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arquitetura militar

A consciência da necessidade de fortificação das ilhas atlânticas com vista às alterações do quadro estratégico do Atlântico Norte foi tardia, ao contrário do que sucedeu no Norte de África, onde uma população islamizada nunca aceitou de bom grado a presença portuguesa, obrigando à rápida construção de estruturas defensivas. No entanto, o termo arquitetura militar envolve outros pressupostos, inclusivamente teóricos, pelo que a sua incipiente instalação na Ilha, ao longo do séc. XV e perante a inexistência de um inimigo imediato, dificulta a escrita sobre o tema. Claro que se construíram estruturas defensivas, como a torre do Capitão, em Santo Amaro, no Funchal ou a torre dos Esmeraldos, na Lombada da Ponta do Sol, mas foi principalmente por questões de prestígio (Arquitetura senhorial). Mesmo o pedido de construção de uma fortaleza feito à infanta D. Beatriz, em 1475 e a construção do chamado baluarte do Funchal (a fortaleza e palácio de São Lourenço), em 1540, resultaram mais em edificações senhoriais do que militares, numa época em que já se começava a equacionar outro tipo de construções, mas não a entendê-las totalmente. Nos meados do séc. XV, começou a ser introduzido em Portugal armamento de fogo, o que, a par das novas bestas com tração mecânica, por exemplo, alterou os pressupostos das construções defensivas. A utilização de armamento de fogo pesado obrigou ao reforço das antigas muralhas com sapatas e, progressivamente, foram desaparecendo as altas torres de menagem, alvos facilmente reconhecíveis à distância e também facilmente derrubáveis. A primeira fortificação construída na Madeira, pedida em 1528, determinada em 1529, mas só levantada entre 1540 e 1541, dirigindo a obra o pedreiro Estêvão Gomes, era uma fortificação de transição, não sendo ainda aquilo que se denominaria posteriormente “fortificação moderna”, “regular”, divulgada pelos novos tratados internacionais. O baluarte do Funchal implicou a construção de uma torre semioval, assente nos afloramentos rochosos da praia, ostentando os emblemas e as armas reais, articulada com uma muralha a correr sobre o chamado altinho das fontes de João Dinis, que envolvia as casas do capitão. Ao lado das fontes, o baluarte ou fortaleza tinha um torreão-cisterna que, flanqueando a muralha, protegia a aguada dos navios e a população na praia do Funchal. A fortaleza do Funchal e a organização geral defensiva militar mostrou-se assim totalmente incapaz perante o ataque corsário francês de outubro de 1566. A fortaleza foi atacada por terra, onde não possuía qualquer proteção e, não sendo possível movimentar as pesadas bocas de fogo em direção ao mar, não resistiu ao ataque, sofrendo a cidade um pesado saque de cerca de 15 dias a que quase nada escapou. A partir de então, a atenção da corte de Lisboa virou-se para as ilhas atlânticas e, logo na armada de socorro enviada à Madeira, terá viajado um arquiteto militar altamente habilitado, o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), ligado à família dos arquitetos do mosteiro da Batalha, alguns militares continentais para reverem a organização das companhias de ordenanças e das vigias, ainda vindo alguns meses depois, dois técnicos militares italianos para o apoiarem. Data desta época a instalação em Lisboa de uma provedoria das obras reais, que passou a controlar a documentação expedida para o vasto império ultramarino português e à qual ficaria depois ligado o arquiteto mor do reino. O novo mestre das obras reais da Madeira, Mateus Fernandes, recebeu, nos primeiros dias de 1567, ordens várias, enviadas pela provedoria das obras, em Lisboa, entre as quais o Regimento das Vigias, datado de 22 de abril de 1567. Este documento serviu de ensaio ao regimento geral promulgado em todo o reino a 10 de dezembro de 1570. O Regimento das Vigias de 1567, dirigido ao capitão do Funchal, mandava montar vigias em todos os portos, “calhetas, praias ou pedras, em que parecesse que os inimigos poderiam desembarcar” (ARM, Câmara Municipal..., Registo Geral, tomo 2, fl. 142v.). Este regimento avança ainda com outras diretivas respeitante à artilharia, tendo sido a base de muitos dos pequenos fortes ou fortins depois levantados pela Ilha. Assim, no reconhecimento que o capitão e os restantes elementos deveriam fazer dos lugares para “guarda do mar”, “surgidouros e desembarcadouros”, também deveriam ser contemplados os lugares “para guarda da terra” (Id., Ibid., fls. 109-112v.). Nesses lugares, deveriam ser levantadas estâncias para colocar artilharia, cuja praça deveria ser “chã e calçada como convém”, para que o pessoal depois ali em serviço se pudesse movimentar bem e as “rodas dos reparos estarem sempre enxutas, sem humidade de água ou lama” (Id., Ibid.). Deveria ainda ser montada uma casa sobradada para a pólvora, tal como uma guarita para observação e vigia. Em março de 1567, Mateus Fernandes recebeu a visita e o apoio de dois arquitetos italianos, Pompeo Arditi (c. 1520-1571) e Tomás Benedito (c. 1520-1567), ambos de Pézaro, que lhe entregaram um primeiro regimento de fortificação para o Funchal, datado de 14 de março desse ano. Estes italianos, com quem o mestre das obras reais já teria contactado no Norte de África, ficaram na Ilha cerca de um mês e seguiram depois para os Açores, onde aquele último reformulou e dirigiu a nova fortaleza de S. Brás, em Ponta Delgada. Com esta colaboração, o mestre das obras do Funchal levantou uma planta da cidade, algo que poderá também ter feito antes, hoje na Biblioteca Nacional do Brasil e imaginou uma enorme fortaleza para o morro da Pena, a descer até à praia do Funchal, ocupando toda a zona velha, conforme a entendemos no começo do séc. XXI, ou bairro de Santa Maria Maior. Fortaleza da Pena-1567. Arquivo Rui Carita.   A fortaleza do morro da Pena previa a construção de um importante complexo fortificado sobre esse morro, descendo parcialmente sobre o bairro de Santa Maria com dois núcleos defensivos abaluartados, sendo a fortaleza parcialmente rodeada por fosso e tendo o total do conjunto uma dimensão que só veio a ter paralelo em Portugal durante o séc. XVII e com as guerras da aclamação de D. João IV. Mateus Fernandes ultrapassou francamente a sua época com um planeamento desta envergadura, o mais antigo que conhecemos em Portugal e que poderia recolher no seu interior toda a população da cidade do Funchal em caso de perigo. A existirem algumas semelhanças, somente com a fortaleza de S. Filipe, planeada dez anos depois para Setúbal pelo italiano Jacomo Palearo, el Fratin (c. 1520-1586) e levantada sob a direção de Filipe Terzi (1520-1597), ou com a congénere da Ribeira Grande, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, em princípio, projetada pelo mesmo Filipe Terzi, sendo que nenhuma delas tinha a dimensão da delineada para a do Funchal. O planeamento compreendia dois núcleos abaluartados: um sobre o morro da Pena e outro na baixa do bairro de Santa Maria, que desapareceu totalmente com a construção da monumental fortaleza. O núcleo mais alto, sobre o morro, era dotado com dois terraplenos, tendo o de cima quatro baluartes pentagonais e o de baixo dois baluartes retangulares, com canhoneiras a flanquearem as muralhas de união dos dois terraplenos. Indicam-se no projeto as diferenças de altura das várias áreas para o leito da ribeira de João Gomes, que chegavam aos 140 palmos, ou seja, quase 30 m. Um corredor murado sobre a ribeira ligava os dois núcleos, com canhoneiras a flanquearem os muros a norte e a sul, utilizando-se a ribeira ainda como fosso. O núcleo inferior possuía uma enorme esplanada, delimitada por um baluarte pentagonal e dois meios baluartes. Mas o planeamento não foi aceite em Lisboa, optando-se por um esquema mais tradicional e reduzido para a futura fortaleza de S. Lourenço, articulado com panos de muralhas (Muralhas do Funchal). D. Sebastião enviou, assim, um novo regimento de fortificação, em 1572, no qual a cidade era envolvida, na frente mar e ao longo das ribeiras de João Gomes e de São João, por panos de muralhas que fechariam nos morros da Pena e de São João com pequenas posições fortificadas. A fortaleza central da cidade foi ampliada com o planeamento feito por Mateus Fernandes para o núcleo superior do morro da Pena, mas reduzida a menos de um terço das dimensões iniciais. Ficou com dois baluartes pentagonais gémeos virados a norte e um quadrangular, a proteger a zona ocidental, mantendo a nascente o baluarte joanino de 1541. Mais tarde, por volta de 1600, veio a ser dotada de um novo baluarte pentagonal, projeto de Jerónimo Jorge (c. 1570-1617), para proteger a porta. Como apoio da fortaleza principal, foi executada uma pequena estância fortificada, a ocupar a foz das ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes, a futura fortaleza de S. Filipe da Pç. do Pelourinho, havendo um pano de muralha a unir ambas, mas do qual quase nada ficou. A cidade considerada por D. Sebastião era já um pouco maior do que a de D. Manuel, isto é, o limite oriental passou da ribeira de Santa Luzia para a de João Gomes. No entanto, o primitivo bairro de Santa Maria do Calhau continuou a não ser considerado cidade, só vindo a possuir o seu troço amuralhado alguns anos depois e num outro enquadramento histórico. No verão de 1582, face à ameaça das armadas de D. António, prior do Crato, com base no arquipélago dos Açores, Filipe II mandou avançar, das Canárias, o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598). As primeiras preocupações do conde de Lançarote foram para a segurança interna e externa da Ilha, começando por visitar as duas fortalezas com o mestre das obras reais Mateus Fernandes, inteirando-se do seu estado e das suas necessidades. Conforme informa a 18 e 26 de junho, a fortaleza velha era essencialmente um bom palácio residencial, mas encontrava-se cercada de edificações muito próximas e mais altas, pouco valendo, assim, como defesa. A nova ainda se encontrava em piores circunstâncias, pouco havendo a fazer para melhorar as suas condições, pois não só estava mal localizada como também se encontrava mal construída. Perante o conflito que opunha as forças de Filipe II às de D. António, prior do Crato, com franceses e ingleses, envolvendo muitas centenas de homens de parte a parte, a pequena estância “nova” da Pç. do Pelourinho do Funchal era mínima para as necessidades e a de S. Lourenço também oferecia muitas reservas face ao seu envolvimento. As fortalezas e o seu autor, o mestre das obras reais Mateus Fernandes, receberam as mais duras críticas dos governadores e técnicos desses finais de século, dado não estarem previstas para fazer frente a um conflito como o que se desenrolava. O problema de ampliação da muralha do Funchal à frente mar foi resolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), quando, em 1585, tomou posse da capitania do Funchal, determinando o prolongamento da muralha para nascente. Este troço de muralha ao longo do calhau chegou parcialmente ao séc. XXI, confrontando com o que é, no começo do segundo milénio, a entrada do hotel levantado no antigo arsenal de Santiago ou de S.ta Maria Maior. As obras do novo troço de muralha confinavam com os arrifes por de baixo da antiga igreja de Santiago Menor, justificando a construção de uma fortaleza nessa baixa. A fortaleza de Santiago deve ter tido projeto de Mateus Fernandes, mas terá sido reformulado depois por Jerónimo Jorge, enviado de Lisboa em 1595, até então a trabalhar nas obras de S. Julião da Barra e do forte do Bugio.   Penha de França. Arquivo Rui Carita.   Desde a união das duas coroas que se discutia no Funchal a muralha poente e a edificação de uma fortaleza no Pico dos Frias, “padrasto”, ou seja, mais alto que toda a cidade e, inclusivamente, com comandamento sobre a fortaleza de S. Lourenço, tendo sido elaborado, de imediato, um projeto da autoria de Mateus Fernandes (Fortaleza do Pico). A situação foi ultrapassada pelo governador Cristóvão Falcão de Sousa, que após tomar consciência das necessidades da defesa do Funchal, em finais de 1601, enviou a Lisboa o sargento-mor da cidade, Roque Borges de Sousa, com uma planta da nova fortificação, por certo, a que fora executada por Mateus Fernandes, pois só nessa altura voltou à Ilha o fortificador Jerónimo Jorge. Regressado o sargento-mor ao Funchal, logo a fortaleza foi levantada, mas somente em madeira, encontrando-se já guarnecida nos inícios de 1602 e sendo passada a pedra e cal ao longo do século. Durante a mesma centúria, ainda seria levantada a bateria da Alfândega (Reduto da Alfândega), constituída por um baluarte triangular avançado ao mar, construído sobre a cortina da cidade e a fortaleza do Ilhéu, no meio do porto do Funchal, ambas com projeto e direção do mestre das obras reais Bartolomeu João, (João, Bartolomeu). Consolidava-se, assim, uma rede de fortalezas modernas, constituídas por conjuntos de baluartes pentagonais, de paredes inclinadas e reforçados nos cunhais, como a fortaleza do Pico, quase de traçado regular, sendo a artilharia colocada nas esplanadas dos mesmos. As novas fortificações adaptavam-se ao terreno e às restantes estruturas defensivas, como os muros da cidade, podendo ser apenas quase estâncias de tiro e formando um conjunto articulado, cruzando fogos obrigatoriamente entre si. O centro de comando era a fortaleza de S. Lourenço e, dada a sua localização, a do Pico funcionava como cidadela ou seja, de recurso e refúgio para o caso de invasão da baixa da cidade. A defesa e a fortificação da Madeira foram revistas várias vezes no séc. XVII, mas os elementos produzidos não chegaram até nós. Nos finais da centúria, por exemplo, deslocaram-se à Madeira o capitão de engenheiros António Rodrigues Ribeiro e o engenheiro Manuel Gomes Ferreira, mas apenas sabemos que teria sido então executado o portão dos Varadouros, datado de 1689. Mais tarde, em 1705, Manuel Gomes Ferreira, citaria que haviam feito um levantamento quase total das costas da Ilha, mas do qual nada conhecemos. Tudo leva a crer que estes trabalhos tivessem ido com os seus autores para Lisboa e aguardassem aí despacho favorável, perdendo-se no curso do tempo. A primeira grande campanha de obras de fortificação do séc. XVIII decorreu no governo de Duarte Sodré Pereira, um fidalgo mercador que tomou posse a 29 de abril de 1704. Como ficou exarado no demolido forte novo de S. Pedro (Forte novo de S. Pedro), na praia do Funchal e onde se construiu mais tarde o campo do Almirante Reis, o governador mandou levantar esse forte, juntamente com os de Machico (Fortes de Machico), Santa Cruz (Fortes de Santa Cruz) e Ribeira Brava (Fortes da Ribeira Brava), que se guarneceram de artilharia, tendo-se concluído todos os trabalhos em 1707. A data é referente ao forte novo de S. Pedro, pois a campanha geral de obras só foi terminada entre 1708, data limite das lápides e 1711, ano das últimas nomeações para os mesmos fortes. As estruturas levantadas não se afastam especialmente das do século anterior, embora tenham definido um novo modelo de fortificação triangular de uma só bateria, em que o lado virado a terra, em algumas, aparece dotado de torreão de gola, como no de S. Bento da Ribeira Brava, datado de 1708, ou no de S. João Batista do Porto Moniz, mais tardio, datado de 1758 (Forte do Porto Moniz). Nos finais do séc. XVIII procedeu-se a novo estudo de defesa da Ilha, determinado por D. Maria I, com data de 11 de junho de 1797, como vem referido na cartografia então levantada, pois não conhecemos registos no governo local. Para cumprir o plano determinado por D. Maria I, deslocou-se no ano seguinte para a Ilha o major do regimento de artilharia da corte, Inácio Joaquim de Castro, nomeado cavaleiro da Ordem de Cristo a 4 de dezembro de 1778, depois governador da ilha de São Miguel, nos Açores e da torre de S. Julião da Barra, em Lisboa. A instabilidade política dos anos seguintes não permitiu qualquer obra de fortificação e o que fora proposto em nada alterava o que estava feito. Os acontecimentos dos inícios do século seguinte, com a saída da corte para o Brasil, as ocupações inglesas do Funchal e mesmo a terrível aluvião de 1803, não só alteraram profundamente estes estudos como os levaram a outras resoluções, onde houve que equacionar não apenas a defesa imediata contra um ataque exterior. Com a referida aluvião, ocorrida a 9 de outubro, foi destacada para o Funchal uma equipa de engenheiros militares chefiada pelo brigadeiro, de origem francesa, Reinaldo Oudinot (1747-1807) e da qual fazia parte o então tenente Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), cujo primeiro trabalho foi o levantamento da planta do Funchal e dos estragos causados pela aluvião, porventura a melhor peça cartográfica efetuada na Madeira até essa data. A equipa foi para a Madeira, essencialmente, para colmatar os estragos da aluvião de 1803, mas num curto espaço de tempo alargou o trabalho à reforma da carta topográfica da Ilha e à defesa do Funchal, não só das intempéries, mas também numa perspetiva militar propriamente dita. Ao longo do ano de 1805, em abril, por exemplo, o brigadeiro Oudinot e Paulo Dias de Almeida ainda executaram as plantas da nova bateria das Fontes, que representa toda uma outra forma de entender a defesa e a arquitetura militares. A ideia já não era construir fortificações adaptadas ao terreno, mas grandes esplanadas capazes de receber as novas bocas de fogo, muito maiores do que as anteriores, necessitando assim de todo um outro campo de manobra. A bateria das Fontes veio a receber grande parte da guarnição da fortaleza e palácio de S. Lourenço, que a partir dos últimos anos do século anterior passara, essencialmente a palácio. Mais tarde, em 1824, sob a direção do brigadeiro engenheiro Raposo, o então tenente-coronel Paulo Dias de Almeida planeou uma estrutura idêntica de bateria rasante para a frente da velha fortaleza de Santiago, integrada então no novo molhe do cais do Funchal e que o mar rapidamente destruiu. Nos anos seguintes, Paulo Dias de Almeida dirigiu uma ampla campanha de obras militares nos pequenos fortes e vigias, desde o Funchal até Machico, motivada pela possibilidade de desembarque dos absolutistas, o que veio a acontecer a 22 de agosto de 1828, na baía daquela vila. A mais importante estrutura defensiva desta área era o forte novo do Porto Novo (Fortes do Porto Novo e Caniço), reforçado com forças mercenárias inglesas, porém, a explosão do paiol do mesmo levou à debandada das forças liberais, entrando os absolutistas no Funchal sem qualquer resistência. Os meados do séc. XIX assistiram à emergência dos engenheiros militares, aliás, e ao longo de décadas, à frente do governo português, verificando-se o mesmo, embora apenas pontualmente, na Madeira. Mas o seu domínio revelou-se essencialmente nas obras públicas, sendo necessário esperar pelos alvores da Primeira Grande Guerra para se fazerem obras especificamente militares no Funchal, de certa forma improvisadas, com as novas baterias de costa da antiga Q.ta Vigia e a bateria da Cancela, que dotadas com material do século anterior, pouco efeito tiveram nos dois bombardeamentos alemães sofridos pela cidade. Os trabalhos levados a efeito, tal como os seguintes, de 1940, com o deflagrar da Segunda Grande Guerra, no entanto, não se enquadram já bem na área da arquitetura militar, mas sim na da defesa. Nos finais do séc. XX houve um especial interesse pela arquitetura militar na ilha da Madeira, dadas as caraterísticas, de certa forma inovadoras, que a mesma possuía. Assim, foi objeto de uma exposição, efetuada nas comemorações nacionais do Dia de Portugal no Funchal, em 1981 e, no ano seguinte, remontada na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa e, ainda depois, na Casa do Infante, no Porto e em Vila Viçosa. Em sequência e dentro do processo autonómico, muitas dessas edificações, já então sem específico interesse militar, vieram a transitar para a tutela da RAM.       Rui Carita (atualizado a 10.10.2016)

Arquitetura História Militar Património

andrade, osvaldo da conceição vieira de

Oficial do exército português. Nasceu no dia 6 de fevereiro de 1891, tendo recebido o batismo a 18 de abril do mesmo ano, na igreja paroquial de São Pedro, concelho e Diocese do Funchal. Era filho legítimo de António José de Andrade, natural da vila de São Vicente, negociante e proprietário, e de sua mulher Juliana Teodolinda Vieira, natural da freguesia de São Pedro, Funchal, que haviam contraído matrimónio a 6 de outubro de 1887. Era neto paterno de Francisco José de Andrade e de Silvéria Teresa de Jesus; e neto materno de Manuel Vieira e de Joana Constância Vieira. A 13 de maio de 1936, casou-se com Jeannette Albertine Tellapier, na 2.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa. Em 1917, tomou parte, como aspirante a oficial de artilharia, na revolta militar de 5 de dezembro, liderada por Sidónio Pais. Pouco depois, a 31 de agosto de 1918, já alferes de artilharia, partiu para França integrado no Corpo Expedicionário Português (CEP). Incorporado no 11.º Corpo de Artilharia Inglesa, participou na tomada de Lille e na de Tournai, em outubro e em novembro de 1918, respetivamente, tendo regressado a Portugal a 21 de março de 1920. Anos mais tarde, cooperou de forma ativa na preparação do golpe militar de 28 de maio de 1926, liderado pelo Gen. Gomes da Costa, que pôs fim à Primeira República; e em setembro de 1931, esteve envolvido, segundo relatório da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, datado de 1935, no movimento de revolta militar: chegou a estar a postos para sair com um destacamento para a revolução, mas isso acabou por não suceder. Ao longo da carreira, desempenhou distintas e importantes missões de serviço, tendo sido ajudante de campo do ministro de Guerra Cor. Fernando Freiria e do Gen. Passos e Sousa durante o período em que este foi governador militar de Lisboa. Aquando da sua morte, encontrava-se na situação de reserva, prestando serviço na Secretaria do Ministério da Guerra. Foram vários os louvores registados na sua caderneta militar e também várias as condecorações com que foi galardoado. Em 1920, recebeu um louvor pela competência e o empenho evidenciados durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1922, foi agraciado com o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Cristo. Em 1925, quando era tenente de artilharia de campanha, foi condecorado com a medalha de prata de serviços distintos da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha, com a legenda “Revolta Militar de Lisboa, 18-IV-1925”. No ano seguinte, numa altura em que já ascendera a capitão de artilharia, foi-lhe atribuído o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Avis e, em 1930, o grau de oficial da mesma Ordem. Não obstante, o seu processo do CEP contém uma advertência, posteriormente riscada, segundo a qual teria sido punido com a pena de repreensão por ter agredido e insultado o clarim no dia 5 de março de 1919, aquando da distribuição de uma refeição. Além do distinto percurso militar, destacou-se noutras áreas. Enquanto residente na ilha da Madeira, foi redator do jornal O Direito e, posteriormente, do Diário de Notícias, periódico onde trabalhou alguns anos. Mais tarde, em Lisboa, foi um dos fundadores e diretores da Casa da Madeira, fundada a 18 de março de 1931, cuja primitiva direção era presidida por Daniel Rodrigues de Sousa. A propósito desse grémio, Osvaldo de Andrade concedeu uma longa entrevista ao Diário de Notícias do Funchal, publicada na primeira página do jornal, a 27 de março de 1931, na qual deu a conhecer o novo organismo e os seus desígnios. Nos anos seguintes, permaneceu na direção da Casa da Madeira, tendo sido reeleito primeiro secretário para os biénios 1935-1936, 1937-1938 e 1939-1940. Por outro lado, em 1933, integrou, juntamente com Carlos Meireles da Silva Carvalho, inspetor de saúde, e Manuel Gonçalves Monteiro, subdiretor da Alfândega de Lisboa, a comissão administrativa que substituiu os corpos gerentes da Cruzada das Mulheres Portuguesas, após divergências no seio daquela associação. Durante as cerca de três décadas que morou na capital, visitou a Madeira numa única ocasião, em janeiro de 1948, na companhia da esposa, para uma vilegiatura de algumas semanas – efeméride que não deixou de ser noticiada pela imprensa periódica local, como foi o caso do Diário da Madeira. Morreu em Lisboa, na sua residência, na manhã do dia 17 de janeiro de 1951, vítima de doença prolongada.   Ricardo Pessa de Oliveira (atualizado a 22.09.2016)

História Militar Personalidades

alterações climáticas

As alterações climáticas apresentam-se nos alvores do séc. XXI como um dos temas que mais atenção tem recebido por parte da comunidade científica, decisores políticos e económicos. Esta importância advém não só da magnitude dos impactes negativos que lhes têm sido associados ao nível dos ecossistemas e atividades económicas, como também da magnitude dos impactes potenciais previstos em função de projeções climáticas produzidas. As mudanças climáticas são um processo comum ao longo da história geológica da Terra, sendo mesmo interpretado como uma norma e não como a exceção. Vários registos fósseis permitem inferir mudanças profundas nas condições paleoambientais, onde se identificam oscilações climáticas que contemplam tanto períodos quentes e húmidos, aos quais se associa a expansão das massas florestais, como períodos frios, caracterizados pela expansão das massas de gelo continentais e calotes polares. Esta oscilação climática bastante pronunciada é evidente em escalas temporais da ordem dos milhares ou milhões de anos. Se a escala temporal for reduzida para a ordem das centenas de anos, então essas variações assumem uma oscilação muito menos significativa, como é possível inferir a partir da análise de registos históricos, onde apenas é possível identificar, no caso das plantas, mudanças fenológicas com base nos registos da época das colheitas, induzir impactes associados através da arte, como no caso da pintura durante a Pequena Idade do Gelo na Europa (séc. XV a séc. XVIII), ou através dos anéis de crescimento de árvores (dendrocronologia). Mas foi o registo contínuo do comportamento dos elementos climáticos  (v.g.: temperatura, precipitação, humidade relativa, etc.) que permitiu identificar mudanças climáticas a escalas ainda mais finas que o século. Foi com base nos registos efetuados (séries climáticas), numa parte significativa do globo terrestre durante o séc. XX, que foi possível confirmar as tendências de aquecimento climático na segunda metade deste século, determinado por um aumento da temperatura média. Identificado como “aquecimento global”, vários são os impactes que lhe são associados, nomeadamente a fusão dos gelos dos glaciares continentais e calotes polares, maior intensidade e frequência dos paroxismos climáticos (ciclones tropicais, precipitações intensas, secas prolongadas), alterações nas rotas de espécies migratórias, modificações na distribuição de animais e plantas, redução do número de dias com cobertura nivosa, bem como a antecipação da fusão da cobertura nivosa, entre outros. Esta tendência climática, evidente a partir dos anos 70 nas análises de tendências climáticas, tem sido relacionada com o aumento da concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera, uma consequência da intensificação e expansão de atividades humanas que dependem energeticamente do consumo de combustíveis fósseis, cuja combustão é responsável pela libertação de grande quantidade de gases com efeito de estufa para a atmosfera (v.g.: dióxido de carbono). Além de ter sido considerada estatisticamente significativa, esta tendência climática teve já reflexos, nomeadamente em termos fenológicos, promovendo uma antecipação da época de floração e frutificação nas plantas. O impacte das mudanças climáticas nas ilhas da Macaronésia Apesar das diferenças em termos de magnitude e direção nas mudanças climáticas projetadas, é expectável que os impactes associados às mudanças climáticas sejam inflacionados por sinergias entre fatores em pequenas ilhas habitadas, nomeadamente devido às consequências do uso do território pelas atividades humanas. O grau de vulnerabilidade destes territórios depende muito dos respetivos atributos geográficos e do domínio em análise. No caso de alguns arquipélagos da Macaronésia (Madeira, Canárias), o seu caráter insular e posicionamento foi determinante para explicar o seu papel como refúgios para elementos florísticos relacionados com a flora paleotropical, que aqui sobreviveram às crises climáticas plio-pleistocénicas, responsáveis pela sua extinção nos territórios continentais próximos, uma dinâmica confirmada por estudos filogenéticos e registos fósseis. Estes arquipélagos mantiveram condições ambientais adequadas à permanência de vegetação perenifólia de folhas largas, já extinta no território europeu desde o final do Pliocénico (Piacenziano – 3,6-2,6 Ma), devido a um processo de degradação climática iniciada no final do Miocénico. Na verdade, um clima quente, húmido e sem estações bem definidas, que permitiu a presença de flora paleotropical na Europa ocidental até ao Miocénico (23-5,3 Ma), deverá ter persistido até ao Pliocénico médio (4,1 Ma) nos arquipélagos atlânticos, uma inferência suportada na presença de registos fósseis em depósitos marinhos mio-pliocénicos nas Canárias orientais, nomeadamente gastrópodes marinhos de águas pouco profundas atualmente associadas a latitudes tropicais. O arrefecimento climático associado aos reajustes na circulação oceânica e atmosférica decorrentes do encerramento definitivo do istmo do Panamá (2,5 Ma) deverá ter implicado algumas mudanças espaciais, e talvez florísticas, na organização dos tipos de vegetação neste grupo de arquipélagos atlânticos, sem que no entanto possam ser comparadas com as alterações que ocorreram nesse período nos territórios continentais Europeu e Norte Africano. É precisamente neste período, marcado pela formação de calotes polares no hemisfério Norte, que se define a influência da cintura de altas pressões subtropicais, reforçando a estacionalidade das condições climáticas no sentido da mediterranização do clima devido a uma redução e concentração dos totais pluviométricos, suportando a definição de um regime climático estruturado em função de uma estação seca. O vigor desta estação seca terá sido menor nas ilhas oceânicas, principalmente nos arquipélagos mais setentrionais, onde a posição latitudinal (arquipélago dos Açores), o predomínio de massas de ar húmido, e as condições orográficas (ilha da Madeira) garantiram valores de precipitação anual mais elevados comparativamente aos territórios continentais. As condições orográficas terão sido mesmo determinantes no caso dos arquipélagos da Madeira e Canárias, pela presença de barreiras montanhosas perpendiculares aos ventos dominantes de nordeste. As massas de ar húmido, impelidas contra as ilhas durante a estação mais seca pelo impulso gerado pelos ventos Alísios, deveriam garantir valores de humidade relativa elevados, principalmente nas vertentes a barlavento, onde, à semelhança do padrão climático registado ao longo do séc. XX, seria muito frequente a formação de nevoeiros. Aliás, é neste enquadramento topográfico que se encontram as manchas mais significativas de laurissilva na ilha da Madeira e algumas ilhas do arquipélago das Canárias (Tenerife, La Gomera, La Palma). A favorecer a permanência desta flora esteve ainda o facto de o rigor do inverno, traduzido no registo de temperaturas negativas que promovem a formação de geada ou a ocorrência de precipitação no estado sólido, apenas tocar ligeiramente os picos mais elevados das ilhas (ilha do Pico nos Açores, maciço central na ilha da Madeira, pico Teide na ilha de Tenerife e maciço do Roque de los Muchachos na ilha de La Palma – Canárias). Poderá, no entanto, ter sido mais importante nos períodos mais frios, como na Pequena Idade do Gelo, provocando mesmo uma significativa contração da floresta de planifólios e formações termófilas de caráter mediterrâneo durante o último máximo glaciário (18-11,6 Ka), em paralelo com a expansão de comunidades dominadas por urzes, zimbro e teixo (nas Canárias verifica-se a expansão de Pinus canariensis), um cenário suportado pela análise de sequências sedimentares de fundos marinhos. Esta variação das condições climáticas pode ainda ser inferida a partir de depósitos costeiros, onde a alternância de fácies permite diferenciar: i) períodos mais frios e secos, caracterizados pela acumulação de areias eólicas de origem marinha, disponibilizadas num contexto de nível do mar mais baixo; ii) períodos mais quentes com alguma humidade, onde se identificam processos de pedogénese (construção de solo), embora muitas vezes incipientes, e restos vegetais, indicando condições ecológicas adequadas à colonização vegetal; iii) períodos de grande aridez, identificados por níveis de calcretos (precipitação de carbonatos). Todas estas variações climáticas permitiram, no entanto, que nestes arquipélagos atlânticos tivessem subsistido elementos florísticos com afinidade à flora paleotropical, como sejam alguns taxa associados à laurissilva, como fanerófitos perenifólios de folha larga, e pteridófitos, os quais estão incluídos no registo fóssil do território europeu, principalmente na Península Ibérica, onde terão permanecido até mais tarde, comparativamente à restante Europa. Um dos últimos momentos em que as mudanças climáticas implicaram significativas alterações ao nível dos ecossistemas ocorreu há cerca de 18.000 anos, e ficou conhecido por último máximo glaciário, tendo-se caracterizado por um período de arrefecimento muito pronunciado. Neste período, o território continental europeu registou um aumento significativo de glaciares de montanha, e registou uma redução significativa das florestas caducifólias temperadas, ao passo que se verificou um aumento significativo de vegetação associada a ambientes frios. Os arquipélagos atlânticos, dada a sua condição insular, beneficiaram do efeito suavizante do oceano, pelo que o processo de arrefecimento não terá sido tão pronunciado. No entanto, é expectável que tivessem ocorrido ajustes espaciais na representatividade dos tipos de vegetação presentes nas ilhas, no sentido de uma expansão dos tipos de vegetação mais tolerantes ao frio, como sejam os dominados por espécies como as urzes, o teixo, o zimbro e a sorveira. Mudanças climáticas na ilha da Madeira Nos registos históricos produzidos após a ocupação das ilhas no séc. XV é possível detetar o reflexo atenuado de mudanças climáticas, que no território continental europeu produzem impactes significativos. Na ilha da Madeira, a um avanço registado no período das colheitas nos sécs. XV e XVI, associado a um período mais quente, sucede um período mais frio e húmido nos sécs. XVII e XVIII, com o consequente atraso no período das colheitas. Esta oscilação corresponde à transição entre o período quente da Alta Idade Média e o período identificado como Pequena Idade do Gelo, sendo este último período caracterizado pela frequência de invernos muito rigorosos e longos, bem como verões muito curtos. Em termos de tendências climáticas no séc. XX, a análise das séries climáticas do Funchal, uma das estações com registo mais longo no arquipélago da Madeira, permite verificar alguma coincidência temporal ao nível das tendências climáticas identificadas para territórios europeus para o mesmo período. O padrão identificado mostra um aumento mais significativo da temperatura média a partir de 1975, suportado principalmente por uma diminuição da amplitude térmica diária, já que a temperatura mínima sofre um aumento superior ao registado pela temperatura máxima. Verifica-se mesmo um aumento do número de dias com temperaturas superiores a 25 °C no verão, bem como um aumento do número de noites tropicais (temperatura mínima superior a 20 °C). Ainda que não se identifique uma tendência clara em termos de precipitação, é identificado um aumento do número de verões sem registo de precipitação. Estas tendências climáticas, nomeadamente as associadas ao comportamento da temperatura média, que parecem configurar uma situação de tropicalização do clima, podem ter reflexos ao nível da saúde pública, nomeadamente pela ocorrência de doenças associadas aos ambientes tropicais, como é o caso de registos de dengue, cuja ocorrência no início do séc. XXI é consistente com esta suposição. Projeções climáticas para a ilha da Madeira feitas no começo do séc. XXI As projeções climáticas criadas para a ilha da Madeira estão baseadas no modelo Clima Insular à Escala Local (CIELO), um modelo climático construído para regionalizar (downscaling) parâmetros climáticos para o contexto de pequenas ilhas montanhosas, a partir dos resultados produzidos por modelos oceano-atmosfera de larga escala, como os modelos Hadley Centre Coupled Model, versão 3 (HadCM3) ou CSIRO Atmospheric Research, Australia (CSIRO_MK3.6), os quais suportam as projeções climáticas em cenários de emissão de gases com efeito de estufa (Special Reports on Emission Scenarios – SRES). Dadas as incertezas que subsistem em termos de comportamento futuro dos vários parâmetros que servem de base à criação destas projeções, são consideradas várias situações, identificadas como cenários possíveis: A1B, A1T, A1Fl, A2, B1 e B2. Cada cenário climático está associado a um determinado cenário de emissão de gases com efeito de estufa, que por sua vez está ancorado em parâmetros sócio-demográficos, económicos e tecnológicos precisos. Isto porque a dinâmica de emissão de gases com efeito de estufa está muito associada à variação em termos de consumo de combustíveis fósseis, o qual é condicionado pela dinâmica ao nível dos referidos parâmetros. Esta relação é a base da teoria que apresenta o aumento da concentração de gases com efeito de estufa como fator determinante para o fenómeno de aquecimento global identificado no final do séc. XX e início do séc. XXI, sendo este aumento o reflexo da dinâmica económica e demográfica, das condições sociais e do desenvolvimento tecnológico pós-Revolução Industrial. No caso da ilha da Madeira, as projeções climáticas, regionalizadas pelo modelo CIELO, baseiam-se no modelo de larga escala HadCM3. Em termos de precipitação, os cenários projetam um decréscimo dos valores anuais na ordem dos 20 a 35%, com perdas mais acentuadas na face Sul da Ilha. Em termos absolutos, as perdas mais elevadas são projetadas para os topos da Ilha, e podem atingir os 800 mm. Estes valores médios escondem, no entanto, tendências contraditórias ao nível estacional. Os cenários projetam um aumento dos valores de precipitação no período de verão, particularmente importantes na face Norte da Ilha no âmbito do cenário A2. Apesar de este aumento projetado para o verão não permitir superar o decréscimo previsto para o inverno, outono e primavera, revela-se como importante do ponto de vista ecológico, pois ocorre no período em que a disponibilidade de água representa uma limitação importante para as funções dos ecossistemas da Ilha. Ao nível da temperatura projeta-se um aumento em todos os cenários (v.g.: A2: 2,4-3 °C; B2: 1,6-2.2 °C), um aumento que se prevê mais pronunciado nas áreas costeiras da face Norte da Ilha. No inverno o aumento projetado para a temperatura média está estruturado principalmente pelo aumento mais significativo da temperatura mínima, promovendo uma redução das amplitudes térmicas diárias, sendo este aumento previsto mais significativo nos topos da Ilha. Estas projeções desencadearão um processo de reajuste dos sistemas naturais, o que certamente terá reflexos nos recursos naturais, principalmente em pequenas ilhas, como é o caso da ilha da Madeira, com reflexos importantes nas sociedades cujas atividades dependem da exploração destes recursos. No caso da ilha da Madeira, os reflexos podem ocorrer em vários domínios, de forma direta ou indireta: i) na disponibilidade de recursos hídricos, fortemente dependente das condições climáticas; ii) no aumento da vulnerabilidade à ocorrência de paroxismos climáticos, como o aumento da frequência e intensidade de eventos de precipitação intensa, favorecendo um aumento da suscetibilidade à ocorrência de episódios de aluvião; iii) pela subida do nível do mar, com importantes reflexos na área costeira, principalmente devido à concentração das áreas urbanas e infraestruturas ligadas ao turismo em áreas de baixa altitude junto mar; iv) o aumento da vulnerabilidade à proliferação de doenças tropicais (dengue, malária, febre do Nilo Ocidental), pela possibilidade de ocorrer a instalação de vetores, com implicações na saúde pública e na atratividade do destino turístico; v) devido a mudanças nas florestas nativas da Ilha, não só por fatores internos, associados às exigências ambientais das espécies que as constituem, como por fatores externos, como o aumento do risco meteorológico de incêndio florestal; vi) a extinção/extirpação de espécies endémicas por alterações nos habitats. Todas estas alterações, com múltiplas relações com diferentes sectores, podem promover um “efeito cascata”, provocando um impacte muito forte no equilíbrio da Ilha. Ao nível dos recursos naturais, os recursos hídricos, as florestas nativas e a biodiversidade mereceram já especial atenção ao nível da definição de medidas de mitigação de impactes e adaptação a novas condições, dadas as vulnerabilidades identificadas. Impactes previstos nos recursos hídricos Tendo em conta a redução prevista dos totais pluviométricos anuais e o possível reforço da irregularidade ao nível do regime pluviométrico, é de esperar uma redução dos recursos hídricos disponíveis. Esta previsão é reforçada pelo facto de a redução prevista de totais pluviométricos ocorrer principalmente nos sectores de maior altitude, sectores onde ocorre preferencialmente o processo de recarga do sistema aquífero da Ilha. Esta previsão, com potenciais problemas no abastecimento, desencadeou a necessidade de definir planos de adaptação. Estes impactes poderão ser mais significativos se for considerado o importante contributo da precipitação oculta para o balanço hídrico da Ilha, o qual pode sofrer uma redução devido a uma alteração na posição e intensidade dos centros barométricos que determinam o padrão climático da Ilha. Refira-se a ação do anticiclone dos Açores, motor responsável pela frequência dos ventos Alísios, e um fator determinante para a formação de nevoeiros de origem orográfica na face a barlavento da Ilha, responsáveis pela ocorrência do tipo de precipitação mencionada. Impactes previstos na distribuição da flora endémica A flora endémica, nomeadamente as espécies exclusivas de distribuição mais restrita, pode apresentar maior suscetibilidade às mudanças climáticas projetadas, sofrendo alterações mais significativas na sua distribuição. Além de estarem associados a condições ecológicas específicas, a elevada suscetibilidade é reforçada pela elevada fragmentação e perturbação dos seus habitats, resultantes do padrão de uso do solo vigente durante séculos nas suas áreas de distribuição potencial. É expectável que as espécies endémicas, cuja distribuição atual está resumida a um reduzido número de populações constituídas por poucos efetivos nos topos das ilhas, figurem como o tipo de endemismo que apresenta susceptibilidade mais elevada aos impactes das mudanças climáticas, podendo verificar-se a extinção de condições adequadas à sua ocorrência. Entre os endemismos que mais se associam a esta descrição está o ameixieiro de espinho (Berberis maderensis Lowe), a sorveira (Sorbus maderensis (Lowe) Dode), a arméria da Madeira (Armeria maderensis Lowe) ou a urze da Madeira (Erica maderensis (Benth.) Bornm). [caption id="attachment_11692" align="aligncenter" width="807"] Fig. 1 – Área de ocorrência potencial, para as condições climáticas dos começos do séc. XXI, dos endemismos Berberis maderensis (A) e Sorbus maderensis (B).Fonte: FIGUEIREDO, 2013.[/caption] São espécies que apresentam uma reduzida área de ocorrência potencial nos começos do séc. XXI (fig. 1), e os modelos preveem que em cenários climáticos futuros deixem de estar reunidas as condições adequadas à sua presença na Ilha, o que, aliado à sua atual restrição geográfica nos cumes da Ilha e reduzido número de populações de poucos indivíduos, pode configurar uma combinação deletéria de fatores, favoráveis à sua extinção. Impactes previstos nas florestas nativas Os impactes das alterações climáticas podem acarretar mudanças ao nível da área ocupada e composição florística das comunidades vegetais, pois os diferentes organismos, árvores ou arbustos, terão respostas diferenciadas perante as alterações das condições ecológicas derivadas. Dada a resiliência que massas florestais adultas apresentam em relação a mudanças ao nível das condições ambientais, é possível que os impactes das mudanças climáticas projetadas se manifestem primeiro em termos de vulnerabilidade a pragas e doenças, e só depois sejam percetíveis em termos de alterações de distribuição de algumas plantas, sem que a estrutura seja de imediato especialmente afetada. Segundo A. Figueiredo, e considerando apenas as projeções para dois cenários climáticos (A2 e B2), as alterações na área de distribuição potencial dos diferentes tipos de florestas presentes na Ilha (florestas e micro-florestas) variam conforme o cenário considerado, podendo mesmo apresentar tendências opostas. [caption id="attachment_11698" align="aligncenter" width="673"] Fig. 2 – Área de ocorrência potencial da laurissilva do til para as condições climáticas e começos do séc. XXI (A) e para o cenário A2 (B). Fonte: FIGUEIREDO, 2013.[/caption] Segundo o autor, os modelos prevêem um aumento da área adequada à ocorrência do zambujal, principalmente na face Sul da Ilha, e da área adequada à ocorrência da laurissilva mediterrânea (laurissilva do barbusano), resultado de uma expansão em altitude na face Norte, superando a perda prevista para os sectores de menor altitude no lado Sul da Ilha. Apesar de os resultados dos modelos apontarem para um aumento da área potencial de ocorrência destes bosques, a verdade é que vários fatores podem condicionar esta previsão. Ambos os tipos de bosque estão na atualidade reduzidos a pequenas manchas limitadas a enclaves, o que limitará certamente a possibilidade de se reinstalarem nas áreas envolventes, a maior parte associadas a uso agrícola ao longo de séculos. Ou mesmo colonizarem novas áreas, dado o reduzido número de áreas-fonte de propágulos disponíveis. Mesmo considerando a importância da área agrícola afetada pelo abandono, o que poderia ser um fator favorável, desconhece-se a capacidade que as espécies estruturantes destes bosques apresentam em termos de competição com espécies exóticas invasoras, com algumas das quais apresentam uma sobreposição muito significativa em termos de áreas previstas como adequadas à sua ocorrência. No caso da laurissilva do til, também designada por laurissilva temperada, a floresta nativa que ocupa maior área no começo do séc. XXI, as alterações na sua distribuição, nomeadamente uma redução da área potencial, podem significar perdas importantes, dado o papel relevante ao nível do fornecimento de serviços (turismo, biodiversidade, proteção dos solos, balanço hídrico). A perda significativa da área adequada à ocorrência deste tipo de bosque, no âmbito dos resultados obtidos para o cenário A2 (fig. 2), está prevista para os sectores de menor altitude, enquanto se verifica uma expansão da área adequada a esta floresta nos sectores de maior altitude da Ilha, nomeadamente nas cabeceiras dos vales que se instalam nos maciços montanhosos e na bordadura norte do Paul da Serra. Esta expansão para sectores de maior altitude determinará certamente uma redução da área potencial dos urzais de altitude, reduzidos a pequenas manchas no início do séc. XXI. A avaliação dos impactes das mudanças climáticas na distribuição dos organismos na ilha da Madeira, nomeadamente das plantas, deve ter em conta o facto de que grande parte dos habitats foi de alguma forma perturbado pelas atividades humanas. Assim, a distribuição das espécies está certamente enviesada pela fragmentação de habitats, uso do solo, etc., o que favorece um aumento da incerteza nos resultados dos modelos. Como a área profundamente alterada pelas atividades humanas constituirá um obstáculo à ocupação de novas áreas pela vegetação nativa, ajustando-se a um novo padrão climático, será benéfico considerar possíveis cenários de mudança no uso do solo, tendo em conta tendências observadas no final do séc. XX e início do séc. XXI, permitindo uma interpretação mais adequada dos resultados dos modelos, considerando a sua importância para a definição de medidas de mitigação e adaptação a novas condições climáticas.   Albano Figueiredo Miguel Sequeira (atualizado a 14.09.2016)

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darwin, charles robert

Charles Darwin nasceu a 12 de fevereiro de 1809 em Shrewsbury no condado de Shropshire a uns 35 km de Birmingham como quinto filho de Robert Darwin e Susannah Wedgwood (Desmond & Moore, 1992). Ambos os pais advinham de famílias com tradições académicas e comerciantes. O seu pai era um médico abastado, o seu avô paterno Erasmus Darwin foi filósofo e abolicionista, e o avô materno Josiah Wedgwood industrial e também abolicionista. A partir dos 8 anos de idade Darwin atendeu a escola de Shrewsbury (Darwin & Barlow, 1958; Desmond & Moore, 1992) como aluno interno. Em 1825 com 16 anos ingressou na Escola Médica da Universidade de Edimburgo embora não se tenha aplicado muito nas matérias centrais, preferindo a história natural e o museu da Universidade. Isso motivou o pai a mandá-lo para a Universidade Cambridge ao “Christ’s College” em 1827 (Van Wyhe, 2014, p. 20) para prosseguir uma carreira de religioso anglicano. Darwin chegou a Cambridge em janeiro de 1828 aos 18 anos de idade (Van Wyhe, 2014, p. 27). Mas mesmo aqui dedicou grande parte à história natural e caça, embora tenha obtido boas notas nos exames finais. Incitado pelo seu primo mais velho William Darwin Fox (1813-1881) começou a colecionar sistematicamente escaravelhos (Van Wyhe, 2014, p. 42). Foi em Cambridge que Darwin conheceu o então já distinguido mas jovem professor revd. John Stevens Henslow (1796-1861) padre, botânico e geólogo (Barlow, 1967; Walters & Stow, 2001). No seu segundo ano universitário Darwin começou por ser um visitante regular dos serões científicos em casa de Henslow (Van Wyhe, 2014, p. 76) tornando-se seu seguidor e depois amigo. De 1829 a 1831 assistiu à cadeira de botânica por ele lecionada "Botanical Lectures” (Henslow, 1829, p. 77; Van Wyhe, 2014) e ajudou na preparação das aulas práticas e na recolha e herborização de plantas britânicas sendo considerado favorito de Henslow (Van Wyhe, 2014, p. 89). Henslow prestava atenção à variação intraespecífica das plantas, ao contrário do costume praticado na época, identificando cada espécimen com data, local e nome do recolector, prática que influenciou os seus alunos, entre eles Darwin (Kohn et al. 2005). Em janeiro de 1831 Darwin completou o seu Bachelor of Arts (BA) como décimo de 178 candidatos (Hodge & Radick, 2009, p. 27; Van Wyhe, 2014, p. 93). Para obter o título faltava-lhe atingir o número de trimestres residentes obrigatórios, tempo que, sem a pressão das aulas, teve a oportunidade de se aproximar mais ainda de Henslow, jantando com ele regularmente e acompanhando-o em saídas de campo (Van Wyhe, 2014, p. 96). Foi nesta fase que, inspirado pelo relato de viagem de Humboldt (Von Humboldt, 1865), começou a planear com Henslow uma excursão a Tenerife nas ilhas Canárias com a finalidade de ver um ambiente mais tropical (Hodge & Radick, 2009, p. 27; Van Wyhe, 2014, p. 96). Muito embora tenha mesmo iniciado aulas de espanhol a excursão acabou por nunca se realizar. Em meados de agosto de 1831, no regresso de uma excursão geológica ao norte do País de Gales com o famoso professor geólogo Adam Sedgwick, Darwin recebeu uma carta de Henslow oferecendo-lhe o lugar de naturalista a bordo da brigue HMS Beagle numa viagem de levantamento hidrográfico à volta do mundo. De fato Darwin não foi a primeira escolha para essa posição. O convite inicial tinha sido formulado pelo comandante da expedição cap. Robert FitzRoy (1805-1865) ao seu superior hierárquico na marinha Francis Beaufort (1774-1857) o qual o enviou a Cambridge ao professor de matemática e astronomia George Peacock (1791-1858) a fim deste sugerir uma pessoa indicada com experiência nas ciências naturais. Peacock pensou primeiro no próprio Henslow o qual não pôde aceitar, sugerindo o entomólogo pastor Leonard Jenyns (1800-1893) e depois deste também não aceitar, sugerindo Darwin (Van Wyhe, 2013; Van Wyhe, 2014, p. 104). Depois de convencer o seu pai, Darwin aceitou ser o naturalista oficial da expedição, partilhando a cabina com o comandante (Van Wyhe, 2013). A única condição que Darwin impôs para aceitar a nomeação foi a de que possa desistir da expedição a qualquer momento e de que custearia a sua cota parte da alimentação (Fitzroy, 1839, v. 1, p. 19; Van Wyhe, 2013). Darwin manteve assim a sua independência da hierarquia naval, não recebendo salário e custeando também o material de trabalho e envio de espécimes para o Reino Unido. Várias cartas de Darwin (Burkhardt & Et Al., 1985-2014, cartas [117, 118, 120, 121,122, 147, 158]) documentam a intenção de que a primeira paragem programada do Beagle com duração de uma semana seria no Funchal na Madeira. No seu relato da viagem FitzRoy (Fitzroy, 1839, p. 22) enumera as ordens de itinerário que diziam explicitamente que o navio deve aportar “(…) sucessivamente na Madeira ou Tenerife; Cabo Verde; Fernão de Noronha; Estação na América do Sul (…)”. A justificação para que isso não tenha acontecido é também dada por FitzRoy (Fitzroy, 1839, pp. 46-47). Os ventos mudaram subitamente para sudeste acompanhados de vagas grandes e dificultando a passagem do Beagle a sul do Porto Santo e a sua entrada na travessa entre a Madeira e as Desertas. Tinham avistado o Porto Santo no dia 04 de janeiro de 1832, e passaram a poucas léguas da Madeira (1 légua inglesa corresponde a cerca de 3 milhas náuticas). O comandante optou por tomar rumo a Tenerife tendo avistado as Selvagens na manhã seguinte e chegando a Tenerife nesse mesmo dia. Numa carta datada de 6 de setembro de 1831 à sua irmã Susan Elizabeth (1803-1866) (Burkhardt & Et Al., 1985-2014, carta [119]), Darwin reforça a ideia de que ele está livre de abandonar a expedição quando bem entender, mas que se desengane a irmã se pensar que ele irá regressar já a partir da Madeira, pois desde que lhe subsista um pedaço de estômago, ele não irá desistir. De fato Darwin passou muito tempo enjoado a bordo do Beagle, não sendo claro se chegou a ver alguma ilha do Arquipélago da Madeira. Mas mesmo em Tenerife não puderam desembarcar devido a uma quarentena de 12 dias imposta aos navios oriundos do Reino Unido onde havia uma epidemia de cólera (Fitzroy, 1839, p. 48). Nem ancoraram e zarparam imediatamente em direção a Cabo Verde, pisando terra firme pela primeira vez em Santiago/Cabo Verde no Porto da Praia a 16 de janeiro. A restante viagem do Beagle está descrita em muitas obras sendo os relatos originais os de Darwin e FitzRoy (Darwin, 1839; Fitzroy, 1839, v.2). A circunavegação levou o navio a Fernando de Noronha, Baia, Abrolhos, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Montevideo, Ilhas Malvinas, Cabo Horn e Estreito de Magalhães, costa pacífica da América do Sul, Galápagos e outras ilhas no Pacífico, Nova Zelândia e Austrália, Ilhas Cocos e Maurícias e regressando pelo Cabo da Boa Esperança, as ilhas de Santa Helena e Ascensão, e de novo Brasil, Cabo Verde e Açores. Chegaram aos Açores a Angra do Heroísmo na ilha Terceira, permanecendo de 19 a 25 de setembro, pararam em S. Miguel para a recolha de correspondência e seguiram em ruma à Inglaterra (Darwin, 1839, pp. 594-598). A 2 de outubro de 1836 o Beagle ancorou em Falmouth após uma ausência de 4 anos e nove meses, chegando pouco depois a Plymouth e Londres (Fitzroy, 1839, p. 638). Darwin desembarcou em Falmouth (Darwin, 1839, p. 598). Regressou a Cambridge e depois Londres para trabalhar em colaboração com outros naturalistas na publicação do vasto espólio que recolheu durante a viagem. A 29 de janeiro de 1839 Darwin casou com a sua prima Emma Wedgwood (Darwin & Barlow, 1958, p. 82; Van Wyhe, 2014, p. 111) e em 1842 tomou residência no meio rural do sudeste de Londres em Down House (Darwin & Barlow, 1958, p. 114). Nunca mais viajou ao estrangeiro. Ao todo Darwin escreveu 16 livros sem contar com reedições (Freeman, 1977, p. 9). A primeira obra em que Darwin se empenhou depois da viagem do Beagle foi a Zoologia da Viagem do Beagle publicada em vários volumes entre 1838 e 1843 (Freeman, 1977, p. 26). Em paralelo trabalhou na narrativa da viagem publicada em 1839 (Darwin, 1839), revista posteriormente (Darwin & Barlow, 1958, p. 116) e publicada como Diário das Investigações (Darwin, 1845). Nesta obra, de índole mais genérica e popular, a Madeira praticamente não é mencionada. Este é o livro mais lido de Darwin e o qual estabeleceu a reputação internacional de Galápagos como arquipélago de Darwin. Darwin depois concentrou-se na geologia com obras ainda hoje importantes sobre a formação dos recifes de corais (Darwin, 1842) ou as ilhas vulcânicas (Darwin, 1844). Nesta última obra a Madeira não é também mencionada, pese o fato de Darwin ter lido e se inspirado nos trabalhos de Charles Lyell (Lyell, 1840) o qual esteve na Madeira e escreveu sobre a sua geologia (Lyell, 1854). Outras obras emblemáticas de Darwin não relacionadas diretamente com evolução são os seus trabalhos sobre cirrípedes (Darwin, 1851; Darwin, 1854), trabalhos sobre botânica como o sobre a fertilização de orquídeas (Darwin, 1862), e uma biografia do seu avô Erasmus (Krause & Darwin, 1879). No entanto, são as obras relacionadas com a teoria da evolução que ficaram mais conhecidas. O livro sobre a variação sobre domesticação (Darwin, 1868) é já um prenúncio da sua teoria. Segundo as palavras de Darwin a viagem do Beagle foi o mais importante evento da sua vida e determinante para toda a sua carreira (Darwin & Barlow, 1958, p. 76). As ilhas Galápagos forneceram das primeiras ideias para a teoria que viria a publicar. O vice-governador da Ilhas Nicholas Lawson tinha-o informado de que as tartarugas diferem de ilha para ilha, e de que ele seria capaz de identificar a ilha da qual cada uma é originária (Darwin, 1845, p. 394). Devido a isso Darwin prestou mais atenção à recolha de espécimes, admiravelmente não aos famosos tentilhões-de-Darwin, mas sim aos mockingbirds, os sabiás de Galápagos (Sulloway, 1982). A ideia de que as espécies não são estáveis tinha emergido (Darwin, 1963, p. 262). Cada ilha do arquipélago alberga um conjunto diferente de espécies. A obra mais importante de Darwin A origem das espécies (Darwin, 1859; Darwin, 2009) foi publicada em 1859, um ano depois da publicação conjunta com Alfred Russel Wallace de um esboço da teoria (Darwin, 1858; Darwin & Wallace, 1858; Wallace, 1858). Darwin tinha passado cerca de 20 anos a recolher sistematicamente informação para fundamentar a sua teoria. É esta recolha sistemática de informação que coloca a Madeira numa posição de vanguarda como fonte de suporte para a teoria. Em dois ensaios inéditos escritos muito antes da publicação da A origem das Espécies (Darwin, 1909 [1842-44]), Darwin esboçou a sua teoria da Seleção Natural pela primeira vez. Aí Darwin somente menciona a Madeira duas vezes: uma para suportar a afirmação de que espécies usualmente migradoras como a galinhola o deixam de ser quando vivem em ilhas oceânicas (Darwin 1909[1842-44], p.120), e a outra para afirmar a dificuldade que mamíferos têm em colonizar ilhas distantes muito embora essas ilhas proporcionem ambientes favoráveis ao seu desenvolvimento como o provam os coelhos introduzidos na Madeira (Darwin, 1909[1842-44], p. 172). A primeira edição da Origem (Darwin, 1859) menciona Galápagos 17 vezes mas a Madeira 20 vezes, os Açores 4, e as Canárias também 4 vezes. A 6 edição que representa o texto final da obra (Darwin, 1876) menciona Galápagos 22 vezes mas a Madeira 32 vezes, os Açores 8, e as Canárias 6 vezes. Esta simples métrica demonstra bem a importância que a natureza da Madeira deteve para aquilo que é a mais importante teoria da biologia com repercussões enormes mundiais, e especialmente sobre a nossa visão da natureza do ser humano. Porque é que a Madeira se destaca como fonte de exemplos insulares? A razão reside em Cambridge e no núcleo de estudantes e académicos em torno do prof. revd. John Stevens Henslow. Henslow. Henslow, um brilhante aluno, educou-se no colégio de St.John em Cambridge e graduou-se em 1818. Em 1822, com apenas 26 anos de idade, foi nomeado professor de mineralogia e em 1822 de botânica, resignando da cátedra de mineralogia 1827 e mantendo a de botânica. Um dos seus alunos foi Richard Thomas Lowe (1802-1874) (Nash, 1990), o qual se tinha matriculado em Cambridge em 1821 graduando-se em 1825. Lowe visitou a Madeira pela primeira vez em 1826 por pouco tempo (Nash, 1990, p. 6), e a segunda vez de 1828-1830 (Nash, 1990, pp. 12, 23). Tomou residência permanente na Madeira, com interrupções entre 1831-1852 sendo capelão anglicano no Funchal entre 1832-1852, mas regressando posteriormente várias vezes. Lowe foi provavelmente aquele naturalista que mais contribui para o conhecimento da flora e fauna da Madeira, tanto marinha como terrestre, tendo publicado inúmeros tratados e estudos sobre a mesma, todos publicados na Inglaterra. Enquanto estudante em Cambridge, ao que parece, não chegou a conhecer Darwin pessoalmente. O segundo aluno de Henslow foi Thomas Vernon Wollaston (Machado Carrillo, 2006) o qual se matriculou em 1841 e se graduou 1845, obtendo ainda o MA em 1845. Foi amigo pessoal de Darwin e de Lowe. Também ele trabalhou na Madeira tendo sido introduzido à ilha por Lowe. Foi um dos grandes entomólogos e malacologistas e os estudos mais detalhados da época sobre a fauna dos coleópteros e dos caracóis terrestres foram produzidos por ele (Wollaston, 1854; Wollaston, 1878). As obras destes dois destacados naturalistas representavam, na altura, o que de melhor se fazia sobre fauna e flora de ilhas, e Wollaston, viajando entre Cambridge e Funchal, levava notícias atualizadas à Inglaterra (Nash, 1990, p. 111). Darwin tinha pois conhecimento detalhado dos estudos sobre fauna e flora da Madeira e não é de admirar que tenha usado esse conhecimento para fundamentar a sua Origem da Espécies. Um levantamento da correspondência de Darwin em que os intervenientes abarcam temas relacionados com a Madeira mostra que o pico das referências se situa entre os anos de 1855-1862 (Dellinger, 2009a). Os exemplos da Madeira citados por Darwin (Dellinger, 2009b) foram variados. Em primeiro lugar realçou a semelhança entre a fauna de insetos da Madeira e da Europa continental (Darwin, 1876, p. 38). Em segundo lugar argumentou que variedades podem sobreviver por muito tempo, usando como exemplo os caracóis subfossilizados das Dunas da Piedade e do Porto Santo (Darwin, 1876, p. 42). Citou também Oswald Heer e a similitude da laurissilva da Madeira com a vegetação da Europa Terciária (Heer, 1857; Darwin, 1876, p. 83). O exemplo de suporte à seleção natural, a parte central da sua teoria da evolução, vem de novo do mundo dos insetos em que cita Wollaston para mostrar que, em ilhas, as formas aladas são em número inferior do que em faunas continentais, e que, quanto mais pequena a área da ilha, a probabilidade de sobrevivência de formas aladas se reduz por serem transportados pelo vento para o mar onde acabam por morrer (Darwin, 1876, p. 109). Darwin argumenta também que o isolamento aumenta a probabilidade das espécies diferirem, dando como exemplo a Madeira em que os escaravelhos e caracóis terrestres diferem bastantes das continentais, enquanto que os caracóis marinhos e as aves do mesmo arquipélago o não fazem (Darwin, 1876, pp. 291, 349). A razão desta diferença é que o meio marinho ou a capacidade de voar grandes distâncias reduzem o isolamento relativo. Para sublinhar isso cita o enxame de gafanhotos que assolou a Madeira em 1844 (Darwin, 1876, p. 327), ou o número de aves terrestres ocasionais avistadas na Madeira (Darwin, 1876, p. 348), justificando que devem ser os ventos que os transportam. Darwin realça também o fato de que ilhas oceânicas albergam menos espécies do que áreas continentais, mas que têm uma maior taxa de endemismos. É aqui que Darwin faz a única comparação direta entre a Madeira e Galápagos, equiparando a proporção de espécies endémicas de caracóis terrestres na Madeira com as aves terrestes em Galápagos (Darwin, 1876, p. 348). No entanto existem diferenças taxonómicas: anfíbios não são encontrados normalmente em ilhas oceânicas muito embora, quando são introduzidos, consigam sobreviver bem nelas com se observa na Madeira (Darwin, 1876, p. 350). O último exemplo da Madeira serve para reforçar o isolamento relativo das espécies de caracóis terrestres do Porto Santo em relação à Madeira. Muito embora grandes quantidades de pedras de cal são transportadas do Porto Santo à Madeira, e muito embora caracóis vivam debaixo de pedras e nas suas fissuras, as faunas de caracóis existentes nas das duas ilhas são distintas (Darwin, 1876, p. 357). A lógica da argumentação na Origem da Espécies, que Darwin chamou de “um longo argumento”, em especial quanto à importância dos exemplos insulares, está bem delineada e analisada em Gould (Gould, 2002, p. 59). Das obras subsequentes de Darwin, a mais destacada foi aquela que, de forma explícita, alargou a sua teoria ao ser humano (Darwin, 1871). Darwin faleceu na sua casa em Down House, condado de Kent, a 26 de abril de 1882, estando enterrado em Londres na Abadia de Westminster (Van Wyhe 2014, p. 118). Embora revolucionária para a época, a teoria de Darwin foi relativamente bem aceite a nível mundial nas duas décadas subsequentes à sua publicação. Em Portugal “(…) a teoria Darwiniana conheceu (…) dificuldades de implantação” (Pereira, 2001, p. 66) recentemente superada com o bicentenário do seu nascimento. Quanto à Madeira ainda falta um estudo historiográfico do impacto de Darwin que inclua toda a sociedade madeirense e não somente os naturalistas estrangeiros radicados na Madeira. No entanto o papel da Madeira como fonte de exemplos para a teoria da evolução está bem estabelecido.   Thomas Dellinger (atualizado a 25.07.2016)

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