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ofícios e artesãos

Os primeiros povoadores europeus da Madeira tiveram que lançar os alicerces da nova sociedade da Ilha. Deste modo, aos obreiros e cabouqueiros iniciais, seguiram-se diversas levas de gentes necessárias para o rápido arranque da ocupação da Madeira, criando-se várias lojas e oficinas de artesãos indispensáveis para a vida na Ilha. Palavras-chave: ofícios; mesteres; profissões; comércio; economia. O facto de a Madeira estar desabitada facilitou a fixação dos primeiros povoadores europeus, mas atribuiu-lhes redobradas responsabilidades e exigiu-lhes celeridade no lançamento dos alicerces da nova sociedade. Deste modo, aos obreiros e cabouqueiros iniciais, seguiram-se diversas levas de gentes necessárias para o rápido arranque da ocupação da Ilha, com a criação das diversas lojas e oficinas dos artesãos, indispensáveis à vida no novo espaço. Com o progresso económico da Ilha, a sua importância foi reforçada. Todavia, só em 1484 os mesteres fizeram ouvir a sua voz na vereação, por meio de criação da Casa dos Vinte e Quatro. Dois anos mais tarde, assumiram uma participação ativa na procissão do Corpo de Deus. O lugar que os mesteres nela ocupavam poderá significar uma hierarquização dos ofícios, feita de acordo com o estabelecido, em 1453, para Lisboa. A relação dos mordomos dos ofícios, feita no ano de 1486 pela vereação, indica a estrutura socioprofissional existente: pedreiros, sapateiros, alfaiates, barbeiros, vinhateiros, tecelões, besteiros, hortelões, almudeiros, pescadores, mercadores, almocreves, ourives, tabeliães e tanoeiros. Para os anos imediatos, surgem dados referentes à fiança e aos juízes dos ofícios (ferradores, ferreiros, barbeiros e moleiros) que testemunham a dimensão adquirida pela estrutura oficinal, mercê da exigência da sociedade para serem asseguradas as necessidades básicas, pois o isolamento e as dificuldades de contacto com a Europa impossibilitavam o abastecimento dos artefactos de uso corrente aí produzidos. A importância e a fixação dos mesteres em determinadas áreas do burgo vieram dar origem a ruas com o nome dos diversos ofícios aí sediados, como a dos ferreiros, a dos tanoeiros e a dos caixeiros, entre outras. Aos ofícios, juntavam-se os trabalhadores braçais ou assoldadados que se dedicavam a diversas tarefas no campo e no burgo. O seu serviço era onerado com a redízima. Este tributo, prejudicial ao exercício dessas atividades, punha em causa a segurança da terra, pois, segundo se dizia em 1466, tal situação conduzia ao aumento dos escravos. A mesma preocupação evidenciou-se em 1489, apontando-se a saída de homens para as campanhas africanas como um perigo para a segurança da Ilha, dado o elevado número de escravos que nela havia. Verifica-se, portanto, que o grupo servil surgiu com uma importância relevante na sociedade madeirense na segunda metade do séc. XV. O seu peso gerou preocupação e tornou necessária a regulamentação dos movimentos e do espaço de convívio dos que a ele pertenciam. Daí a exigência de usarem um sinal e de se recolherem à casa do seu senhor; daí, também, ter-se ordenado a expulsão dos forros (aqueles a quem fora dada alforria), com exceção dos canários. Os escravos negros surgem como assalariados, vendedores de fruta dos seus senhores, enquanto os guanches, oriundos das Canárias, surgem como pastores e mestres de engenho. O desenvolvimento das pequenas indústrias e dos grupos oficinais foi evidente no decurso do séc. XVI e, paulatinamente, as diversas corporações oficinais foram ganhando importância social, económica e política. A sua presença na vereação passou a ser assídua, no sentido de defender os interesses da classe e intervir na regulamentação da sua atividade. Note-se que a vereação tinha uma intervenção constante na regulamentação dos ofícios, na qualidade do serviço prestado e na tabela de preços das diversas tarefas e produtos daí resultantes. Cada ofício tinha um juiz, que se encarregava de examinar os demais aprendizes, garantindo a qualidade do serviço a prestar. Ao mesmo tempo, a tendência para a fixação dos mesmos em arruamentos determinados resultou da necessidade de um maior controlo. Os ofícios, de acordo com o número de oficiais e a sua importância na sociedade, estavam estruturados em corporações, presentes na vida política local e relacionadas com a posição atribuída na procissão do Corpo de Deus. Note-se que a cada grupo de oficiais correspondia um santo patrono, cujo dia era de redobrada festa para os associados. A valorização económica da Ilha só foi possível com a definição de uma ajustada estrutura socioprofissional, capaz de satisfazer as necessidades fundamentais da sociedade e de gerar mais riqueza para alimentar o comércio externo. Diversas atividades de carácter artesanal completaram o processo económico madeirense, atribuindo uma evidente mais-valia à Ilha e àqueles que nele participam. Muitas dessas atividades faziam-se por necessidade dos próprios, mas outras houve que tinham por objetivo o mercado externo. Neste caso, é de salientar a obra de vimes e o bordado, que foram uma importante forma de gerar riqueza e um complemento importante ao trabalho rural. O nível de desenvolvimento destes trabalhos, até à déc. de 40 do séc. XIX, era muito incipiente. A exposição realizada em 1849, pelo governador civil José Silvestre Ribeiro, documenta este estádio e pode ser considerada o principal impulso para o necessário avanço dessas atividades. O retrato de tal situação surge em 1847 e foi feito para toda a Ilha e para a cidade do Funchal. Assim, as atividades artesanais ocupavam 14% da população da Madeira e 21% da do Funchal, o que demonstra que a cidade paulatinamente se foi especializando nos serviços e atividades transformadoras, perdendo parte da sua ruralidade. Este grupo era dominado pelos carpinteiros, sapateiros e tanoeiros. Em 1862, passados 15 anos, foi feito o retrato completo destas atividades na cidade e nas freguesias rurais, por Francisco de Paula Campos e Oliveira. Os artistas ou artífices e operários representavam então cerca de 38% da população. Se, a este grupo, retirarmos os lavradores, teremos a sua concentração na cidade e se a isto adicionarmos os de Câmara de Lobos, seremos levados a concluir que a maior concentração oficinal tinha lugar aqui, com 19% destes ofícios. Nos concelhos rurais, o maior destaque ia para Ponta do Sol, Calheta e Machico. A incidência relaciona-se com os ofícios ligados ao sector transformador, onde dominavam os sapateiros, carpinteiros e marceneiros, enquanto nos serviços surgiam os barqueiros e boieiros. Em 1862, tínhamos 1029 bordadeiras, cujas toalhas bordadas renderam, nas exportações, cerca de 7 contos. Estes valores continuaram a subir, havendo, em 1906, 30.000 bordadeiras e 2000 profissionais, em oito casas, que contribuíam com 242.342$180 réis. Já em 1912, tínhamos 34.500 bordadeiras. O bordado era uma atividade que ocupava mão de obra em toda a Ilha e desde o séc. XIX. Se, na déc. de 60, as bordadeiras estavam restritas ao Funchal e a Câmara de Lobos, na déc. de 90, a atividade estava em toda a ilha da Madeira e havia chegado ao Porto Santo. Note-se que, em 1862, das 1029 bordadeiras existentes, a maioria situava-se no Funchal e Câmara de Lobos, respetivamente com 844 e 152. De acordo com a evolução do mercado, cresceu o número de bordadeiras. Assim, em 1906, eram 30.000 as bordadeiras, subindo para 45.000, em 1924, atingindo-se, em 1950, as 60.000. O facto de esta atividade ser maioritariamente executada em casa permitia conciliar o ato de bordar com a atividade agrícola e caseira, acrescentando, ao mesmo tempo, um precário suplemento em dinheiro para a economia doméstica. Em 1952, o bordado distribuía 47.252 contos por cerca de 60.000 bordadeiras. Na déc. de 30, a conjuntura económica conduziu à criação do Grémio dos Industriais de Bordado da Madeira (1935), com o objetivo de orientar a indústria e promover o seu comércio. De acordo com um relatório desta associação datado de 1952, o bordado ocupava mais de 50.000 famílias, o que significava mais de metade das famílias da Madeira, nomeadamente do meio rural. Outra atividade importante no domínio do artesanato foi a obra de vime. Desde o séc. XVI que sabemos do fabrico de cestos de verga para os trabalhos agrícolas e serviço de casa. O cultivo do vimeiro adquiriu importância na segunda metade do séc. XIX. A cultura teve um incremento na freguesia da Camacha e rapidamente se espalhou no Funchal, alargando-se às freguesias do norte, nomeadamente a de Boaventura. A par destas indústrias, que assumiram um papel de relevo na economia da Ilha, é necessário considerar os diversos ofícios e atividades artesanais que contribuíram para a pujança dos diversos sectores e a melhoria do conforto humano. A maior parte dos artefactos e produtos daqui resultantes tinham como destino o mercado local, apesar de alguns encontrarem mercado na exportação. Foi o caso dos embutidos, das flores de penas e dos chapéus de palha. Estes últimos tinham, em 1874, uma importante oficina na R. da Alfândega, propriedade de Lacerda & Irmão. O embutidor trabalhava em paralelo com os ofícios anteriores, sendo-lhe atribuída a missão de dar às pequenas peças de mobília um aspeto apelativo. Através de um jogo de cor de diferentes madeiras, traçava retratos, flores ou construções geométricas que decoravam tampos de mesas, cofres, caixas e caixinhas. As referências mais antigas a este ofício reportam ao séc. XVII, mas foi na segunda metade do séc. XIX que esta arte ganhou fama na Ilha e fora dela. A reputação do embutido e a sua procura levou à criação de oficinas especializadas. A primeira foi fundada em 1770, na fortaleza do Pico, mas o estabelecimento que deu maior alento aos embutidos foi, sem dúvida, a escola de desenho industrial, a partir de 1889 e com oficialização em 1916. Ao nível das atividades subsidiárias, merecem a nossa atenção as que se prendem com os sectores dominantes no processo económico. Assim, no caso do vinho, é necessário ter em conta a atividade dos tanoeiros, de que ficou memória no nome de uma rua da cidade. Note-se que, durante muito tempo, a exportação do vinho era feita a granel, havendo necessidade do vasilhame de madeira. Normalmente, a madeira de carvalho era importada dos EUA, de Charleston, por exemplo, e na ilha da Madeira procedia-se ao fabrico das pipas, em oficinas anexas às lojas de vinhos ou independentes. Em 1862, eram 52 as oficinas de tanoaria em laboração com mais de 200 operários, situando-se maioritariamente na cidade. Paralelamente, o trabalho da madeira tinha outros ofícios associados, como era o caso dos carpinteiros e marceneiros. A oficina de marcenaria trabalhava com as madeiras da Ilha ou importadas, sendo de notar a ideia vigente, a partir do séc. XVII, de que, com a madeira das caixas de açúcar, se faziam móveis, nomeadamente armários e contadores, que ficaram designados, precisamente, como caixas de açúcar. Estes ofícios concentravam-se maioritariamente na cidade: em 1863, trabalhavam aí 92 dos 120 marceneiros de toda a Ilha; o Funchal apresentava 112 dos 196 carpinteiros existentes. De entre as diversas atividades artesanais que contribuíam para o conforto das populações, devemos salientar as concernentes ao vestuário, incluído a tecelagem e a tinturaria, o curtume e o fabrico de botas, mas também as respeitantes aos produtos de cozinha e higiene que compreendiam os utensílios de barro e folha e o sabão, e ainda as alimentares, nas quais se incluíam as massas e as bebidas alcoólicas. A estas, juntam-se ainda outras atividades, como o fabrico de cal e telha para a construção de habitações, ou a produção de acessórios, como chapéus de feltro e palha e flores de penas. A presença de barro na Ilha é evidenciada pela toponímia, mas, mesmo assim, ele parece não ter sido suficiente para as necessidades locais, uma vez que, à sua procura para o fabrico de utensílios domésticos, como a telha dita romana, houve que juntar, nos sécs. XV e XVI, a sua procura para a indústria do fabrico de açúcar, quer para as formas, quer para outros elementos da fase de purificação. Lembre-se que, no fabrico do açúcar, as formas só serviam uma vez, necessitando quase sempre de ser partidas para retirar o pão de açúcar. Isto obrigava à existência, na retaguarda, de oleiros e do barro necessário para o seu trabalho. Nas indústrias subsidiárias da construção, temos os fornos de telha, onde se coziam as telhas de barro e os de cal, onde se preparava a cal. Dos primeiros, na passagem para o séc. XXI, temos cinco fornos no Funchal e três no Porto Santo; dos segundos, apenas 10 moinhos no Porto Santo, não obstante terem existido outros no Funchal, Santa Cruz, Câmara de Lobos e São Vicente. A Madeira apresentava, em 1845, quatro fornos, passando para cinco em 1863. Os da vertente sul laboravam a pedra calcária vinda do Porto Santo, tornando-a mais vantajosa, dada a falta de lenha. Apenas em São Vicente, desde o séc. XVI, se dispensava a pedra calcária porto-santense, por motivo da existência de um filão de cal na zona dos Lameiros que foi explorado já no séc. XX, mas que, a exemplo do Porto Santo, deixou de ter importância. Foi no Porto Santo, nomeadamente no ilhéu de Baixo ou da Cal, que a exploração deste material se transformou numa importante fonte de riqueza. No séc. XV, o senhorio da ilha, interessado em manter sem sobressaltos a indústria açucareira, proibiu a exploração da cal, obrigando os madeirenses a importá-la do continente. Todavia, no séc. XVI, a quebra do açúcar e a necessidade desse material para a construção de fortificações levou ao incremento da indústria da cal no Porto Santo, atividade que se manteve até à déc. de 70 do séc. XX. Note-se que, em 1928, funcionavam, em todo o arquipélago, 10 fábricas de cal. O fabrico de panos para cobrir o corpo era, igualmente, uma atividade de tipo caseiro. As matérias-primas fundamentais – linho, lã de ovinos e materiais de tinturaria – eram de produção local, o que fazia com que muitas das peças de lã, linho e estopa fossem mais baratas do que os tecidos de cores garridas vendidos pelos adelos, cuja presença está documentada na Ilha desde o séc. XVII. A Madeira também importava linho, nomeadamente da Inglaterra, da Alemanha e da América do Norte. Todavia, a maior quantidade de linho consumido era de produção local, existindo a cultura, provavelmente, desde os inícios do povoamento da Ilha. As posturas do séc. XVI referem a prática corrente de alagar o linho nas ribeiras da cidade com muito dano das suas águas, pelo que se recomendava o uso de poços separados. A sua cultura espalhou-se por toda a Ilha, ganhando uma posição de destaque nas freguesias do norte, nomeadamente, em São Jorge e Santana. O séc. XVIII é considerado um momento de crise desta cultura, havendo necessidade de importar linho da América, pelo que as autoridades municipais tomaram medidas no sentido da promoção do seu cultivo. Assim, foi possível, com esta matéria, produzir toda a roupa branca que a Ilha necessitava. Todavia, a partir de meados do séc. XIX, teve lugar na Madeira uma invasão de tecidos estrangeiros, vistosos e a preços muito em conta, que destronaram o linho da terra (note-se que o trabalho de preparação do linho era muito custoso, sendo conhecido como o fadário do linho). Ao linho juntava-se a lã, fruto da tosquia dos ovinos. Foi no decurso do séc. XVIII que se assistiu a uma aposta nesta matéria-prima, feita através da promoção do pastoreio e da criação de ovelhas, de forma especial as meirinhas, por serem as que produziam as melhores lãs. Os ovinos de raça irlandesa surgiram na Ilha em finais do séc. XVIII, permitindo um melhor aproveitamento das lãs. Em 1862, a Madeira dispunha de 44.186 cabeças de gado ovelhum, maioritariamente distribuídas no Funchal, que produziam 39 t de lã branca e cerca de 8 t da preta. A estas duas matérias-primas fundamentais juntava-se ainda a seda, de menor dimensão. A sua presença na Ilha está documentada desde o séc. XV, encontrando-se isenta de qualquer direito desde 1485. Na segunda metade do séc. XVIII, foi evidente a aposta na seda, com incentivos da Coroa ao plantio de amoreiras. Uma vez disponível a matéria-prima, eram necessários teares e tecedeiras hábeis que produzissem os panos com os quais os alfaiates e costureiros faziam, depois, o corte do vestuário. De acordo com informação de 1862, o número de teares de linho e lã na Madeira era então de 559 e o de tecedeiras, 359, havendo uma incidência na Calheta, Santana e Funchal. Em 1908, o número de teares tinha subiu para 559, mas paulatinamente foram desaparecendo, como também a disponibilidade do linho e da lã de ovelha. De acordo com uma taxa estabelecida, em 1862, às tecedeiras do Porto Moniz, ficámos a saber que o concelho produzia 3300 m de pano de linho, 550 de lã preta e 110 de lã branca. É de salientar que os alfaiates tinham uma forte incidência na cidade do Funchal, o que poderá significar que no meio rural o corte do vestuário era caseiro. Os curtumes relacionados com o calçado mantiveram-se sempre com grande evidência na vida das populações, dependendo da disponibilização de gado ovino, caprino e, fundamentalmente, bovino e do consumo de carne. Esta indústria existe desde os primórdios da ocupação da Ilha. As intervenções do município contra a poluição das ribeiras por esta atividade, nomeadamente do Funchal, eram constantes. Os pelames e alcaçarias, por necessidade de água abundante, situavam-se quase sempre no leito das ribeiras. Na Tabua e Serra de Água, surgem algumas construções, consideradas popularmente como mouriscas, que nos parecem ter a ver com esta atividade. Tenha-se em conta que esta área da Ilha teve um papel importante nos curtumes. No decurso do séc. XVII, o estado desta indústria deveria ser decadente face à disponibilidade de couros e solas de proveniência brasileira de superior qualidade. Perante esta crise, o município de Machico apostou, em 1780, na reanimação da indústria. Na segunda metade do séc. XIX, o incremento da pecuária deverá ter contribuído para o reforço da atividade. Em 1863, temos notícia de 61 oficinas em que trabalhavam 532 surradores e curtidores. É evidente, nesta atividade, uma acentuada concentração na Calheta e Ponta do Sol, que surgem, respetivamente, com 17 e 19. Em 1908, as oficinas de curtir couros eram 61, passando para 38 em 1910, o que demonstra estarmos perante uma redução da matéria-prima. Todavia, em 1928, Peres Trancoso testemunha uma valorização da atividade com a plena laboração de 203 fábricas. A riqueza de couros repercutia-se no número de oficinas de sapateiro. A sua presença está documentada desde os primórdios do povoamento, com particular incidência no Funchal. De acordo com a regulamentação das posturas, sabemos qual o calçado fabricado na Ilha. Para homem, temos botas, sapatos, botas de montar e botas mouriscas. Já no calçado feminino, temos chapins, botinas e pantufas. Em 1862, laboravam 346 sapateiros, sendo 156 deles ativos no Funchal, número que desceu para menos de metade em 1906, e que voltou a subir, para 215, passados 10 anos. O quadro dos ofícios da Ilha segue uma matriz europeia e ajusta-se à realidade dos novos núcleos de povoamento, tendo em conta os fatores geográficos que os aproximam ou afastam. Desde o início, criou-se tudo do nada com oficiais trazidos do reino, e os municípios tiveram um papel importante na sua organização e controlo. Estes assumem um papel desusado no burgo, e desde 1484, por força de determinação régia, passam a ser ativos na vereação. Muitas das atividades que dão justificação à ocupação destes oficiais mecânicos contribuíram, não só para suprir as necessidades das comunidades locais, mas também para alimentar o comércio com regiões externas.   Alberto Vieira (atualizado a 15.12.2017)

História Económica e Social

junta autónoma dos portos

Em 1913, sucedendo a uma comissão de melhoramentos nomeada em 1911, foi criada a Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal, que visava, essencialmente, as várias obras do complexo do porto do Funchal, envolvendo a Junta Geral, a Junta Agrícola, as Obras Públicas, a Alfândega, a Associação Comercial e a capitania do Porto, entre outras. Esse órgão foi reformulado em 1936, passando a designar-se Junta Autónoma dos Portos do Arquipélago da Madeira. Mais tarde, com a autonomia e a instituição do Governo Regional, foi novamente reformulada, dando origem, juntamente com outras entidades, à empresa Portos da Madeira, sob a coordenação e superintendência da vice-presidência do Governo Regional. Palavras-chave: Associação Comercial e Industrial do Funchal; Junta Agrícola; Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal; Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal; Laboratório Nacional de Engenharia Civil; Ministério das Obras Públicas.   A Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal foi criada por decreto, a de 13 de agosto de 1913 e regulamentada em 1915, sucedendo a uma comissão de melhoramentos, nomeada por portaria de 8 dez. 1911, com base nos trabalhos então editados por Adriano Augusto Trigo (1862-1926). O novo organismo visava, essencialmente, as várias obras do complexo do porto do Funchal, envolvendo a Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal (JGDAF) (Junta Geral), a Junta Agrícola, as Obras Públicas do Distrito, a Alfândega, a Associação Comercial (Associação Comercial e Industrial do Funchal) e a capitania do Porto, entre outras. Pretendia-se, assim, encontrar uma estrutura que conseguisse ultrapassar as dificuldades de cativação de verbas para as obras de um futuro porto artificial do Funchal, assunto que se arrastava desde o séc. XVIII (Porto do Funchal). Todavia, tendo arrecadado verbas até 1922 e aberto concurso para as obras do porto, em março desse ano, o mesmo não conheceu interessados. Por isso, houve que alterar as bases do documento e abrir um novo concurso, em janeiro de 1923, sendo as obras, então, adjudicadas a uma firma que foi constituída em Londres para o efeito, a Fumasil Company Limited. A nova firma não iniciou sequer as obras, acabando por se rescindir o contrato e abrir um outro concurso, que decorreu em 1930, após uma nova reformulação da junta do porto, em 1926. As obras, no entanto, continuaram abaixo das necessidades regionais, voltando a junta a ser reformada, em 1934 e a 5 de setembro de 1936, alterando-se, então, a designação para Junta Autónoma dos Portos do Arquipélago da Madeira (JAPAM). A construção de um novo molhe vertical ocorreu entre outubro de 1934 e outubro de 1939, mas as obras efetivadas já estavam ultrapassadas pelo desenvolvimento dos transportes marítimos. Com o final da Segunda Guerra Mundial, as principais entidades regionais movimentaram-se no sentido de promover uma ampliação do molhe de acostagem, tendo em conta as necessidades das grandes companhias de navegação. Depois de se auscultar inúmeras entidades relacionadas com a matéria, nomeadamente a Union Castle, em maio de 1947, surgiu o anteprojeto dos melhoramentos do porto. Era da autoria Eng. José de Sena Lino, que veio a ser diretor do porto, e foi desenvolvido, em dezembro de 1949, com o apoio do então capitão do porto, o comandante João Inocêncio Camacho de Freitas (1899-1969), mais tarde, governador civil. Foram envolvidas nesta nova fase de ampliação, entre 1955 e 1962, especialmente, as entidades superiores nacionais da área dependentes do Ministério das Obras Públicas, como, p. ex., a Direção-geral dos Serviços Hidráulicos e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil, ficando a JAPAM com a gestão regional do importante empreendimento, em estreita articulação com a JGDAF. Com a autonomia e a instituição do Governo Regional da Madeira, estas juntas foram reformuladas, dando origem à empresa regional Portos da Madeira, sob a coordenação e superintendência da vice-presidência do Governo Regional.   Rui Carita (atualizado a 18.12.2017)

História Económica e Social

juiz da alfândega

O juiz da Alfândega era o funcionário que superintendia a administração da Alfândega. A ele competia, não só o julgamento dos casos sobre a administração da fazenda, como a coordenação da ação dos oficiais da repartição, como o almoxarife e os escrivães, estabelecendo o horário de serviço, os produtos que podiam ser despachados, no calhau, sob a sua supervisão. Em caso de negligência, que implicasse dano e descaminho de direitos à Fazenda Real, tinha poder para penhorar os bens do almoxarife e dos escrivães. Este cargo surgiu, na Madeira, em 1477, com a criação das alfândegas, sendo exercido pelo contador do Duque, em regime de acumulação. Assim, por provimento de 19 de setembro de 1477, Luís de Atouguia assumiu o cargo de juiz das Alfândegas do Funchal e Machico. A 20 de fevereiro de 1490, foi expedida uma carta régia dando a Francisco Álvares o ofício de contador e juiz da Alfândega. Em alvará de 15 de novembro de 1562, foi nomeado provedor da Fazenda da ilha da Madeira e juiz da Alfândega do Funchal o doutor Pedro Fernandes. Todas as demandas sobre os escrivães e oficiais da Alfândega eram também julgadas perante o juiz, de acordo com o alvará de 15 de junho de 1511. Na casa da Alfândega, o processo de despacho era presidido pelo juiz, coadjuvado pelo almoxarife e pelos escrivães que atribuíam o valor a ser dizimado. O juiz mais velho controlava toda a ação e superintendia à Mesa Grande, onde se concediam as fianças para o embarque de entrada ou saída das mercadorias. A partir do séc. XVI, a função de despacho passou para o feitor, pelo que o juiz assumiu o papel de coordenação e supervisão das questões de direitos alfandegários ou pleitos que envolviam a Alfândega. O juiz da Alfândega deveria, anualmente, deslocar-se à metrópole para prestar contas, sendo substituído por uma pessoa da sua confiança. Francisco Álvares foi substituído por quatro vezes: em janeiro de 1505, por Antão Gomes, em julho de 1508, por João Rodrigues de Parada, de março de 1518 a julho de 1520, por João de Freitas e, em 1524, por João de Ornelas de Vasconcelos. Até 1563, eram dois os juízes, um para cada Alfândega da Ilha. Nesta data, foi provido o primeiro juiz da de Santa Cruz sendo, até então, o cargo acumulado pelo do Funchal. Em meados do séc. XVI, o do Funchal acumulava as funções com as do de Machico, separando-se estas funções a partir de 1563, com a nomeação de Tomé Alvares Usadamar. Sucedeu, assim, em 1646, aquando do conflito entre o Gov. Manuel de Sousa Mascarenhas e este juiz, que, ao receber voz de prisão, se refugiou no paço episcopal e solicitou a sua substituição. Em 1508, com a criação da Provedoria da Fazenda no Funchal, o então contador Francisco Álvares passa a acumular os cargos de juiz da Alfândega e provedor, passando a designar-se provedor da Fazenda, por carta régia de 25 de setembro. O seu rendimento anual compreendia 10.220 reais pelo cargo de contador e 4880 reais pelo de juiz da Alfândega. Em 1554, a Coroa enviou à Ilha o doutor Pedro Fernandes, na qualidade de juiz de Fora, provedor e juiz da Alfândega. Mas esta situação deixou de ser possível, passados oito anos, uma vez que a Coroa, em 1562, proibiu a acumulação dos cargos de provedor e juiz da Alfândega pelo juiz de Fora, tendo sido Lourenço Correia o último a acumular estas funções, por provimento de 1559. Em 1580, o cargo estava nas mãos do corregedor, com as funções de vedor da Fazenda, por os capitães que as exerciam estarem ausentes da Ilha. Em 1582, com a nomeação de João Leitão para o cargo, a Coroa filipina associou-o ao de corregedor. Encontramos o regimento, para estes cargos, em Lisboa [1520] e Porto [1535], faltando um regimento específico para a Madeira, havendo apenas o do juiz do Mar de 15 de abril de 1520. Apenas em 16 de novembro de 1774 existe alvará sobre a jurisdição dos superintendentes gerais e juízes das alfândegas. Até princípio do último quartel do séc. XV, o movimento de carga e descarga, no calhau do Funchal, fazia-se na presença dos oficiais do Duque ou dos seus rendeiros; desde então, o juiz da Alfândega, com os almoxarifes e os escrivães, passou a controlar toda a atividade, lançando os direitos de acordo com o regimento; a partir de 1497, o despacho dos navios era supervisionado por um juiz e um vereador da CMF. A partir de 1499, a Coroa lançou um adequado sistema fiscal, assente em duas instituições: os Almoxarifados da Alfândega e os dos Quartos. A primeira intervinha no movimento de entradas e saídas e na cobrança dos respetivos direitos, enquanto a segunda estava vocacionada para a arrecadação dos direitos que oneravam a colheita de açúcar. Finalmente, em 1508, deu-se nova forma ao sistema fiscal, na Madeira, com o estabelecimento da Provedoria da Fazenda. Em 1824, existe notícia de uma demanda entre este e o comandante da galera inglesa Larkins, acerca da existência, a bordo, de mais de 5 pipas de vinho baldeadas da galera Isabel Sompson, tendo-se descoberto uma fraude na escrituração do vinho embarcado. O juiz reclamou por uma reforma nos métodos de escrituração dos livros de registo de exportação, de modo a evitar danos à Fazenda Real, uma vez que os estrangeiros e, de modo especial, os ingleses se serviam de vários subterfúgios para se subtraírem ao pagamento dos direitos. A um deles se referia, em 1779, um informe sobre os direitos do vinho que dizia que compravam o vinho sem preço e que solicitavam de imediato ao juiz da Alfândega a devida autorização ou franquia para a sua saída ou abriam a saída sobre a fiança de 4000 réis por pipa, valor que ficava depois da avaliação. Perante as desordens que se repetiam de ano para ano, só uma solução seria possível com o estabelecimento de um preço de custo invariável, a pauta, ou seja, a fixação de um direito de saída. A medida do preço fixo havia sido solicitada, em outubro de 1799, pelos comerciantes, numa representação em que reclamavam nova regulamentação, segundo o processo de 1776, no qual o preço fora fixado em 4200 réis. A Junta decidiu taxar os direitos por um período de quatro anos com a finalidade de ao fim desse período apresentar conta da necessidade de os aumentar ou diminuir. Em 1822, o negociante Pedro Santana havia afiançado, na Alfândega, a descarga do vinho para o Rio de Janeiro e Lisboa. Terminado o prazo de entrega da prova, foi obrigado a pagar a outra metade dos direitos. O mesmo reclamou da decisão de cobrança, solicitando, em requerimento, a prorrogação do prazo por mais 8 meses. Em 1825, os direitos cifravam-se em metade, abrangendo o Brasil, o reino, mas limitando-se apenas às embarcações nacionais ou brasileiras. O vinho de roda passa a ser um problema por causa da cobrança dos direitos, a partir do séc. XIX. O consignatário deste vinho solicitava apenas à Mesa Grande da Alfândega crédito ou fiança para embarque. A situação colocou entraves à arrecadação dos direitos reais, pois, como refere a Junta, em portaria ao juiz da Alfândega, os vinhos de roda eram uma ilusão manifesta e prejudicial aos interesses reais na cobrança dos direitos em Mesa e dos créditos ou fiança legalmente concedidos. Vários diferendos aconteceram em torno da ação deste funcionário superior da alfândega, por força de questões com o despacho de mercadoria e com o contrabando. Aquando da ocupação inglesa da Ilha, em princípios do séc. XIX, o general Gordon reclama de uma posição de privilégio, sentindo-se incomodado com o facto de o juiz da Alfândega ter mandado abrir alguns volumes que lhe eram consignados, retorquindo o juiz que a isenção de direitos era apenas para artigos de uso pessoal. Exerceram o cargo de juiz da alfândega: Luís de Atouguia, Francisco Álvares, Antão Gomes, António de Carvalho, Cristóvão Esmeraldo, Leonis Simões Homem, Lourenço Correia, Diogo Luís, Jorge Moniz de Menezes, Manoel Caetano Cezar de Freitas, João de Ornelas de Vasconcelos, João Rodrigues de Parada, João de Freitas e Tomé Mendes de Vasconcelos.   Alberto Vieira (atualizado a 18.12.2017)

História Económica e Social

júnior, antónio félix pita

Filho de António Félix Pita Júnior e de Maria da Conceição Góis Pita, nasceu a 3 de dezembro de 1895 na freguesia da Sé, concelho do Funchal. Depois de completar o liceu, no Funchal, faz o curso de Medicina, que inicia na Universidade de Coimbra em 1912-13. É mobilizado para a I Grande Guerra sem que tivesse chegado a ser incorporado, facto que o leva a interromper os estudos, retomados em Lisboa assim que é desmobilizado. Casa-se aos 28 anos, a 3 de janeiro de 1925, com Maria da Conceição Ferreira Mesquita Spranger, em cerimónia civil seguida da religiosa na igreja de Santa Maria Maior, no Funchal. Por esta época, reside na avenida Miguel Bombarda, freguesia de São João da Pedreira, Lisboa, continuando a viver na capital após o matrimónio. Tem três filhas e um filho. Desde cedo revelara tendência para a cirurgia, especialização que conclui, tendo trabalhado durante dois anos como assistente livre da Faculdade de Medicina e do Hospital de Santa Maria de Lisboa na equipa do conceituado médico-cirurgião Professor Dr. Custódio Maria de Almeida Cabeça. No retorno à Madeira, instala consultório à rua Carvalho Araújo, n.º 61, 1.º (posterior rua do Aljube), no Funchal. Dedica-se a várias especialidades: “Clínica Geral, Partos, Cirurgia e Operações”, como anuncia no Diário de Notícias (DNM, 27 mar. 1927, 3). Será, nesta qualidade, um dos sócios da Casa de Saúde da Vila Guida, assim como cirurgião do quadro clínico do Hospital da Santa Casa da Misericórdia, sendo numerosa a sua clientela nesta cidade, segundo afirma o referido periódico na nota biográfica que publica na sequência do seu falecimento. A 8 de abril de 1931, domingo de Páscoa, encontra-se no Palácio de São Lourenço, na qualidade de dirigente do Partido Republicano Nacionalista (PRN), entre outros representantes partidários locais participantes na sublevação política da Madeira contra a Ditadura. Estes são nomeados responsáveis de diversos organismos públicos (Junta Geral, Câmara do Funchal e administradores dos diferentes concelhos), cabendo-lhe, por nomeação do comandante militar da Madeira, general Adalberto Gastão de Sousa Dias, em conjunto com João Maximiano de Abreu Noronha e Carlos Fernandes Correia, a comissão administrativa da Junta Geral do Distrito do Funchal. Os nomeados para esta comissão tomam posse a 6 de abril. No dia seguinte, António Félix Pita é eleito presidente em votação por escrutínio secreto, à qual concorrem duas listas. Esta situação, apesar da resistência exercida pelo regime ditatorial, dura 28 dias, entre 4 de abril e 2 de maio, data em que o movimento é definitivamente controlado. Encontra-se entre os muitos intervenientes políticos envolvidos no movimento retidos no Lazareto, de onde partirão para os seus destinos de deportação, cabendo-lhe, primeiro, a ilha do Sal e, depois, a cidade da Praia, em Cabo Verde, lugar onde está em julho de 1931, quando vão ao seu encontro a sua esposa e filhos. Em Cabo Verde, é chamado a prestar serviço como médico numa urgência de saúde pública relacionada com a debelação de uma epidemia. Em outubro de 1932, o ministro do Interior, em nota abreviada e pouco explicativa registada no seu cadastro da Direção Geral de Segurança, dá “por finda a sua fixação em Cabo Verde”, autorizando-o a regressar à Madeira (ANTT, PIDE/DGS, Serviços Centrais, cadastro 4015, NT 737). Assim, por ter cessado a sua condição de deportado político, regressa ao Funchal acompanhado da sua esposa e filhos, sendo anunciado pelo Diário de Notícias, no dia 26 de novembro, que retomaria na semana seguinte a sua prática clínica. No entanto, a 10 de dezembro, o mesmo matutino faz notícia de primeira página de um “jantar de despedida e homenagem” “ao ilustre clínico”, iniciativa do jornal republicano O Povo, a realizar-se no Savoy Hotel, estando as inscrições abertas na sede daquele periódico, na Fotografia Perestrelos e na Maison Blanche, contando já com um elevado número de inscritos entre os amigos pessoais que dele se querem despedir, uma vez que partiria na terça-feira seguinte para a colónia de Moçambique. O jantar não se realiza “por motivos da vida particular do homenageado” (DN da Madeira, 11 dez. 1932, 1). Parece ficar claro ter sido forçado, pelas condições políticas adversas então existentes, a partir de novo, desta vez para a África Oriental Portuguesa, Lourenço Marques, protegendo-se a si e à sua família com a saída da ilha e distanciando-se da atividade política anterior. Parte para a província de Moçambique a 13 de dezembro, no vapor Kenilworth Castle, por acabar de “ser contratado para a Companhia da Zambézia”, tendo o distinto cirurgião “tanto no cais de embarque como a bordo, uma afetuosa despedida” (DN da Madeira, 14 dez. 1932, 2). Será médico contratado da empresa agroindustrial Sena Sugar Estates Ltd., empresa de capitais privados, essencialmente britânicos, dedicada à produção de açúcar de cana sacarina, para onde é levado pelo amigo Dr. João Sabóia Ramos, que ali se encontrava a trabalhar. Exerce também clínica particular paralelamente aos serviços de cirurgião que presta na missão de São José. Em 1942, com o fim das companhias comerciais, integra-se no quadro de saúde da Companhia de Moçambique e passa ao quadro de província. Exerce cirurgia no hospital da Beira e, depois, no Hospital Miguel Bombarda, em Lourenço Marques, até ao seu falecimento. Em África, viverá duas décadas de realizações, pois parece ter encarado este território como auspicioso. Aí, ao desenvolvimento de uma carreira de prestígio na área da Medicina, associará, no decurso da déc. de 40, nos últimos anos da sua curta mas promissora vida, o mundo empresarial, revelando-se um empreendedor fora da sua área de formação. Funda uma indústria, no espaço empresarial da Matola, que se dedica à moagem do trigo daquela província. Situado a cerca de 10 km de Lourenço Marques, este complexo industrial (fábrica de massas e bolachas de linha e conceito modernos) é construído faseadamente, vindo a incluir um bairro para o pessoal. A Companhia Industrial da Matola comercializará os seus produtos sob a marca Polana e iniciará a sua laboração na comemoração do 28 de maio, no ano de 1952, após o falecimento do seu fundador, conforme concluímos pela informação colhida no Livro de Ouro do Mundo Português – Moçambique, publicação de 1970, de modelo típico do Estado Novo, em edição que reúne alguns dos sucessos empresariais nesta província. As imagens nele incluídas revelam a grandiosidade do complexo fabril que construiu, à entrada do qual é colocado o seu busto, retirando qualquer margem de dúvida sobre a importância deste empreendimento e do seu empreendedor na economia colonial portuguesa. No curto período em que viveu na Madeira, é também professor do 7.º grupo do Liceu do Funchal, lugar de que toma posse a 9 de outubro de 1929. Está ainda ligado ao desporto, dedicando algum do seu tempo à organização associativa, incluindo-se na lista dos presidentes da direção do Club Sport Marítimo, entre 21 de julho de 1927 e 3 maio de 1928. A 26 de fevereiro de 1930, passa a pertencer aos novos corpos gerentes da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Funchal, eleitos em assembleia geral, presidindo à sua direção. As atas desta associação mostram que, apesar de ter tomado posse, deixa de estar presente nas reuniões logo a partir de 19 de janeiro de 1931. Faleceu em Lourenço Marques, a 18 de dezembro de 1951, na sequência de forte comoção resultante da morte de um grande amigo, Augusto Adida de Gouveia, a quem, como médico, não consegue salvar dos efeitos de um violento desastre de automóvel. O seu funeral realizou-se na vila da Ponta do Sol, para onde foi trasladado o seu corpo, a 11 de abril de 1952.   Maria de Fátima Vieira de Abreu (atualizado a 18.12.2017)

Ciências da Saúde Personalidades

jorge, antónio vitorino castro

Dr. António Vitorino Castro Jorge. Foto: Dicionário Corográfico de Câmara de Lobos   Nascido em Santa Maria Maior, no Funchal, em 1913, filho de Luís Jorge e Josefina Antónia de Castro e Jorge, casou-se, em 1944, com Matilde Martins da Silva Castro Jorge; deste casamento nasceram três filhos. Faleceu, com 91 anos, no Estreito da Câmara de Lobos. Depois de ter completado o liceu no Funchal, inscreveu-se no 1.º ano da Faculdade de Ciências de Coimbra, da qual desistiu para tirar Medicina na Universidade de Lisboa, cuja licenciatura foi concluída em 1938. Mobilizado para a Madeira em 1942, como médico da Marinha, pediu, pouco tempo depois, a passagem à vida civil, tendo sido médico municipal de Porto Santo (durante seis meses) e de Câmara de Lobos e Curral das Freiras (de 1944 a 1983), ao mesmo tempo que exercia medicina privada como clínico geral. Foi sócio fundador da Sociedade Portuguesa de Reumatologia e da Sociedade da Língua Portuguesa. Na freguesia do Estreito, desenvolveu, desde 1953, várias iniciativas de alcance popular, como a festa das cerejas, o desfile da freguesia na festa das vindimas no Funchal, a festa dedicada a S.to Isidro, padroeiro dos animais, e a fundação da Casa do Povo. Como político, foi admirador de Salazar, apesar dos defeitos que apontou ao seu regime nas rubricas “Papagaio” e “Giz na Parede”, do Diário da Madeira, antes de 25 de abril de 1974; apresentou-se como candidato à Câmara Municipal de Câmara de Lobos (1976), tendo sido eleito vereador na lista do CDS; foi fundador e primeiro presidente do Partido Democrático do Atlântico (PDA), em 1978, e diretor do semanário Zarco, órgão oficial deste partido, fundado em 1984; foi mandatário da lista de cidadãos pela desanexação de Jardim da Serra da freguesia do Estreito, em 1993, e mandatário da lista do PS à Câmara de Lobos em 1997. Como jornalista, foi proprietário e diretor do Diário da Madeira (1961-1982), após ter exercido as funções de diretor do Eco do Funchal (1959-1961). Os artigos “Com Quem Vivemos”, “Na Madeira Vitória da Social-Democracia, uma Razão para a Independência” e a carta aparecida na secção “Correio da Madeira”, publicados no Diário da Madeira, valeram-lhe a prisão política, em Caxias, a 15 de maio de 1975, ordenada pelo brigadeiro Carlos Azeredo, governador civil na Madeira, sob a acusação de independentista. Foi também presidente da Associação Política do Arquipélago da Madeira (APAM). Publicou uma brochura sobre Salazar no centenário do seu nascimento (1989), e o livro Casos do Acaso da Minha Vida e do meu Tempo. Obras de António Vitorino Castro Jorge: Casos do Acaso da Minha Vida e do meu Tempo.     António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 13.04.2018)

Ciências da Saúde Personalidades

jersey

Nome de uma ilha situada no canal da Mancha, ao largo da costa da Normandia, que, junto com Guernsey, forma o arquipélago das ilhas do Canal, uma dependência da Coroa britânica que não faz parte do Reino Unido. Estas ilhas foram propriedade do duque da Normandia, tendo passado para a Coroa inglesa, quando William, o Conquistador, se tornou Rei da Inglaterra, em 1066, sendo que os habitantes das ilhas do Canal são cidadãos britânicos. Apesar de, no ano de 1204, a Inglaterra ter perdido a Normandia – a parte continental –, as ilhas permaneceram na posse da Inglaterra. Entre 1940 e 1945, foram ocupadas pela Alemanha. As ilhas têm como línguas oficiais o inglês e o francês. As ilhas foram divididas em bailiados, regidos por parlamentos eleitos, chamados Estados. Estas assembleias aprovam a sua própria legislação, com o consentimento da Coroa (responsável pela defesa, representação diplomática e de cidadania). Apesar de não fazerem parte da União Europeia, estas ilhas estão sujeitas a uma união aduaneira. O território de Jersey, a ilha maior, tem uma área de 116 km2 e é governado por representantes do Governo britânico, os baillifs. São juízes máximos da justiça nomeados pela Coroa e presidem o Parlamento dos Estados. Entre o séc. XX e começos do séc. XXI, os poderes destes representantes começaram a transferir-se para os Estados, adotando-se um sistema ministerial e a nomeação de ministros-chefe em 2005. De acordo com estudos realizados, e tendo como base o censo de 2011, a população residente em Jersey foi estimada em 97.857 pessoas, 34 % das quais na cidade de Saint Helier. Uma análise aos dados disponíveis permite concluir que apenas metade da população terá nascido na ilha, sendo a restante população migrante. Desta, 7 % é portuguesa, nomeadamente madeirense, num total, para o ano de 2011 (data do último censo), de 7031 pessoas. Estes números explicam o facto de o português ser uma língua comummente escutada na ilha, em particular na capital, onde se encontra em avisos, afixados sobretudo nas cabines telefónicas. Devido à emigração, Jersey está, então, ligada à Madeira de modo especial, não obstante haver registos de trocas comerciais entre os dois espaços insulares. Daquela ilha britânica, chegava o trigo e a farinha, fundamentais para a alimentação, como prova uma ordem de António Noronha, datada de junho de 1823, e dirigida ao guarda-mor João António Gouveia Rego, para dar entrada ao bergantim inglês Comet, apesar de não trazer a carta da saúde referendada pelo consulado, alegando como principal motivo o facto de os cereais serem um produto de primeira necessidade; o mesmo aconteceu com a chalupa inglesa Thane, em agosto de 1823, proveniente daquela ilha britânica, e carregada com farinha. Há muito tempo que Jersey é procurada por madeirenses, que ali encontram possibilidades de trabalho. Embora houvesse alguns Portugueses na ilha na primeira metade do séc. XX, a emigração propriamente dita para Jersey começou nos anos 40 do séc. XX, com a chegada de madeirenses para trabalhar na agricultura, nas fábricas e no sector doméstico. Os primeiros dados sobre a presença madeirense nesta ilha remontam ao ano de 1934, mas é efetivamente nos anos 40 que a emigração insular começa a ganhar maior expressão. Ao proceder à análise do fenómeno económico e social da emigração do arquipélago da Madeira, Agostinho Cardoso situa em 1952 a alteração do paradigma da emigração de madeirenses para Jersey: “Um fenómeno particular ocorreu a partir de 1952 com a emigração sazonal para Inglaterra, principalmente para as Ilhas do Canal. Estes madeirenses, ocupados na hotelaria, deslocavam-se na época de verão rumo a este destino para trabalhar no mesmo sector, regressando à ilha para a época invernal. Hoje mantém-se esta tradição mas ligada ao sector agrícola, uma vez que o turismo madeirense perdeu a sazonalidade que então mantinha” (CARDOSO, 1968, 16). Aproveitando a sazonalidade que caracterizava o turismo da Madeira (sendo o inverno especialmente importante), os madeirenses empregados na hotelaria deslocavam-se, durante o verão, para as ilhas do Canal, nomeadamente para Jersey, para o mesmo sector. Em 1961, existiam cerca de 500 Portugueses na ilha, não se sabendo, ao certo, quantos destes seriam madeirenses. As oportunidades de trabalho dos madeirenses foram muito condicionadas pela falta de conhecimentos de inglês, pelo que os empregos eram pouco qualificados – na construção civil, em cozinhas de hotéis, em serviços de hotelaria e de limpeza, em restauração e bar. Por outro lado, a primeira geração de Portugueses fixou-se numa área muito afastada da capital, o que não facilitou a aprendizagem do inglês, na medida em que se abriam lojas portuguesas, cafés portugueses, clubes sociais de Portugueses, o que lhes permitia continuar a comunicar na sua língua materna (algo que, por outro lado, facilitou a sua integração). Em 1971, por iniciativa de um madeirense, Luís Vieira, surge o Jersey Portuguese Football Club, um pequeno bastião de Portugal naquela ilha britânica. O Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, a 10 de junho, foi aí celebrado, pela primeira vez, em 1980. Por outro lado, houve um manifesto esforço para integrar, o melhor possível, estes imigrantes, oferecendo-lhes aulas de inglês e disponibilizando tradutores, de forma a facilitar-lhes o acesso aos serviços sociais. O sector da agricultura só começou a recrutar trabalhadores estrangeiros nos anos 70. Um historial da emigração da Região Autónoma da Madeira, publicado pelo Centro das Comunidades Madeirenses e Migrações, dá indicação da existência de 1800 madeirenses em Jersey, em 1972, número que se manteve inalterado até ao censo de 1981, e que triplicou no de 1991. A emigração organizada para a região autónoma de Jersey terá tido o seu início em 1978. Nesse ano, terão saído da Madeira 12 pessoas rumo a Jersey, sendo que, em 1980, esse número já ultrapassava as 500, tendo duplicado em 1990, em que 1000 madeirenses trabalhavam na agricultura daquela ilha do Canal. A crescente procura deste destino por parte das gentes da Madeira e do Porto Santo era clara nas percentagens reveladas pelos recenseamentos: em 1981, 3 % dos imigrantes são madeirenses; em 1991, 4 %; em 2001, 6 %; e 7 % em 2011. Em 1998, foi assinado um acordo de amizade entre Jersey e a Madeira, que potenciou as relações económicas, ambientais e culturais entre as duas ilhas, conforme um discurso proferido pelo baillif no Dia da Madeira de 2010, o primeiro ano em que aquele foi assinalado em Jersey: “The Friendship Agreement signed between Jersey and Madeira in May 1998 committed the Governments of both Islands to promote mutual respect for the different cultural traditions of the two Islands and their peoples” [“O acordo de amizade entre Jersey e a Madeira, assinado em maio de 1998, empenha os Governos de ambas as ilhas na promoção do respeito mútuo pelas diferentes tradições culturais das duas culturas e respetivos povos”] (“Speech for Madeira Day”). De registar a ajuda de Jersey à Madeira, aquando da aluvião de 20 de fevereiro de 2010: “An indication of the close relations between Madeira and Jersey can be seen in the events following the terrible floods in Madeira in February of this year in which 40 people lost their lives and a great number lost their homes. The response from the community in Jersey was immediate and generous and I commend all those who participated in those fund raising activities or contributed financially” [“A estreita ligação entre a Madeira e Jersey ficou demonstrada na sequência das terríveis inundações que tiveram lugar na Madeira em fevereiro deste ano, durante as quais cerca de 40 pessoas perderam a vida e muitos ficaram desalojados. A resposta da comunidade de Jersey foi imediata e generosa e foram muitos os que participaram na angariação de fundos assim como nas ofertas monetárias”] (Ibid.). Nos começos do séc. XXI, os madeirenses estavam integrados na sociedade de Jersey, trabalhando sobretudo nas áreas da hotelaria e da restauração, se bem que, nesta fase migratória, muitos jovens desempenhassem outras funções, designadamente em repartições públicas, em hospitais (e.g., na enfermagem), assim como na praça financeira e zona franca fiscal [offshore], um dos aspetos mais importantes da economia de Jersey. Por outro lado, foi realizada nesta altura uma missão empresarial entre as duas regiões autónomas, que resultou no aumento das exportações de bebidas e de produtos hortofrutícolas da Madeira para Jersey (banana, anona, pera abacate, inhame e maracujá, entre outros). À distância de 02.45 h de avião, Jersey continuava a ser, nos começos do séc. XXI, um dos destinos europeus mais importantes para a mobilidade madeirense, o que facilita as trocas comerciais entre os dois espaços insulares e garante trabalho e estabilidade.   Graça Alves (atualizado a 18.12.2017)

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