de castelhano no arquipélago madeirense vai sendo, pontualmente, referida. Na narrativa “Prophetas” (1884), de Mariana Xavier da Silva, e.g., é mencionada a presença de um castelhano a viver no Porto Santo: “Um aventureiro espanhol servia-lhes de sacristão, e tocava todos os dias a campainha lançando pregão para a prática”; “servindo-lhes de porteiro o espanhol, que era fino e astuto, e muito dedicado aqueles impostores” (SILVA, 1884, 167-168). Esta presença não será, decerto, caso isolado e isso terá consequências na língua falada. Num dos textos de “populismos madeirenses”, o subintitulado “origens”, escreve Alberto Artur Sarmento: “A corrente de famílias estrangeiras que acudiu à Madeira pouca influência teve, a não ser a castelhana e depois mais durante o domínio em que foi estabelecido no Funchal o presídio com tropas vindas de Espanha. [...] Além dos nomes de origem algarvia, grande número de vocábulos dos árabes e castelhanos andam de mistura com termos corrompidos do inglês que atropelam os primitivos numa contínua variedade de palavras introduzidas, especialmente no Funchal, coração de todo o comércio, e onde o negociante de bordo ou bomboteiro tem uma linguagem muito sua própria” (SARMENTO, 1914). Esta quase ausência de dados, como se não houvesse grandes relações entre o castelhano e a variedade insular, deixa, no entanto, sérias dúvidas. Sabe-se que os arquipélagos da Madeira e das Canárias mantiveram desde muito cedo contactos estreitos, existindo, inclusivamente, famílias mistas; talvez por isso, gerou-se o hábito de passar férias no outro arquipélago, quer para madeirenses, quer para canários. Os investigadores do arquipélago espanhol procuram atestar influências recíprocas entre o português e o castelhano falado nas ilhas. Além disso, residirá no arquipélago da Madeira um número considerável de galegos, que se foram misturando com a população. Terá sucedido o mesmo com alguns gibraltinos, espanhóis, bolivianos, peruanos, mexicanos, etc. Mas o que se conhece, no começo do séc. XXI, sobre os contactos linguísticos entre o castelhano e o português falado no arquipélago madeirense é muito pouco; a deteção dos vestígios linguísticos de uma influência castelhana carece de trabalho de campo, faltando aprofundar a investigação no terreno.   A presença árabe na Madeira A presença árabe no arquipélago da Madeira deve-se, sobretudo, à contribuição dos madeirenses para a conquista e proteção das praças marroquinas, assim como ao desenvolvimento das relações comerciais e culturais entre as ilhas atlânticas, neste caso entre a Madeira e as Canárias, como resultado principalmente da produção açucareira. Alberto Artur Sarmento, no seu artigo acerca dos mouros na Madeira transcrito no Elucidário Madeirense, afirma: “O mouro era mais trabalhador do que o escravo da Guiné e da Mina, por isso a preferência dos senhores das terras em importá-lo para as suas fazendas de cultivo. Este comércio escandaloso […] originou o clamor do chefe dos mouros que lamenta em carta a D. Manuel, o que fazia Azambuja, apanhando a torto e a direito e de todas as classes, para enviar de contrato aos capitães da Madeira. Os mouros formaram núcleos importantes, reunindo-se em grupo ou bairro à parte, como o atesta a Mouraria, uma das ruas mais antigas do Funchal. […] Tiveram grande comércio nas vilas, especialmente em Ponta do Sol e Santa Cruz” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Acrescenta ainda que foi grande o número de mouros existentes no arquipélago da Madeira, nos primitivos tempos da colonização, nomeadamente no Funchal, na Ponta do Sol, no Curral das Freiras e em Machico. Os escravos mouros surgem das várias expedições guerreiras dos madeirenses a Marrocos e este grupo servil teve grande importância na sociedade madeirense no séc. XV. No Elucidário Madeirense, pode ler-se: “Em Santa Cruz, mostrava-se ainda há anos um retábulo existente na igreja paroquial, onde figuravam escravos mouros usando um pequeno turbante afunilado, com uma ponta caída, de que derivaram a carapuça do vilão e a toalhinha pendente da cabeça, antigos trajes característicos da camponesa da Madeira” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Sobre a carapuça madeirense, Wuellerstorf-Urbair, citado por Eduardo Pereira, em Ilhas de Zargo, afirmava em 1857: “O capuz mourisco também se modificou, desfigurando-se em gorra semelhante ao barrete frígio e desceu aos ombros em tapa-nuca; reduziu-se depois a carapuça limitada à cabeça, elevada em esboço de ponta cónica no cocuruto e sobreposta a um curto pano de linho, contra o sol, descaído até o pescoço; aguçou em apêndice a parte superior retesada em rabo-de-gato, adelgaçando para cima até acabar em ponta. Em sua forma atual não oferece abrigo nem contra o frio nem contra o calor; não parece mais do que um fragmento de touca mourisca” (PEREIRA, 1989, II, 569). Acrescenta que os habitantes das costas africanas, com quem os primeiros colonos madeirenses tiveram estreitas relações, usavam carapuças semelhantes, as quais eram à maneira de turbantes, circundadas dum pano branco fino, referindo também a igreja de Santa Cruz, onde apareciam alguns escravos árabes com estas carapuças (Id., Ibid.). Voltando ao Elucidário Madeirense, na transcrição do texto de Sarmento, o autor explicita: “Dos mouros, a dolência dos cantares, mas a dança repisada é movimento de negro. Dos mouros as lengas-lengas serranas, os populares: lengi lengi o nevoeiro corriqueiro, a formiga que o seu pé prende” “Entre as brumas, princesas encantadas, as histórias de palácios e riquezas entesouradas, ladrões e varas de condão, são influências e assuntos do povo, migrados nesta corrente de longe subordinada” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Francisco Lacerda, na sua enumeração de influências mouras no arquipélago, também regista os contos de princesas mouras encantadas, bem como os tapetes mágicos, as varinhas de condão e as lengalengas (lingue-lingue). Afirma também que certos sítios têm na sua toponímia reminiscências mouriscas, como a Fajã da Moura (Serra de Água) e a Cova do Mouro (Monte), acrescentando que “aonde hoje se encontra a Capela de Nossa Senhora da Penha de França, no Faial, existiu uma pequena mesquita, com entrada disfarçada, aonde os mouros secretamente se reuniam” (LACERDA, 1993, 102). O autor menciona ainda que os corsários mouros rondavam os mares do arquipélago e que, muitas vezes, assaltavam povoações, como o Caniçal e a Fajã dos Padres (no Campanário), e salienta que o Porto Santo foi assolado muitas vezes, ficando em escombros e a ilha quase desabitada. Refere ainda a expressão “vai-te p’ra Argel” como praga popular que relembra o saque e cativeiro em terras da moirama. Ao fazer o estudo das tradições orais populares, Lacerda documenta o romance de conde Claro (ou Claros), variante de D. Carlos de Mont’Alvar, recolhido no Porto Santo, no qual podemos encontrar uma referência aos mouros ou moiros: “– Aonde vais tu, conde Claro,/que assim vais tão arreiado?/ – Se eu venho muito arreiado,/É p’ra com moiros brigar” (LACERDA, 1993, 24). A forma “arreiado”, provavelmente de “arrear”, significa “pôr os arreios, peças do aparelho das cavalgaduras” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Nas cantigas, regista uma referência à moirama nos seguintes versos: “Fui cativo p’ra moirama,/pelo triste azar da guerra;/que por mim moneta desse,/não houve perro nem perra [?]” (LACERDA, 1993, 62). “Moirama” ou “mourama”, “terra de muçulmanos” e “os mouros”; “moneta”, possivelmente “moeda” (de monetário); “perro” e “perra”, respetivamente “cão” e “cadela”, “pessoa vil, canalha, patife, sacana” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). O autor documenta ainda, na parte denominada “Cantigas d’amor”, a composição “Pretidão de amor”, onde também há uma clara referência aos mouros: “Passei pela tua porta/Pedi-te água, não me deste./Tu passaste pela minha/Bebeste quanta quiseste./Nem os moiros da moirama/Faziam o que tu fizeste!” (LACERDA, 1993, 153). Outra relação entre a ilha da Madeira, o Norte de África e Portugal diz respeito à lenda da ilha de Arguim, que Lacerda regista da seguinte forma: “Em certas tardes brumosas, aparece, ao pôr do sol, para os lados do Porto Santo uma ilha, também envolta em bruma, onde o Desejado (Rei D. Sebastião) dorme e espera, desde a desastrosa jornada de Alcácer-Quibir. Espera, até que uma alma forte consiga abordar a misteriosa ilha de Arguim” (LACERDA, 1993, 80). Arguim é uma ilha na baía de Arguim, na Mauritânia, onde teria sido construída a primeira feitoria portuguesa na costa ocidental africana, por ordem do infante D. Henrique, senhorio do arquipélago da Madeira. Foi um importante centro de comércio, estabelecendo ligações com Safim, depois Marrocos. O Rei D. Sebastião, derrotado pelos mouros na batalha de Alcácer-Quibir, teria fugido para uma ilha no oceano Atlântico, que seria Arguim; na rota para esse lugar, teria passado pela ilha da Madeira, tocando o cabo do Garajau, e na rocha teria espetado a sua espada, que aí ficou encantada, a aguardar que um dia ele voltasse para a conquista do território português que, entretanto, tinha sido submetido aos Filipes de Castela. Outra versão da lenda diz que o Rei enterrou a sua espada na encosta mais árida e escarpada da Penha de Águia, no Porto da Cruz. Marco Livramento refere ainda a lenda da construção do templo a S.to António, na freguesia de Santo António da Serra (concelho de Santa Cruz), que, curiosamente, teve como interlocutor preferido um escravo mouro (Lendas e mitos fundadores). A presença árabe parece estar patente na música e nas tradições populares madeirenses, e.g. na mourisca, como o próprio nome indica. Lacerda, a propósito da presença moura no arquipélago da Madeira, diz que mourisca é o nome de uma dança que perdeu todo o seu carácter mouro (LACERDA, 1993, 103). Carlos Santos afirma tratar-se de uma canção que se popularizou, adquirindo variantes de freguesia para freguesia, sendo cantada sobretudo na cultura do trigo do trabalhador mouro ou madeirense (SANTOS, 1937, 39). No entanto, não há nenhuma certeza sobre a herança árabe no folclore madeirense, i.e., não há dados concretos que provém esta influência. Carlos Santos refere que “A canção popular revela fielmente a vida e os trabalhos do homem rural, as alegrias e dores, esperanças e incertezas, o amor e a fé. As ilhas da Madeira e Porto Santo, colonizadas por gentes vindas do Norte ao Algarve de Portugal continental, assim como escravos mouros, negros e outros, naturalmente reflete o modo de ser, pensar, agir e reagir, a mentalidade dos povos que as precederam […]. A influência árabe, que mais do que qualquer outra se manifesta no nosso povo, não é já árabe, senão portuguesa na sua origem, para nós. Essencialmente portugueses são a nossa gente e o nosso carácter” (Id., Ibid., 8). O autor escreve: “Igualmente não é crível que as primeiras gerações madeirenses fossem todas puras e assimilassem unicamente os hábitos e costumes dos seus progenitores. […] Não esqueçamos, igualmente, que aos escravos nunca foi proibido dançar e cantar” (Id., Ibid., 39), tal como aconteceu no Brasil. No entanto, isto não invalida que haja traços de música continental portuguesa, i.e., parecenças entre a música da Madeira e a do Minho, do Alentejo e do Algarve. Mas, segundo o autor, o estilo é madeirense, produto de uma miscelânea em que prepondera o árabe; e questiona: “E se no Minho há muitas canções alegres, porque haviam de ficar na Madeira só as monótonas?” (Id., Ibid., 40-41), para concluir que, na Madeira, “tanto nas populações ribeirinhas como nas serranas usam-se as mesmas músicas – o charamba, a mourisca e o bailinho. […] Se o estilo preponderante e generalizado mais se aproxima do mouro, segue-se que eles o deixaram por cá como aconteceu em várias províncias continentais. […] Há de haver de tudo um pouco; mas o estilo musical, não sendo o característico do continente, convida a uma reflexão demorada. A sua pobreza melódica aproxima-se da música árabe tanto quanto se afasta das ricas melodias portuguesas” (Id., Ibid., 44-45). Posto isto, o charamba, a canção mais conhecida no folclore madeirense, possivelmente deixada pelos árabes, foi adotada com variação de freguesia para freguesia. Com um ritmo arrastado e sentimental que revela a alma do povo madeirense, é o género musical mais antigo da tradição popular ou rural. Na Madeira é cantado, enquanto nos Açores é uma dança. Para Carlos Santos, o charamba parece traduzir o lamento de escravo ou ser uma melodia árabe; os camponeses madeirenses identificaram-se com esta melodia, devido à sua dura vida rural. O autor observa que, sempre acompanhado com a viola de arame, o charamba entrou no ouvido dos madeirenses, como provam as seguintes quadras: “O charamba pelo meio/Toda a vida m’agradou/Depois que o charamba veio/Outra moda não se usou” e “O Charamba foi às lapas/A mulher aos caranguejos/A filha ficou em casa/A dar abraços e beijos” (Id., Ibid., 49). Maria de Lurdes de Oliveira Monteiro, ao descrever o baile da meia-volta do Porto Santo, aponta as “características irrefragáveis dos árabes, com os quais a ilha, durante séculos, teve intercâmbio populacional: [...] não há ninguém que, vendo estas rodas e meneios lentos, em noites de luar e ouvindo as toadas melancólicas e trinadas que os acompanham não chegue instantaneamente a essa conclusão, tão grande é a semelhança” (MONTEIRO, 1945, 48). Adalberto Alves (1999) afirma que grande parte dos instrumentos musicais usados em Portugal, como o violino, a guitarra, o alaúde, a gaita, o pandeiro e o adufe, deriva diretamente dos instrumentos árabes. Jorge Torres e Rui Camacho (2015), a propósito dos instrumentos musicais populares, citam Gaspar Frutuoso, que, por volta de 1590, na descrição da ilha da Madeira, referindo-se à romaria de N.ª Sr.ª do Faial, diz congregar mais de 8000 pessoas, “que se deixam estar dois, três e mais dias em Nossa Senhora […] e juntos fazem muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, flautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 1873, 99). Os autores não nos dão nenhuma indicação sobre o que seria(m) este(s) instrumento(s) denominado(s) rabis, talvez por ser(em) desconhecido(s). Nem Torres e Camacho (2015) nem Torres (2015) fazem qualquer referência à influência árabe, pelo facto de não existirem dados que a comprovem, como já referido. Sobre o violino popular, o grupo de folclore do Porto Santo escreve: “Mais conhecido por rebeca foi sempre um acompanhante inseparável das danças e cantares mais característicos e tradicionais do Porto Santo, como o Baile da Meia Volta e Ladrão. Assim, pode-se concluir que o seu aparecimento no Porto Santo esteja ligado à chegada dos mouros a esta ilha, tal como as danças referidas. Posteriormente, este instrumento passou a acompanhar todas as festas populares, tanto religiosas como profanas” (GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO, 1999, 10). Relativamente à influência árabe na alimentação madeirense, os autores do Elucidário Madeirense citam Sarmento, que chama a atenção para o cuscuz dos mouros, “massa granulada de farinha de trigo, tão apreciada pelas classes pobres e que só a comem nas ocasiões solenes, com um naco de carne de porco, pelos batizados e casamentos, não faltando o ramo de segurelha e coentro que encima o prato e o aromatiza” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408-409). A palavra “cuscuz” (do ár. “kuskus”) surge em Luís de Sousa com a grafia “cuscus”, definida como “produto de confeção mourisca, fabricado principalmente em Marrocos e na Madeira. Notas. I. Z.” (SOUSA, 1950, 57), que se utiliza geralmente como arroz; com efeito, na Madeira, o trigo, convertido em farinha, além de ser usado para fazer pão e doces, também é usado para fazer cuscuz. Veríssimo refere que, no Convento da Encarnação do Funchal, “No Dia de Jesus ou nos Reis nunca faltava o picado de carneiro com cuscuz” (VERÍSSIMO, 1987, 39). O trigo era empregue em pão, bolos, doces, empadas, pastéis e cuscuz. No ano de 1769, e.g., as freiras consumiram 6,5 alqueires de cuscuz (Id., Ibid., 40). O Visconde do Porto da Cruz escreve: “O cuscus – parece que foi introduzido na culinária madeirense pelos escravos mouros do tempo dos povoadores – é dos pratos mais divulgados”. Diz-nos que há dois pratos: “o cuscus vulgar e o cuscus rico. O primeiro come-se só com água, sal, um raminho de segurelha, manteiga e serve-se quente e o segundo é feito do mesmo modo mas come-se com passas de uva, azeitonas, pedaços de chouriço, de carne de porco, de carne de galinha e até conservas de pepino, couve-flor, etc.” (PORTO DA CRUZ, 1963, 43). Lacerda nota que o cuscuz é “receita e uso deixado pelos mouros, muito usado nos conventos e entre seculares, nos casamentos e batizados” (LACERDA, 1993, 96); Zita Cardoso menciona que o cuscuz é servido como arroz, especialmente na quadra do Natal e na Páscoa, com pratos de carne: “Trazido do Norte de África, depois muito usado na Madeira e Porto Santo, foi alimento dos pobres muito vulgarizado na Ponta do Sol, Ponta do Pargo e Calheta. Foi também manjar senhorial. Daí haver o cuscuz rico, quando adicionado com pedaços de carne de porco, vaca, galinha, chouriço, passas, legumes e azeitonas em conserva” (CARDOSO, 1994, 134). O cuscuz é característico da zona oeste da Madeira, mas a tradição de fazer e cozinhar cuscuz não era desconhecida na parte leste da ilha, onde, como já se referiu, também houve uma importante presença moura. Élvio Sousa mostra que o cuscuz constava do receituário tradicional das cozinhas dos solares da Vila de Machico, ou seja, o seu fabrico e consumo seria frequente apenas nas casas abastadas, ao contrário do que acontecia noutras partes da Ilha (em que o seu uso era generalizado); talvez tenha sido por isso que desapareceu da parte leste da Ilha. Normalmente, era um prato confecionado em dezembro, antecedendo a matança do porco. A Revista Folclore informa que o cuscuz de trigo, na alimentação tradicional madeirense de São Vicente, era utilizado todo o ano, mas principalmente entre novembro e junho, porque se cozinhava com linguiça de porco e esta era feita com a matança do porco (GRUPO DE FOLCLORE DA CASA DO POVO DE SÃO VICENTE, 1998, 31). Segundo o Elucidário Madeirense, os habitantes da ilha do Porto Santo dão o nome de escarpiada ao pão de fina espessura feito com farinha de milho moída em moinho de mão ou de vento, sem fermento, que só terá sobrevivido nessa ilha. A massa do pão, achatada e muito fino, é cozida numa pedra de barro (o caco), untada com azeite ou banha de porco, sendo voltada de um lado e do outro (GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO, 1998, 13). Parece tratar-se de um pão de origem árabe, característico do Porto Santo, onde a influência moura teria sido maior; contudo, segundo Alberto Vieira (2004a), consumia-se escarpiada, no séc. XVIII, no Convento da Encarnação, no Funchal. Alberto Vieira, em “A mesa e a cozinha na história madeirense” (2004b), afirma que o cuscuz, a escarpiada e o bolo do caco terão origem no Norte de África, devido ao contacto entre as duas áreas geográficas e aos escravos mouros; a escarpiada ou escrapiada teria sido introduzida no Porto Santo pelos árabes; igualmente de origem árabe será, como já se disse, o bolo do caco, pão elaborado à base de farinha de trigo, podendo levar batata-doce para ficar mais fofo e doce, tendo igualmente um aspeto achatado e de bordas arredondadas. O bolo do caco deve o nome ao facto de ser cozido a lenha, numa pedra de basalto, denominada caco de pedra, colocada sobre o lar. A presença árabe no Arquipélago da Madeira também passa pela influência berbere dos escravos guanches das Canárias. Segundo o Elucidário Madeirense, o gofe ou gófio, papa que se fazia no Porto Santo com cevada moída depois de torrada, terá sido introduzido no arquipélago no séc. XV pelos guanches, oriundos de Gran Canária, de La Palma, de Tenerife e de La Gomera (SILVA e MENESES, 1998, II, 92-93). Em Ilhas de Zargo, Eduardo Pereira informa que ainda se fabricava gófio no Porto Santo, mas em diminuta quantidade, somente para uso particular na alimentação de crianças, débeis e doentes (PEREIRA, 1989 II, 580). Destaque-se ainda a tanarifa ou abóbora moira, também conhecida por moganga com a variante boganga/o, que parece ser simultaneamente de influência canária e moura. Trata-se de uma abóbora branca que, na Madeira, serve sobretudo para fazer sopa. Os vocábulos “tanarifa” e “abóbora moira” apresentam pouca vitalidade no concelho do Funchal e na zona leste da ilha, enquanto no concelho da Ponta do Sol e Calheta (zona oeste) parecem ser muito conhecidos. O termo “tanarifa” surge em Fernando Augusto Silva (1950), em Luís de Sousa (1950), em Antonino Pestana (1970) e em Marques da Silva (2013) como sinónimo de “abóbora moira”. Helena Rebelo (2007) refere a possível origem espanhola ou canária do termo, também registado como “tenerifa” por Luís de Sousa (1950). J. M. Barcelos (2016, 392), além de registar este termo como “abóbora, o m. q. boganga/moganga”, explica que a tanarifa também é conhecida como “abóbora de Tenerife”, indicando que “Tanarife era forma antiga de Tenerife, de onde terão vindo algumas dessas espécies de legumes, em caixas de madeira, nas quais vinha escrito o nome dessa ilha das Canárias”. O estudo destas palavras e coisas da cultura madeirense mostra-nos a herança das inter-relações históricas, linguísticas e etnográficas, cuja presença se prolongou na cultura madeirense. O francesismo linguístico na realidade insular: o regionalismo “tratuário”/“trotoario” Contrariamente às situações de contacto já referidas, que remetem para a presença de comunidades linguísticas e culturais distintas no mesmo espaço insular, o contacto do português falado na Madeira com o francês pode ser visto como sendo à distância, uma vez que não pressupõe a presença de uma comunidade francesa apreciável. A influência francesa no léxico regional deve-se, tal como ocorre com a variedade padrão do português, ao facto de ser grande o prestígio da cultura francesa em geral no final do séc. XVIII e durante o séc. XIX. Esta situação, de tipo unidirecional (no sentido do francês para o português), difere, e.g., da que caracteriza o contacto com o espanhol, sobretudo nas variedades das ilhas Canárias, as quais integram um número considerável de portuguesismos, sendo por este motivo considerada uma situação de contacto bidireccional A terceira fonte em número de vocábulos no português é o francês, que, durante séculos, primeiro na Idade Média, e mais tarde, nos sécs. XVIII e especialmente XIX, foi a língua de cultura da Europa. Muitas das palavras de origem francesa recolhidas nos dicionários tornaram-se de uso culto, literário, sendo outras arcaísmos; contudo, uma parte apreciável continuou a ser utilizada, integrando-se na linguagem diária portuguesa, “abajur”, “afazeres”, “agrafo”/“agrafar”, “berma”, “betão”, “creche”, “écran”, “ancestral”, “apartamento”, “assassinato”, “avenida”, “banal”, “bicicleta”, “bobina”, “boné”, “cabine”, “cabotagem”, “camuflagem”, “chance”, “conduta”, “constatar”, “crachá”, “departamento”, “detalhe”, “eclosão”, “elite”, “embalagem”, “emoção”, “evoluir”, “fetiche”, “governante”, “greve”, “maquete”, “restaurante”, “revanche”, “revoltante”, “silhueta”, “sabotagem”, “vitrine”, etc. Algumas foram integradas no português sem alterações (“fantoche”), outras adaptaram-se às propriedades morfológicas e fonológicas do português, obedecendo também a alguns ajustes de tipo gráfico (“chauffeur”>“chofer”). Este processo de empréstimo de palavras a outras línguas pode ocorrer com alteração de propriedades gramaticais, e.g., o género, como, na passagem do francês para o português, em: “une robe”>“um robe”; “une envelope”>“um envelope”; “le courage”>“a coragem” (VILLALVA, 2008). A variedade urbana insular (Funchal) integra no seu léxico a palavra “tratuário”, que tem a sua origem no termo francês “trottoir”, nome masculino derivado do verbo “trotter” (de *“trotton”>“trotten”, correr , forma intensiva de “treten”, dar um passo, andar). Palavra atestada nesta língua desde o séc. XVI, destaca-se ainda, na sua etimologia, o uso da expressão “être sur le trottoir” (1577), com o significado ser tema de conversa; “se mettre sur le trottoir”, com o sentido figurado de produzir-se, mostrar-se (1592); o termo designa a pista na qual trotam cavalos (1660). A referência a passeio, ou “chemin élevé le long des quais et des ponts pour les gens qui vont à pied [percurso elevado, ao longo dos cais e das pontes, destinado aos transeuntes] ”, surge já no séc. XVIII (1782) (REY, 2005). Do ponto de vista das suas propriedades semânticas, integra-se, enquanto nome locativo, na categoria de objetos dimensionais de superfícies de duas dimensões; nesta categoria, pertence à classe dos nomes de passagem, caracterizados pelas correlações com deslocação, ao lado de uma via urbana, no domínio da vida quotidiana (LE PESANT, 2000). “Tratuário” aparece, assim, no léxico regional madeirense, variedade do PE, entre peregrina e empréstimo, acompanhada de uma outra, “trotoário” (como em O Amor Que Purifica e Trotoário Azul, Fotonovelas Feitas na Ilha da Madeira). Estas duas formas gráficas revelam opções de adaptação distintas: a primeira procura conformar-se à fonologia do português e a uma das suas propriedades (redução do vocalismo átono), dando conta, no seu radical *trat-, da realização da vogal central, média-alta (VELOSO, 2012) em posição pretónica, afastando-se da representação gráfica da palavra francesa; já na segunda, reconhece-se o radical nominal trot- (de “trote”, nome masculino), com diferentes realizações fonéticas nas duas línguas em relação. Ambas opções recebem, através da vogal final -o, índice temático com valor de género (masculino), de acordo com as regras morfológicas do português. De notar que os sufixos -ário e -oir, português e francês, respetivamente, têm a mesma origem latina (-arius e -orium), sendo utilizados na formação de nomes de agente, com valores instrumental e locativo, mas com propriedades morfológicas distintas: o primeiro anexa-se a radicais nominais, o segundo a radicais verbais. “Tratuário” e “trotoário”, configuram-se então como hibridismos (CUNHA e CINTRA, 1984, 115). Palavras não registadas nos vocabulários regionais de referência, não é possível datar a sua entrada no léxico regional. No entanto, atendendo à data em que surgem atestadas no léxico de origem, é provável que o momento em que passaram a ser utilizadas na comunidade insular se situe nos finais do séc. XIX, altura em que se procede à edificação e calcetamento da praça do Rossio, em Lisboa, em que surge a calçada-mosaico e em que, “nas ilhas, o seixo rolado em abundância floresce num tratuário urbano para os peões” (MATOS, 2014), época coincidente com a do francesismo – iniciado a partir dos meados do séc. XVIII até aproximadamente à Segunda Guerra Mundial, período marcado pela influência cultural de França em vários aspetos da vida portuguesa (literatura, política, ideias) e também na língua, em diversas componentes do seu sistema, como refere Paul Teyssier (1994).     Catarina Andrade Aline Bazenga Helena Rebelo Naidea Nunes     artigos relacionados: cintra, luís filipe lindley gramáticas provérbios e outros ditos populares regionalismos madeirenses  

Linguística

noronha, adolfo césar de

Naturalista e homem de cultura natural do Funchal, onde nasceu a 9 de setembro de 1873, Adolfo César de Noronha estudou no Liceu do Funchal e nas antigas Escola Politécnica de Lisboa e Academia Politécnica do Porto. A 11 de dezembro de 1914, foi nomeado bibliotecário da Biblioteca Municipal do Funchal (BMF) e, em 1928, seu diretor, cargo que ocupou até à sua aposentação, em 1943. Com ligações familiares ao Porto Santo, efetuou nesta ilha observações meteorológicas, colheitas de espécimes, em particular fósseis, e ainda observações ornitológicas, que, juntamente com outras colheitas no arquipélago, vieram a servir de base a estudos efetuados por eminentes cientistas da época, com destaque para Ernesto Schmitz  (aves), Z. J. Joksimowitsch, P. Oppenheim e J. Böhm (fósseis). Na área do mar, colheu esponjas e briozoários, muitos deles novos para a ciência. À época, causou sensação a descoberta de uma esponja incrustante, simultaneamente com espículas calcárias e siliciosas, Merlia normani, obtida por dragagens no Porto Santo. Estas dragagens foram feitas em conjunto por Noronha e Randolph Kirkpatrick em 1909, tendo este último publicado a descrição desta esponja num extenso artigo publicado no Quarterly Journal of Microscopical Science, em 1911. Em 1922, encabeçou uma expedição científica às ilhas Selvagens (onde já tinha ido em 1906 e 1909), acompanhado de Adão Nunes e Damião Peres. Por vicissitudes com o navio que os deveria trazer de volta ao Funchal, acabaram por lá permanecer dois meses, causando motivos de preocupação na sociedade madeirense. O seu regresso ao Funchal foi motivo de receção pelas mais altas individualidades da Madeira, conforme noticiado pelo Diário de Notícias do Funchal de 13 de junho desse ano. Dessa expedição resultaram observações meteorológicas e colheitas de espécimes que foram enviadas a especialistas mundiais da época. Com o seu vasto conhecimento da história natural da Madeira e sendo fluente no inglês, francês e alemão, Adolfo César de Noronha foi o correspondente por excelência na Madeira de muitas figuras gradas da ciência do início do séc. XX. Como gesto de reconhecimento, várias espécies novas para a ciência foram-lhe dedicadas: Schizoporella noronhai, briozoário abissal, Pecten noronhai e Spondylus noronhai, moluscos bivalves fósseis, entre outras. Estudou com profundidade os peixes da Madeira, tendo publicado em 1925, no Porto, um ensaio intitulado Um Peixe da Madeira. O Peixe Espada Preto, ou Aphanopus carbo dos Naturalistas e, no ano seguinte, nos Annals of the Carnegie Museum, dois artigos sobre duas espécies novas para a ciência: um peixe da família dos escolares, Diplogonurus maderensis, e um tubarão de profundidade raro, que dedicou ao seu amigo Alberto Artur Sarmento, Squaliolus sarmenti. Em coautoria com Sarmento, publicou também, em 1934, um trabalho de divulgação intitulado Os Peixes dos Mares da Madeira e, em 1948, o segundo volume (Peixes) do importante trabalho Vertebrados da Madeira, editado pela Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Colaborou ativamente com Fernando Augusto da Silva e com Carlos Azevedo de Meneses na elaboração do Elucidário Madeirense (1922), tornando esta obra numa referência da história natural do arquipélago da Madeira. Logo após a sua nomeação como diretor da BMF, à época instalada no edifício dos Paços do Concelho em exíguas condições, começou a defender a aquisição de um edifício para a sua reinstalação e a criação de um museu que pudesse alojar as suas coleções de história natural e outro património artístico, arqueológico e histórico pertencente à Câmara Municipal do Funchal (CMF). Esta intenção foi concretizada em 1929 com a criação do Museu Regional da Madeira e com a aquisição do palácio de S. Pedro, para a qual foi decisiva a ideia por si realizada de emitir um selo postal da Madeira cuja receita reverteu para esta aquisição. Com a preciosa colaboração de Günther E. Maul, o novo Museu abriu as suas portas ao público em 1933, sendo hoje o Museu de História Natural do Funchal. Ao aposentar-se, a 9 de setembro de 1943, a CMF prestou-lhe homenagem atribuindo o seu nome à sala principal do Museu. A Augusto Nobre (1865-1946), distinto cientista português e catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, são atribuídas as seguintes palavras acerca de Adolfo de Noronha: “possui todos os requisitos para ocupar com distinção uma cátedra em qualquer universidade do país” (SILVA e MENESES, 1965, 426). Adolfo César de Noronha morreu no Funchal, a 6 de abril de 1963. Obras de Adolfo César de Noronha: Um Peixe da Madeira. O Peixe Espada Preto, ou Aphanopus carbo dos Naturalistas (1925); “A New Species of Deep Water Shark (Squaliolus sarmenti) from Madeira” (1926); “Description of a New Genus and Species of Deep Water Gempyloid Fish, Diplogonurus maderensis” (1926); Os Peixes dos Mares da Madeira (1934) (coautoria); Vertebrados da Madeira. Peixes (1948) (coautoria).   Manuel José Biscoito (atualizado a 03.03.2018)

Biologia Terrestre Biologia Marinha Personalidades

meneses, sérvulo drummond de

Advogado, político e jornalista madeirense, com grande influência local durante a época liberal. Nasceu em 1802 no Funchal, tendo perecido no mesmo local em 1862. Palavras-chave: Política; Jornalismo.   Sérvulo Drummond de Meneses nasceu no Funchal, em 23 de dezembro de 1802, sendo filho de João Nepomuceno Correia Drummond e de Maria Isidora de Meneses e Brito. Casou-se com Maria Carlota Arnaut, com quem teve cinco filhos. Concluiu o curso liceal no Funchal e depois iniciou-se como praticante no escritório do tio, o escrivão Inácio Correia Drummond, sendo, mais tarde, nomeado escrivão judicial. Antes de 1820, foi cadete do Corpo de Artilharia Auxiliar, mas, após a Constituição de 1822, tornou-se advogado provisionado, tendo efetuado o concurso de provas junto do Tribunal Superior de Justiça, apesar de não ser formado em Direito, acabando por se destacar como um dos mais distintos advogados do seu tempo e por deixar algumas peças de carácter administrativo e civil, umas inéditas e outras avulsas. Militou no partido cartista, ou liberal, e, mais tarde, no partido cabralista, militância que terá facilitado o seu acesso à carreira política. Foi presidente da Câmara Municipal do Funchal e vereador da mesma Câmara, tendo fundado, a 12 de janeiro de 1838, a Biblioteca Municipal do Funchal, importante estrutura cultural do arquipélago. Entre os cargos públicos que exerceu, relevam-se também o de vogal do Conselho Distrital, o de procurador à Junta Geral, o de secretário-geral do Governo Civil e o de governador civil interino, na ausência do conselheiro José Silvestre Ribeiro (1848-1849). Como jornalista, foi redator e diretor do periódico funchalense A Flor do Oceano, entre 1828 e 1866, tendo colaborado igualmente em outros periódicos, entre os quais O Regedor (1823 e 1828) e A Ordem (1852-1860). Foi autor de várias obras de interesse regional, como Uma Epocha Administrativa da Madeira e Porto Santo, publicado no Funchal (1.º vol., 1849; 2.º vol., 1850; o 3.º vol., de 1852), é de António Jacinto de Freitas); Collecção de Documentos Relativos ao Asylo da Mendicidade do Funchal; Collecção de Documentos Relativos à Construção da Ponte Ribeiro Secco; Collecção de Documentos Relativos á Fome por que Passaram as Ilhas da Madeira e Porto Santo em 1847. Como poeta, publicou, na juventude, poemas que foram incluídos na Collecção d’Algumas Obras Poeticas offerecidas ao Ilmo. e Exmo. Sr. Sebastião Xavier Botelho. Foi agraciado com o grau de cavalaria da Ordem de Nossa Senhora da Conceição, de Vila Viçosa. Faleceu no Funchal, a 13 de janeiro de 1867. Obras de Sérvulo Drummond de Meneses: Collecção de Documentos Relativos ao Asylo da Mendicidade do Funchal (1848); Collecção de Documentos Relativos à Construção da Ponte Ribeiro Secco (1848); Collecção de Documentos Relativos á Fome por que Passaram as Ilhas da Madeira e Porto Santo em 1847 (1848); Uma Epocha Administrativa da Madeira e Porto Santo (1.º vol., 1849; 2.º vol., 1850).   António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 24.02.2018)

Direito e Política História Política e Institucional

melo, antónio júlio de santa marta do vadre de mesquita e

António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), 3.º visconde de Andaluz, foi para a Madeira como secretário-geral do governador, D. Tomás de Sousa e Holstein, marquês de Sesimbra; porém, o marquês de Sesimbra não estaria um ano no lugar. António Melo foi nomeado para o lugar de governador civil do Funchal em setembro de 1879. Coube ao seu Executivo tentar acalmar a agitação política, que se devia à nomeação de nobres da Corte, o que não se enquadrava já na vida política portuguesa. Palavras-chave: Arranjos familiares; Governo civil; Partidos Políticos; Regeneração; Tumultos populares.   O governador civil do Funchal D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), do Partido Regenerador, foi exonerado em 1868 pelo Executivo do açoriano conde de Ávila, António José de Ávila (1806-1881), do Partido Reformista ou Partido Popular, então uma cisão do Partido Histórico (Partido Histórico e Partidos políticos). As complexas alianças entre estes partidos levaram o Governo de Lisboa a colocar em S. Lourenço duas figuras da aristocracia da Corte de Lisboa: o marquês de Sesimbra, D. Tomás de Sousa e Holstein (1839-1887), filho do duque de Palmela (1781-1850), como governador civil, e o 3.º visconde de Andaluz, António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), como secretário-geral. Estas duas escolhas foram alicerçadas em vagas ligações familiares às antigas famílias insulares e foram por certo resultado da pressão dos elementos do Partido Histórico, incapazes de compreender as novas realidades dos meados e da segunda metade do séc. XIX. O marquês de Sesimbra era casado com uma filha dos marqueses da Ribeira Grande, descendentes de Zarco, mas dos Açores, e viria a ser sogro do futuro conselheiro Aires de Ornelas e Vasconcelos (1866-1930); o visconde de Andaluz estaria para se casar com uma filha do barão da Conceição, Fortunato Joaquim Figueira (1809-1885), abastado proprietário que se havia fixado no Funchal nesse mesmo ano de 1868. O marquês de Sesimbra – ou de Cezimbra, como então aparece escrito – foi nomeado por decreto de 9 de setembro e viria a tomar posse a 17 de outubro de 1868, após Te Deum na catedral do Funchal celebrado à uma da tarde; disso nos dá conta o visconde de Andaluz, seu secretário-geral, que o comunicou às autoridades do Funchal, convidando-as para o evento. A administração do marquês ir-se-ia pautar por uma simples gestão administrativa, sendo praticamente toda a correspondência assinada pelo secretário-geral. Realizadas eleições em maio do seguinte ano de 1869, e passado o verão, o marquês de Sesimbra retirou-se, nos primeiros dias de setembro, para o continente, não completando um ano de governo na Madeira. Palácio e Fortaleza de São Lourenço. 1870. Arquivo Rui Carita O visconde de Andaluz tinha sido nomeado governador civil do Funchal por decreto de 4 de setembro, tomando posse a 8 do mesmo mês. Faria então uma proclamação aos “Habitantes do distrito do Funchal! Por decreto de 4 do corrente Houve por Bem Sua Majestade” nomeá-lo governador civil. Apelava então: “Auxiliai-me com o seu conselho e com as suas luzes […] pela prosperidade desta Terra, que eu hei de esforçar-me em promover os interesses dela com solicitude e dedicação” (ABM, Alfândega do Funchal, circular de 9 set. 1869). Era um discurso um pouco ultrapassado para a época, semelhante às proclamações liberais dos anos 30 e 40, conhecidas no Funchal durante a vigência da Junta Governativa de 1847 e o conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891) – proclamações que alguns anos depois ainda viriam a surgir, então ainda mais estranhas ao contexto político da época. O novo governador tentou fazer face à situação algo agitada que se vivia, não só política, como geral. No arquipélago, nem sempre se encontrava gente à altura para os vários locais diretivos e, ao mesmo tempo, não se conseguiam definir especificamente estruturas partidárias, daí resultando vagas organizações articuladas em relações pessoais em torno dos membros mais influentes das elites locais. Em maio de 1870, e.g., tendo o visconde de Andaluz suspendido o administrador do concelho de Santana, “não havendo naquela localidade pessoa com os requisitos necessários para, na atual conjetura entrar na referida vagatura”, solicitava à Casa Fiscal da Alfândega do Funchal a disponibilização do funcionário Joaquim Pinto Coelho (1817-1885) para ocupar o lugar (Ibid., Alfândega do Funchal, of. 23 abr. 1870) – uma nomeação acertada, considerando o tempo em que aquele funcionário ocupou o lugar da Alfândega. Nos inícios de 1870, por decreto de 2 de janeiro, procedeu-se à dissolução das Cortes e, a 3 de fevereiro seguinte, à reunião das assembleias eleitorais. Na Madeira, as eleições decorreram a 1 de maio, voltando a sair os nomes de Luís Vicente de Afonseca (1803-1878) e Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901). Porém, as eleições decorreram muito mal e, especialmente em Machico, ocorreram tumultos graves. Acontece que o governador destacara para os principais centros eleitorais forças de Caçadores 12, nem sempre comandados por elementos capazes de manter o sangue frio. As forças militares acabaram por se refugiar na igreja matriz e, acossadas pela populaça, fizeram fogo sobre a multidão, o que resultou em vários mortos (Tumultos populares). Houve também incidentes em outros locais, inclusivamente no Funchal. O Partido Popular, que se achava na oposição, tinha um certo domínio sobre as massas populares e quando Joaquim Ricardo da Trindade e Vasconcelos (1825-1906), então membro do Partido Fusionista, desembarcou no Funchal, ido precisamente de Machico, foi preso na Pontinha e conduzido à Pr. da Constituição para justiça popular. Evitou o assassinato o jovem Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898), uma das figuras prestigiadas do Partido Popular, que se interpôs entre os populares e Trindade e Vasconcelos. Como o visconde de Andaluz tinha feito vários contactos e estabelecido um pacto de não intervenção nos assuntos do Partido Popular, foi isso que aconteceu em relação a novas alterações da ordem pública em Machico, aquando dos funerais das vítimas do dia 1 de maio. Os acontecimentos de Machico produziram grande sensação na imprensa madeirense e, de imediato, no continente, sendo o visconde violentamente atacado nas Cortes e na imprensa de Lisboa. Em julho ainda apareciam na comunicação social de Lisboa abaixo-assinados respeitantes aos acontecimentos de Machico e à maneira pouco ortodoxa como haviam sido encaminhados juridicamente. Um conjunto de cinco guardas da Alfândega do Funchal, e.g., fora indiciado e preso “pelo crime de cumplicidade nas mortes e ferimentos feitos pela força militar dentro do templo de Machico” (A Revolução de Setembro, n.º 8416, Lisboa, 5 jul. 1870, 1). O despacho fora emitido pelo juiz da comarca oriental do Funchal, Cassiano Sepúlveda Teixeira, e os guardas não entendiam como podiam ser acusados de “crimes eleitorais e políticos” e de “crimes de violência contra membros da assembleia eleitoral” (Ibid.), quando o que estava em causa era uma série de mortes entre a população local, cujos autores tinham sido os soldados de Caçadores 12, como se queixam então os guardas António José Nunes, Jacinto Augusto Ferreira, Januário Esteves de Sousa, Augusto Celestino Lacerda e António Vieira. O visconde de Andaluz foi exonerado em poucos dias, por dec. de 14 de maio de 1870. Foi nomeado como governador do distrito do Funchal Afonso de Castro (1824-1885), que tomou posse a 19 desse mês de maio, mas que não estaria na Madeira senão oito dias, face a mais uma intentona militar do duque de Saldanha (1790-1876) em Lisboa. Poucos meses depois, e face ao insucesso das nomeações, D. João Frederico da Câmara Leme voltava a ocupar o lugar de governador civil. O 3.º visconde de Andaluz era bacharel em Direito e herdou o título de seu pai, Joaquim José dos Mártires de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1806-1863), que o tinha recebido por doação de sua tia materna, Maria Bárbara do Vadre de Almeida Castelo Branco, viúva do 1.º visconde, António Luís Maria de Mariz Sarmento, dado do casamento não ter havido descendência. Embora tenha sido uma situação algo insólita, o 3.º visconde de Andaluz, um ano depois do falecimento do pai, conseguiu a confirmação do título por carta régia do D. Luís (1838-1889), de 17 de dezembro de 1864. Casou-se no Funchal com D. Ana Joaquina Figueira, filha dos barões da Conceição. Desse casamento houve quatro filhas, tendo-se a mais velha casado com o conde de Vila Verde, D. Pedro de Almeida e Noronha Portugal Camões Albuquerque Moniz e Sousa (1865-1908). A 4 dezembro de 1890, o 3.º visconde de Andaluz ainda seria nomeado governador civil de Santarém, lugar que ocupou até 2 de janeiro de 1892. Terá falecido cerca de 10 anos depois.   Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)

Direito e Política História Política e Institucional Personalidades

heberden, thomas

Thomas Heberden (1703-1769) foi um médico e naturalista inglês, membro da Royal Society desde 1761. Viveu muitos anos nas ilhas Canárias e, posteriormente, mudou-se para a Madeira, onde exerceu medicina até à sua morte, em 1769. Irmão do eminente médico londrino William Heberden (1710-1801), Thomas foi um dos primeiros médicos a recomendar o Funchal como destino para as pessoas que sofriam de doenças pulmonares, tendo prestado importantes serviços durante a epidemia de sarampo que eclodiu na Ilha em 1751. Publicou numerosos artigos sobre a Madeira na Philosophical Transactions of the Royal Society entre 1751 e 1770, entre eles, as primeiras observações meteorológicas da Madeira, “Observations of the Weather in Madeira, A continuation of the account of the weather in Madeira”, com medições de pressão atmosférica e temperatura ao longo dos anos; um relatório pormenorizado sobre o terramoto acontecido na Ilha em 1761, “An account of the earthquake felt in the Island of Madeira, March 31, 1761”; e um artigo sobre o aumento da mortalidade dos habitantes da Madeira, “Of the increase and mortality of the inhabitants of the Island of Madeira”. Na Madeira, Heberden conheceu o naturalista e botânico inglês Joseph Banks, durante a primeira viagem do capitão James Cook a bordo do Endeavour, em 1768, e deu assistência a Banks e ao seu colega Daniel Solander, botânico suíço, na sua atividade de recolha de plantas na Ilha. Estas coleções botânicas foram depositadas no herbário do Museu de História Natural de Londres. Banks dedicou a Thomas um novo género de plantas, Heberdenia, pertencente à família Myrsinaceae. Estas plantas são endémicas à Laurisilva e conhecidas vulgarmente como aderno. Thomas Heberden morreu no Funchal, em 1769. Obras de Thomas Heberden: “Observations of the Weather in Madeira, A continuation of the account of the weather in Madeira” (1754); “An account of the earthquake felt in the Island of Madeira, March 31, 1761” (1761); “Of the increase and mortality of the inhabitants of the Island of Madeira” (1767).     Pamela Puppo (atualizado a 23.02.2018)

Biologia Terrestre Ciências da Saúde Personalidades

planeamento

É um instrumento administrativo que permite entender a realidade, avaliar os caminhos a seguir e construir um referencial futuro, estruturando o trâmite adequado e reavaliando todo o processo a que o plano se destina. No código administrativo de 1936, são atribuídas às Juntas de província competências no domínio do planeamento regional. A partir de 1956, a palavra “planeamento” integra o dicionário político nacional, mas a sua institucionalização só se torna uma realidade na década de 60. Entretanto, só em 1966 surgiu a Divisão de Planeamento Regional, integrada na Direcção de Serviços de Planeamento. Em 1967, pela lei 2133, que definia as bases do III Plano de Fomento para 1968-73, aparece o planeamento regional a corporizar as políticas destes planos, dividindo o país em regiões de planeamento, com comissões consultivas regionais, tendo um Secretariado Técnico na Presidência do Conselho de Ministros. Neste quadro, deveremos salientar a visita à Madeira, entre 11 e 15 de novembro de 1968, de José Santos Varela e Carlos Rebelo de Simões, da Divisão de Planeamento Regional/Secretariado Técnico da Presidência do Conselho, no sentido de estabelecer a estrutura de trabalho capaz de elaborar o planeamento regional da Madeira. Desta forma, a partir do terceiro plano de fomento, de 1969, assistiu-se à criação de organismos de planeamento económico regional em regiões-plano, conhecidas como Comissões de Planeamento Regional, que deram lugar, em 1979, às Comissões de Coordenação Regional. Na Madeira, já a partir de 1963, o planeamento regional aparece como uma constante no discurso do deputado madeirense Agostinho Cardoso, que afirma o turismo como um dos fatores destacados do planeamento regional no arquipélago, o que o diferencia do resto do país. Em 1967, junta-se-lhe a voz doutro deputado, Rui Vieira, a reclamar a criação de uma comissão de planeamento regional. Esta problemática motivou um debate público no Funchal, em janeiro de 1968, sob a epígrafe I Semana de Estudos Sobre Problemas Sociais e Económicos do Desenvolvimento. No Plano Quadrienal da Junta Geral, apresentado nesta época, era referida a necessidade de uma política de planeamento regional para o distrito, reforçada pelo grupo que estava associado à publicação do semanário Comércio do Funchal. A primeira estrutura madeirense de planeamento foi definida pelo dec.-lei n.º 48905, de 11 de março de 1969, que estabelece uma estrutura local para o III Plano de Fomento. Desta forma, a Madeira tornou-se uma Região de planeamento com uma comissão consultiva, cujas funções eram, até então, atribuídas à Junta Geral do Distrito do Funchal. Assim, na reforma do estatuto, a grande novidade foi a função de coordenação económica da Junta, que tinha expressão ao nível do planeamento para os planos trienais. O presidente e os vogais procuradores à Junta eram os mesmos elementos da Comissão de Planeamento da Região da Madeira. Contra esta decisão reclamam Agostinho Cardoso, nas páginas de A Voz da Madeira, e o grupo de oposicionistas, através do Comércio do Funchal. Esta situação de mal-estar na Junta Geral levou, em 1971, à demissão de Nuno Homem Costa, que acabou por ser substituído por Rui Vieira. Em 1969, aproveitando a “Primavera Marcellista” (que foi um momento de distensão no regime do Estado Novo, decorrente da substituição de Oliveira Salazar por Marcello Caetano na presidência do governo), um grupo de 39 cidadãos, composto por elementos da oposição, na maioria afetos à publicação do semanário Comércio do Funchal, entregou ao governador civil, Braancamp Sobral uma carta, reclamando uma mudança do sistema político, soluções para a situação da Madeira, e uma política de planeamento: “Eis, Senhor Governador, um dos problemas primários a ser tratados por qualquer comissão de planeamento regional que venha a ser constituída, conforme o pedem as necessidades de uma economia cuja situação de descalabro e de desajustamento entre os diversos sectores (tanto privados como públicos) exige soluções globais urgentes e decisivas. E consideramos muito importante que o Planeamento Regional, não dispensando o concurso de especialistas de outras zonas do país e até estrangeiros, não prescinda da colaboração de madeirenses ou de quaisquer outros que, pelo seu contacto prolongado com a vida local, tenham conhecimento perfeito da sua problemática” (Carta, 1969, 20). O planeamento regional era, assim, uma opção assumida por todos, sendo encarado como um mecanismo importante na definição das políticas regionais, que passavam pela promoção da agricultura e do turismo. Podemos, aqui, enquadrar a ação da Comissão dos Aproveitamentos Hidráulicos e Hidroeléctricos (1941), assim como a política de melhoria do sistema de transportes internos e externos, em que se destaca a construção dos aeroportos do Porto Santo (1960) e do Funchal (1964). Rui Manuel Vieira presidiu, entre 1970 e 1971, à Comissão de Estudo e Coordenação Económica, órgão consultivo e de planeamento da Junta Geral do Funchal. A 24 de fevereiro de 1971, foi nomeado presidente da Junta Geral, tendo tomado posse a 27 deste mês, cargo que passou a acumular com o de presidente da Comissão de Planeamento da Região da Madeira. Nesta altura, existia a Comissão de Estudo e Coordenação Económica, órgão consultivo da Junta Geral, criado por deliberação da Comissão Executiva de 11 de junho de 1970. Foi exonerado, a seu pedido, no início de setembro de 1974. Em 1980, foi nomeado diretor regional do Planeamento. Em 1971, na sequência da tomada de posse do novo presidente da Junta e da organização dos serviços de planeamento, o subsecretário de Estado do Planeamento Económico, João Salgueiro, visitou o Funchal. A partir de então, o planeamento regional tornou.se uma realidade, criando-se, em 1971, as subsecções de trabalho sobre agricultura e infraestruturas e, em 1972, a de industriais. Desta forma, no orçamento da Junta Geral de 1971, surge um novo capítulo sobre Planeamento Regional para os estudos necessários ao desenvolvimento económico-social da Madeira. A 2 de junho de 1972, numa reunião dos presidentes das Comissões de Planeamento das diversas regiões do país, foi proposta a criação de sociedades de desenvolvimento regional. O IV Plano de Fomento Nacional já receberá o aporte significativo destas comissões. Com o 25 de Abril de 1974, acabaram os planos de Fomento e foi criada uma nova política de planeamento. Os governos provisórios (1974-1976) estabeleceram programas e planos económicos para o período de transição. Depois, a Constituição da República de 1976 definiu as grandes opções do plano, os planos anuais e plurianuais, os investimentos do plano, e os programas integrados de desenvolvimento regional dos programas de investimentos intermunicipais. O suporte destes planos é o Secretariado Técnico do Planeamento que, em 1975, deu lugar ao Departamento Central de Planeamento, que teve como parceiros, desde 1977, a Comissão Técnica Interministerial de Planeamento e o Conselho Nacional do Plano. Com as alterações políticas introduzidas pelo dec.-lei n.º 139/75, de 18 de março, foi criada na Madeira a Junta de Planeamento, que funcionava como instituição governativa transitória, e que tinha sob a sua tutela a Junta Geral do Distrito Autónomo da Madeira e a Comissão Regional de Planeamento. Esta deu lugar, pelo dec.-lei n.º 101/76, de 3 de fevereiro, à Junta Administrativa e de Desenvolvimento Regional, com competências no planeamento e nas finanças. A Junta Administrativa Regional foi criada na dependência direta do primeiro-ministro. Com a Constituição de 1976, foram instituídas as Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, que passaram a usufruir de poderes financeiros e administrativos, expressos na autonomia patrimonial plena, com poderes de planeamento e orçamentais próprios. Com a criação do primeiro Governo Regional, pelo dec. regional n.º 2/76, de 21 de outubro de 1976, foi criada a Secretaria Regional do Planeamento Finanças e Comércio e, finalmente, pelo dec. reg. regional n.º 9/79/M, de 29 de maio, foi criada, no âmbito da Secretaria Regional de Planeamento e Finanças, a Direcção Regional de Planeamento. Finalmente, pelo dec. leg. regional n.º 18/2007/M, de 12 de novembro, é criado o Instituto de Desenvolvimento Regional, para substituir o Instituto de Gestão de Fundos Comunitários, com a missão de coordenação das atividades de planeamento e de monitorização do modelo de desenvolvimento regional, bem como de coordenação e gestão da intervenção dos fundos comunitários, na RAM.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

História Política e Institucional