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dívida

Historicamente, o ato ou o contrato do empréstimo esteve sempre presente em momentos de adversidades e foi um meio usado não só por parte da Coroa, como também por parte do Estado, uma vez que as receitas dificilmente cobriam as despesas. Desta forma, desenvolveu-se o caminho para o recurso a empréstimos, a sisas e a pedidos. O processo de ocupação e de organização do sistema de senhorio surgiu também incluído numa situação de dívida, quando, em 1460, a Coroa ficou endividada ao infante D. Fernando. Desta forma, a doação será entendida como uma forma de saldar essa dívida. Esta situação foi muito importante, pois materializou uma condição de dívida não quantificada, implicando um compromisso entre os envolvidos que, no caso da Coroa, era sempre pago com mercês, com doações e com títulos. São muitos os casos de famílias, ou de madeirenses isolados, que atuavam de livre vontade, esperando receber por parte da Coroa a merecida contrapartida. Estabelecia-se, assim, uma cadeia de dependências com o poder instituído, que depois se repercutia nas despesas ordinárias da Fazenda Real. A partir do séc. XV, começaram a surgir vários documentos de conventos, de misericórdias e de confrarias que atestam casos de dívidas. Os registos notariais também foram repositórios importantes para o conhecimento de tais realidades; no entanto, no que diz respeito às épocas anteriores ao séc. XVIII, esses registos desapareceram na sua quase totalidade. Além do mais, teriam acontecido muitos mais casos na vida quotidiana entre indivíduos em que a palavra e uma qualquer testemunha seriam suficientes para firmar uma dívida. A dívida entre os cidadãos afetava a sociedade como um todo, por força de uma gestão inadequada dos recursos e da riqueza. Atente-se que Simão Gonçalves da Câmara, capitão do Funchal, deixou aos herdeiros uma dívida de 50.000 cruzados. Para além disso, é necessário considerar as dívidas dos cidadãos em tributos e em impostos à Coroa ou ao Estado, que conduziam a inúmeras penhoras e a vendas em hasta pública. A dívida dos impostos era sinónimo de decadência das famílias e era uma marca de tempos em que o direito à terra não era suficiente como sinónimo de riqueza. Existiram várias casas e famílias importantes que foram alvo de penhora, durante os sécs. XVIII e XIX, e cujo património foi arrecadado por mercadores estrangeiros, fundamentalmente ingleses. Em 4 de fevereiro de 1786, foi executada, e.g., a dívida de Manuel da Silva Carvalho no valor de 17.486$428. Noutros casos, verificou-se o pedido de perdão da dívida: assim sucedeu com o caso de Ignácio Gonçalves de Abreu, em 27 de julho de 1820, que teve um parecer favorável, e o requerimento do Maj. José Pedro de Vasconcellos para saldar a sua própria dívida em prestações anuais, de 22 de outubro de 1825. De entre estes, destaca-se também o caso de Guiomar de Sá e de Pedro Jorge Monteiro. Guiomar de Sá morreu em 1796, deixando um património falido pelos seus administradores que seria depois hipotecado por dívidas à Fazenda Real, nomeadamente direitos alfandegários do período de 1788 a 1790. A dívida à Fazenda Real era de 65.975$655, tendo-se usado como penhora as joias de ouro e prata, os títulos de propriedades e as escrituras de dívida. Um decreto de D. Maria I, de 7 de julho de 1791, determinou a forma de pagamento da dívida em prestações anuais de 10.000$000. O P.e Manuel de Jesus, atuou, como testamenteiro, de forma desastrosa nesta situação, levando a que a Fazenda Real determinasse a arrematação dos bens arrestados pela dívida, a 21 de abril de 1796. Em 1824, John Blandy (1783-1855) comprou à Junta da Fazenda do Funchal a quinta de João Bruno Acciaoly, em Santa Luzia, que havia sido penhorada. As adegas de São Francisco, no Funchal, onde, no princípio do séc. XX, se encontravam as Blandy Wine Lodges, foram adquiridas à Câmara do Funchal depois de 1836, altura em que foram expropriadas à família madeirense de Pedro Jorge Monteiro e do cônsul francês Nicolau de La Tuelliére, casado com uma filha do primeiro, uma família historicamente ligada aos vinhos e com grande poder neste comércio, durante a segunda metade do séc. XVIII, embora se encontrasse então falida. Em 1855, a Qt. do Palheiro Ferreiro, a propriedade do Conde Carvalhal que havia sido penhorada por dívidas à Fazenda Real, foi comprada por Charles Ridpath Blandy (1812-1879). A par disso, é necessário ponderar que a inexistência de regras no crédito privado conduzia a uma exploração usurária que penalizava as populações com poucos recursos e criava situações de dependência relativamente ao grupo de prestamistas e de usurários nacionais e estrangeiros, que funcionavam como mecanismo de afirmação e de favorecimento desta minoria detentora de recursos financeiros. Os juros chegavam a valores de 25 %, gerando situações de rutura, com a hipoteca dos poucos recursos da população. Penhorava-se tudo, inclusive as benfeitorias dos colonos nas terras de senhoria. Esta situação tornava-se ainda mais perniciosa quando se sujeitava a população a empréstimos ou a adiantamentos com hipoteca da colheita do vinho, a ser entregue na altura da vindima. Os percalços evidentes do ciclo agrícola favoreciam esta usual dependência dos viticultores, acabando os mercadores estrangeiros, nomeadamente os ingleses, por usar tal situação a seu favor. Perante isto, as autoridades clamavam por melhores medidas e a Igreja apontava o dedo acusador aos usuários e aos prestamistas: porém, a situação continuaria. Em 1800, o governador insistia na necessidade da criação de uma caixa de crédito público, como forma de disciplinar as situações abusivas e de travar o endividamento das populações. Contudo, esta situação só seria contemplada a partir da década de 70 do séc. XIX, intervindo a Misericórdia do Funchal, a partir de 1873, com o Banco de Crédito Agrícola e Industrial. Não se deverá esquecer o papel da Misericórdia e das diversas confrarias, que existiam nas diversas freguesias da Ilha, na concessão de créditos à população a um juro de 5 % durante aqueles tempos, um fator apaziguador da opressiva usura que existia sobre as populações. O primeiro empréstimo das autoridades públicas de que temos referência reporta-se a D. Afonso III, que se socorreu de tal meio para preparar uma expedição de apoio ao Rei de Castela, na sua luta contra os mouros. Por norma, estes pedidos faziam-se em situações ocasionais de guerra ou de casamento dos príncipes. No entanto, em 1478, D. Afonso V lançou um tributo extraordinário para as guerras com Castela, aprovado nas Cortes. Da despesa de 36.000 dobras, caberia à Madeira 1.200$00 rs, mas os madeirenses escusaram-se ao pagamento deste imposto, insistindo nas 4000 arrobas de açúcar que haviam dado de empréstimo, que só ficou saldado em 5 de agosto de 1497. A 12 de julho de 1480, o Rei reduziu o tributo para 800.000 reais, mediante o pagamento imediato de 600.000, ao seu enviado especial, Diogo Afonso (o que só veio a acontecer em 1482). Atente-se que o senhorio era muito cauteloso na questão do pagamento das dívidas, no sentido de uma correta administração financeira, evitando perdas na arrecadação dos direitos e demoras nos pagamentos das despesas. Em 1489, em face de uma dívida acumulada do município relacionada com sacos e com lojas para o armazenamento do trigo (tendo o objetivo de acautelar a falta daquele na vila), o duque ordenou o pagamento pela dízima, admoestando os vereadores que “daqui adiante tende melhor cuidado de arrecadar essas rendas de guisa; que o concelho não caia em dívidas e necessidades, pois tem renda que o pode suprir” (AHM, XVI, 1973, 221). A celeridade no pagamento dos compromissos financeiros, no sentido de evitar dívidas, nunca foi constante. O pagamento destes soldos era, muitas vezes, feito a partir da consignação da receita de alguns direitos cobrados nos almoxarifados ou nas freguesias. A quebra dos compromissos de pagamento acontecia quando surgiam problemas na sua arrecadação ou quando a coleta não era capaz de suprir a despesa que lhes estava consignada; daí as reclamações e as ordens no sentido de serem saldadas. Em 25 de agosto de 1659, ordenou-se o pagamento da comenda em dívida no valor de 867$440 réis, de António de Albuquerque; em 21 de julho de 1690, estavam em dívida 373$333 réis da tença de 1687-88 pertencente a Alexandre de Moura, que a viúva, Ana Luísa de Moura, então reivindicava; em 2 de janeiro de 1691, Luís de Bern Salinas atribuiu a Salvador Sauvaire e a Pedro de Faria, mercadores, a cobrança das dívidas de uma tença, quer as de um procurador que as não pagou antes de falecer, quer as do almoxarife. Em 1682, o Sarg.-mor de Machico não recebeu o seu soldo de 28$000 réis, porque a renda da imposição para o mesmo ano chegou apenas a 22$000 réis. A ordem para saldar esta dívida aconteceu a 20 de outubro de 1684. No entanto, foi mais difícil a cobrança de pedidos e de empréstimos para as guerras contra Espanha, nomeadamente em épocas de dificuldade económica. Os madeirenses sempre se manifestaram desfavoráveis à cobrança deste tipo de donativo, talvez devido à distância a que se encontravam do conflito; e, quando esta reivindicação régia aparecia, sempre se levantavam vozes que reclamavam sobre a insuficiente defesa da Ilha. No caso do donativo, a dívida acumulada dos anos de 1649-1650 e as queixas de que os ricos eram favorecidos em detrimento dos pobres levaram a Coroa a isentar deste encargo os mendicantes e aqueles que não tinham posses. Mesmo assim, não foi fácil demover os devedores ao seu pagamento, uma vez que, em 1651, a Coroa apelava à Junta da Fazenda no sentido de uma maior celeridade na arrecadação do donativo e da décima de guerra da cidade do Funchal, pela necessidade que havia deste dinheiro para a guerra de fronteiras. Entretanto, por carta régia de 10 dezembro de 1656, determinou-se o lançamento de uma contribuição anual no valor de 20.000 cruzados para a defesa do reino. De novo, surgiram várias reações dos madeirenses, com manifestações em 1658, certamente contra a presença do licenciado António Freire Cardoso, que havia sido enviado pela Coroa com alçada para superintender os serviços de administração e os negócios do donativo. O mau ano agrícola justificava esta reação dos madeirenses e obrigava a uma conciliação das partes, face à manifestação de força do poder régio. Assim, a Coroa assumiu uma atitude conciliatória, afirmando: “vos hajais de novo que eu fique bem servido, e os povos sem queixas” (VIEIRA, 2014, 321). No entanto, da parte dos madeirenses, a intenção seria protelar o pagamento da dívida, de forma que, em 1662, esta atingiu os 54.745$000 réis. São insistentes as recomendações para a cobrança (em 1676, 1677, 1683, 1688 e 1691), demonstrando que os madeirenses teriam conseguido levar a melhor nesta situação. A solicitação do esforço nacional para a guerra não terminou com as pazes de 1668, uma vez que se tornava necessário reparar as fortalezas e cobrir as despesas em atraso, no valor de 100.000 cruzados. Para este esforço nacional, por um período de três anos, a Madeira deveria contribuir com 3.232$500 rs. Contudo, os madeirenses persistiam na resistência a esta tributação, de forma que, em 1711, o governador Duarte Sodré Pereira se queixava da falta de cobrança e de um motim que se tinha levantado por esse motivo. Os madeirenses tinham motivos para se manifestar contra este esforço financeiro extraordinário, uma vez que existiam na Ilha instituições em estado de rutura financeira. Estavam neste caso também as finanças municipais, que nunca foram folgadas, gerando, por diversas vezes, situações de rutura financeira que impediam o cumprimento dos compromissos estabelecidos. Em 1687, o município de Machico tinha uma dívida acumulada à Coroa de 140$000 da meia-maquia, e, em 1690, uma de 146$000 réis, referente à rubrica de usuais, obrigando-a lançar um finto entre os seus contribuintes para poder saldar a dívida. Em 21 de abril de 1799, o comerciante Carlos Alder Saldanha também reclamou uma dívida da Fazenda Real, por venda de pano azul, para fardamento. Em 1824, a Câmara do Funchal traçava o quadro aflitivo do seu cofre e a necessidade de encontrar fontes de receita, uma vez que, segundo se afirmava, “as rendas, não têm sido poderosas a contrastar [com] as grandes e indispensáveis despesas a que é obrigada” (VIEIRA, 2014, 461). Para além de uma despesa de mais de 8000$00, refere-se ainda o pagamento mensal de 100$000 rs para uma dívida contraída nos cofres da Real Fazenda. A isto, acresce outra dívida de quase 2000$00 a João Carvalhal Esmeraldo para a construção do mercado público. Idêntica situação aconteceria com a Junta Geral. A partir de 1856, esta deixou de poder contar com o imposto das estufas, que fora extinto. Assim, em 1846, a dívida era superior a 3000$00 rs. Por outro lado, a Comissão tinha quase só a capacidade de proceder a pequenos reparos, devendo socorrer-se de subscrições públicas para a realização de grandes obras, como a ponte do Ribeiro Seco e a estrada monumental até Câmara de Lobos. O finto foi, assim, sinónimo de encargos suplementares para as dívidas ou para as despesas extraordinárias, não tendo nunca merecido a aceitação dos madeirenses, talvez por se sentirem por demais agravados com os diversos tributos a que estavam sujeitos. As populações insistiam nesta manifestação adversa e não se deixaram intimidar, obrigando a Coroa, por alvará de 1749, a perdoar o finto para as obras de fortificação e os vencidos desde 1739 a 1745, em razão dos prejuízos causados à Ilha pelo terramoto de 1748. Vencida esta etapa, as manifestações continuaram de forma permanente contra estas tributações extraordinárias: pois, em 1799, o povo devia à Junta da Fazenda a importância de 162.000 cruzados, proveniente de 18 anos da mesma contribuição, que o Governo insistia em arrecadar. A partir de finais do séc. XVIII, a opção para estas necessidades monetárias passa por ações de contração de dívida pública no próprio país e no estrangeiro. Em 1796, foi feito um empréstimo, no valor de 10.000 cruzados, a que se juntaram, no ano seguinte, mais 12.000, em papel-moeda. Foi o primeiro título de dívida pública com o intuito de custear despesas bélicas. A garantia apresentada foi o lançamento de uma nova décima eclesiástica, cobrada pelo quinto dos bens da Coroa, e um tributo sobre as comendas das Ordens Militares. Por alvará de 7 de março de 1801, procedeu-se a um segundo empréstimo de dívida pública, no valor de 12.000.000 de cruzados. Para isso, consignou-se um novo imposto sobre os prédios de Lisboa e do Porto, no valor de 3 % sobre as rendas urbanas, bem como um aumento nos direitos do açúcar e do algodão. Por alvará de 2 de setembro, o empréstimo foi aumentado, de forma a poder custear-se as despesas do hospital da Marinha. Em 29 de julho, a Junta Provisional do Porto emitiu um empréstimo, no valor de 2.000.000 de cruzados, dando, como garantia, os direitos a cobrar sobre o vinho e o azeite exportados pela barra e pelos portos das outras três províncias nortenhas. A 8 de julho de 1817, houve outro empréstimo de 4.000.000 de cruzados, dando-se como garantia um imposto de 15 % ad valorem sobre os géneros estrangeiros importados, como o arenque, a bolacha, a carne salgada, a manteiga de vaca, o presunto, o queijo e o toucinho. Entre 1796 e 1827, surgiram seis empréstimos que totalizaram o valor de 15.701contos. Durante o mesmo período, ocorreram seis operações de consolidação da dívida, no valor de 4718contos. A dívida pública era uma questão constante e incontornável, obrigando à criação de infraestruturas para a sua administração. Por alvará de 13 de março de 1797, foi criada a Junta da Administração das Rendas aplicadas aos juros do empréstimo feito ao Real Erário com o objetivo de gerir o empréstimo feito. Por ordem de 20 de julho de 1810, tinham sido criadas as Juntas de Melhoramento da Agricultura, que só surgiram na Madeira, nos Açores, em Cabo Verde e em São Tomé por alvará de 18 de setembro de 1811. A função desta estrutura era promover o melhor aproveitamento da agricultura. Eram compostas pelo governador, pelo capitão general, que a elas presidia, pelo ouvidor, pelo juiz ordinário, e pelos escrivães da Câmara e da Fazenda, na qualidade de deputados. Tinham uma só caixa, com o equivalente aos juros da dívida consolidada, mais 1 % da amortização que deveria ser aprovada em Cortes para a promoção da agricultura e do arroteamento dos baldios: estava assim aberta a porta para a presença do Estado no financiamento da agricultura. A 27 de outubro de 1820, a Junta Provisional do Porto criou uma comissão para apurar a existência de papel selado e a sua liquidação, que, pelas Cortes de 1821, teria poderes sobre a amortização da dívida, associando novos rendimentos. A Constituição de 1822 reconheceu a dívida pública e estabeleceu a necessidade de agregar os fundos necessários para a saldar, que seriam também administrados de forma separada. Uma carta de lei, de 15 de abril de 1835, autorizou a venda dos bens nacionais (na Madeira, em 1841, referenciou-se o apuramento do valor de 27.427$465 da venda destes bens), incluindo os das ordens religiosas que haviam sido extintas, uma decisão justificada pela necessidade de amortização da dívida pública. A 23 de abril de 1835, na Junta do Crédito Público, estabeleceu-se o Grande Livro da dívida geral inscrita do Estado, para o registo da referida dívida pública. O Estado liberal transformou a atitude de pedinte, manifestada através de pedidos e empréstimos, numa atitude impositiva de tributos e impostos capazes de cobrir os empréstimos ainda em dívida. Surgiu assim a décima de juros, que era um imposto sobre os empréstimos e outros atos, pago pelos credores, que proporcionava um benefício de capital para a dívida interna consolidada. Foi criado a 6 de maio de 1841, passando a fazer parte das receitas da Junta de Crédito Público, por carta de lei de 9 de novembro de 1841, como meio de pagamento da dívida. Existe ainda uma referência ao imposto de sisa das vendas e das trocas dos bens de raiz que, por carta de lei de 9 de novembro de 1841, passou a pertencer às receitas da Junta de Crédito Público, como meio de pagamento da dívida. Mesmo assim, a atitude dos madeirenses será de devedores às Finanças. As condições económicas da Ilha eram desfavoráveis e impediam os contribuintes de manter em dia o pagamento dos impostos. Desta forma, a partir da segunda metade do séc. XIX, era notório o valor em dívida dos contribuintes. Em maio de 1840, os porto-santenses deviam à Fazenda Real o valor de 12.230$211 réis. A partir de meados dessa centúria, a dívida dos madeirenses à Fazenda continuou a subir: em 1850, o valor era de 512.839$640; em 1860-1861, de 5.712$044; em 1861-1862, de 29.221$654; em 1871-1872, de 79.113$044; e em 1875-1876, de 8.420$117. Perante isto, foram definidas medidas que favoreciam o pagamento sem penalização por decreto de 31 de dezembro de 1887, que autorizou o pagamento da contribuição de repartição em dívida no distrito do Funchal sem qualquer acréscimo de juro, pago em 60 prestações mensais. Depois, uma lei de 8 de maio de 1888 permitiu o pagamento em prestações mensais das contribuições de repartição e de lançamento em dívida no distrito do Funchal até dezembro de 1887, e também o abono de 3 % aos devedores que não aproveitassem esta faculdade. Mas muitos arrestos de bens aconteceram no decurso do séc. XIX, por força de inúmeras adversidades da economia da Ilha, que impediram muitos madeirenses de pagar os tributos ou os impostos de que eram devedores, acabando por ver os seus bens penhorados e arrematados em praça pública por estrangeiros, nomeadamente os Ingleses, que, a partir de então, passaram a assumir um papel dominante no sistema fundiário, por força deste processo. A partir da Revolução Liberal, a instabilidade política condicionou a contabilidade pública e o sistema de arrecadação de impostos, bem como o quadro da receita e da despesa, tendo-se lançado vários empréstimos para cobrir a elevada despesa. Na Regeneração, em 1852, ocorreu a primeira tentativa de disciplina financeira com a consolidação da dívida. Todavia, o deficit orçamental manteve-se até ao governo da Ditadura, com o recurso permanente à dívida externa, que, a partir de 1902, passou a assentar em empréstimos quase exclusivamente internos. A situação da Madeira arrastava-se, de igual modo, na condição de devedora, por força da crise económica resultante da decadência da produção do vinho. O texto A Winter in Madeira and a Summer in Spain and Florence, de autor desconhecido e publicado em 1850 na cidade de Nova Iorque, informa sobre a situação desastrosa das finanças portuguesas e da terrível situação do arquipélago, com uma dívida de 100.000$000 que não tinha cobertura nos rendimentos tributários. Contudo, nada disto seria novidade para o escritor anónimo, uma vez que situações semelhantes aconteciam em alguns estados americanos do Oeste. O regime republicano conseguiu estabelecer, nos seus primeiros anos, de 1912 a 1914, algum equilíbrio entre a receita e a despesa, mas a Primeira Guerra Mundial gerou novos desequilíbrios, por força da inflação galopante, tendo-se as dívidas mantido, em crescendo. A ordem e a disciplina financeira só aconteceriam em 1929, com a chegada de Oliveira Salazar ao Ministério das Finanças. Assim, a dívida flutuante externa foi paga em junho de 1929 e a interna foi amortizada em junho de 1934. A situação, no entanto, piorou na déc. de 60, com o aumento da despesa que causou o aumento dos recursos ao crédito. Na década seguinte, houve os agravamentos provocados pela crise do petróleo (1973-1979) e a instabilidade do período revolucionário (1974-1976), que conduziram a um acentuado desequilíbrio orçamental, por força de um aumento significativo da despesa, tendo obrigado, de novo, ao crescimento da dívida pública. Dívida pública regional – Madeira  A partir de 1974, agravou-se a situação de dependência financeira das instituições existentes na Região e também daquelas que foram criadas pelo processo da autonomia de 1976. A necessidade de contração de empréstimos, no sentido de resolver problemas momentâneos de tesouraria e de financiamento dos projetos de investimento, conduziu, ao longo dos tempos, ao aumento da dívida pública regional. Com o decreto legislativo que os aprovava, os orçamentos anuais expressavam esta situação através da definição das diversas formas de gestão e de negociação junto dos credores. O Estatuto Provisório da Região, aprovado pelo dec.-lei n.º 318-D/76, de 30 de abril, estabeleceu no artigo n.º 58 que o financiamento do deficit deveria ser definido por um diploma do Governo. Por seu lado, o estatuto definitivo, da lei n.º 130/99, de 21 de agosto, determinava que as autorizações para os empréstimos competiam à Assembleia Legislativa (art. n.º 36, alínea d), referindo ainda que apenas os empréstimos com prazo superior a um ano careceriam desta autorização (art. n.º 113). A Lei das Finanças Regionais (lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro, com a alteração introduzida pela lei orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro) ocupava-se de forma especial da dívida pública regional (arts. n.os 26 a 36), definindo que a dívida pública flutuante deveria ser usada para suprir as necessidades da tesouraria, não podendo ultrapassar os 35 % da receita do ano económico anterior (art. n.º 30). A dívida pública fundada para acudir a necessidades de investimento só pode acontecer com a autorização da Assembleia Legislativa (art. n.º 27, n.º 1), situação já determinada na lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro. Entretanto, os limites a este endividamento seriam estabelecidos anualmente na lei do orçamento (art. n.º 30) e deveriam ter expressão no orçamento regional, através do decreto legislativo regional que o aprovaria, onde se estabeleceriam os limites do endividamento e a possibilidade de a Secretaria Regional do Plano e Finanças (SRPF) realizar diversas operações de gestão da mesma dívida. Desta forma, os pedidos de empréstimo eram estabelecidos por resolução do Governo e aprovados pela Assembleia. A lei de 2007 determinou ainda mecanismos de controlo da dívida pública regional, com a obrigatoriedade de a Região fornecer informações semestralmente (art. n.º 13), existindo sanções para o incumprimento das regras. Os anos de 1985 e 1986 foram de particular significado para esta conjuntura de difícil execução orçamental, originando a negociação de um programa de reequilíbrio financeiro com o Governo da República, que assumiu a dívida interna, no valor de 66 milhões de contos. Desta forma, pela resolução n.º 9/86, de 16 de janeiro, o Governo mandatou o ministro da República e o ministro das Finanças para estabelecerem com o Governo Regional um programa de reequilíbrio financeiro da RAM, que foi assinado a 26 de fevereiro de 1986. Em 22 de setembro de 1989, houve um novo programa de recuperação financeira, que duraria até 31 de dezembro de 1997 e que se repercutiu logo no orçamento regional do ano de 1990. Nesta data, a Região tinha uma dívida consolidada de 44,2 milhões de contos. Em 1999, o governo da República assumiu a dívida de 550 milhões de contos das duas regiões autónomas e, no ano imediato, assumiu outros 60 milhões do Serviço Regional de Saúde. Com o Estatuto de 1999 (lei n.º 1/99, de 21 de agosto), a dívida pública regional ficou definida no artigo n.º 113. A partir de 2007, a Região encontrou-se obrigada a apresentar semestralmente uma estimativa da dívida regional. Nesse ano, ao abrigo do disposto no artigo n.º 8 do dec. leg. regional n.º 3A/2007/M, de 9 de janeiro (Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2007), e no artigo n.º 28 da Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro (Lei de Finanças das Regiões Autónomas), que concedeu ao Governo regional a faculdade de contrair empréstimos para amortizar outros empréstimos anteriormente contraídos, procedeu-se, em 29 junho, à 2.ª emissão do empréstimo obrigacionista a que se reportou a resolução n.º 677/2006 do Conselho do Governo de 25 de maio, cujo produto, como se referiu, se destinou à amortização total do empréstimo RAM 97-1.ª às 3.ª séries. Nesta lei de 2007, estabeleceram-se as normas sobre as formas de realização da dívida fundada (art. n.º 28) e flutuante (art. n.º 29), sendo determinado, para esta última, um limite de 35 % do orçamento corrente do ano anterior, enquanto os da primeira eram determinados anualmente pela lei do orçamento. Também pelo dec. leg. regional n.º 32/2009/M, de 30 de dezembro, procedeu-se à alteração do artigo n.º 5, do dec. leg. regional n.º 45/2008/M, respeitante ao endividamento líquido regional. Em 2005, a dívida madeirense situava-se nos 478 milhões de euros, e em 2010, segundo uma auditoria do Tribunal de Contas, era de 963 milhões. A 30 de junho de 2011, o Governo regional assumia uma dívida de 5800 milhões de euros, mas em outubro os dados de um estudo encomendado pelo mesmo Governo revelavam que a dívida se situava nos 333.800 milhões. A 27 de setembro, outro relatório da Inspeção Geral de Finanças reportava uma dívida total da região em 6328 milhões de euros, incluindo neste valor a referente dívida às autarquias e ao sector empresarial da RAM. Neste ano de 2011, com a intervenção do Banco Central Europeu, do Fundo Monetário Internacional e da Comissão Europeia a nível nacional, iniciou-se um processo de mudança no esquema da dívida; esta intervenção obrigou ao estabelecimento de condições específicas para a Madeira poder negociar e resolver a sua dívida, situação que acarretava um retrocesso na autonomia financeira e tributária e estabelecia uma elevada penalização para os contribuintes. Assim, de acordo com um memorandum de intenções, aquela passaria a ser gerida pelo Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público, tutelado pelo Ministério das Finanças. A dívida da RAM, fruto do elevado nível de desenvolvimento, baseado no intenso investimento que a Região fez na sua autonomia, aumentou consideravelmente ao longo dos anos, sendo os dados referentes ao período iniciado no ano 2008 os mais expressivos. Nas contas regionais foi feita uma referência ao montante no qual se cifra a dívida direta, sendo também referido o valor da dívida indireta. Segundo os dados da Direção Regional de Orçamento e Contabilidade, a 31 de dezembro de 2011, a dívida direta da RAM aumentou consideravelmente no espaço de cerca de duas décadas: no ano de 1994, era de 578,227 milhões de euros, tendo aumentado cerca de 12,1 % no ano seguinte, para 648,310 milhões de euros. O aumento da dívida direta também se verificou nos anos de 1996 e 1997, durante os quais aquela assumiu os valores de 727,310 e 771,398 milhões de euros, respetivamente. O ano de 1998 foi marcado por uma diminuição na ordem dos 31,6 %, originando que a dívida direta diminuísse para 527,699 milhões de euros. De igual forma, no ano seguinte, o valor baixou para 388,267 milhões de euros, o que constituiu um decréscimo de 26,4 %. Seguidamente, a evolução da dívida direta assumiu uma tendência de crescimento, sendo de destacar a variação anual de 53,7 % constatada no ano 2008, o que correspondeu a um valor absoluto de 734,919 milhões de euros. No ano 2011, a dívida direta da RAM era de 1009,955 milhões de euros. Entre o ano 1994 e o ano 2011, destacaram-se os empréstimos contraídos pela Região que foram concedidos pelo Banco Europeu de Investimento, e.g., o empréstimo contraído no ano de 1994, orientado para as infraestruturas, de 69,831 milhões de euros, e o empréstimo de longo prazo com o valor de 50,0 milhões de euros, contraído em 2008. Os empréstimos de valor mais elevado registados neste período foram de natureza obrigacionista. No que concerne à dívida indireta, constituída pelas garantias e pelos vales prestados pela RAM (tomando a informação patente nos pareceres sobre a conta da RAM, da responsabilidade do Tribunal de Contas, e nos dados publicados pela SRPF), constatamos que se verificou um aumento muito significativo. Embora, no ano de 1995, o valor fosse de 70,7 milhões de euros, aquele aumentaria, no ano de 2011, para 1467,9 milhões de euros, o que significa um aumento de cerca de 20,76 vezes. Neste intervalo de tempo, só se verificaram taxas de variação anuais negativas em duas oportunidades: no ano de 1996, quando a dívida era de 67,4 milhões de euros, e no ano de 2010, momento em que o total de avales era de 1193,3 milhões de euros. São de ressaltar os dados verificados nos seguintes anos: em 2003, durante o qual a dívida indireta aumentou em cerca de 72,3 %, em relação ao ano anterior, tomando o valor de 341,6 milhões de euros; e em 2004, quando as garantias e os avales assumidos até à data atingiram o valor de 551,4 milhões de euros, revelando um aumento de 61,4 % face ao ano anterior. Todavia, e não obstante a informação apresentada pelas entidades até 2011, o Tribunal de Contas constatou (na sua auditoria de 2009, orientada para os encargos assumidos e não pagos da Administração Regional Direta da Madeira) que parte dos encargos que careciam de pagamento e tinham sido assumidos pela RAM não tinha sido reportada pelas entidades governamentais. Perante tal realidade, a dívida total e oficialmente comunicada foi sujeita a novas verificações que originaram um aumento significativo da variável, revelando a principal causa pela qual a Região teve de recorrer ao Plano de Ajustamento Económico e Financeiro. Em setembro de 2011, a SRPF informou que as responsabilidades da Região, a 30 de junho de 2011,eram de 5,8 mil milhões de euros, dos quais 3 mil milhões do Governo regional e 2,8 mil milhões de euros do sector público empresarial, estando aqui incluídos 1,2 mil milhões de euros de avales concedidos a empresas públicas, detidas ou participadas pela Região. Assim sendo, a informação disponibilizada até àquela data teve de ser reformulada, tendo em consideração a dívida não comunicada. Vários dados do Banco de Portugal situavam a dívida bruta da administração regional no ano de 2000 em 428 milhões de euros; no entanto, no ano seguinte, o valor aumentou para 470 milhões de euros. No ano de 2004, a dívida da administração regional ascendeu a 1109 milhões, tendo sido verificados aumentos nos anos seguintes que originaram o aumento do valor, no ano de 2009, para 2674 milhões de euros e, no ano de 2010, para um novo máximo de 3642 milhões de euros. No início da segunda década do novo milénio, a dívida bruta da administração regional escalou para valores nunca antes verificados, tendo sido, no ano de 2011, igual a 4058 milhões de euros. Os dados provisórios relativos aos anos 2012 e 2013 colocaram a dívida bruta em 4118 e 4291 milhões de euros, respetivamente. Em relação aos montantes verificados no quadriénio de 2010-2013, foi notória a importância relativa que a dívida do subsector Governo regional e serviços e fundos autónomos assumiu, em contrapartida da dívida respeitante às empresas públicas. Se bem que, no ano de 2010, a dívida do Governo regional representasse 64.2 % do total da dívida bruta, no ano de 2013, o valor provisório apresentaria um aumento do peso relativo deste subsector, de cerca de 74,3 %, representando a dívida afeta ao sector que engloba as empresas públicas incluídas na administração pública regional 25,7 %, quando a proporção em 2010 era de 35,8 %. A acumulação de deficits orçamentais, que contribuíram para o incremento da dívida da RAM, foi um alvo de reparo por parte do Tribunal de Contas. No parecer das contas da RAM relativo ao ano de 2011, o Tribunal constatava que “o orçamento da Região tem revelado pouca aderência à realidade, o que permitiu assumir despesa durante a execução orçamental muito para além da efetiva capacidade de suportar a realização dessa despesa, e levou, com crescente frequência, à acumulação de pagamentos em atraso” (TRIBUNAL DE CONTAS, 2012). Legislação: dec.-lei n.º 75/87, de 13 de fevereiro; portaria n.º 672/81, de 6 de agosto; portaria n.º 1028/81, de 30 de novembro; portaria n.º 663/82, de 3 de julho; portaria n.º 1146/82, de 14 de dezembro; portaria n.º 38-A/83, de 12 de janeiro; portaria n.º 687/83, de 20 de junho; portaria n.º 883/83, de 17 de setembro; portaria n.º 1054-B/83, de 23 de dezembro; portaria n.º 518/84, de 27 de julho; portaria n.º 783/85, de 16 de outubro; portaria n.º 186/86, de 8 de maio; portaria n.º 698-A/94, de 26 de julho; resolução n.º 171/81, de 6 de agosto; resolução n.º 243/81, de novembro; resolução n.º 72/82, de 24 de abril; resolução n.º 204-A/82, de 16 de novembro; resolução do Conselho de Ministros n.º 59-A/83, de 23 de dezembro; resolução n.º 1/85/M, de 17 de maio; resolução da Assembleia Regional n.º 3/85/M, de 27 de julho; resolução da Assembleia Regional n.º 4/85/M, de 18 de outubro; resolução do Conselho de Ministros n.º 4/86, de 9 de janeiro; resolução da Assembleia Regional n.º 1/86/M, de 18 de abril; resolução da Assembleia Regional n.º 2/86/M, de 20 de junho; resolução da Assembleia Regional n.º 3/87/M, de 7 de fevereiro; resolução da Assembleia Regional n.º 4/87/M, de 7 de fevereiro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 8/90/M, de 6 de dezembro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 9/90/M, de 6 de dezembro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 11/94/M, de 5 de setembro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 14/98/M, de 7 de julho; resolução do Conselho de Ministros n.º 105/98, de 14 de agosto; resolução do Conselho de Ministros n.º 137/98, de 4 de dezembro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 1/99/M, de 16 de janeiro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 14/99/M, de 6 de julho.   Alberto Vieira (atualizado a 03.01.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social

contas

Em termos de contabilidade, devemos considerar a Conta do Ano Económico, a Conta de Gerência e a Conta Geral de Administração Financeira do Estado (CGAFE), que engloba as duas. Ao nível das diversas operações orçamentais, podemos, ainda, definir as contas ordinária, extraordinária, dos serviços autónomos e uma exceção, a chamada “conta excecional”, resultante da guerra, que existiu nos períodos de 1914-15 e de 1927-28, tendo sido criada pela Lei n.º 372, de 31 de agosto de 1915. A CGAFE é o resultado da execução do orçamento. De acordo com a constituição de 1822, estas deveriam ser apresentadas para aprovação em Cortes, juntamente com o orçamento do ano seguinte. Na Carta Constitucional de 1926 e na Constituição de 1838, alude-se ao mesmo, sendo referido como o balanço geral da receita e despesa do tesouro público. Por lei de 18 de setembro de 1844, foi determinado que a Conta deveria ser submetida a parecer do Tribunal do Conselho Fiscal de Contas. A partir do ato adicional à Carta de 1852, ficou definida a separação entre a Conta e o orçamento. Durante a República, não tivemos qualquer alteração, o que só veio a ocorrer com a Constituição de 1933, que determinou que a sua submissão ao Parlamento deveria ser acompanhada de relatório e decisão sobre a mesma exarados pelo Tribunal de Contas (TCo). A CGAFE foi substituída, a 21 de novembro de 1936, pela Conta Geral do Estado. De acordo com a lei de 20 de março de 1907, existiam dois tipos de conta: a Conta do Ano Económico e a Conta de Gerência do mesmo. Enquanto a primeira ficava aberta por um período de cinco anos, a segunda deveria ser encerrada a cada ano e ser o registo de todas as operações financeiras realizadas. Esta segunda conta deveria igualmente ser publicada no prazo de quatro meses após o final do ano, enquadrada na CGAFE, que englobava as duas. Como já referido, a partir de 1936, esta Conta passou a designar-se Conta Geral do Estado (CGE). Com o Dec. n.º 3519, de 8 de maio de 1919, somos confrontados com a falta de cumprimento desta determinação que estabeleceu normas, no sentido de simplificar o processo, reduzindo para dois anos o período em que as contas dos anos económicos estariam abertas e o alargamento do prazo de publicação da conta para sete meses. Mesmo assim, não foi solução, e, em novo decreto, com força de lei, n.º 18381, de 24 de maio de 1930, estabeleceram-se novas regras, no sentido de obviar esta situação. Assim, o ano económico ficaria aberto apenas por 45 dias e acabava-se com as duas contas, passando a figurar apenas a Conta de Gerência. Em 1935, alargou-se o prazo da sua publicação para 12 meses e, no ano seguinte, insistiu-se na prioridade que deveria ser dada à publicação da CGE. A publicação regular das contas iniciou-se com as do ano económico de 1833-34, mas a agitação política levou, por vezes, ao não cumprimento desta ordem, como sucedeu nos anos económicos de 1845-46 a 1859-1950. Antes disso, deveremos assinalar a apresentação de três contas à Câmara dos Deputados juntamente com o orçamento respeitante aos anos económicos de 1926, 1832 e 1832-33. A partir de 1850, juntaram-se à Conta do Tesouro as contas dos Exercícios, as dos Ministérios e a da Junta de Crédito Público. Como já referido, a CGE surgiu, a 21 de novembro de 1936, para substituir a CGAFE, sendo o resultado da execução financeira do orçamento. A conta é preparada pela Direção-Geral de Contabilidade, que deveria apresentar, até 15 de março de cada ano, os mapas de execução e publicar a conta até 31 de dezembro do ano seguinte. Esta, depois de parecer do TCo, é apresentada à Assembleia para votação. A Constituição de 1976 refere, a exemplo da de 1933, que a submissão ao Parlamento deveria ser acompanhada de relatório e decisão sobre a mesma, exarados pelo TCo, e acrescenta o prazo de 31 de dezembro para a sua apresentação à Assembleia. A partir de 1977, a lei determinou a publicação mensal de contas provisórias, o que, em 1991, passou a ter uma periodicidade trimestral. A Conta da Região é a conta das regiões autónomas, tendo surgido para o ano fiscal de 1976. De acordo com a Lei n.º 98/97, de 27 de agosto, o Governo Regional é obrigado a submeter, à Secção Regional do TCo, esta Conta, que, depois de julgada, é submetida à aprovação da Assembleia Legislativa Regional, conforme lei n.º 28/92, de 1 de setembro. A Conta da Região assinala a execução orçamental da Região Autónoma da Madeira (RAM) e apresenta, detalhadamente, os valores constatados em agrupamentos como as Receitas e as Despesas do Arquipélago. Dados da Direção Regional de Orçamento e Contabilidade permitem identificar a evolução favorável das receitas, tanto as correntes como as de capital. Em 1977, o total de receitas correntes era de 8932 milhões de euros, sendo que o total de receitas de capital cifrava-se em 232 mil euros, fazendo com que a receita total se quantificasse em 9374 milhões de euros. Em 1981, o total de receitas de capital aumentou para 44.348 milhões de euros, um crescimento de cerca de 191 vezes quando comparado com o valor verificado em 1977. Ainda no mesmo ano, foi igualmente notória a evolução das receitas correntes, já que no seu total somaram o valor de 26.325 milhões de euros. Em 1985, a receita total atingiu o valor de 139.023 milhões de euros, e, no ano seguinte, o valor quase duplicou, passando para 252.542 milhões de euros, muito por conta de as receitas de capital terem passado de 32.955 milhões de euros, em 1985, para 130.162 milhões de euros, em 1986, quase igualando o valor da receita total do ano anterior. Todavia, cabe destacar que as receitas correntes aumentaram, neste período, em 14.211 milhões de euros. Para a déc. de 90, os montantes verificados foram reflexo de um aumento das receitas da RAM, tendo especial destaque o ano de 1990, em que a receita total assumiu o valor de 733.975 milhões de euros. Este valor justifica-se pelo montante assumido pelas receitas de capital, que no seu total foi de 500.346 milhões de euros, valor que atingiu tais proporções devido a um passivo financeiro assumido pela RAM de 439.473 milhões de euros. Em 1991, embora inferior à do ano anterior, que não constitui um bom elemento de comparação por conta da excecionalidade verificada, a receita total foi superior à de 1989, devido ao aumento das receitas correntes, impulsionado pelo incremento das receitas fiscais. A partir de 1995, a receita total da RAM superou os 700 milhões de euros, assumindo, nesse ano, o valor de 703.678 milhões de euros, sendo que o valor das receitas correntes foi de 337.777 milhões de euros e o das receitas de capital de 214.729 milhões de euros. Em 1996, a receita total foi de 822.373 milhões de euros, sendo que no ano seguinte o valor diminuiu para 765.446 milhões de euros, voltando a aumentar, em 1998, para 782.498 milhões de euros. No início do novo século, as receitas da RAM atingiram valores nunca antes verificados. Em 2001, a receita total da RAM foi de 1105.302 milhões de euros, aumentando no ano seguinte para 1129.110 milhões de euros e tomando o valor de 1167.048 milhões de euros em 2003. As receitas correntes em 2001 foram de 545.424 milhões de euros, tendo-se verificado um aumento das mesmas em 2002 e 2003 para 671.637 e 672.472 milhões de euros, respetivamente. As receitas de capital, pelo contrário, reduziram de 2001 para 2002, na medida em que no primeiro ano as mesmas somavam o valor de 364.151 milhões de euros e no segundo diminuíram para 271.664 milhões de euros. 2008 marca a primeira década do século no que concerne à receita total, que se cifrou em 1317.770 milhões de euros, ano em que as receitas correntes foram de 931.883 milhões de euros e as receitas de capital de 385.887 milhões de euros. Os anos seguintes foram marcados por diminuições constantes. A partir de 2009, inicia-se uma tendência que é caracterizada pelo decréscimo das receitas totais, sendo que, para esse ano, o valor das mesmas foi de 1074.878 milhões de euros. Em 2010, com uma receita total de 1201.411 milhões, é claro o aumento em relação ao ano anterior, situação que não se verificou em 2011, com uma diminuição para 1076.962 milhões de euros. Em 2012, a receita total cifrou-se em 1597.936 milhões de euros, um aumento significativo relativamente ao do ano anterior, ocasionado pelo valor assumido pela rubrica das receitas advindas de passivos financeiros, de 635.070 milhões de euros. Em 2013, os dados provisórios apontavam para um valor das receitas totais de 2492.607 milhões de euros. Para o mesmo ano, as receitas correntes eram de 1091.643 milhões de euros e as receitas de capital de 1400.964 milhões de euros. No que diz respeito à estrutura da receita, cabe destacar o peso que as receitas fiscais foram assumindo ao longo do tempo. Para 1977, as receitas fiscais eram de 6721 milhões de euros, representando 75,2 % das receitas correntes e 71, 7% das receitas totais. O ano seguinte deu início a um período que se prolongou até 1981, caracterizado pela diminuição da proporção das receitas fiscais nas receitas totais. Note-se que, em 1981, as receitas fiscais representaram 21,6 % do total das receitas e 67,7 % das receitas correntes, sendo que as mesmas mantiveram uma percentagem relativamente baixa no que concerne à receita total em 1982 e 1983, com 28,7 % e 31,0 %, respetivamente. 1989 é um ano de destaque para as receitas fiscais, já que as mesmas ascenderam aos 155.862 milhões de euros, o que se traduziu em 92,3 % das receitas correntes e 55,4 % das receitas totais. A déc. de 90 apresentou receitas orçamentais com um peso superior a 40 % das receitas totais, com exceção de 1990, ano em que a receita fiscal representou apenas 23,8 % das receitas totais. De destacar o ano de 1992, em que as receitas fiscais foram de 293.702 milhões de euros, cerca de 61,0 % da receita total desse ano. No novo século, a proporção das receitas fiscais nas receitas totais aumentou significativamente. Esta situação é identificada com maior realce no período compreendido entre 2008 e 2013. Em 2008, as receitas fiscais foram de 786.249 milhões de euros, e, embora nos anos seguintes o valor absoluto das mesmas tenha sido inferior, tomando os valores de 643.499, 682.954, 666.690 e 651.970 milhões de euros em 2009, 2010, 2011 e 2012, respetivamente, o impacto nas receitas totais foi superior em algumas ocasiões. Isto porque, se em 2008 as receitas fiscais representavam 59,7 % das receitas totais, em 2009 a proporção aumentava para 59,9 %. Em 2010, a proporção diminuía para 56,8 %, voltando a aumentar no ano seguinte, representando 61,9 %. As previsões para 2013 deixavam antever um aumento do valor absoluto das receitas fiscais, já que a estimativa apontava para um valor a rondar os 847.255 milhões de euros, substancialmente superior ao verificado no ano anterior. Todavia, e apesar do aumento do valor da mesma, a sua influência na receita total decresceu para 33,99 %. Cabe destacar que, desde 1977 até 2012, para cada um dos anos em apreço a receita fiscal apresentou-se sempre superior à receita fiscal do ano imediatamente anterior, com exceção de 1994, 2003, 2007, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013. Nesse espaço temporal, o valor mais elevado da receita fiscal, considerando os dados definitivos, foi constatado em 2008, ano em que foi verificada, de igual forma, a maior receita total, que ascendeu aos 1317.770 milhões de euros. No que concerne à componente de capital, as receitas associadas à mesma ganharam uma importância relativa bastante significativa, já que, enquanto em 1977 representavam aproximadamente 2,5 % da receita total e assumiam o valor de 232.000 mil euros, em 2012, o valor absoluto ascendia aos 703.562 milhões de euros, com um peso de 44,0 %. Não obstante, é de ressaltar que a conjuntura com a qual a RAM se viu confrontada a partir de 2008, com a crise financeira, e especialmente desde 2012, ano em que foi assinado o PAEF-RAM – Programa de Ajustamento Económico e Financeiro da RAM, deturpou, em certa medida, os pesos das receitas de capital nas receitas totais verificados em anos anteriores. Se foi notável o aumento das receitas da RAM, a evolução das despesas foi semelhante. Em 1977, a despesa total da RAM rondava os 7490 milhões de euros, passando no ano seguinte a ser de 16.827 milhões de euros, ultrapassando o dobro do ano anterior. O total da despesa aumentou anualmente até ao fim da déc. de 80, com exceção de 1984, ano em que tomou o valor de 106.213 milhões de euros, e de 1987, ano no qual a despesa total foi de 224.099 milhões de euros. Na déc. de 90, sobressai o valor verificado em 1990, em que a despesa ascendeu aos 728.808 milhões de euros. Contudo, e apesar de em 1991 se ter verificado uma diminuição do total da despesa para 392.018 milhões de euros, o período entre 1991 e 1996 apresentou um crescimento anual da mesma, tomando o valor de 816.206 milhões de euros no último ano considerado. No início do séc. XXI, a despesa total assumiu um valor nunca antes verificado, de 1100.651 milhões de euros. Não obstante o facto de em 2001 se ter atingido tal patamar, nos três anos seguintes foram constatados aumentos de tal variável, chegando, em 2004, a ser de 1306.510 milhões de euros. Os anos seguintes são caracterizados por uma diminuição da despesa total, quando comparada com a constatada em 2004, salvo em 2008, em que foi atingido um novo máximo de 1317.102 milhões de euros. 2012 marca um novo máximo da variável de 1533.094 milhões de euros, sendo que os dados provisórios de 2013 permitem vislumbrar um aumento significativo, que situa a despesa total em 2368.748 milhões de euros. A estrutura da despesa total modificou-se parcialmente ao longo dos anos em apreço, embora continue a ser maior o peso das despesas correntes, comparativamente com o das despesas de capital. Em 1983, as despesas correntes representavam, aproximadamente, 52,55 % da despesa total, sendo de cerca de 62,12 % em 2012, enquanto o peso das despesas de capital variou de 33,33 % para 37,79 % no mesmo período. Analisando as componentes que conformam cada um dos agregados da despesa, é possível constatar o peso significativo das despesas afetas ao pessoal. As mesmas cresceram cerca de 24,43 vezes entre 1983 e 2012, chegando a tomar o valor de 375.070 milhões de euros, o seu valor mais elevado, em 2009. Relativamente às despesas de capital, a rubrica que se apresenta com maior relevância é aquela que diz respeito às aquisições de bens de capital, embora em 2012 se tenha verificado uma situação na qual a despesa referente aos ativos financeiros, e que em si engloba as operações financeiras com a aquisição de títulos de crédito e com a concessão de empréstimos e subsídios reembolsáveis, foi superior à referente às aquisições de bens de capital. Não obstante, não é possível subestimar a evolução desta última rubrica, já que em 1983 a mesma tomava o valor de 2.422 milhões de euros, enquanto em 2012 o mesmo era de 217.947 milhões de euros, o que representa um aumento de cerca de 89,99 vezes. Em 1983, representava 2,18 % da despesa total, e em 2012, 14,22 %. Para efeitos da análise efetuada anteriormente, foram consideradas as despesas e as receitas orçamentais executadas afetas ao subsector do Governo Regional da Madeira, por permitir uma análise temporal mais ampla. O saldo efetivo, que reflete a diferença entre as receitas e as despesas efetivas, permite verificar a relação entre ambas as variáveis. Entre 1977 e 2012, o saldo foi negativo, com exceção dos anos: 1977, com 1896 milhões de euros; 1989, com 167 mil euros; 1992, com 1694 milhões de euros; e 2005, 2006 e 2007, com um saldo de 1302, 1070 e 1105 milhões de euros, respetivamente. Os valores deficitários mais importantes, pela expressividade que assumiram, foram os constatados nos anos: 2012, com as despesas a superarem em 491.703 milhões de euros as receitas; 2008, quando o saldo efetivo foi de -255.113 milhões de euros; e 1990, em que o diferencial entre as receitas efetivas e as despesas efetivas foi de -220.349 milhões de euros. O saldo efetivo calculado não inclui a utilização do produto da emissão de empréstimos, nem os encargos com a amortização da dívida pública.   Alberto Vieira  Sérgio Rodrigues (atualizado a 30.12.2016)

Economia e Finanças História Económica e Social

cidra

A cidra é o fruto da cidreira [Citrus medica], planta nativa do Oriente que chegou à Madeira em data desconhecida, sendo usada no fabrico de conservas e utilizada na doçaria da Ilha e na exportação para o exterior em forma de conserva. Não confundir com o vocábulo “sidra”, que pode significar o chamado vinho de peros que, na Madeira, teve grande incremento e ainda continua a estar presente em alguns locais da Ilha, como o Santo da Serra. Para além disso, o seu consumo, como o da casca de outras frutas cítricas, vulgarizou-se por força da necessidade de suprir a dieta das tripulações, que quase sempre sofriam de deficiência de vitamina C, sendo vítimas do escorbuto. Palavras-chave: cidra; escorbuto; casquinha. A cidra é o fruto da cidreira (Citrus medica), planta nativa do Oriente que chegou à Madeira em data que desconhecemos, sendo usada para o fabrico de conservas, com utilização na doçaria da Ilha e na exportação para o exterior em forma de conserva. Não confundir com o vocábulo “sidra”, que pode significar o chamado vinho de peros que, na Madeira, teve grande incremento e continua a estar presente em alguns locais, como o Santo da Serra. Para além disso, o seu consumo, como o da casca de outras frutas cítricas, vulgarizou-se, desde o séc. XVI, por força da necessidade de suprir a dieta das tripulações, que quase sempre sofria de deficiência de vitamina C, sendo vítimas do escorbuto. A cidra pertencia ao grupo das frutas de espinho que, segundo edital camarário de 28 de dezembro de 1842, estavam sujeitas ao respetivo dízimo, devendo os proprietários proceder ao seu manifesto no ato da venda. Na cidade do Funchal, existe a chamada rampa do Cidrão, que não deve estar associada diretamente à cidra, mas sim a João Cidrão. Com nomes relacionados, temos Pedro Gonçalves Cidram e o Cón. Simão Gonçalves Sidrão. Ainda na Ilha, temos a destacar a ribeira Cidral, no Funchal, e o pico do Cidrão, junto ao pico Ruivo. A cultura da cidreira encontra-se no Curral das Freiras, mas também na Ponta do Sol, Ribeira Brava e Machico. Gaspar Frutuoso refere também para o Porto da Cruz a presença de limões e cidras. Como mercado produtor de açúcar, a Madeira especializou-se desde muito cedo neste tipo de indústrias de conservas para abastecimento das armadas da Coroa e de outras embarcações que demandavam a Ilha à sua procura. Desta forma, a partir da segunda metade do séc. XV, uma escala na Ilha fazia-se obrigatória para refresco, o qual incluía abastecimento de água, vinho, víveres frescos e estas frutas secadas em açúcar, que também faziam parte da dieta de bordo, para combater o escorbuto. Desta forma, esta provisão era entendida como uma necessidade. Luxo era o que acontecia na mesa da Casa Real portuguesa e de algumas outras famílias das nobrezas nacional e europeia, onde os manjares doces, de alfenim, casca seca e cidra, estavam sempre presentes, mas aqui apenas por gula.   Alberto Vieira (atualizado a 29.12.2016)

História Económica e Social

urzela

Roccella tinctoria DC. é um fungo do género Roccella, pertencente à família Roccellaceae, comum nas rochas sobranceiras do litoral dos arquipélagos dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde, podendo também ser encontrada nas Berlengas, na Provence e Languedoc, nas ilhas da Córsega, Elba e Sicília. É o orcinol – um composto com valor corante que origina, no processo de tingimento de tecidos, a cor púrpura ou azul violáceo – que atribui importância e valor comercial a este líquen. Já Theophrastus, filósofo e naturalista grego (371-287 a. C.), o destacou por originar a perfeição da cor púrpura. A sua valorização na economia atlântica aconteceu muito cedo. A partir do séc. XIII, os povos peninsulares tiveram como ponto de mira a costa ocidental africana, aquém do Bojador, dando continuidade à tradição da pesca e à busca das infindáveis riquezas deste espaço. Aos recursos piscícolas disponíveis nos mares circundantes, juntou-se a oferta de plantas tintureiras (urzela) e o resgate de escravos canários. Insiste-se mesmo na ideia de que os cartagineses haviam chegado a estas ilhas, nomeadamente a Lanzarote e Porto Santo, à procura de um molusco que lhes permitisse extrair os elementos necessários para a cor púrpura. Aquando da ocupação europeia dos espaços atlânticos no séc. XV, a estrutura do sector produtivo moldou-se às exigências económicas e necessidades dos colonos e regiões de origem. Assim, em consonância com a atividade agrícola, tivemos a valorização dos recursos que integravam a dieta alimentar (pesca e silvicultura) ou as trocas comerciais (urzela, sumagre, madeiras). É neste último domínio de aproveitamento dos recursos que as ilhas contribuíram, de forma clara, para o enriquecimento dos empreendedores europeus. A atividade recoletora adquiriu igual importância na atividade dos insulares, mercê da elevada valorização, no mercado europeu, dos seus produtos, como a urzela, que aparecia com abundância nas ilhas da Madeira, Porto Santo, Desertas, Selvagens, S. Jorge, Corvo, Flores, Santa Maria e La Gomera. Nas Canárias, nomeadamente em Gran Canaria e Tenerife, a sua colheita e comércio faziam-se já na altura da conquista, tendo-se, depois, concedido o exclusivo da sua apanha aos vizinhos e o do comércio aos genoveses, sendo Francisco Lercar o seu promotor em Gran Canaria. O interesse do homem em colorir os tecidos levou-o, assim, ao encontro de plantas que satisfizessem tal função. Algumas delas, como o sangue-de-drago, a urzela, o pastel e a cochonilha adquiriram valor comercial nas trocas externas, enquanto outras, como a ruivinha, fustete, índigo e casca de noz, mantiveram-se apenas na tinturaria caseira. A urzela e o sangue-de-drago atraíram para a ilha da Madeira italianos e flamengos interessados no seu comércio. Para além deles, destacava-se também a cochonilha, um inseto, originário do México, parasita das tabaibeiras (opuntia tuna) de que se extrai a matéria corante vermelha. Este surgiu na Madeira a partir de 1836, trazido das Canárias por Miguel de Carvalho e Almeida Júnior, mas só a partir de 1855 passou a ser explorado, sem, no entanto, se ter atingido qualquer sucesso comercial. O dragoeiro  era  uma  planta  que  medrava  em  abundância nas ilhas e cujo valor económico cedo foi percebido pelos europeus com a extração da seiva e o uso dado aos próprios troncos na construção de embarcações e utensílios de uso caseiro. O sangue-de-drago das ilhas foi explorado antes da ocupação portuguesa. Alguns cronistas referem que os castelhanos procediam desde o séc. XIV à sua extração no Porto Santo, sendo a seiva do dragoeiro usada na farmacopeia e as suas sementes na tinturaria. A urzela foi um dos primeiros produtos a serem comercializados nas ilhas. Com ela, conseguia-se uma cor amarela ocre e castanha. A sua exploração manteve-se ativa até ao séc. XIX, mas foi no séc. XVIII que revelou grande importância e pujança económica, sendo exportada para a Inglaterra e Flandres. A planta era abundante nas Selvagens, Desertas, Porto Santo e Madeira, nomeadamente na Ponta de S. Lourenço. A este propósito, diz-nos Diogo Gomes: «As caravelas do Senhor Infante descobriram esta ilha [Selvagem] e descendo em terra acharam muita urzela, que é uma erva que tinge os panos de cor amarela, e acharam-na em grande abundância. Depois alguns pediram ao Senhor Infante que lhes desse licença para irem ali com as suas caravelas e pudessem transportar a urzela a Inglaterra e Flandres, onde tem grande valor. O Senhor Infante deu-lhes licença, com a condição de lhes darem a quinta parte do lucro, o que fazem» (GOMES, 2002, 100-101). Em finais do séc. XVI, Gaspar Frutuoso, ao referir a construção da Levada dos Socorridos por Luís de Noronha, destaca a perigosidade de tais construções, feita por ravinas muito elevadas e perigosas que expunham os que as construíam a elevados perigos, comparando-a à situação a que estavam sujeitos aqueles que colhiam a urzela.  A partir deste comentário, sabemos da dificuldade do trabalho de recolha da urzela e do perigo que oferecia à própria vida dos apanhadores e dos construtores de levadas: «além de muitas mortes de homens que trabalhavam nela em cestos amarrados com cordas penduradas pela rocha, como quem apanha urzela» (FRUTUOSO, 1979, 121). O perigo foi uma constante para os urzeleiros, os apanhadores de urzela, pois as ravinas e a falta de segurança provocavam diversos acidentes. Nos registos de óbito das paróquias, é possível encontrar estas situações quando o vigário tinha em conta a justificação do falecimento. Em 1735, temos notícia da morte de Manuel Rodrigues de Santa Cruz no ilhéu do Bugio. Para além disso, os Anais do Município do Porto Santo assinalam, ainda que contemplando apenas o séc. XIX, alguns acidentes provocados por esta situação: Francisco de Aguiar, que faleceu em 1850 com 93 anos, ficou entravado de uma queda na rocha quando apanhava urzela; em 24 de outubro de 1860, regista-se a morte de Emiliano das Neves, por uma queda na rocha do sítio do Pedregal quando procedia à apanha de urzela. Jerónimo Dias Leite havia afirmado, na déc. de 70 do séc. XVI, que a urzela das Desertas era um importante rendimento destas ilhas, porque a que aí se colhia era fina. Aliás, as pequenas ilhas das Selvagens, Desertas e mesmo do Porto Santo ganham importância económica através deste líquen. Desta forma, vemos Simão Gonçalves da Câmara, em 1507, a arrendar as Desertas a João Rodrigues por 200 cruzados, porque aí, para além da criação de gado, se colhia abundância de urzela, situação que é corroborada por Gaspar Frutuoso, que refere a permanência de oito homens nestas ilhas com tal função. Valentim Fernandes refere, sobre as Selvagens, que a urzela, um importante rendimento do Infante D. Henrique, estava entregue a particulares. Já na ilha do Porto Santo, as secas quase constantes faziam com que a apanha da urzela fosse uma atividade importante para os seus habitantes. No séc. XVII, vemos, em vários documentos, informações que valorizam a sua importância na economia da ilha. Assim, no ano de 1683, a esterilidade das culturas foi elevada, mas a colheita da urzela, considerada a riqueza da ilha, foi muito boa. O aproveitamento deste recurso está no lote inicial daqueles que aportaram à ilha com os povoadores. Note-se que a urzela é assinalada, em 1493, ao lado do vinho e cereais, com o rendimento de 200$000. Aliás, são várias as referências que atestam o comércio da urzela com os principais mercadores europeus do norte da Europa e do Mediterrâneo. Diogo Gomes, quando refere as Selvagens, dá conta desse comércio com Inglaterra e a Flandres. A atestar este facto está a saída, em 1525, de 30 quintais de urzela para Londres, a cargo do mercador Pedro Anes. Mais tarde, com a criação da feitoria inglesa, esta continuou a pagar 300 rs por cada saca exportada por mercadores ingleses. Depois, em 1698, William Bolton dá conta do envio de algumas folhas de urzela para Roterdão. A partir de 9 de julho de 1739, a urzela das ilhas dos três arquipélagos (Cabo Verde, Açores, Madeira) passa a estar sujeita a um regime de monopólio régio, que depois era contratado a particulares. Na Madeira, o provedor da fazenda era o chamado “conservador da erva urzela” e, assim, quem estabelecia os contratos de apanha e comércio da mesma pelo período de 3 anos. Em 1743, o contrato foi estabelecido com Filipe Balesty & Co por um período de seis anos, no valor de 70.000 cruzados, enquanto em 1751 o contrato foi feito com José Gomes da Silva por um período de três anos e com o valor de 23.000 cruzados. A partir de 1769, o contrato da urzela foi entregue a Pedro Jorge Monteiro. É, no entanto, de destacar que, no período de 1739 a 1849, durante o qual a urzela esteve sujeita a um sistema de monopólio, a intervenção dos particulares continuou através do contrabando, sendo sinalizadas situações em 1827 e 1835. No último caso, foram apreendidas, na alfândega, duas pipas de urzela, apesar de, por decreto de 20 de dezembro de 1773, a coroa ter insistido na proibição da apanha e comércio da mesma. A situação de monopólio foi testemunhada, em 1850, por Isabella de França, mas a liberalização da apanha e comércio já acontecera por lei de 6 de julho de 1649. Aliás, com a revolução liberal, há recomendações no serviço da sua liberalização, reclamando os porto-santenses pelo rendimento deste produto, cuja colheita chegava às 400 arrobas. Após a liberalização, surgem referências à continuidade da apanha no ilhéu do Bugio por homens de Machico e S. Gonçalo, sendo o seu rendimento, na déc. de 60, de 450.000 réis. A importância desta riqueza do grupo das Desertas deverá estar também na origem do interesse do mercador inglês Guilherme Thompson por este grupo de ilhas. Tal alteração do regime de monopólio ficou assinalada com o decreto de 17 de janeiro de 1837, que declarava livre a exportação da urzela de Angola, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, situação que levou os arrematantes a denunciarem o contrato. Porém, pelo decreto de 5 de junho de 1844, o comércio da urzela ficava, em todas as províncias portuguesas de África, exclusivamente reservada ao governo, que depois concedê-lo-á, por contrato, a particulares. Assim, logo em 1849, a liberalização da apanha e comércio acabou com o regime de monopólio. Aos poucos, a urzela perdeu importância económica e foi substituída por outros produtos na tinturaria. Mesmo assim, ainda vemos assinalado o seu comércio no Funchal em 1860 e mesmo em 1901.   Alberto Vieira (atualizado a 31.12.2015)

História Económica e Social

cais regional

O cais regional, também designado por cais da entrada da cidade, nasceu da passagem pelo Funchal da princesa D. Leopoldina de Áustria, em setembro de 1817, quando se fez uma ponte para o seu desembarque junto ao palácio de S. Lourenço, tendo o espaço envolvente sido arranjado nos anos seguintes. A construção de um cais de pedra ensaiou-se em 1843, mas a breve trecho estava arruinado, e somente em 1879 se voltou a estudar o assunto, sendo as obras do cais iniciadas em 1889 e terminadas em 1892. O cais ainda foi ampliado entre 1932 e 1933, e a sua importância é patente na imensa documentação fotográfica existente. O seu interesse como cais perdeu-se com o aumento da capacidade de acostagem do molhe do porto do Funchal e o advento dos transportes aéreos, no entanto, mantém-se como importante zona de lazer da cidade, tanto para visitantes como para residentes. Palavras-chave: Entrada da cidade; Molhe de acostagem; Porto; Transportes marítimos; Turismo. O cais regional, também designado por cais da entrada da cidade, nasceu da determinação feita, quando da passagem pelo Funchal da princesa D. Maria Leopoldina de Áustria (1797-1826), em setembro de 1817, de que deveria ser feita “uma ponte para o cómodo e decente desembarque da mesma Augusta Senhora”, assim como preparar-se com o devido “asseio e arranjo na Casa do Governo” instalações para a princesa (ARM, Governo Civil, liv. 198, fls. 33-34v.; AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3965). Configurou-se, assim, o arranjo do espaço frente ao palácio e fortaleza de S. Lourenço para a entrada solene da arquiduquesa de Áustria no Funchal, então perene, mas a partir de 1839, demolidas as portas e casa da Saúde, onde até então a Câmara procedia ao controlo sanitário, foi a área transformada em entrada de honra da cidade (Entrada da Cidade). O cais de desembarque do porto do Funchal fora feito na base do ilhéu do forte de S. José, em 1756, pelo Eng. Francisco Tosi Colombina (1701-c. 1770), mas não só era então muito distante do centro da cidade, como muito acanhado. Em 1824, ensaiou-se um novo cais de desembarque, então nas baixas frente à fortaleza de S. Tiago, projeto da autoria do Brig. Francisco António Raposo e execução do Ten.-Cor. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em cujos trabalhos se gastaram então 37 contos de réis, tendo tudo sido levado pelo mar. A 17 de fevereiro de 1829, inclusivamente, mandava-se retirar de S. Tiago os degraus de cantaria “que se destinavam ao cais que se projetara construir” para se utilizarem no molhe de cais da Pontinha (ARM, Governo Civil, liv. 798, fl. 51v.). A oportunidade da construção de um cais frente à entrada da cidade veio a surgir após a aluvião de 24 de outubro de 1842. Um mês depois, a 26 de novembro, foi despachado para o Funchal o então Maj. Manuel José Júlio Guerra (1801-1869), experiente militar liberal com larga folha de serviço nos Açores, Porto, Algarve e Setúbal, mas, em princípio, sem as capacidades científicas dos outros dois engenheiros na altura também presentes na ilha: António Pedro de Azevedo (1812-1889)  e Tibério Augusto Blanc (c. 1810-1875), mas um somente capitão e o outro tenente. O mais importante e inglório trabalho de obras públicas desenvolvido nestes anos pelo novo diretor das obras públicas, Maj. Manuel José Júlio Guerra, foi o cais em frente à entrada da cidade, mas a breve trecho viria a perder-se, como o ensaiado nos baixios de S. Tiago. A Câmara Municipal do Funchal, por resolução de 23 de abril de 1843, por certo após acordo com o Maj. Guerra, propunha a construção de um cais de pedra em frente à entrada da cidade, votando, para isso, a verba de 1200$000 réis. O assunto foi presente ao conselho do distrito em 6 de maio seguinte, ficando encarregado de dirigir a obra o Maj. de engenharia Manuel José Júlio Guerra, que a 24 do mesmo mês solicitava um reforço de mais um conto de réis para colocar depois as obras a coberto do inverno. O custo da obra não parava de aumentar, tendo-se já gasto em fevereiro de 1844 mais de quatro contos de réis, pedindo ainda o Maj. Guerra mais um reforço de 18 contos de réis, quantia que a Câmara não via maneira de poder satisfazer. Em sessão camarária de 6 de março de 1844, foi colocado o assunto, surgindo uma proposta de criação de uma comissão para dirigir as obras do cais, entregando-se a presidência ao Maj. Guerra, mas constituindo um corpo com um delegado camarário, o Dr. Manuel Joaquim Moniz, os engenheiros militares Cap. António Pedro de Azevedo e Ten. Tibério Augusto Blanc e o Eng. camarário Vicente de Paula Teixeira (1785-1855). A proposta acabou por não ser aprovada superiormente, continuando as obras sob a desastrosa direção do Maj. Guerra. Entretanto, assumindo a direção dos destinos da Ilha a Junta de Governo (Regeneração e Partido Regenerador), na sequência das revoltas da Maria da Fonte e da Patuleia, que afastou o Gov. José Silvestre Ribeiro (1807-1891) e chegou a ter por presidente o já então Ten.-Cor. Eng. Manuel José Júlio Guerra, ainda viriam a ser desbloqueadas importantes verbas para as obras do cais da entrada da cidade. Com o regresso do governador ao palácio de S. Lourenço, as obras pararam e o Ten.-Cor. Guerra seria transferido para o continente, não voltando à Madeira. Mais tarde, em 1853, Isabella de França (1797-1880) descreveria que, “perto do sítio onde desembarcámos, notam-se vestígios de um cais, planeado há já alguns anos. Nele se gastaram quantias importantes e se desperdiçaram materiais e trabalho que bem poderiam ter sido úteis”. A autora cita ainda que as obras, não devidamente acauteladas, haviam sido praticamente desfeitas por um temporal. Acrescenta ainda que “em Portugal, como na maioria das nações, a utilidade pública é a razão que se alega para todas as obras; infelizmente trata-se só de um pretexto; o primeiro objetivo reside na glorificação pessoal, se não nos emolumentos que os funcionários auferem. Nestas condições iniciam-se obras de vulto; os que as projetaram deixam os seus cargos antes que elas terminem – e ei-las abandonadas, para darem lugar a outras, do mesmo modo superiores aos recursos do país”. As obras haviam sido planeadas pelo Maj. Guerra, acrescentando a autora que, “numa das efémeras revoluções que então desvairaram Portugal, colocou-se ele à frente de um movimento para destituir o governador e estabelecer uma junta, de que seria, é claro, presidente”. Reconduzido o governador, o Maj. Guerra fora “enviado para o continente e posto a meia-ração. Noutro país teria sido fuzilado!”. Com a sua saída, tinham paralisado “e ninguém se incomodou em garantir o que estava feito, pois as honras reverteriam para ele” (FRANÇA, 1970, 51-52). Desconhecia a atenta inglesa que o Maj. Guerra, colocado no polígono de Tancos, conseguiria ainda candidatar-se a deputado por Vila Nova da Barquinha e ser eleito, acabando os seus dias como general. O desenvolvimento do turismo, especialmente o terapêutico, começou a condicionar, a partir dos inícios e meados do séc. XIX, de uma forma cada vez mais determinante, a situação geral da ilha da Madeira, quer económica quer social. Esse caminho encontrava-se já perfeitamente definido na época da governação do Cons. José Silvestre Ribeiro, que a todo o momento evocava para as suas determinações “a presença de inúmeros estrangeiros que nos visitam” (Anais municipais), etc. Na época da sua governação, especialmente, encontram-se na Ilha três das mais altas figuras da aristocracia europeia: a rainha viúva Adelaide de Inglaterra (1792-1849), de origem alemã, nascida Saxe-Meiningen, o príncipe Maximiliano de Beauharnais, duque de Leuchtenberg (1817-1852), que seria pintado na Madeira por Karl Briullov (1799-1852) (Briullov, Karl), e a sua irmã, a imperatriz viúva do Brasil, D. Amélia de Bragança (1812-1873), tendo todas essas visitas sido cuidadosamente preparadas e, também, aproveitadas para melhoramentos vários na Madeira. Quando da preparação da visita da imperatriz viúva D. Amélia e da sua filha, a princesa D. Maria Amélia (1831-1853), em agosto de 1851, por exemplo, um ano antes da chegada dessas senhoras, determinou de imediato o governador ao Eng. Tibério Blanc “o maior desembaraço na construção do cais da Pontinha”, ou seja, na remodelação do mesmo, “para desembarque de Sua Majestade Imperial, a Senhora Duquesa de Bragança e filha”, recomendando que “a obra seja executada de forma a ficar para sempre”. Aproveitou ainda para determinar ao mesmo engenheiro que mandasse “os moradores da zona caiarem as casas e limparem os entulhos”, assim como determinou que fossem feitos alguns “trabalhos na estrada nova do Ribeiro Seco, de modo a ficar perfeita e que S. M. I., possa ir até à Praia Formosa”, determinações que de imediato foram publicadas nos jornais da época (A Época, 31 ago. 1851). Os portos e os cais de desembarque eram assim uma constante preocupação das autoridades locais. Na fase final da sua estadia na Madeira, ainda o encarregou José Silvestre Ribeiro, mais uma vez, da revisão de todos os cais da ilha da Madeira. O Eng. Tibério Blanc elaborou assim uma extensa lista dos cais que necessitavam de obras de melhoramento e reformulação, como eram os casos do cais do Pesqueiro, na Ponta do Pargo; Paul do Mar; Ponta da Galé; Ponta do Sol; Câmara de Lobos; Ponta da Cruz; Gorgulho; Ponta da Oliveira; Ponta do Guindaste e Ponta Delgada, assim como um novo ancoradouro na baía de Machico. As décs. de 80 e 90 do séc. XIX apresentaram o progressivo aumento do turismo, já não especificamente terapêutico, mas essencialmente de lazer, que já começava a representar algum peso na economia nacional, pelo que passou a despertar um certo interesse nas secretarias do Governo de Lisboa. A repartição das obras públicas distritais conheceu mesmo algum incremento, por ela passando os Caps. Júlio Augusto de Leiria (c. 1838-1878) e Henrique de Lima e Cunha (1843-1915), tendo cabido a este último os primeiros trabalhos conducentes à execução do novo cais da entrada da cidade. Com o aumento da circulação de passageiros no porto do Funchal, por portaria de 17 de setembro de 1879, voltava a estudar-se, finalmente, o que fazer do amontoado de ruínas em que se transformara o cais da entrada da cidade. Foi então encarregado do estudo o Cap. de artilharia Henrique de Lima e Cunha, voltando a propor-se a execução de um cais idêntico e no mesmo local, com toda uma outra solidez, claro, à frente da Entrada da Cidade, proposta aprovada em Lisboa, em 17 de julho de 1881, mas que só avançaria em 1886, quando já se encontrava aprovado a prolongamento do molhe da Pontinha através da união dos dois ilhéus. O projeto teve ainda alterações, pelo Eng. José Bernardo Lopes de Andrade, em 1887, e veio a ser adjudicado pelos Engs. franceses Fréderic Combemale, Jules Michelon e Arthur Mury, que já em 1885 haviam conseguido a execução das obras do molhe da Pontinha (Molhe da Pontinha). As obras do cais regional iniciaram-se a 18 de janeiro de 1889, envolvendo um montante de 87.000$000 réis e – vindo a ser depois reconhecido a estes empreiteiros, na ocasião do ajuste de contas, vários trabalhos executados fora do projeto inicial ajustado, ainda receberam mais 92.005$485 réis – demonstrando a complexidade do projeto. A obra ficou concluída a 27 de abril de 1892, sendo recebida provisoriamente nessa data, mas a receção definitiva só teve lugar a 27 de abril de 1895. Por parecer da Junta Consultiva das Obras Públicas, de 30 de maio do mesmo ano, foram os empreiteiros julgados quites para com o Estado de todas as obrigações que haviam contraído, o que consta da portaria de 10 de julho de 1895. Ao longo destes anos, decorreram assim igualmente as obras do molhe do porto do Funchal, cuja iniciativa se ficou a dever ao governador civil, António de Gouveia Osório (1825-c. 1905), visconde de Vila Mendo (Vila Mendo, Visconde de), que, no seu ofício de 15 de outubro de 1881, voltara a chamar a atenção para as vantagens que a baía do Funchal ganharia com a construção de um cais e porto de abrigo, ação saudada pelos comerciantes do Funchal. O molhe proposto, no entanto, era insatisfatório, sendo “apenas um ponto de partida para a futura construção de uma doca regular” e que devia completar-se pelo seu prolongamento em direção a leste, como refere a direção da Associação Comercial do Funchal (Ibid., 25 abr. 1884, 16 jun. e 19 out. 1885), chegando, inclusivamente, a colapsar com o grande temporal ocorrido no último dia de fevereiro e nos primeiros dias de março de 1892, que arruinou de forma drástica uma grande parte da obra já feita e a destrui quase por completo. As obras seriam recomeçadas em 1893, estando prontas em 1895, porém, as condições de acostagem dos grandes navios sempre foram deficientes nesta fase do molhe, acabando os paquetes por ficar ao largo e os passageiros a ser transferidos por lancha para o cais da entrada da cidade. Assim que, até à ampliação do molhe de acostagem, nos meados do séc. XX, para leste da fortaleza do Ilhéu, o movimento de passageiros do porto do Funchal foi feito pelo cais frente à entrada da cidade, ou cais regional. Com o aumento do movimento de passageiros, impôs-se o aumento deste cais, tendo a Junta Autónoma das Obras do Porto aberto concurso para essa realização, que terminou a 30 de outubro de 1930, sendo a construção adjudicada à casa Nederlandsche Maatschappij Voor Havenwerken pela importância de 4763.000$00 escudos. O acrescentamento do cais seria feito pela colocação de cinco grandes módulos de 3337 m3, tendo o primeiro sido colocado a 25 de junho de 1932 e o quinto e último em janeiro de 1933. A inauguração oficial ocorreu a 28 de maio desse ano, data especialmente comemorada pelo Governo da Ditadura. A importância deste cais é patente na imensa documentação fotográfica existente, que, graças aos novos meios de comunicação, não deixa de aumentar. O aumento da capacidade de acostagem do molhe do porto do Funchal e, muito especialmente, o advento e a democratização dos transportes aéreos roubaram protagonismo e interesse ao cais em frente à entrada da cidade, como aliás também à mesma. No entanto, todo este espaço se mantém como importante zona de lazer da cidade até aos dias de hoje, tanto para visitantes como residentes.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

Arquitetura Património História Económica e Social

brasões de armas

A descrição e o estudo dos brasões de armas ou escudos encontra-se a cargo da heráldica, ciência muito complexa e com uma linguagem que escapa à maioria das pessoas não iniciadas nesse tipo de estudos. As origens da heráldica remontam aos tempos da Idade Média, em que era imperativo distinguir os participantes nas batalhas e nos torneios, pelo que havia a necessidade de utilizar bandeiras ou estandartes (Bandeiras) reconhecíveis a uma certa distância e, depois, de recorrer a outros elementos facilmente reconhecíveis a menor distância. A diferenciação era definida pelo soberano através da atribuição de determinadas cores e de outros elementos identificativos a serem pintados nos escudos dos seus principais servidores. A complexidade progressiva da corte portuguesa, entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, levou à nomeação de um rei de armas, que tinha por função organizar o arquivo dos brasões atribuídos e equacionar os novos, a atribuir, propondo quem os deveria possuir, juntamente com as cores e as peças que deveriam figurar nos respetivos escudos. Os primeiros brasões consistiam essencialmente numa cor, depois definida como sendo um esmalte ou um metal, este último quando se tratava de ouro ou de prata. Quase ao mesmo tempo, foi colocado sobre esse fundo, que em heráldica se designa campo, um animal ou uma parte do mesmo ou até outra figuração, nomeada peça e identificativa da personalidade em questão ou da família. Este elemento, ou um outro, era ainda geralmente colocado sobre o elmo, constituindo o chamado timbre. Acresce que, para os torneios medievais e outros exercícios militares, as cores utilizadas nos esmaltes e nos metais eram ainda aplicadas nas vestes, definindo-se também assim, heraldicamente, o paquife, herdeiro dos antigos mantos vestidos pelos cavaleiros, e o virol, formado por um entrelaçado, em princípio, feito com os mesmos tecidos, com uma das cores do esmalte do escudo e com uma outra de um dos metais, e colocado sobre o elmo, lembrando o torçal que defendia o cavaleiro dos golpes de espada. Portanto, os elementos definidores dos brasões de armas iniciais foram: o escudo, o paquife e o virol, e o timbre. Progressivamente, anexaram-se inúmeros outros, como os tenentes ou suportes do escudo, os coronéis de nobreza, por vezes, impropriamente designados por coroas (só se devem assim nomear quando reais), os listéis com motes, divisas, lemas e gritos de guerra, terrados, etc. A passagem de toda esta linguagem e figuração para a Madeira não foi direta. Com efeito, o aparente isolamento da sociedade insular propiciou, senão algumas inovações, pelo menos alguns abusos. Num contexto geral, o primeiro degrau de nobreza era constituído pelos escudeiros, como o nome indica, aqueles que levavam os escudos dos cavaleiros, sendo recrutados entre os pajens e tendo, na Idade Média, entre 7 a 14 anos. Conforme o seu desempenho e, inclusivamente, a sua posterior prestação em combate, ao atingir a idade adulta, entre os 18 e os 20 anos, podiam ser armados cavaleiros, ascendendo assim ao degrau de nobilitação seguinte. Sendo alguns escudeiros de origem fidalga, porventura, teriam já direito a possuir um brasão de armas próprias. Aqueles que eram armados cavaleiros, em princípio e num futuro mais ou menos próximo, seriam dotados com brasão de armas. Caso o cavaleiro tivesse o pai ainda vivo, e porque o brasão de armas era pessoal, este seria acrescido de uma brica ou diferença, geralmente colocada no cantão direito do chefe, ou seja, no canto superior direito do portador, dado a leitura de um brasão ser feita na perspetiva do utilizar e não do observador. A organização do povoamento da Madeira, até aos meados do séc. XV, inviabilizou um pouco esta organização, que era a que vigorava no continente do reino. João Gonçalves Zarco (c. 1395-c. 1471), p. ex., embora tenha sido armado cavaleiro, em princípio em Ceuta, antes de ser enviado na missão de que resultou o descobrimento da Madeira, só veio a ser agraciado com brasão de armas a 4 de julho de 1460. Tanto quanto se sabe, nem ele nem o filho João Gonçalves da Câmara (1414-1501) parecem ter utilizado o respetivo brasão de armas, pois estes não constam nas lápides sepulcrais de ambos, na capela-mor da igreja de S.ta Clara do Funchal. Em 1452, o primeiro capitão do Funchal terá solicitado, a D. Afonso V, quatro pequenos fidalgos para casarem com as suas filhas, uma vez que a Madeira era “terra nova”, não havendo “com quem pudessem casar, segundo o merecimento de suas pessoas”; segundo escreveu Gaspar Frutuoso, repetindo quase literalmente o que o cónego Jerónimo Dias Leite lhe mandara da Madeira, resultou destes casamentos “a mais ilustre e nobre geração da Ilha” (FRUTUOSO, 1968, 217). Túmulo de Martim Mendes de Vasconcelos. 1493. Ao que sabemos, nenhum dos genros de Zarco possuía brasão de armas e, embora fossem fidalgos, não eram primogénitos. Mas, num curto espaço de tempo, os mesmos ou os seus descendentes assumiram escudos com as armas plenas dos seus antepassados. Assim aconteceu com Martim Mendes de Vasconcelos (c. 1432-c. 1493), que casou com Helena Gonçalves da Câmara, “matrona de tanta virtude que se justifica falar-lhe muitas vezes o crucifixo milagroso de S. Francisco do Funchal”, como escreveu Henriques de Noronha (NORONHA, 1948, 518), numa alusão ao milagre ocorrido a 26 de dezembro de 1482, que depois foi mandado certificar e publicar pelo bispo D. frei Lourenço de Távora (1566-1618), por alvará episcopal de 24 de outubro de 1615 (Convento de São Francisco e Sé do Funchal). Com efeito, Martim Mendes de Vasconcelos era um terceiro filho e o seu pai e homónimo não era, quase certamente, o representante dos “Vasconcelos de Portugal”, como veio a referir depois, de modo abusivo, o mesmo Henriques de Noronha (Id., Ibid.). Porém, as armas que mandou lavrar no seu túmulo, ainda hoje existente na igreja de S.ta Clara do Funchal (Convento de Santa Clara), são as da principal linha dessa família. O mesmo terá acontecido com os restantes genros de Zarco, embora não tenha chegado até nós nenhum exemplar dos seus brasões de armas iniciais: Diogo Afonso de Aguiar, que casou com Isabel Gonçalves da Câmara e que se terá fixado em São Martinho do Funchal, sendo sepultado no convento de S. Francisco; Diogo Cabral (c. 1432-1496), que desposou Beatriz Gonçalves da Câmara e era o irmão mais novo do senhor de Belmonte e, em princípio, tio do futuro almirante Pedro Álvares Cabral, fixando-se o casal em Vale de Amores, na Calheta, e sendo aí sepultado; Garcia Homem de Sousa, que seria filho de João Homem de Sousa e que “se entendia ser” neto de Pedro Homem, um dos “doze de Inglaterra” (Id., Ibid., 329), que contraiu matrimónio com Catarina Gonçalves da Câmara e veio a levantar a chamada torre do capitão, a Santo Amaro do Funchal (Arquitetura senhorial). Não consta qualquer carta de brasão de armas destes parentes de Zarco. Também não possuímos informações concretas sobre as armas dos capitães de Machico, sendo o primeiro capitão, inicialmente, quase apenas designado por Tristão ou Tristão da Ilha e tendo o seu filho e segundo capitão usado o apelido da mãe, sendo assim Tristão Vaz Teixeira. O capitão do Porto Santo, Bartolomeu Perestrelo, possuiria já brasão, pois existiam armas de família, mas não temos muitas referências da sua utilização nessa época, muito menos naquela ilha, onde só se deslocava pontualmente. Bartolomeu Perestrelo foi o primeiro a ter carta de doação da sua capitania, passada a 1 de novembro de 1446, o que parece indiciar uma condição social mais elevada, tal como indicam os dois casamentos que contraiu no continente, sempre com famílias de elevada qualidade social. A sua descendência veio a entroncar-se na dos capitães de Machico e, depois, também na dos capitães do Funchal. Dentro dos arranjos matrimoniais da emergente nobreza madeirense, o segundo capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara, começou por casar com uma cunhada, Isabel Homem, filha de João Homem de Sousa e irmã de Garcia Homem de Sousa. Não houve geração desta união e, falecida D. Isabel, o segundo capitão voltou a casar, então em Ceuta, com D. Maria de Noronha, filha de D. João Henriques e D. Beatriz de Mirabel; D. Beatriz foi depois dada como fidalga aragonesa e o seu marido como filho segundo de D. Diogo Henriques, bastardo do infante D. Afonso de Noronha, conde de Gijón e filho de D. Henrique II de Castela. Os descendentes daquele casamento vieram a optar quase todos pelo apelido Noronha, salvo o primogénito, que, por determinação real e para poder aceder à capitania do Funchal, teve de voltar a usar o apelido anterior, Câmara de Lobos, ficando assim Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530). A partir dos meados do séc. XV, os principais filhos-família da Madeira passaram a combater no Norte de África, no quadro do serviço régio, recompondo-se assim, de certa forma, o quadro medieval de nobilitação. Ao mesmo tempo, estabeleceu-se uma rede de casamentos de primos cruzados entre as principais famílias terratenentes da Ilha, até para a manutenção do património fundiário. E muitas dessas famílias passaram a enviar os seus filhos para serem educados na corte de Lisboa, primeiro como pajens, em seguida como escudeiros; estes indivíduos, geralmente, viriam a ser referidos como tendo sido educados no paço. Nos finais de Quatrocentos, no entanto, emergiu também na Madeira uma nova sociedade de escudeiros, mas agora nobilitados pelo serviço régio da Fazenda e da Justiça, e que, logicamente, não tinham acesso a brasão de armas. As dificuldades iniciais do registo dos brasões de armas ficaram logo patentes nas insígnias dos Câmara de Lobos atribuídas a João Gonçalves Zarco e seus descendentes. Nelas deveriam figurar dois lobos-marinhos afrontando uma torre, porém, ao serem executadas, na corte de Lisboa, por alguém que nunca terá visto tal animal, no lugar dele foram representados dois lobos continentais, espécie que nunca existiu na Madeira, mas que passou a ser a utilizada por todos os descendentes de Zarco, nomeadamente o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (c. 1491-1569) e depois, e de forma plena, os vários ramos da família, especialmente o açoriano, dos condes da Ribeira Grande (embora, neste caso, com o campo do escudo de negro). As armas que parecem ter sido seguidamente atribuídas a um residente da Madeira foram as de António Leme; desta feita, por D. Afonso V, a 2 de novembro de 1475 e por intercedência do príncipe D. João, devido à sua participação na tomada de Arzila e de Tânger, para onde foi enviado pelo pai, Martim Leme de Bruges, da Flandres. A carta de armas refere, inclusivamente, que, embora “da parte de seu pai pudesse trazer armas com diferença”, D. Afonso V lhe atribuía armas “sem diferença alguma” e como “chefe delas” (ANTT, Leitura Nova, Místicos, liv. 3, fl. 15). Trata-se de uma distinção excecional, somente compreensível à luz de um conjunto de serviços muito importantes prestados à coroa pelo seu destinatário, incluindo, certamente, os das navegações executadas a cargo do futuro D. João II. António Leme, nos finais da déc. de 70, encontrava-se radicado na vila do Funchal, fornecendo informações a Cristóvão Colombo sobre a existência de terras para ocidente. Em março de 1485, apareceu na Câmara como um dos homens-bons do concelho e, em agosto, foi citado como cavaleiro e morador na mesma vila, passando a assumir os negócios da família, dado o falecimento do irmão, Martim Leme, que tinha negócios na Madeira, pelo menos, desde agosto de 1481 e usava também armas plenas em Portugal. A partir de outubro, passou a surgir como vereador ao lado do também navegador Álvaro de Ornelas, sendo de abril de 1489 a última referência que temos da sua atividade nesse cargo e da sua presença no Funchal. De 20 de fevereiro de 1485 são as armas de João Fernandes do Arco, filho do segundo casamento de Fernão Dias de Andrada e que adquirira as propriedades de seu irmão, Diogo Fernandes de Andrada, que regressara a Castela, no Arco da Calheta. As armas em questão, com um sagitário em campo de ouro, encontram-se registadas tanto no Livro do Armeiro-Mor de João de Cró, de 1509, como no Livro da Nobreza e da Perfeição das Armas de António Godinho, elaborado depois, entre 1521 e 1541, com o pormenor de estar o sagitário virado para a direita neste e para a esquerda no outro. Parece que nenhum ramo dos seus descendentes voltou a utilizar estas armas, não as reivindicando, até porque passaram a usar o apelido Abreu. Com efeito, João Fernandes do Arco (c. 1450-1527) casou com Beatriz de Abreu e deste matrimónio houve 13 descendentes, todos conhecidos pelo apelido Abreu. Os filhos distinguiram-se no Norte de África, inclusivamente acompanhando o pai, passando depois à Índia, onde António de Abreu ganhou uma notável reputação. A maioria da descendência masculina passou assim à Índia e, depois, ao Brasil, tendo poucos fixado residência na Madeira. As filhas entraram para as principais famílias madeirenses, mas não só, pois Beatriz de Abreu, homónima de sua mãe, casou com Bartolomeu de Paiva, vindo a ser ama-de-leite do futuro D. João III e uma das principais figuras da corte de D. Manuel I, pelo que o marido passou a ser conhecido como o Amo. Uma outra filha de João Fernandes do Arco, D. Joana de Abreu, p. ex., veio a casar, por volta de 1510, com D. João Henriques, segundo filho de D. Fernando Henriques, senhor das Alcáçovas, e de D. Filipa de Noronha, filha do terceiro capitão do Funchal, tomando assento na Ponta do Sol. Desta família notabilizou-se o padre jesuíta D. Leão Henriques (c. 1515-1589), que fora criado em Lisboa, em casa de seu tio D. Fernando Henriques, e veio a ser o primeiro reitor do colégio do Espírito Santo, universidade de Évora, confessor do cardeal D. Henrique, ao longo de 24 anos e, depois, seu testamenteiro (Henriques, Leão). Uma pedra de armas desta família, dos meados do séc. XVII, encontra-se hoje na casa do Pé do Pico, em Câmara de Lobos, propriedade da família Henriques de Gouveia. Entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, devem ter sido atribuídas, ou pelo menos confirmadas, várias cartas de armas, mas cuja documentação não perdurou. Tiveram carta de brasão, muito provavelmente, Álvaro de Ornelas, o Velho, pois o filho, Álvaro de Ornelas Saavedra, requereu e recebeu nova carta de armas, como as que usavam seu pai e avô, em 1513; ainda consultámos o documento original na Quinta das Almas, encontrando-se atualmente com os descentes, em Paris. O referido Livro do Armeiro-Mor de João de Cró já regista este brasão; e a magnífica laje sepulcral de Álvaro de Ornelas Saavedra, em calcário-brecha da serra da Arrábida, com as suas armas esculpidas em baixo-relevo, já existiria na sé do Funchal, onde ainda hoje se encontra, por volta de 1515 e 1526, como se infere dos codicilos do seu testamento, de mão comum com a sua segunda mulher, D. Branca Fernandes de Abreu (Lápides sepulcrais e Sé do Funchal). Mais tarde, também recebeu carta de armas o flamengo João Esmeraldo, com data de 1520 e depois registada no Livro da Perfeiçam das Armas de António Godinho, elaborado entre 1521 e 1541. Este códice regista uma série de brasões de armas que não vêm no livro de João de Cró, que aliás simplifica a emblemática, não registando os timbres, e apresenta também o dos Câmara de Lobos, na mesma página do de João Esmeraldo, o dos Perestrelo e o de João Fernandes do Arco, entre outros. João Esmeraldo tinha casado com Joana Gonçalves da Câmara, filha de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves da Câmara e, enviuvando, casou com Águeda de Abreu, filha de João Fernandes do Arco, vindo a falecer em 1536. No entanto, a sua laje tumular não tem brasão de armas, mas sim o seu retrato e da sua segunda mulher, que terá mandado fazer a peça na Flandres. Entre as cartas de brasão mais antigas que não chegaram até nós estará a de Gonçalo de Freitas, filho do tesoureiro do infante D. João, mestre da Ordem de Santiago, que se mudou para a Madeira com o filho, João de Freitas, na sequência do assassinato do duque de Viseu, em Setúbal, por D. João II, a 28 de agosto de 1484 e a cuja casa então pertenciam. Fixaram-se na área de Santa Cruz, na capitania de Machico e, muito provavelmente, a eles se deve a determinação da instalação da alfândega ducal naquele local, decidida anteriormente, em 1477, pela infanta D. Beatriz, filha do falecido infante D. João. Em julho de 1486, João de Freitas representou, com mestre Batista, os proprietários de Santa Cruz numa reunião ocorrida no Funchal; a partir de março de 1496, surge na documentação como homem-bom de Machico, em abril, como vereador e, em maio, como juiz. Desconhecemos a sua carta de armas, como afirmámos, mas conhecemos o pedido que fez para ser enterrado com a sua mulher, Guiomar de Lordelo, na capela da matriz do Salvador de Santa Cruz, de cuja construção fora encarregado, em 1500. Esse pedido foi deferido a 19 de setembro de 1533, atendendo ao dinheiro que gastara na igreja “e à qualidade da sua pessoa” (NORONHA, Ibid., 283-284). A laje tumular veio da Flandres e o brasão de armas que exibe deve ser o mais interessante que hoje existe dessa época, caracterizando-o uma grande qualidade formal, com cinco estrelas de seis pontas e utilizando como timbre uma estrela idêntica entre duas asas, marcando a diferença para os Freitas do continente, que utilizavam como timbre duas garras de leão segurando uma flecha. Com a importância económica da cultura açucareira, inúmeros comerciantes italianos, flamengos e de outras origens tiveram igualmente carta de brasão, nos inícios do séc. XVI, embora a maioria das armas atribuídas não figurem nos livros de João de Cró e de António Godinho, dado serem, em princípio, versões de armas que apresentaram como pertencentes às suas famílias de origem. Provavelmente, esse será o caso dos Bettencourt, Berenguer, Catanho, Drumond ou Escórcio, Florença, Lomelino, Salvago, Spínola, Teive, Valdavesso e outros. Existem algumas arcas tumulares destas famílias de origem estrangeira, p. ex., na matriz de Santa Cruz, igreja de S. Salvador, mas, infelizmente, os brasões iniciais foram apagados. O principal panteão insular destas famílias terá sido o convento de S. Francisco do Funchal, mas as constantes obras a que foi sendo sujeito e a sua própria demolição, nos finais do séc. XIX, levaram a que se tivesse perdido quase todo esse património. Ao longo do séc. XVII, as principais famílias madeirenses ganharam um novo ascendente social, principalmente advindo da sua participação na expansão ultramarina ibérica e do seu desempenho na América Latina. Neste quadro, construindo algumas das famílias em causa as suas capelas, assumiram, pura e simplesmente, as armas que entenderam. O exemplo mais evidente será o dos túmulos parietais da igreja do Carmo do Funchal, onde António de Carvalhal Esmeraldo, casado com Maria Brandoa, usou as armas plenas dos Câmara, e os seus cunhados, no túmulo em frente, as dos Brandões do continente, embora a família fosse proveniente de lavradores da Ribeira Brava (Igreja e recolhimento do Carmo). Existe um certo vazio de documentação sobre a atribuição de cartas de armas ao longo desse século e mesmo do XVIII. Mas a atividade conheceu novo incentivo nos finais da última centúria e propagou-se exponencialmente ao longo de Oitocentos, justificando-se, sobretudo, enquanto retribuição de serviços políticos, com a correspondente componente económica, deixando de ser apenas um retrato da antiga fidalguia. Divulgaram-se então armas de costados com as representações das armas dos avós, quando não dos bisavós, trisavós, ou outros, inclusivamente, pelo nome e nem sempre pertencendo a essas linhagens (Genealogias). Em pouco tempo, o cartório de nobreza da corte de Lisboa abandonaria a relação com os anteriores elementos heráldicos de identificação, passando a emitir as chamadas armas novas, quase nada relacionadas com o pensamento subjacente às do passado. De facto, esta nova cultura desenvolveu-se um pouco por toda a Europa, em especial, na Alemanha. A questão das mercês novas foi objeto de vários trabalhos, mostrando, inclusivamente, a incongruência de algumas das soluções apontadas. Se algumas armas novas dificilmente encontrariam enquadramento na heráldica tradicional, outras há em relação às quais não se compreende a opção tomada. Na primeira situação, encontra-se, e.g., o caso de João Rodrigues Leitão (1843-1925) que, tendo tido larga atividade comercial em Cabinda e conseguindo estabelecer muito boas relações na área, foi um dos responsáveis pelo reconhecimento da presença portuguesa naquele território pelos membros da Conferência de Berlim, em 1883. Sendo agraciado com o título de visconde de Cacongo, em 1900 (Visconde de Cacongo), houve que encontrar elementos algo abstratos para as armas que lhe eram atribuídas: campo de prata com três faixas vermelhas carregadas com flores-de-lis, tendo como tenentes ou suportes um leão e um grifo. Por sua vez, uma das soluções pouco felizes, e logo no título escolhido, foi a encontrada para o visconde e depois conde do Canavial (Visconde e conde do Canavial), João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), a quem se atribuiu um escudo partido, tendo, num lado, uma figura de mulher vestida de azul, sentada num rochedo sobre o mar, com um ramo de videira e um pão-de-açúcar em cada mão, em alusão à ilha da Madeira, e no outro, uma mão de prata com uma pena de oiro, numa alegoria às suas imensas publicações, não se tendo optado pelos elementos das inúmeras famílias de que descendia, o que é um paradoxo. A partir dos meados do séc. XVIII e depois no XIX, foram ainda utilizados inúmeros brasões de armas pelos elementos da feitoria britânica radicada no Funchal, especialmente em ex-líbris e em sepulturas do cemitério britânico, mostrando todas uma certa economia de meios e contenção, e que não eram comuns na Europa coeva. O brasão mais antigo será o de James Murdoch (1744-1806), seguindo-se o de Thomas Holloway (1751-1816), o de William Mills (1994-1834) e outros tantos. Entre os abundantes ex-líbris podemos citar os do Robert Page (1775-1829), com as armas circundadas pelas insígnias da Ordem Militar da Torre e Espada, de que era somente titular honorário, por despacho do Rio de Janeiro, de 15 de novembro de 1817, ou referir os de James Charles Duff, de cerca de 1860, cuja família chegou a deter o palacete da R. do Esmeraldo, através da firma Gordon and Duff e em cujo logradouro chegou a funcionar o primeiro cemitério britânico. Relativamente à heráldica eclesiástica, o seu uso não se deve ter estendido de imediato à Madeira. Os Franciscanos, que forneceram os primeiros quadros eclesiásticos durante as décadas iniciais do povoamento, não eram propensos a esse tipo de ostentação e os primeiros vigários paroquiais, nomeados pela Ordem de Cristo e que não provinham especialmente da nobreza senhorial portuguesa, também não. Os primeiros bispos da diocese do Funchal não se deslocaram pessoalmente ao território, pelo que, até aos meados do séc. XVI, não terá havido heráldica eclesiástica na Madeira. O primeiro prelado a viajar até à Ilha, D. João Lobo (?-1542), bispo titular de Tânger e com armas atribuídas por D. Manuel I, não parece ter tido especiais cuidados nesse campo, não tendo ficado qualquer referência sobre o tema na sua passagem pela Madeira, em meados de 1508. A base da heráldica eclesiástica comunga das normas que regem o desenho geral dos brasões, embora nela se use, prioritariamente, a forma oval para o escudo; assim, diferencia-se, em especial, nos ornamentos exteriores, seguindo os cânones e disposições da Igreja. Com efeito, não utiliza o conjunto elmo, paquife e virol, identificativo do exercício da função militar, mas sim o galero, chapéu eclesiástico por excelência, descendente dos chapéus de abas largas dos peregrinos, sendo a hierarquia definida pela ordem de borlas do mesmo. Pontualmente, podem usar coronéis de nobreza, como aconteceu com o 11.º bispo do Funchal, D. frei António Teles da Silva (c. 1610-1682), que se fez sepultar com coronel de conde, título que nunca teve. Mais tarde, sob o galero, apareceu uma cruz episcopal e, por vezes, um báculo; depois, ao longo do séc. XX, surgiu uma mitra a substituir o galero, podendo figurar sob ela uma cruz episcopal e um báculo cruzados. Os elementos do alto clero sempre assumiram armas próprias, em especial, após a divulgação das normas do Concílio de Trento, ganhando elas um sentido quase pessoal e afastando-se das regras específicas da heráldica familiar, nomeadamente, com o uso de brica e de diferenças. Se tal aspecto ainda aparece em 1509, quando João de Cró representa as armas do bispo D. João Lobo, marcando as armas dos Lobo com um castelo de ouro como diferença, por certo em alusão à praça-forte de Tânger, o mesmo não sucede depois na maioria das armas eclesiásticas, que assumem a diferença somente nos ornatos. Assim fez o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (c. 1491-1569), empregando as armas plenas dos Câmara, usadas pelo pai, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530) e pelo irmão mais velho, João Gonçalves da Câmara (III) (1489-1536). O seu isolamento em Lamego e o facto de ter estado em Roma levaram a que se intitulasse camareiro secreto do Papa Leão X (1475-1521), fazendo-se enterrar sob laje sepulcral com quatro ordens de borlas, insígnias de arcebispo que nunca foi. Determinadas liberdades ocorreram, depois, com outros prelados do Funchal. P. ex., D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) assumiu as armas dos apelidos dos quatro avós, da ilha de Santa Maria, Açores: Velho, Figueiredo, Cabral e Lemos. Como pormenor, nas várias representações das suas armas, mandou carregar as dos Figueiredo com uma merleta, que na Madeira era usada pelos Leme, de origem flamenga. Esta diferença, em princípio, identificativa do prelado Leme, manteve-se, no entanto, no quartel dos Figueiredo, quando mandou, num outro quartel, lavrar as armas dos Lemos, como aparecem na sua lápide tumular. Não se encontram levantados os brasões de armas dos bispos do Funchal, salvo a partir dos meados do séc. XIX; os iniciais terão que ser apurados a partir dos selos de armas dos primeiros prelados. Não constam, inclusivamente, da maior parte dos retratos mandados pintar para a sala do cabido da sé do Funchal, a partir de 1790, em princípio. Assim acontece com o de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), que utilizou as armas dos Barreto na impressão das Constituições Synodaes de 1579, mas que não figura com elas no retrato que lhe mandaram pintar, muito depois. No entanto, tal não se verifica no retrato do seu sucessor, D. Luís Figueiredo de Lemos, que, tendo também mandado imprimir as suas insígnias nas Extravagantes, m 1601, surge com elas representado. Os retratos dos bispos do Funchal parecem ter tido inicio com o de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que o terá mandado pintar em Lisboa, por volta de 1757; na sequência deste, e usando-o vagamente como modelo, depois, foram sendo pintados os dos prelados anteriores. Parece que o cabido não era muito sensível aos aspectos heráldicos, embora ele próprio utilizasse selo com armas, pois só um número muito reduzido de retratos apresenta brasão de armas. Nos retratos dos bispos mais antigos, tal só acontece no de D. Luís Figueiredo de Lemos, talvez porque as respetivas armas se encontram na fachada da sua capela de S. Luís, no paço episcopal e na sua lápide sepulcral. No entanto, não figuram armas no retrato de D. frei António Teles da Silva (c. 1620-1682), que as havia mandado gravar na sua lápide tumular, na capela-mor da sé do Funchal, inclusivamente, encimadas por coronel de 11 pérolas, atributo dos condes. Esse espírito algo laico da sociedade madeirense parece ter sido corrente em muita da sociedade madeirense nos finais do séc. XVIII, pois, tendo sido pintados também os retratos de alguns antigos governadores e capitães-generais para o palácio de S. Lourenço, também ali existem poucos brasões de armas, o que é algo surpreendente, quando verificamos que todos os governadores, até ao liberalismo, eram obrigatoriamente oriundos da nobreza de corte, pelo que eram todos portadores de armas pessoais. Com efeito, recorreram a elas para autenticar a correspondência oficial, tendo passado a fazê-lo, depois, para a correspondência governamental da Madeira, com o selo das armas reais. A heráldica estendeu-se também às ordens religiosas, embora os exemplares existentes na Madeira sejam, em princípio, bastantes tardios. Quase todos os edifícios foram da responsabilidade da Fazenda Régia, pelo que, tanto o paço episcopal, datável de 1610 (Paço episcopal), como o colégio dos Jesuítas do Funchal, cujo elemento heráldico mais antigo, a antiga porta da cerca da R. dos Ferreiros, está datado de 1619, ostentam as armas reais. Chegaram até nós algumas armas de fé dos Franciscanos, entre elas, a pedra de armas do antigo convento do Funchal, datável de cerca de 1750 e hoje no jardim municipal, associada às armas reais, indicativo de que a campanha de obras em causa fora paga pela Fazenda Régia; ou, p. ex., as armas existentes no convento de S. Bernardino de Câmara de Lobos, provavelmente da campanha de 1763 (Convento de São Bernardino). A pedra de armas similar que está no portal da entrada do convento de S.ta Clara, datável, talvez, de data próxima a 1770, poder ter vindo do demolido convento masculino do Funchal, pois dali também vieram outros elementos, designadamente, painéis de azulejos. É ainda possível que tenha existido, como é vulgar no continente, loiça conventual decorada com armas religiosas, em S. Francisco do Funchal e em S.ta Clara, mas, até ao momento e nas escavações arqueológicas realizadas nessas áreas, embora haja milhares de fragmentos de faiança exumada, nada parece ter sido detetado. Nas coleções do paço episcopal, no entanto, existe uma bilha ou pote de faiança com as armas de fé dos Franciscanos que a tradição aponta como sendo proveniente do convento do Funchal. Das restantes ordens religiosas somente conhecemos as armas de fé dos Carmelitas, na fachada da igreja do recolhimento do Carmo, que devem ser dos finais do séc. XVIII, período em que toda a fachada da igreja foi remodelada. Os Jesuítas nunca usaram armas de fé, propriamente ditas, somente uma espécie de emblemática, que, aliás, copiaram do franciscano S. Bernardino de Siena: o trigrama cristológico IHS, que significa Jesum Habemus Socium (“temos Jesus como companheiro”), colocado sobre um sol, como aparece na fachada da igreja de S. João Evangelista do Funchal, logo abaixo das armas reais. Este símbolo ou monograma aparece, por vezes, acompanhado da legenda Ad Maiorem Dei Gloriam (“para a maior glória de Deus”), surgindo invertida, no teto da mesma igreja, em princípio, para ser lida do alto pelo Pai e não pelos filhos que demandam o interior do templo. Existem mais duas pedras com este símbolo ou emblema, uma delas encontra-se numa situação muito interessante: na porta do paço episcopal do Funchal, no acesso à antiga cerca, depois Lg. do Município. O facto de este bloco do paço ter sido mandado edificar pelo bispo jacobeu D. João do Nascimento (c. 1690-1753), que professara no convento franciscano de Varatojo e dirigira pessoalmente parte das obras do novo corpo edificado, levanta a hipótese de ter sido o próprio prelado a mandar colocar ali aquele emblema, precisamente quase perante a fachada da igreja dos Jesuítas, recuperando assim, para os Franciscanos, a sua antiga simbologia. A outra pedra hoje existente está no pequeno jardim do pátio da Assembleia Legislativa e foi encontrada na intervenção de reabilitação ali efetuada, em 1990, podendo ter vindo de obras realizadas no edifício do colégio dos Jesuítas pela antiga Fazenda Régia. As ilhas da Madeira e do Porto Santo possuem uma quantidade apreciável de brasões de armas reais portuguesas, uma vez que a grande maioria do património edificado, militar, civil e religioso foi construído sob a responsabilidade da Fazenda Régia. Tal é o caso da sé do Funchal e, depois, do baluarte de S. Lourenço e demais fortificações militares (Arquitetura militar e República). Mas, também, da maior parte das igrejas matrizes, cujos edifícios eram incumbência régia (Arquitetura religiosa), acontecendo o mesmo com o respetivo recheio, encontrando-se brasões de armas reais em grande parte dos retábulos das suas capelas-mores. O mesmo se verifica em outros edifícios: referimos antes o do paço episcopal, mas poderíamos apontar ainda os das misericórdias insulares. Este aspecto transitou, igualmente, para os edifícios das câmaras municipais, parte dos quais levantados também com verbas da Fazenda Régia, levando a que as armas reais rematassem grande número deles, inclusivamente, o da Câmara do Funchal, onde figurariam, juntamente com as armas da cidade, na fachada ou no interior. Do antigo edifício do Lg. da Sé que pertencera à casa comercial de D. Guiomar, onde a Câmara do Funchal se instalou, nos últimos anos do séc. XVIII, subsiste um importante brasão de armas nacional, assente em esfera armilar, datável, assim, de data próxima a 1819 ou 1820, quando se criou o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O imóvel foi demolido em 1916, dentro da reforma programada pelo arquiteto Ventura Terra (Urbanismo) e o brasão recolheu, então, ao palácio de S. Pedro (Palácios), onde se previa organizar um museu regional. O Funchal deve ter tido armas próprias ainda no séc. XV, mas só conhecemos exemplares da centúria seguinte. O mais antigo, em princípio, é o que está gravado na campainha de prata da Câmara, que serviria para chamar um empregado, p. ex., ou para mandar entrar os peticionários, e que se encontra datado de 1584. Apresenta cinco pães de açúcar dispostos em cruz e ladeados por duas canas-de-açúcar. Mais tarde, o poeta e intérprete dos navios estrangeiros Manuel Tomás (1585-1665), na sua Insulana, de 1635, refere cinco formas de açúcar, “cor de fogo”, colocadas num campo de prata e rodeadas por duas canas-de-açúcar (TOMÁS, 1635, 128), o que repete Henrique Henriques de Noronha, em 1722 (NORONHA, 1996, 43). As armas do Funchal voltam a surgir numa salva de prata dos inícios do séc. XVII, neste caso, encimadas por uma cruz de Cristo, e num areeiro de tinteiro do mesmo período. No séc. XVIII, começam a aparecer informações de se usar também um ramo de videira nas armas da cidade do Funchal, existindo uma pedra de armas, hoje no núcleo museológico da Prç. Colombo, com a data de 1758, onde já não figuram as formas de açúcar, mas pães, estando o escudo ladeado por uma cana e um ramo de videira e as armas encimadas por coronel de nobreza. Sendo os pães-de-açúcar representados em prata, não poderiam, heraldicamente, assentar igualmente em prata, devendo datar dessa época a definição do campo do escudo em verde, pelo que, tanto a cana-de-açúcar como o ramo de videira passaram para o enquadramento do escudo. A partir de então, começou a vigorar, assim, campo verde, com cinco pães de açúcar de prata ladeados por uma cana-de-açúcar e um ramo de videira, embora com pequenas variantes, pois podem aparecer duas canas-de-açúcar e as armas podem apresentar-se com coronel de nobreza e com coroa real. Na segunda metade do séc. XIX, entre 1860 e 1862, foi editada, por Inácio de Vilhena Barbosa, a vasta obra As Cidades e Villas da Monarchia Portugueza que teem Brasão d’Armas, onde as armas do Funchal aparecem ladeadas por uma cana-de-açúcar e um ramo de videira. Nesta publicação, figuram, igualmente, as armas da vila do Porto Santo, ostentando um dragoeiro, mas não as das restantes vilas madeirenses. Este conjunto de brasões teve reedição, em 1881, com um outro emolduramento, mas só conhecemos os dos referidos locais do arquipélago. A configuração das armas do Funchal manteve-se até à proposta do heraldista Afonso de Ornelas Cisneiros (1880-1944), que assinava por vezes “Affonso Dornellas”. Nos inícios da déc. de 30 do séc. XX, ele bateu-se pela reforma da heráldica municipal, conseguindo fazer aprovar, em 1935, armas novas para a Câmara Municipal do Funchal, bem ao gosto dito tradicionalista do Estado Novo. As armas mantiveram o campo verde, mas os pães de açúcar passaram a ouro e foram avivados com um espiralado a púrpura, cor do domínio eclesiástico, em memória do protagonismo da Diocese do Funchal nos Descobrimentos; foram ainda acrescentados quatro cachos de uvas de sua cor, carregados com as quinas de Portugal, tornando o conjunto, à primeira vista, perfeitamente irreconhecível. Não possuímos qualquer referência sobre as primeiras armas municipais de Machico, Santa Cruz, Calheta, Ponta do Sol e Porto Santo, sendo certo que todas as tiveram, pelo menos, na época manuelina. Tem havido alguma confusão com as armas de Machico, que são dadas, nos meados do séc. XX, como tendo tido a esfera armilar manuelina, o que seria inviável, na medida em que um brasão de armas é uma forma de identificar uma entidade pessoal ou coletiva e um rei não poderia ter os elementos das suas armas individuais a identificar uma câmara municipal. O mesmo se passa com a Câmara de Santa Cruz, que, por vezes, alega serem suas as armas reais que encimam a porta do edifício municipal, o que também não é possível. Os paços do concelho do Porto Santo são igualmente encimados pelas armas reais, mas elas indicam apenas que o edifício foi feito pelo mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), em 1774, e que as obras correram pela Fazenda Régia, um aspecto que referenciámos antes. A grande reforma da heráldica municipal iniciou-se com a circular de 14 abril de 1930 da Direção-geral da Administração Pública, que, tentando regularizar a situação, obrigava as comissões administrativas das câmaras municipais a legalizar os brasões segundo o parecer compulsório da secção de heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses. A situação do estabelecimento de selo, armas e bandeira de cada localidade veio a integrar, inclusivamente, através do dec. 31.095, de 31 de dezembro de 1940, o Código Administrativo, através dos artigos 14 e 48. Data desses anos a instituição do coroamento dos escudos municipais com coronéis de torres aparentes, hierarquizadas entre as cidades e as vilas com cinco e quatro torres, o que foi alargado às juntas de freguesia, em 1991, com três. Entretanto, também na RAM se procedeu a reforma idêntica, parte da qual assumida pelas autarquias, como aconteceu na vila de São Vicente, onde se aprovou uma raridade iconográfica, com o orago a empunhar uma grelha em vez de uma embarcação. Outras entidades terão tido instrumentos bélicos, como é o caso da Alfândega do Funchal e, provavelmente, de Santa Cruz, conhecendo-se dois selos de chumbo daquela, datáveis de 1520 a 1550, exumados nas escavações arqueológicas na Prç. Colombo, em 1989, com a esfera armilar envolta pela legenda “Alfândega do Funchal”, com o pormenor de estar rematada por um pequeno escudete com as quinas de Portugal e, do outro lado, ter as armas reais com coroa aberta. Pontualmente, os elementos heráldicos foram utilizados por instituições de ensino, como a Escola Afonso Domingues, em 1889, que veio a dar origem à Escola Industrial e Comercial do Funchal, e, em 1989, a UMa. Data dos meados e dos finais do séc. XIX o aparecimento, na Madeira, de um esboço de heráldica corporativa, assumida, entre outras, pelas sociedades agrícolas e, depois, pelos grémios, sindicatos e diversas associações. Com o advento do Estado Novo, o assunto veio a ser encarado noutros moldes, solicitando-se propostas a essas instituições, mas, na maior parte das vezes, impondo-se as soluções finais. Tal ocorreu nas associações mais caras ao governo, designadamente, nas casas do povo e dos pescadores, conhecendo-se o brasão da Casa do Povo de Santo António, no Funchal e o brasão da Camacha, em Santa Cruz, ambos apresentados em Lisboa na Exposição de Heráldica do Trabalho, por altura dos festejos do XX aniversário da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). No ano seguinte, Franz Paul de Almeida Langhans editou o Manual de Heráldica Corporativa, onde figura ainda o da Casa dos Pescadores do Funchal. No catálogo da exposição dos 20 anos da FNAT, o organizador da mesma, Mário de Albuquerque, ao apresentar o brasão da casa do Povo da Camacha, comenta ter sido deixado em branco o brasão da Câmara Municipal de Santa Cruz por o concelho “não as ter ordenadas e aprovadas” (ALBUQUERQUE, 1955, 114). As unidades militares não terão usado brasões de armas próprios até ao séc. XX, devendo ter-se limitado a utilizar bandeiras com as armas reais e com uma legenda da unidade em questão. O mesmo não se terá passado com as unidades de ocupação britânicas, nos inícios do século anterior, de que se exumaram, nas escavações de emergência de 1992, efetuadas no pátio dos estudantes do antigo quartel do colégio dos Jesuítas, alguns botões de farda, indicativos de terem distintivos próprios, pelo menos, os correspondentes aos uniformes de artilharia. Ao longo desse século, as unidades portuguesas destacadas para a Madeira parecem ter utilizado somente uma emblemática com o número da força em causa, algarismos que foram ficando registados na calçada da antiga parada do mesmo quartel do colégio, hoje integrada na reitoria da UMa. Data das décs. de 80 e 90 a reforma geral heráldica do Exército, passando as unidades militares da Madeira a possuir brasão de armas próprio. Estas armas foram sendo adaptadas ao longo das várias reformas das forças em causa (Guarnição militar). A reforma estendeu-se, entretanto, às restantes forças militares da Marinha e da Força Aérea, depois, ao Comando-Chefe das Forças Armadas da RAM, tal como à Companhia Independente da Guarda Fiscal (Guarda Fiscal) e ao Comando da Polícia de Segurança Pública (Polícia de Segurança Pública). O assumir de armas próprias pela RAM foi feito de forma consistente, em 1991, quando a Região completou as armas do seu brasão. O arquipélago tinha constituído os seus símbolos próprios numa relação direta com as suas origens, assentando a bandeira e o escudo com campo de azul, uma pala de ouro e a mesma carregada com a cruz Ordem de Cristo. As insígnias foram discutidas, na generalidade, a 26 de julho, sendo aprovadas dois dias depois; a respetiva regulamentação foi publicada a 12 de setembro. Estas armas foram completadas, depois, por proposta de dois historiadores locais, decidindo-se a utilização do elmo de “boca-de-sapo”, geralmente atribuído a D. João I e existente no Museu Militar de Lisboa, dado ter sido este Rei quem determinou o povoamento do arquipélago; no entanto, em rigor, esse elmo será, muito mais provavelmente, aquele que veio do mosteiro da Batalha, em 1901, e que se encontrava no túmulo de D. João II. Assim, o elmo de ouro apresenta-se de frente e forrado a vermelho. Como timbre, optou-se por uma esfera armilar, pela sua ligação aos Descobrimentos e a D. Manuel I, existindo este elemento em inúmeros edifícios públicos do Funchal. Como suportes, dois lobos-marinhos, vivos e de sua cor, simbolizando a homenagem da Região aos únicos grandes mamíferos encontrados quando da chegada dos primeiros povoadores. Como divisa, inicialmente, foi proposto o seguinte fragmento de Os Lusíadas alusivo à Madeira: “Das que nós povoámos a primeira” (CARITA e SAINZ-TRUEVA, 1990, 103-107). Porém, nos inícios do ano seguinte, em reunião de Governo, veio a decidir-se pelo verso “Das ilhas as mais belas e livres” (Decreto Legislativo Regional n.º 11/91/M, de 24 de abril).   Rui Carita (atualizado a 12.10.2016)

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