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A mais antiga referência que existe sobre a região de Moçambique está relacionada com o açúcar da ilha da Madeira, pois foi com conservas madeirenses que Vasco da Gama, aquando da sua primeira viagem, presenteou o xeque de Moçambique. Isto aconteceu porque os Portugueses sabiam que aquelas conservas seriam presentes muito apreciados no mundo islâmico. Este foi um episódio que marcou o início das relações da Ilha com aquela região de África e que, ao longo dos tempos, permitiu outras oportunidades. No séc. XVI, em 1588, o primeiro bispo nomeado para o Japão, o Jesuíta madeirense Sebastião de Morais, faleceu em Moçambique, quando seguia de viagem para tomar posse do bispado. António de Abreu, do Arco da Calheta, andou pelo Oriente desde 1511 e prestou serviços importantes à Coroa. Em 1526, quando foi nomeado capitão-mor de Malaca, foi obrigado a invernar em Moçambique. Na centúria seguinte, em 1642, Francisco Fernandez Furna, dedicado ao tráfico de escravos, criou uma empresa para o comércio em Moçambique, na Índia e na China. Depois, foi muito importante, no cimentar das relações de Moçambique com a Madeira, a presença de madeirenses ilustres nesse terriório, e.g. Aires de Ornelas (1866-1930), D. Manuel Ferreira Cabral (1918-1981), e D. Teodósio Clemente Gouveia (1889-1962): o primeiro como governador-geral de Moçambique (de 1896 a 1906), o segundo como arcebispo de Moçambique (de 1936 a 1962) e o terceiro como bispo da Beira (de 1967 a 1971). É necessário ainda assinalar a passagem pelo Funchal, em viagem de retorno, do Maj. Joaquim Mouzinho de Albuquerque, que desempenhava o cargo de comissário régio em Moçambique. À sua chegada ao Funchal, a 7 de dezembro de 1897, foi muito saudado, com um jantar no Palácio de S. Lourenço e com um espetáculo de música e iluminações no Jardim Municipal. Partiu para Lisboa, no dia 12 de dezembro. É precisamente durante o período do governador natural da Camacha que surgiram dados sobre o movimento de emigrantes, assinalando-se, entre 1872 e 1915, através dos registos de passaporte, a intenção de 391 madeirenses emigrarem para Moçambique. Destes, apenas um manifestou concretamente o seu destino final – a Beira; pensa-se que os demais se dirigiam à então Lourenço Marques (posterior Maputo) e que, depois, se decidiram por outros destinos. Outros faziam de Lourenço Marques uma escala para entrarem na África do Sul, como foi o caso de Joe Berardo, que em 1963 aportou em Moçambique, e de outros que tentavam, desta forma, escapar à Guerra Colonial. Para o período de 1930 a 1948, existem dados sobre a emigração de madeirenses para Moçambique, através da documentação do arquivo da Agência Ferraz. Por aqui, sabe-se que saíram 122 madeirenses. Outras fontes indicam que, em 1935, saíram 226 madeirenses e que, num período de 10 anos, Moçambique recebeu 389 emigrantes da Ilha. O grupo associado à Agência Ferraz fixou-se maioritariamente na capital, e apenas 24 seguiram para outros destinos, e.g. Beira, Manhiça, João Belo, Vila Cabral, Quelimane, Ressano Garcia, Namaacha, São Jerónimo/Magude, Malhadugene. A proveniência destes também é maioritariamente da Calheta, com particular incidência para a freguesia do Estreito da Calheta, da qual partiram 33 madeirenses, representando 31 % das diversas freguesias do concelho, donde saíram 75 moradores. Se se considerar o perfil destes emigrantes, constata-se que foram maioritariamente ligados à terra, pois 49,2 % foram identificados, em termos profissionais, como agricultores e lavradores. Também havia indivíduos de outros ofícios (pedreiro, carpinteiro, padeiro, moleiro, mestre de obras, trabalhador) e de outras atividades (empregada doméstica, empregado de comércio, proprietário, construtor civil, estudante, funcionário público, comerciante). Atente-se que a Madeira podia ser também uma etapa para chegar aos altos cargos de administração em Moçambique, tendo-se verificado isto no caso de António Manuel de Castro e Mendonça, que foi governador da Ilha, de São Paulo, e, entre 1809 e 1812, de Moçambique. O mesmo sucederia com Gabriel Teixeira e Sebastião Xavier Botelho, que, da Madeira, passou para idênticas funções em Moçambique. Este grupo de madeirenses que saíram para Moçambique foi oriundo de diversas freguesias do Funchal (Santo António, São Martinho, São Gonçalo, Santa Maria Maior, São Pedro, Santa Luzia, Sé) e rurais (Estreito e Arco da Calheta, Calheta, São Vicente, Paul do Mar, Porto Moniz, Fajã da Ovelha, Ribeira da Janela, Prazeres, Santana, Gaula, Ponta de Sol, Madalena do Mar, Porto Santo, Ponta do Pargo, Porto da Cruz). O grupo mais numeroso, com 134 madeirenses (34 %), era proveniente do Estreito da Calheta. Deve-se ainda referir a emigração forçada, com a pena de degredo, que aconteceu em algumas situações. Em 1828, houve o degredo de Luiz Pimenta de Aguiar, por razões políticas, nunca regressando à Ilha. Seguiu-se o P.e João Rodrigues Pestana, da Calheta, em 1886. Em 1887, assinalou-se o degredo de João Reinolds, do Porto Santo.   Os registos históricos documentaram muitos madeirenses que se dirigiram para Moçambique e tiveram um papel de relevo na colónia, e.g. militares, médicos e funcionários do Estado. O Com. João Inocêncio Camacho de Freitas, que foi governador civil da Madeira entre 1951 e 1969, procedeu a levantamentos hidrográficos em Moçambique. Outros, de que ficaram notícias, foram: Aires Ferreira Sousa (1867-1947); Alexandre José Sarsfield (1856-1926); Alfredo França Dória Nóbrega (1897-1979); Álvaro de Sousa Drumond Borges (n. 1897); António Américo da Costa Pereira (1879-1922); António Avelino Afonso (1872-1964); António Félix Pita Júnior (1895-1951); Cândido Augusto Pereira (1892-1956); Daniel Pereira Pestana (1824-1906); Elmano de Freitas Moura (n. 1932); Emanuel da Paz Correia Aguiar (n. 1940); Francisco Silvestre Varela (1883-1963); Gabriel Maurício Teixeira (1897-1973); Jacinto Ferreira Rodrigues Baptista (1883-1936); Jacinto Sebastião Spínola (1881-1951); Jaime de Campos Ramalho (1873-1935); Jaime Martinho Ferreira Leal (1888-1962); João António de Bianchi (1884-1969); João de Freitas Alves (1926-1998); João de Silvério Caldeira; João Gomes de Abreu (1888-1958); João Inocêncio Camacho de Freitas (1899-1969); Joaquim do Espírito Santo Mota de Vasconcelos (1902-1976); Jordão Abel Rodrigues (1880-1956); Jorge Teófilo Jardim Bulher (n. 1926); Jorge de Almada Schiappa de Azevedo (1905-1972); José Afonso (n. 1912); José Almada (1888-1979); José Carlos de Vasconcelos (1878-1933); José de Freitas Soares (n. 1908); José Gonçalves Costa (1899-1967); José Gonçalves Costa (1899-1968); José J. Ferreira; José Joaquim de Freitas Ferraz (n. 1821); Leonel Câmara (n. 1923); Lúcio Tolentino da Costa (1870-1939); Luís Camacho Barbeito (1902-1971); Luís Vieira de Castro (1921-1984); Manuel de Sousa Brazão (1884-1923); Manuel Ferreira Rosa (n. 1898); Manuel Gonçalves Alegria (1919-1977); Manuel Leovegildo Rodrigues (1881-1959); Manuel Simão Rodrigues (n. 1932); Manuel Teodoro dos Ramos (n. 1925); Nicolau António de Sousa Drumond Borges (n. 1923); Teófilo de Andrade Rodrigues (1912-1980); Tomás de Jose Basto Machado (n. 1913); Tomás José Basto Machado (n. 1913); Vasco da Gama Andrade Rodrigues (n. 1909); Vasco da Gama Pestana (n. 1907); Vasco da Gama Rodrigues (1888-1977). Por fim, a testemunhar a influência e presença de madeirenses em Lourenço Marques, destaca-se, naquela cidade, uma casa típica da Madeira.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

Madeira Global

a madeira vista pelos ingleses

Os primórdios Não é possível afirmar com segurança quem foi o primeiro britânico a pisar a Madeira, mas dizem as lendas que Robert Machim, após um naufrágio, deu à costa da Ilha juntamente com a sua companheira, Anne d’Arfet, em 1344. A realidade historicamente documentada é bem mais prosaica: na sequência de uma expedição portuguesa às ilhas atlânticas, então desabitadas, em 1418, o infante D. Henrique reenviou os seus capitães ao território no ano seguinte a fim de o reivindicarem para a Coroa. Em 1425, a Madeira tinha-se tornado uma província de Portugal, sendo a produção de açúcar iniciada em 1452. Na verdade, é bastante provável que a Madeira tenha sido descoberta antes da data oficial do seu descobrimento, mas não teria sido do interesse dos Portugueses ou sequer dos Espanhóis dar crédito a pretensões de outras nações. Existem provas da existência da Madeira em mapas do séc. XIV, embora este conhecimento não fosse necessariamente do domínio público. Gomes Eanes de Zurara refere-se à descoberta da Madeira e de Porto Santo na sua Chronica da Descoberta e Conquista da Guiné 1434-1438, mas esta obra apenas ficou disponível em inglês entre 1896 e 1899, quando Charles Raymond Beazley e Edgar Prestage publicaram uma tradução em dois volumes da mesma. Infelizmente, os capítulos sobre a Madeira são pequenos. As relações anglo-madeirenses remontam ao mesmo século, de acordo com os dados citados em estudos sobre as viagens inglesas para fins de comércio e de exploração, e.g.: “A partir da documentação, é difícil saber que contactos tiveram os navios de Bristol, antes de 1480, com a Madeira, os Açores, Cabo Verde e as ilhas atlânticas, que os Portugueses descobriram e onde se instalaram no século XV” (HART, 2003, 56-57). Carus-Wilson, a organizadora de The Overseas Trade of Bristol in the Later Middle Ages, observa, com base numa série de fontes documentais, que Portugal era um dos “clientes mais assíduos” de Bristol (CARUS-WILSON, 1937, 14). Por exemplo, a 17 de março de 1463, foi concedida a John Jay, de Bristol, uma licença para “enviar 300 quartos de trigo de Bristol para Portugal, em qualquer navio” (Id., Ibid., 130); os registos alfandegários também evidenciam que, a 18 de maio de 1480, William Weston enviou um carregamento de têxteis na embarcação Mawdeleyn (de Quimperlé) de Bristol para a Madeira. Por outro lado, a primeira viagem da Madeira para Bristol de que há registo ocorreu em setembro de 1486, numa altura em que vários mercadores portugueses enviaram açúcar e peças de barris diretamente para Bristol (WILLIAMSON, 1962, 187). Os começos da modernidade O contacto entre os Ingleses e a ilha da Madeira nem sempre foi amigável ou reciprocamente benéfico. No final do séc. XVI, mais especificamente em 1595, durante o período de união das Coroas ibéricas, Amyas Preston, um dos principais lobos do mar de Isabel I, pilhou o Porto Santo enquanto se encontrava a caminho das Américas, onde depois saqueou Caracas (HARRISON, 1999, 46). Outros britânicos, comerciantes respeitáveis e cumpridores da lei, utilizavam regularmente a Madeira como porto de escala das longas viagens transatlânticas, reabastecendo ora aí, ora nas ilhas Canárias; alguns deles acabaram mesmo por se estabelecer na Madeira, contribuindo para o comércio de vinho, para o artesanato e para as plantações da Ilha. A mais significativa fonte de informação sobre a Madeira e outros territórios ultramarinos foi a literatura de viagens, entendida em sentido amplo e não raras vezes em traduções. Na verdade, como salienta Alison Yarrington, “a estreita relação entre as traduções e a promoção da expansão territorial está bem patente na carreira de Hakluyt” (YARRINGTON et al., 2013, 29-30). Apesar de tudo, havia alguma reserva em relação aos textos, devido ao intervalo entre a data original de publicação e a sua tradução para inglês, e porque nem todas as traduções eram fiáveis, conforme explica o próprio Hakluyt na sua Epistle Dedicatorie a Robert Cecil (HAKLUYT, 1862, VI-VII). Assim aconteceu com uma tradução inglesa anónima do Tratado dos Descobrimentos de António Galvão, concluída em 1550 e publicada em 1563, que foi corrigida e publicada por Hakluyt em 1601. Esta obra contém bastante mais informação do que a publicação anterior de Hakluyt, datada de 1599, que só dedicava quatro páginas à descoberta da Madeira, às características físicas da Ilha e à sua produção agrícola, incluindo o dragoeiro. A Madeira é mencionada por Camões em Os Lusíadas, cuja primeira tradução inglesa, de Fanshawe, foi publicada em 1655. No cômputo geral, o séc. XVII representou um período de consolidação das relações anglo-lusas, incluindo naturalmente as ilhas atlânticas e o comércio de vinho da Madeira. Nas palavras de David Hancock, “A exportação de vinho da Madeira para a América era diretamente moldada pela geografia e pela diplomacia” (HANCOCK, 2000, 109). Com efeito, as relações comerciais entre a Grã-Bretanha e a Madeira foram reguladas por vários tratados e diversas leis, que geralmente serviam os interesses britânicos: o Tratado de Paz de Cromwell e a Aliança entre Inglaterra e Portugal (1654), e a Lei da Navegação (1660). Todavia, uma grande parte das proibições impostas pelos Ingleses às importações e exportações foi simplesmente ignorada, pelo que os bens eram enviados da Europa diretamente para as colónias inglesas da América sem passarem pelos portos ingleses, onde seriam taxados. Na sequência do casamento de Charles II com Catarina de Bragança, e graças às disposições de uma Lei de Navegação de 1663, também conhecida como Lei para a Promoção do Comércio, a Madeira e os Açores foram isentados das proibições constantes na legislação anterior, tornando-se um dos principais fornecedores de vinho das colónias britânicas. O Tratado de Methuen, de 1703, não só reforçou a exportação de vinhos da Madeira para Inglaterra e para as colónias inglesas, como posicionou a Ilha na rede comercial britânica, conforme atestado em The Bolton Letters, que fornece informações preciosas sobre o comércio britânico com a Madeira. O período abrangido pelo primeiro volume desta obra coincide com a visita de Edmund Halley à Madeira a bordo do Paramore, de caminho para o Atlântico Sul no quadro de uma expedição científica que decorreu entre 1698 e 1701. O porto do Funchal, com a sua Feitoria Britânica, assumiu-se como peça de relevo da estratégia colonial de Inglaterra, de tal modo que as embarcações militares inglesas patrulhavam regularmente o perímetro marítimo das ilhas – que eram consideradas quase como um posto avançado do Império Britânico –, protegendo os seus interesses. “Durante as Guerras Napoleónicas, a Grã-Bretanha ocupou duas vezes a ilha da Madeira” (NEWITT, 1999, 70), que chegou a ter o estatuto de colónia da Coroa britânica entre 24 de dezembro de 1807 e 24 de abril de 1808, com o pretexto de a proteger dos iminentes ataques franceses. Se, por um lado, encontramos homens de negócio astutos que tiraram partido da posição geográfica estratégica da Madeira e do seu potencial agrícola, por outro, também havia autores que, talvez com objetivos específicos, promoveram intencionalmente os mitos fundacionais da Ilha. O Descobrimento da Ilha da Madeira Anno 1420, de Francisco Manuel de Melo, obra escrita com base na Relação de Francisco Alcoforado, foi publicado em inglês em 1750, com o título as An Historical Relation of the Discovery of the Island of Madeira, Abridged from the Portugueze Original. To Which Is Added, an Account of the Present State of the Island ... etc. No mesmo volume encontram-se outras duas obras. A primeira é An Account of the Present State of the Island, in a Letter to a Friend, com data de 7 de abril de 1748; independentemente de o título ser genuíno ou mera convenção, esta interessante descrição da sociedade e dos costumes madeirenses fornece abundante material aos investigadores de história social e económica. A segunda obra consiste numa série de excertos de A Voyage to Surat, de J. Ovington, nomeadamente o seu Account of Madeira, de 1689, onde o autor descreve a sua partida de Inglaterra, narra a descoberta das ilhas — novamente o mito de Machim —, e faz observações sobre o clima, a produção de vinho, a escassez de cereais e as plantações de frutas da Ilha. Aparentemente, já havia mercadores ingleses a viver na Ilha, que plantavam groselha; a terra era menos fértil do que já tinha sido, e o clero era permeável à indolência que atingia os homens mais corpulentos, custando-lhes levantar-se às 04.00 h para a leitura do ofício divino. Como Tony Claydon salienta em Europe and the Making of England, 1660-1760, a literatura de viagens era “um empreendimento coletivo no qual os autores contribuíam conscientemente para um conjunto partilhado de factos e de opiniões. Os exemplos mais evidentes de cooperação entre escritores são as frequentes referências a comentadores anteriores” (CLAYDON, 2007, 20). Assim, A New General Collection of Voyages and Travels (1745-1747) inclui uma breve história e justificação da literatura de viagens, reportando-se explicitamente a Galvão e a Alcoforado para os capítulos sobre os Descobrimentos portugueses; o “compilador”, como se autointitula o autor desta obra, repete os habituais lugares-comuns, incluindo a informação sobre a praga de coelhos no Porto Santo. Esta prática será retomada vezes sem conta ao longo dos registos de viagens do séc. XIX, nos quais os autores se referem habitualmente aos seus antecessores e pares. An Historical Account também aparece num livro publicado em Londres por R. Griffiths, em 1756, com o título The Affecting Story of Lionel and Arabella, Who, by a most Unhappy Accident, first Discover'd the Island of Madeira, and Perish'd there. To Which Is Added, the Dangerous Voyage of Juan Gonsalvo Zarco, a Portuguese Commander, Who Compleated the Discovery. Não há dúvida de que o apetite por estas leituras continuava voraz. Do Iluminismo ao século XIX Por volta deste período, parece surgir uma nova geração de britânicos com um interesse um tanto diferente pela Madeira, nem exclusivamente comercial nem certamente literário, mas antes inclinado para o saber científico, botânico ou médico – por outras palavras, homens (e mulheres) do Iluminismo. Por exemplo, Thomas Heberden (1703-1769), um cirurgião, médico e botânico residente na Ilha, remeteu a seu irmão vários artigos científicos decorrentes das suas observações na Madeira, para que este os lesse na Real Sociedade de Londres. Em 1768, o Endeavour partiu de Plymouth com destino à Madeira numa expedição científica patrocinada pela Real Sociedade de Londres, a fim de observar o trânsito de Vénus no hemisfério sul no ano seguinte, conforme previsto por Edmund Halley; a outra missão da expedição, esta secreta, era tomar posse da Austrália. O Endeavour esteve atracado na Madeira entre 13 e 18 de setembro. Para além do Cap. Cook, o navio transportava Joseph Banks, da Real Sociedade de Geografia, Daniel Solander, um estudante sueco, e Sydney Parkinson, o artista responsável pelos desenhos das descobertas botânicas. O Endeavour Journal de Banks, escrito entre 25 de agosto de 1768 e 12 de julho de 1771, descreve novas espécies de peixes, a flora e os microclimas da Ilha, a produção vinícola, bem como os hospitaleiros residentes britânicos e os Portugueses, que caracteriza como indolentes: “Durante a nossa estadia neste local, muito devemos ao Dr. Heberden, o principal médico da ilha, e irmão do médico com o mesmo nome de Londres, que viveu longos anos nas Canárias e nesta Ilha, e fez várias observações, predominantemente filosóficas, embora algumas fossem de natureza botânica, descrevendo as árvores da Ilha: destas, facultou-nos de imediato uma cópia, juntamente com alguns espécimes que tinha em sua posse, não poupando esforços para nos arranjar espécimes vivos em flor. [...] Os habitantes locais são, no geral, ociosos, ou antes, incultos como eu nunca vi; todos os seus instrumentos, mesmo aqueles com que produzem o vinho, o único artigo de comércio da ilha, são perfeitamente simples e básicos. [...] Estivesse [a Ilha] nas mãos de qualquer outro povo do mundo e o seu valor facilmente duplicaria, graças à excelência do seu clima, capaz de amadurecer qualquer tipo de produto, uma circunstância da qual os Portugueses não tiram o mínimo proveito.” Por seu turno, as freiras de S.ta Clara eram excessivamente faladoras: “durante a nossa visita, de cerca de meia hora, não deve ter havido uma fração de segundo durante a qual as suas línguas não se movessem a um ritmo extraordinário” (BANKS, The Endeavour Journal of Sir Joseph Banks …). Era frequente os exploradores e os cientistas registarem e publicarem as suas experiências e observações. A Madeira oferecia uma infinidade de possibilidades de estudo para botânicos, entomologistas, meteorologistas, conquiliologistas e especialistas de todo o género de disciplinas. Também se podem encontrar memórias marítimas e militares com informação cientificamente relevante, escritas por marinheiros de passagem ou em serviço militar. Com efeito, estas duas esferas de interesse convergem em “An Account of a Barometrical Measurement of the Height of the Pico Ruivo, in the Island of Madeira”, de Edward Sabine; o grupo do Cap. Sabine incluía outros oficiais da marinha, o cirurgião do navio, George Don, o primeiro coletor profissional de plantas para a Sociedade de Horticultura de Londres, e ainda um prestável residente inglês, de nome Veitch, que ocupava o cargo de cônsul-geral, e que lhes serviu o pequeno-almoço na sua residência. Não é inverosímil supor que os botânicos e naturalistas aproveitariam todas as oportunidades que se lhes oferecessem para viajar, em tempo de paz e presumivelmente sem grandes custos, até à Madeira e outros laboratórios naturais. Não era incomum encontrar médicos britânicos, como Thomas Heberden, a exercer medicina na Madeira, já que a Ilha se afirmava como um apetecível destino para o turismo de saúde. “Para os finais do século XVIII, a Madeira assumia-se cada vez mais como um local propício ao tratamento da tuberculose. Começaram a circular brochuras elogiando o clima da ilha, registando-se um conjunto de médicos britânicos que ali se fixaram” (NEWITT, 1999, 73). A título de exemplo, Joseph Adams publicou The Superiority of the Climate of Madeira e Guide to the Island of Madeira; with An Account of Funchal, and Instructions to Those Who Resort thither for Their Health. Foram publicados artigos de especialistas nas revistas médicas da época, incluindo The Lancet, e os guias de saúde para a Madeira constituíam uma subcategoria da literatura de viagens. William Gourlay, médico da Feitoria Britânica, escreveu as suas Observations on the Natural History, Climate, and Diseases of Madeira, during a Period of Eighteen Years. Em An Historical Sketch of the Island of Madeira, o mesmo autor aborda os benefícios do clima para o tratamento da tísica e da asma, referindo ainda que três dos quatro médicos portugueses da Ilha se tinham formado na Universidade de Edimburgo. Na sequência da morte de T. E. Bowdich em África, devido à malária, a viúva publicou o seu Excursions in Madeira and Porto Santo. Com exceção de uns breves comentários sobre a situação política, esta obra é um verdadeiro reflexo do interesse do autor por diferentes aspetos da história natural – peixes, pássaros, plantas, formações geológicas, conchas. Apesar de ser feita uma breve referência a Machim, Bowdich interessa-se muito mais pela flora e pela fauna das ilhas, com destaque para o dragoeiro de Porto Santo, conforme descrito pelas fontes portuguesas. Por entre as suas observações científicas, descreve a vida social da Ilha, comparando os habitantes de Porto Santo com os camponeses do País de Gales, admira o sentido português de beleza, e menciona os cálculos de Gourlay e do Dr. Heineken. Alfred Lyall, autor de Rambles in Madeira, and in Portugal, in the Early Part of MDCCCXXV, dedicado ao cônsul George Stoddard, destaca a escassez de livros com informação sobre a Madeira, que é um local de interesse especial para os britânicos, sobretudo os inválidos. Lyall faz referência às Excursions de Bowdich apenas para as descartar porque “se dedica quase exclusivamente a questões científicas” (LYALL, 1827, ix). Os capítulos do texto de Lyall descrevem a paisagem e a população da Ilha; no que às mulheres diz respeito, “a superioridade das mulheres francesas […] é incontestável” (Id., Ibid., 26-27). Lyall não acredita na lenda de Machim, mas não vê proveito em a contestar, dado que os locais a acolhem com grande estima. James Clark, doutor em medicina, recordado pela história como médico da corte e autor de um tratado de tísica, também escreveu uma obra sobre The Influence of Climate in the Prevention and Cure of Chronic Diseases, que incluía “indicações para inválidos em viagem ou que vivam no estrangeiro”. Clark considerava Lisboa “um local de residência inadequado para tísicos” (CLARK, 1830, XII), opondo-se fortemente à prática de enviar os doentes terminais para o estrangeiro (Id., Ibid., 196). Também discute os benefícios do clima da Madeira, citando Gourlay e as Rambles de Lyall. John Driver visitou a Madeira em 1834, por indicação médica, tendo depois publicado as cartas que escreveu aos amigos em 1838, dando resposta aos muitos pedidos que lhe eram endereçados de informações sobre a Ilha: “Obtive informações atualizadas sobre a melhor forma de viajar, a escolha de residência, o custo de vida, etc.” (DRIVER, 1838, VI). Os capítulos principais descrevem a Ilha e a sua população, incluindo Henry Veitch (1782-1857), que também é mencionado noutros livros de viagem do mesmo período. A Carta V refere a capela de Machim, mas sobretudo a presença das forças miguelistas na Ilha; e faz uma descrição das corridas no Funchal, e de uma exposição floral e hortícola organizada por Webster Gordon. A Carta VIII descreve as melhoras que sentiu desde que se encontra na Ilha. As informações práticas (navios que viajam para a Madeira, hotéis, médicos, o preço da alimentação, estatísticas sobre exportações, etc.) estão contidas no apêndice, juntamente com a obrigatória repetição da história de Machim, narrada por Alcoforado. Muitos dos detalhes coincidem com os que autores anteriores já haviam fornecido, sendo Bowdich e Lyall explicitamente citados. Driver contribuiu ainda com “An Historical Account of the Island”, que dedicou a James Clark, para um volume editado por James Sheridan Knowles, onde é identificado como cônsul da Grécia na Madeira; este texto baseia-se na sua publicação anterior. Fig. 1 – Reprodução da gravura “O Funchal visto de São Lázaro”.Fonte: PICKEN, 1840. Entre os Ingleses que ajudaram a promover a Madeira como estância terapêutica, encontra-se o artista Andrew Picken, autor de Madeira Illustrated. Picken especializou-se na ilustração de livros de viagens e passou algum tempo na Madeira porque tinha uma saúde precária, acabando por perecer com uma doença pulmonar após regressar em definitivo a Inglaterra, em 1845. O livro é dedicado à Sr.ª Webster Gordon e nele são mencionados Alcoforado, Barros, Galvão e Frutuoso. Picken descreve as Rambles de Lyall como “uma das melhores e mais completas descrições da ilha publicadas em Inglaterra”. O esboço histórico transporta os leitores para o séc. XIX, e a descrição que faz da Ilha oscila entre o geográfico e o pitoresco, com uma série de observações sobre os nativos: “os Portugueses da Madeira são um povo excelente”; “a aparência e o carácter dos camponeses são universalmente elogiados” (PICKEN, 1840, 4); e considera que a distância entre os Ingleses e os Portugueses, em termos sociais, está a tornar-se cada vez mais curta. Picken faculta informações sobre os navios e os respetivos preços, desaconselha o uso de letras de crédito e recomenda o ouro espanhol em vez dos soberanos ingleses, entre outras sugestões úteis. Nesse mesmo ano de 1840, William White Cooper, cirurgião da Honourable Artillery Company, publicou The Invalid's Guide to Madeira, with a Description of Teneriffe, Lisbon, Cintra, Mafra, etc and a Vocabulary of the Portuguese and English Languages. Aparentemente, a obra baseia-se na sua própria experiência, enquanto recuperava de um ferimento. Curiosamente, Cooper afirma que não encontrou qualquer informação sobre a Madeira pelo que, adotando o registo de diário, embarca numa jornada “tanto para descrever as paisagens das ilhas da Madeira e de Tenerife, como para fornecer uma panóplia de informações para orientação daqueles que as procuram, seja para uma curta visita ou para uma estadia mais prolongada” (COOPER, 1840, III). Este autor não difere grandemente de outros escritos de viagens ingleses, na medida em que também refere detalhes sobre a logística da viagem e das acomodações, os nomes dos médicos locais e a separação entre residentes portugueses e ingleses. À semelhança de vários registos de viagens do mesmo período sobre Portugal continental, os comentários sobre as mulheres portuguesas e os seus hábitos de higiene pessoal são muito pouco lisonjeiros. O autor anota tudo o que considera ser de interesse para os viajantes britânicos, mencionando também o reverendo R. T. Lowe, “um cavalheiro altamente distinto enquanto naturalista, e que está prestes a publicar uma elaborada obra sobre os peixes da Madeira” (Id., Ibid., 40), obra que viria à luz entre 1843 e 1860. Cooper descreve Maria Clementina, “a linda freira do Convento de Santa Clara” (Id., Ibid., 41), lista os vinhos que se podem encontrar na Ilha, e descreve o Clube do Funchal, bem como o baile que o cônsul George Stoddard organizou em honra do casamento da Rainha Victória. Não se mostra impressionado com a aparência e o comportamento dos soldados britânicos estacionados na Ilha, embora considere – o que não é surpreendente, dada a sua filiação – que “a artilharia constitui um corpo mais viril e militar” (Id., Ibid., 57), ainda que não treinem o suficiente. Os inválidos devem levar consigo os seus medicamentos e cadeiras confortáveis, bem como uma sineta. O facto de o conselho de Cooper sobre a melhor moeda para levar para a Madeira coincidir com o de Picken, a par de outras observações, leva-nos questionar se alguma vez se terão cruzado. Pouco tempo depois, William Samuel Pitt Springett (1818-1860) dedicou as suas Recollections of Madeira à Sr.ª George Stoddard, que era irmã da sua esposa. Um ano mais tarde, Edward Vernon Harcourt escreveu A Sketch of Madeira Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitorı, publicado por J. Murray, que também publicou The Diary of an Invalid, de Henry Matthew, e a versão definitiva do Handbook for Portugal (1855). Harcourt pretendia que o seu livro fosse útil, pelo que dá uma série de conselhos práticos, desde informações sobre os transportes (a liteira de rede) e os locais a visitar (refere que passou pela casa de campo da Sr.ª Penfold), até esclarecimento sobre rotas de navegação, bagagem, acomodações e moeda. Talvez numa tentativa de sossegar os mais doentes, explica que a desagradável cena retratada por Ovington em Voyage to Surat, de recusa de um funeral cristão a um protestante inglês, não se repetiria, uma vez que havia mais tolerância religiosa e que os visitantes estrangeiros tinham agora o seu próprio cemitério, onde aqueles “que procuravam saúde numa terra estrangeira encontraram o repouso eterno. O cipreste debruça-se sobre a campa do estrangeiro, e o seu túmulo solitário está adornado de flores” (HARCOURT, 1851, 33). Na verdade, Susan Vernon Harcourt também fez um retrato dos cemitérios ingleses. À semelhança de outros escritores, Edward Harcourt informa os seus leitores sobre a vida social na Madeira; aconselhando os inválidos a não saírem à noite – algo que os seus antecessores também recomendam –, deixa escapar um comentário bastante elucidativo: “Os ingleses e os portugueses não se costumam misturar, de modo que o leitor não terá a sensação de viver entre estrangeiros” (Id., Ibid., 35); não lhe ocorreu que os estrangeiros eram os Ingleses. Harcourt preenche muitas páginas do seu livro com tabelas de dados sobre as condições meteorológicas, a demografia, a história da Madeira (o mito de Machim), as instituições judiciárias e religiosas, o sistema educativo, a agricultura, as plantas, a produção vinícola, a ornitologia – por outras palavras, tudo o que pudesse interessar ao cavalheiro inglês no estrangeiro. Narrative of a Voyage to Madeira, Teneriffe and along the Shores of the Mediterranean, da autoria de William Wilde, inclui o material habitual, e menciona Picken, Macaulay, Clark, Bowdich, Combe e o cônsul Henry Veitch. À imagem de muitos outros visitantes da Ilha, o autor adquire nos conventos “bens de luxo” como flores artificiais e confeitaria; e, tal como outros turistas ingleses, recorda a triste história da irmã Maria Clementina, “a bela reclusa”, que compara a Cinderela, embora à primeira não tenha sido destinado o final feliz do conto de fadas (WILDE, 1844, 92-93). Caption   Outro escritor frequentemente citado é Robert White, autor de Madeira, Its Climate and Scenery Containing Medical and General Information for Invalids and Visitors; a Tour of the Island, etc. O autor viveu 15 anos na Ilha, pelo que o livro se tornou uma obra de referência, que contou com mais duas edições, atualizadas com a inclusão de novo material. O conteúdo não é original, sendo na sua maior parte derivado de anteriores publicações; mas, apesar de os autores anteriores fornecerem informações sobre as paisagens, a variedade de castas, os vinhos e o comércio, bem como dados estatísticos, White salienta que “há uma grande confusão sobre estes tópicos nas obras publicadas até agora” (WHITE, 1851, v). Robert White principia com a lenda da descoberta, os factos históricos da mesma, e uma breve história da Ilha até ao séc. XIX; onde diverge dos seus antecessores é na acutilância da sua crítica aos governos portugueses, que saquearam e negligenciaram a Madeira: “A situação melhorou muito durante o breve período em que foi governada pelos Britânicos, sob a competente administração do General Beresford, em 1808” (Id., Ibid., 10). Os detalhes não são novos; mas o tempo passou e a bela Ir. Maria Clementina “está avançada em anos e restam-lhe poucos, ou nenhuns, traços daquela beleza que o nosso poeta tão calorosamente descreveu” (Id., Ibid., 21). Com efeito, a fama desta mulher alastrara para além da Madeira e das ilhas Britânicas, chegando aos Estados Unidos da América. Maria Clementina também fora descrita em termos extraordinariamente românticos pelo Rev. Walter Colton, capelão naval e autor de Ship and Shore, primeiramente publicado sob anonimato em 1835 e reeditado em 1851, com um desenho da freira nas páginas preliminares. Publicado entre a segunda e a terceira edições do guia de White, The Climate and Resources of Madeira, as regarding chiefly the Necessities of Consumption and the Welfare of Invalids, de Michael Comport Grabham, foi presumivelmente ao encontro de uma necessidade sentida neste nicho de mercado; com efeito, uma vez que ainda não existia um tratamento eficaz para a tuberculose, os pacientes deslocavam-se à Madeira em busca de repouso. Para além da sua competência de médico, Grabham também publicou artigos no The Lancet, partilhando as suas experiências, e escreveu sobre botânica, sobre a vida animal e sobre geografia; o seu tratado de medicina foi considerado relevante já bem entrado o séc. XX. Michael Grabham não se demora em detalhes descritivos nem nos temas sociais, uma vez que esses já tinham sido abordados “em muitos tratados existentes e […] no excelente e exaustivo ‘Guide-Book’ do Sr. R. White” (GRABHAM, 1870, X); ao invés, foca-se em assuntos meteorológicos e médicos. Apesar disto, não consegue escapar inteiramente ao tipo de conteúdos que mais interessam aos leitores: os pormenores científicos e técnicos, apresentados sem mais, poderiam afastar os espíritos menos graves, pelo que o autor introduz o mito de Machim, aborda a história dos princípios da Ilha, e descreve os edifícios, as instalações e os passatempos locais ou, pelo menos, os passatempos praticados pelos residentes ingleses. Tal como os seus antecessores, informa os leitores sobre a paisagem e os meios de locomoção; e dedica um longo capítulo às condições meteorológicas, assim como às questões médicas e aos tratamentos. Conforme seria de esperar numa obra desta natureza, explica como chegar à Madeira, qual a melhor moeda a usar, e como enviar cartas para a Ilha. Grabham é extremamente preciso – cirúrgico, até –, sendo a sua obra isenta de alguns dos preconceitos presentes noutras publicações, talvez porque se casou com um membro da aristocracia da Ilha e valorizava o que a Madeira tinha de bom. J. M. Rendell seguiu as pisadas de White e de Grabham em A Concise Handbook of Madeira, embora sem a pretensão de ter conhecimentos sobre medicina. Como seria de esperar nesta altura, tece comentários sobre o tempo e a geografia da Ilha, cita especialistas, refere viagens, navios e hotéis. Está presente o capítulo obrigatório sobre a história da Ilha, informações sobre a botânica, a comida, as aves, os peixes, a música, os costumes, as superstições da população (outro tema favorito dos escritores de viagens que se focam em Portugal continental), as excursões e viagens à volta da Ilha, os salários das empregadas domésticas, o preço do tratamento de roupas, os pesos e as medidas, algumas palavras úteis e outros aspetos da língua portuguesa. Por outras palavras, nada de inesperado ou original. Os guias para a Madeira continuaram a aparecer no século sucedâneo. Assim, e.g., Oswald Crawfurd, cônsul no Porto, crítico literário e escritor prolífico, produziu, em janeiro de 1874, um artigo de 18 páginas para o The New Quarterly Magazine intitulado “A winter holiday in Madeira”, que pretende ser um compêndio de toda a informação sobre a Ilha. Tal como grande parte da literatura deste género, o artigo elucida-nos mais sobre os preconceitos do seu autor do que sobre as pessoas que ele descreve: “Os madeirenses são uma estranha raça de homens. Maioritariamente de origem portuguesa, são claramente uma nação de mestiços, e a presença da negritude é notória nas suas caras feias e bondosas, na sua estatura – têm mais dois a cinco centímetros que os continentais –, no seu andar estranho, e na sua compleição algo doentia. A sua atitude moral também é, de certa forma, influenciada pelo laxismo dos negros. No entanto, não são de modo algum grandes criminosos, praticando apenas vícios menores como pequenos roubos e grandes narrativas, combinando, por assim dizer, a sua complacência com os pequenos furtos e as mentiras inofensivas com uma rigorosa economia de crimes maiores” (CRAWFURD, 1874, 410). Nem toda a gente discorria sobre a Madeira do ponto de vista dos inválidos ou dos médicos; havia pessoas que tinham outros interesses ou visavam outros públicos. Assim, a família e os amigos que acompanhavam os inválidos aproveitavam o seu tempo para desenhar ou pintar o que iam observando, publicando depois os seus álbuns. Afinal de contas, a Madeira era um paraíso botânico e, dado o relativo sossego da vida na Ilha (em comparação com Londres e outras cidades inglesas), as pessoas tinham muito tempo para escrever um diário, relatos da viagem e cartas, um fenómeno que se tornou muito comum nos visitantes de Portugal continental.   O século XX No séc. XX, assistiu-se a um declínio no número de livros sobre a Madeira, talvez como reflexo de uma mudança nos interesses e gostos dos leitores. No entanto, de entre os que escreveram sobre a Ilha na primeira década deste século, ressaltamos S. Samler Brown, W. H. Koebel, que se centra na história e se baseia em Grabham, e Charles Thomas-Stanford, com um livro intitulado Leaves from a Madeira Garden. O prefácio desta obra constituiu uma versão mal disfarçada do topos da humildade: “Pergunto-me se será necessário arranjar desculpa para esta história trivial de um inverno banal numa ilha insignificante” (THOMAS-STANDFORD, 1909, VII), salientando o autor que “muito se tem escrito sobre a Madeira”, pelo que não pretende “afirmar ou dizer coisas novas, nem revelar aspetos relevantes” (Id., Ibid., IX); na verdade, afirma, “limitei-me a enunciar apontamentos algo inconsequentes – e temo que, por vezes, irrelevantes – sobre diversas matérias” (Id., Ibid., VIII). Devido ao gosto dos Britânicos pela jardinagem, a Madeira tinha para eles um interesse considerável, em virtude da sua vegetação rica e exótica. Conforme prometera no prefácio, Stanford critica certas atitudes do governo português, mas está manifestamente convencido de que tem legitimidade para o fazer por força da sua relação de longa duração com a Ilha, sua residência de inverno. O autor desdenha “o número cada vez maior de turistas, americanos, ingleses e alemães” que são despejados pelos navios (Id., Ibid., 4), não conhecendo nada da “verdadeira Madeira”, e esforça-se por demonstrar o seu conhecimento da história e das tradições da Ilha. Apesar de tudo, a sua própria relação com a Madeira e os seus habitantes é ambivalente: há alguns aspetos da vida na Ilha que o irritam nitidamente, nomeadamente a falta de telefones, mas a sua relação com a população portuguesa parece não diferir substancialmente da dos seus predecessores. Quando se convence de que os empregados tentam extorquir-lhe salários excessivamente elevados, não hesita em “os despedir”; e declara que os madeirenses nada sabem de jardins nem de jardinagem, o que consitui “uma grande prova, especialmente quando a pessoa só está presente um terço do ano, e as operações mais importantes, a poda das roseiras etc., têm de ser feitas na nossa ausência” (Id., Ibid., 68). Fundando os seus pontos de vista em estereótipos e em amostras bastante reduzidas da população, demarca claramente os Portugueses como “os outros” (Id., Ibid., 73-74), embora se identifique como “nós, os madeirenses” (Id., Ibid., 189); de facto, conheceu a sua mulher na Ilha, onde ela era proprietária rural. Ainda assim, o livro redime-se em alguns momentos de honestidade: “Se os criados são para nós um estranho e interessante objeto de estudo, o que seremos nós para eles?” (Id., Ibid., 74). Thomas-Stanford também escreveu um romance de aventuras que decorre na Madeira, The Ace of Hearts. Os Ingleses continuaram a escrever sobre a Madeira. É o caso, e.g., de Lethbridge, com o seu Madeira – Impressions and Associations; de Stuart Mais, que publicou ininterruptamente entre 1915 e 1966, juntamente com a mulher, incluindo o relato de viagens Madeira Holiday; e de Sacherevell Sitwell, extravagante mas empobrecido diletante que, segundo consta, persuadiu vários governos a subsidiarem-lhe o turismo de luxo escrevendo livros de viagem; há indubitavelmente abundantes exemplos de marketing indireto – nomeadamente referências a empresas de transportes e a hotéis – no seu Portugal and Madeira. O leitor também poderá perguntar até que ponto a filiação ideológica e de classe orientam as suas perceções; com efeito, ou Sacherevell Sitwell acreditava genuinamente nas virtudes do Estado Novo, à imagem de outros escritores de viagens ingleses do seu tempo (como John Gibbons, lady Marie-Noële Kelly), ou a sua escrita está temperada com uma não pequena dose de ironia: “[Portugal] esteve a dormir durante a época de industrialização que enegreceu grande parte da Europa. Se acordou, imaculado, para um presente mais feliz, foi graças à influência de mãos benevolentes e sábias” (SITWELL, 1954, 39). O capítulo sobre a Madeira extravasa em descrições líricas de plantas exóticas e vegetação tropical: “É uma ilha que se visita pelas suas flores e pelo seu clima” (Id., Ibid., 43). Diz muito pouco sobre os ilhéus, até porque “uma das belezas da Madeira é que não tem propriamente passado. [...] Era uma ilha virgem. Não havia habitantes aborígenes para exterminar” (Id., Ibid., 43). E, quando faz algum comentário sobre as populações locais, é para dizer que “é uma população imaculada, talvez o menos corrompido e contaminado de todos os povos europeus. Os madeirenses estão ainda na idade da inocência” (Id., Ibid., 49). Com o tempo, os livros de viagens tornaram-se mais breves, por causa dos custos de edição, das restrições de bagagem, das mudanças nos hábitos de leitura – as razões que explicam esta tendência são múltiplas. As edições online e a digitalização também tiveram impacto no consumo de livros. Todavia, independentemente do seu formato, os livros de viagens do séc. XXI centram-se mais nas necessidades dos turistas e dos aventureiros do que nas experiências pretensamente autênticas vividas pelo viajante entendido.   A questão da autoria feminina e da voz feminina na literatura de viagens Não foram unicamente os homens a visitar a Madeira e a publicar as suas memórias ou impressões. Apesar de o número de mulheres viajantes nunca ter constituído mais do que uma minoria, por razões óbvias de índole social e histórica – as mulheres não fizeram o Grand Tour e, mesmo que o tivessem feito, a Madeira não seria uma etapa do itinerário –, os seus contributos para o corpus da literatura de viagens inglesa não deve ser negligenciado. A literatura de viagens, no sentido que aqui é dado à expressão, compreende memórias, autobiografias, diários, cartas, registos de viagens e guias. Clare Bloome Saunders sugeriu que foi a ligação entre a literatura de viagens e os “textos associados com a esfera doméstica e privada” que permitiu às mulheres entrar neste género literário (SAUNDERS, 2014, 3). Não há dúvida de que assim é, embora haja um grande número de autores do sexo masculino que optou por essa via, possivelmente por a considerarem mais adequada à temática, ou um meio eficaz de chegar aos leitores. Saunders também salienta que “as primeiras obras de viagem escritas por mulheres começavam geralmente com um pedido de desculpas, uma passagem pelo topos da humildade e uma declaração de autenticidade” (Id., Ibid.). Mais uma vez, são abundantes os exemplos de autores masculinos de livros de viagens que principiam as suas obras da mesma forma. Sarah Mills refere que “os autores viajavam por motivos diferentes e para países diferentes, escrevendo sobre as suas viagens no quadro de uma multiplicidade de condicionamentos – de género, de classe, de finalidade da viagem, de convenções textuais, de audiência, etc. – que influenciavam e estruturavam a sua escrita” (MILLS, 1991, 21). Para Mills, uma diferença evidente entre os homens e as mulheres que escrevem livros de viagens encontra-se “na ênfase que colocam no envolvimento pessoal e nas relações com pessoas de outras culturas, e na atitude menos autoritária que assumem perante a voz narrativa” (Id., Ibid.). Embora tal possa ser verdade nalguns contextos, esta análise dos escritos britânicos sobre a Madeira não revela um maior grau de rapprochement entre as escritoras e os habitantes portugueses da ilha, em comparação com os escritores. No contexto português, as viajantes poderão ter tido de lidar com os locais para resolverem questões domésticas, mas isso não significa que tivessem um relacionamento pessoal com eles. A atitude autoritária talvez seja mais visível nos escritos sobre os campos da medicina e da ciência, à época dominados pelo sexo masculino. A autoridade poderia derivar, em parte, das qualificações académicas, dos títulos profissionais e dos graus militares que uma série de autores incluía na página de rosto das suas obras. Em contrapartida, a não ser que fossem membros da aristocracia, as escritoras limitavam-se a referir o seu estatuto de mulheres casadas. Mary Louise Pratt analisou o impacto da história natural e da ciência em geral na literatura de viagens, argumentando que “a história natural era um meio para narrar as viagens de exploração do interior, já não com a finalidade de descobrir rotas de comércio, mas de vigiar o território, explorar os recursos e exercer um controlo administrativo sobre o mesmo” (PRATT, 1992, 39), o que dá azo ao aparecimento de um discurso bastante próprio; no caso específico da Madeira, os botânicos e os meteorologistas parecem, de facto, reivindicar a Ilha para si. Em paralelo, há uma série de obras sobre a Madeira que corroboram a afirmação de que “a história natural estabeleceu uma autoridade urbana, literata, masculina sobre todo o planeta; elaborou uma compreensão racionalizante, extrativa e dissociativa, que se sobrepôs às relações funcionais e experienciais entre pessoas, plantas e animais” (Id., Ibid., 38). Por fim, em termos de considerações teóricas, para Saunders, “a ‘verdade’ na literatura de viagens aparece, paradoxalmente, quer como asserção da retórica objetiva ‘masculina’, quer como uma aparentemente ‘autêntica’ proclamação da literatura ‘feminina’, doméstica, privada” (SAUNDERS, 2014, 3). À exceção das obras assentes em dados científicos – sobre a precipitação, a temperatura e as espécies de plantas e insetos –, não há garantias de objetividade ou autenticidade. Além disso, quanto mais íntimo é o registo de escrita, mais tendência têm os autores para a subjetividade, ou para distorções de memória e perceção.   Mulheres viajantes As mulheres estiveram na Madeira por várias razões, quer para fazer uma pausa neste porto de escala tão bem situado, usualmente sob a proteção de membros da sua família, quer para visitar Ingleses nela residentes, quer para acompanhar os maridos, empenhados em investigações científicas, na escrita de um livro ou noutras atividades profissionais. Em todo o caso, nem sempre se limitaram a ilustrar as produções científicas e intelectuais dos cônjuges, tendo-se afirmado como autoras e artistas independentes. Ao contrário da jovem “ultramarina” de que se falará adiante, uma mulher da classe alta raramente sentia a necessidade de pedir desculpa por trabalhar; os dados sugerem que a idade e a classe social são condicionantes tão importantes como o sexo. Uma das primeiras mulheres a escrever sobre a Madeira foi Maria Riddell (1772-1808), autora das Voyages to the Madeira and Leeward Caribbean Islands, que tinha relações próximas com a Escócia devido ao seu casamento com Walter Riddell. Poetisa, embora menor, Maria Riddell é lembrada sobretudo pela sua amizade com o poeta nacional da Escócia, Robert Burns; mas não deixa de ser notável que tenha escrito um registo de viagens aos 20 anos. Na opinião de Corey Andrew, ela “faz juízos claros e raramente produz afirmações distanciadas. […] Considera que os habitantes da ilha possuem qualidades que os redimem, embora os seus elogios sejam muito parcos: ‘Os nativos são […] notavelmente engenhosos, e famosos pela sua capacidade de fazer perfumes, pastas, etc. Os Portugueses têm feições extremamente escuras, mas têm belos olhos e dentes; a classe baixa deste povo é indolente, suja, e muito viciada no roubo; têm muito talento musical, e são extremamente delicados’” (ANDREWS, 2013, 181). O nome que figura a seguir nesta cronologia é o de Elizabeth Macquarie (1778-1835), uma escocesa que viajou para a Austrália em 1809, juntamente com o marido, Lachlan, que havia sido nomeado governador da Nova Gales do Sul. Fez a viagem a bordo do navio de carga Dromedary, na companhia do Hindostan, um navio de guerra de Sua Majestade, tendo feito uma paragem na Madeira. Ao chegarem à Ilha, a 12 de junho, os Macquaries foram convidados a residir na casa de Henry Veitch, o cônsul britânico, que estava aparentemente muito ambientado à Madeira, e que, tendo sobrevivido a todos os amigos, não fazia tenções de regressar à Grã-Bretanha, uma atitude que muito desagradou à Sr.ª Macquarie. Um dos militares que os escoltou parecia “conhecer intimamente os habitantes locais, incluindo as freiras de diferentes conventos”. Tendo adoecido, a Sr.ª Macquarie não pôde fazer grandes passeios durante a semana que passou na Madeira, mas ficou chocada ao ver uma jovem tomar o hábito religioso, o que talvez não seja uma reação completamente inesperada numa protestante escocesa daquela época. Quanto à Ilha, o brilho inicial desapareceu rapidamente: “A ilha da Madeira é sem dúvida um dos lugares mais bonitos e românticos que já vi. Para uma pessoa que passou muito tempo em alto mar e que padeceu de alguma doença ou sofreu com o mau tempo, a visão do Funchal é do mais gratificante que se pode imaginar; mas, depois de se terem passado alguns dias em terra, a falta de ar e o imenso calor, a total ausência de qualquer tipo de exercício físico, dada a dureza das estradas, que são muito inclinadas, e pavimentadas com pequenas pedras, e, acima de tudo, a imundice dos ilhéus é tão desagradável, que creio que nunca chegaria a contemplá-la com indiferença – e tudo isto serve para ilustrar os confortos que são necessários para tornar a vida aprazível a uma pessoa acostumado a viver em Inglaterra” (MACQUARIE, 1809). [caption id="attachment_15563" align="alignleft" width="380"] Fig. 3 – Reprodução de “The Belladona Lily”Fonte: PENFOLD, 1845.[/caption] Houve duas Inglesas residentes na Madeira que foram responsáveis por promover a imagem da Ilha como paraíso tropical. Jane Wallas Penfold era filha de William Penfold, que era sócio de Henry Veitch; William Wordsworth compôs versos em sua homenagem, e Jane Penfold publicou os seus desenhos de plantas em Madeira Flowers, Fruits, and Ferns. Sua irmã, Augusta Jane (Penfold) Robley, também publicou as suas ilustrações em Selections of Madeira Flowers, Drawn and Coloured from Nature. Estas duas obras devem ter estimulado o interesse pela Madeira como destino adequado para o estudo da botânica e a produção artística. Emmeline Stuart Wortley, descrita por Jane Robinson como uma viajante obsessiva (ROBINSON, 1990, 121), escreve longamente tanto sobre Portugal continental como sobre a Ilha em A Visit to Portugal and Madeira. Confiante no seu estatuto social e nas suas capacidades literárias, Wortley narra a sua viagem a Portugal sem perder tempo com desculpas ou com falsas humildades. Por vezes, a sua obra lê-se como um romance, com retratos detalhados e extravagantes que roçam a caricatura; mas, a par das conversas e anedotas sobre a realeza europeia, figuram alguns comentários inteligentemente satíricos sobre a escravatura e o racismo, bem como críticas abertas ao deficiente sistema agrícola, que provoca a malnutrição infantil da população local. Apesar do estilo intenso, a autora fornece informações exatas sobre a Ilha, repetindo detalhes encontrados em livros anteriores. Também faz a obrigatória visita a S.ta Clara para ver a lendária Maria Clementina, imortalizada por Coleridge: “Esta freira foi uma criatura deslumbrante, que em tenra idade foi metida num convento por um pai austero, penso que por instigação da madrasta, e foi durante algum tempo muito infeliz. Já não é nova (e espero que já não seja infeliz), mas ainda se detetam traços da sua beleza outrora resplandescente” (WORTLEY, 1854, 302). [caption id="attachment_15566" align="aligncenter" width="332"] Fig. 4 – Reprodução de “Bird of Paradise”Fonte: ROBLEY, 1845[/caption] A autora explica então que houve um relaxamento da regra monástica no período do Governo Constitucional, e conclui a história de Clementina, que regressou à tranquilidade do convento, descrevendo de seguida a personagem, que se assemelha mais à marquesa de Alorna na sua grade do que a Mariana Alcoforado, discutindo os méritos relativos de madame de Staël e de lady Morgan (mencionada por Almeida Garrett no Diário de Minha Viagem a Inglaterra (1823-1824)). Tal como outros viajantes, Emmeline Wortley conhece Stoddard e o cônsul Veitch, nesta altura presumivelmente a gozar a reforma ou a tratar de negócios; e, à semelhança de outros escritores, não consegue deixar de referir a lenda de Machim. O leitor fica com a impressão de que lady Wortley tem um grande talento para ocultar os seus profundos conhecimentos em matérias como a agricultura, os negócios, a economia e a política por detrás de aparentes mexericos e meandros narrativos. A ironia é enganadora, até porque esta autora visitou a Madeira com um espírito aberto, e não com o simples fito de confirmar os seus preconceitos. Em 1882, Ellen M. Taylor publicou Madeira: Its Scenery and how to See It. With Letters of a Year's Residence and Lists of the Trees, Flowers, Ferns, and Seaweeds, um guia de viagem extremamente detalhado. Tendo-se deslocado à Madeira com uma amiga enferma, presume-se que tivesse bastante tempo disponível, e percebeu que tipo de informação era necessário dar para tornar mais fáceis a viagem e a estadia na Ilha; fez, pois, o seu trabalho de casa, consultando as autoridades na matéria. Não refere os aspetos já tratados por Grabham, e pede autorização à Sr.ª White, viúva de Robert White, e a James Yate Johnson, para se referir a Madeira. Its Climarw and Scenery. Regista o apoio que lhe foi dado por Charles Cossart e cita um artigo da Fraser’s Magazine, de agosto de 1875. O seu guia de viagens não se destina apenas a inválidos, informando também os leitores sobre hotéis, navios a vapor, restrições de bagagem, atividades recreativas e excursões, compras, a história e os hábitos, para além de ter uma lista de vocabulário útil. Para os que têm interesses culturais, cita John Mason Neale sobre a arquitetura de igrejas. Nas palavras de Jane Robinson, “tanto a ilha como o seu guia eram dedicados à busca passiva da saúde” (ROBINSON, 1990, 197). A Voyage in the “Sunbeam”. Our Home on the Ocean for Eleven Months difere em alguns aspetos de outros registos de damas inglesas: Annie Brassey descreve a viagem de circum-navegação que a sua família empreendeu à volta do mundo a bordo do iate a vapor do marido (1876-1877), a primeira do género. O iate atracou na Madeira (cap. 2) para uma breve visita, a que se seguiu o ritual de os visitantes de relevo serem recebidos pelos residentes ingleses. O livro foi um enorme êxito, tendo chegado às 19 edições e sido traduzido em 5 línguas. A família regressou à Madeira 7 anos depois, conforme é narrado em In the Trades, the Tropics, and the Roaring Forties: 14,000 Miles in the “Sunbeam” in 1883. A autora começa por pedir desculpa pelo seu trabalho, e depois conta os labores da viagem de ida para a Madeira para se encontrar com o marido e se juntar a ele no Sunbeam, após ter perdido a maior parte da bagagem porque o navio onde seguia meteu água; felizmente, os filhos e o cão, Sir Roger, tinham saído ilesos desta experiência. A narrativa inclui uma descrição de um navio escocês de emigrantes com destino à Austrália, e do hotel de S.ta Clara, onde foram atendidos pelo Sr. Reed, o proprietário, e pelo Sr. Cardwell, o gerente, que se encarregou da bagagem. A Ilha é povoada por uma série de figuras conhecidas, nomeadamente “o nosso velho amigo, o Dr. Grabham, o único médico inglês desta terra, um homem de enorme sucesso, repleto de informação sobre todas as matérias” (BRASSEY, 1878, 29); tal como muitos outros, visitam a quinta dos Blandy. Brassey sente-se obrigada a esboçar os momentos chave da história da Madeira, incluindo o mito de Machim, a visita do Cap. Cook no Endeavour, em 1768, e as ocupações britânicas em 1801 e 1807. O foco anglocêntrico é evidente. A família visita os locais habituais, é transportada em liteiras de rede, lancha com a Sr.ª Taylor, “uma antiga residente na Madeira, que generosamente partilhou connosco muitas informações úteis” (Id., Ibid., 56), e admira a paisagem e a vegetação. Há muito pouca informação sobre a população local e a cultura portuguesa, à exceção de aspetos pitorescos ou etnográficos; o leitor fica com a impressão de que a Ilha é praticamente uma colónia britânica, cuja principal função é dar conforto e entreter as classes privilegiadas das ilhas Britânicas. Helena Beatrice Richenda Saunders (1862-1947), a “ultramarina”, que mais tarde se casou com Charles Parham, escreveu The Contents of a Madeira Mail-bag, or, Island Etchings quando estava ainda na casa dos 20 anos; trata-se de um conjunto de cartas dirigidas a sua mãe, que se encontrava em Inglaterra, e que não se destinavam a ser publicadas, onde descreve a sua vida na Qt. das Flores com a tia. Algumas das suas experiências coincidem com as de Brassey, como o facto de o mesmo Sr. Cardwell lhes tratar da bagagem, apesar de nem ela nem a tia estarem hospedadas no hotel. Helena Parnham observa os homens que conduzem os carros de bois e transportam as liteiras, as mulheres nos seus trajes, as crianças semi-nuas, descreve a costureira, que treme de frio, comenta a meteorologia e a gastronomia (não aprecia a cozinha portuguesa) e os eventos sociais (não há referência a convidados portugueses), e conta à mãe que fica muito cansada depois dos banhos de mar, apesar de não haver indicações de que seja inválida. Receber uma carta de casa é para ela um evento importante, tal como é escrever à família a partilhar os conhecimentos recém-adquiridos, e.g., a lenda de Machim e o facto de Beresford ter vivido na Achada durante a ocupação. Mais tarde, Helena Parnham será uma conhecida botânica, sendo bastante provável que as suas experiências na Madeira tenham despertado o seu interesse pela flora e o mundo natural. O que é invulgar nela é a preocupação com a literatura: todas as suas cartas têm como epígrafe um verso, na sua maioria retirados de poemas de poetas ingleses eminentemente românticos – Southey, Hemans, Longfellow, entre outras figuras literárias a que se refere frequentemente. Além disso, ao contrário de outros escritores de viagens que temos vindo a mencionar, esforça-se por aprender português, tendo até ouvido falar de Camões; numa das suas cartas, refere-se mesmo à tradução de Mickle: “Leste ‘Os Lusíadas’ de Camões? Não me refiro ao original, visto que a obra é conhecida há um século em Inglaterra, graças à tradução em verso de Mickle. Tenho de a ler assim que tiver a oportunidade, visto que se trata do grande chef d’œuvre português, e descreve a descoberta do cabo da Boa Esperança, e de toda a costa de África” (PARHAM, 1885, 87). As flores da Madeira continuaram a exercer o seu fascínio sobre os visitantes ao longo do séc. XX. Ella Du Cane, que caiu nas graças da Rainha Vitoria, pintou aguarelas delicadas enquanto sua irmã Florence Du Cane escrevia o texto que preenche as páginas de The Flowers and Gardens of Madeira (1909). Florence cita Bowdich, Lyall, Yate Johnson e outros, refere-se a The Discovery of Madeira, escrito em 1750, menciona o dragoeiro, debate a origem de algumas plantas, discute design de jardins e fornece várias sugestões práticas de jardinagem. O livro também contém uma descrição histórica, com as habituais lendas e os costumeiros factos. Entre as mulheres que escreveram sobre a Ilha, contam-se ainda Jessie Edith Hutcheon e Elizabeth Nicholas. Há também, esporadicamente, publicações de especialstas, e.g. The Quintas of Madeira: Windows into the Past, uma obra de Marjorie Hoare sobre arquitetura, horticultura e história social.   Cultura literária A literatura nunca foi o foco da atenção dos visitantes britânicos da Madeira, que, na melhor das hipóteses, tinham um conhecimento rudimentar da língua portuguesa e aceitavam sem a questionar a tese estabelecida de que Portugal não possuía grandes escritores. Helena Parnham é a exceção à regra. Terence Macmahon Hughes – que compôs um poema à Madeira e sobre a Madeira, The Ocean Flower – comentou a poesia portuguesa apenas para a criticar. Os visitantes, quer por motivos de saúde, quer para fazer escala em viagens mais longas, mostravam-se bastante mais interessados na paisagem e na flora. Desde os finais do séc. XV que os Britânicos visitam a Madeira ou se instalam na Ilha, por uma multiplicidade de razões. A Ilha atraiu mercadores e comerciantes, indivíduos com olho para as possibilidades comerciais, primeiro do açúcar, depois do vinho, exportando o Madeira para Inglaterra e as suas colónias, e importando bens para vender aos ilhéus. Estes homens, por sua vez, precisavam de funcionários, e as mulheres deles de criados e de amas para os filhos; as famílias careciam de médicos e de padres, os inválidos e os visitantes de instalações médicas e hotéis, e foi assim que a elite expatriada e abastada se expandiu. Vale a pena perguntar se os Britânicos trataram a Madeira como trataram Portugal continental. Quando a Ilha se tornou estrategicamente importante para os Britânicos, estes não hesitaram em a ocupar, formalizando uma organização colonial que data do reinado de Carlos II. Este comportamento não será surpreendente quando recordamos a ocupação britânica de Portugal durante a Guerra Peninsular e o Ultimatum de 1890. Somos por isso tentados a questionar se as constantes alusões dos escritores de viagens a Robert Machim não serão uma forma subconsciente de legitimar as pretensões britânicas à Ilha. Com o tempo, a Madeira adquiriu o estatuto de “colecionável”. A “pérola do Atlântico” veio a ser estimada pelos Ingleses pelo seu calor benigno e pela beleza da sua flora e das suas paisagens. Era um objeto para admirar e tentar capturar, em texto e em imagem, através de desenhos, de aguarelas ou de fotografias. Tal como outros colecionáveis, podia ser transacionada, sucessivamente “vendida” às gerações de leitores que consumiam livros de viagens, para lhes satisfazer a curiosidade sobre terras distantes e exóticas e a forma de lá chegar. O atrativo da Madeira para os Britânicos talvez resultasse, em parte, da sensação de constituírem uma ilha dentro da Ilha, uma sociedade fechada dentro da qual não tinham de interagir grandemente com o outro – os católicos de pele escura –, num lugar onde os valores centrais da britanicidade podiam permanecer salvaguardados e intactos, mas num clima temperado. Ironicamente, além de divulgarem informações sobre o passado e o presente da Ilha, as obras discutidas tiveram o resultado acidental de construírem a história social dos ingleses na Madeira. Bibliog.: impressa: ADAMS, Joseph, The Superiority of the Climate of Madeira, Etc. An Account of Arrangements Made for the Treatment of Invalids on the Island, s.l., s.n., 1800; Id., Guide to the Island of Madeira. With An Account of Funchal, and Instructions to Those Who Resort thither for Their Health, London, T. N. Longman and O. 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Journal from 25 August 1768-12 July 1771, text prepared in 1962 from the manuscript held at the State Library of New South Wales: http://gutenberg.net.au/ebooks05/0501141h.html#sep1768 (acedido a 12 jan. 2017); MACQUARIE, Elizabeth, Journal 1809, transcript prepared by Robin Walsh from the manuscript held in Mitchel Library, Sydney: http://www.mq.edu.au/macquarie-archive/journeys/1809/1809.html (acedido a 12 jan. 2017).   Patricia Odber de Baubeta (atualizado a 01.02.2018)

História Económica e Social Madeira Global Sociedade e Comunicação Social

pernambuco

O Brasil exerceu, ao longo da história, um certo fascínio sobre os insulares, que se encontram ligados ao seu processo de construção desde o início. Nos sécs. XVI e XVII, destacou-se a presença de madeirenses, de norte a sul do Brasil, como lavradores e mestres de engenho, que foram pioneiros na definição da agricultura de exportação baseada na cana-de-açúcar, funcionários, que consolidaram as instituições locais e régias, e militares, que se bateram em diversos momentos pela soberania portuguesa. O forte impacto madeirense nos primórdios da sociedade brasileira levou Evaldo Cabral de Mello a definir a capitania de S. Vicente como a “Nova Madeira”. Evaldo Cabral de Mello Neto e José António Gonsalves de Mello são aliás raros exemplos na historiografia brasileira de valorização desta presença madeirense. Os primórdios da colonização do Brasil estão ligados à Madeira, tendo-se estabelecido uma ponte entre a Ilha e as colónias do Brasil. Os primeiros engenhos açucareiros foram construídos por mestres madeirenses. Na Baía, em Pernambuco e em Paraíba encontramos muitos madeirenses ligados à safra açucareira, como técnicos ou donos de engenho. A Madeira também serviu de modelo no processo de colonização do Brasil, nomeadamente no que respeita aos regimes de capitanias hereditárias e das sesmarias, e ainda no aparelho administrativo e religioso, pois o Funchal foi sede de arcebispado entre 1514 e 1533, com jurisdição sobre o Brasil. O progresso económico do Brasil veio despertar a atenção da burguesia madeirense, que emigrou para essa colónia à procura das suas riquezas, em particular o açúcar. Neste sentido, são várias as famílias brasileiras com origem madeirense. É o caso das famílias pernambucanas Regueiras, Saldanha, Moniz Barreto e Cunha, que teve a sua origem no madeirense Pedro da Cunha Andrade. Aos agricultores e técnicos de engenho seguiram-se os aventureiros, os perseguidos da religião (os judeus) e alguns foragidos da justiça. Deste modo, a presença de madeirenses, ainda que mais evidente nas terras de canaviais de Pernambuco, espalhou-se por todo o espaço brasileiro, com focos de maior influência em S. Vicente, na Baía, nas Caraíbas e nos ilhéus. A situação teve eco na historiografia brasileira. Afrânio Peixoto afirmava, em 1936, que a “Madeira foi entreposto, estância de passagem para o Brasil” (VIEIRA, 2004, 14). O processo de transferência de pessoas ganha uma nova vertente no séc. XVIII, com a emigração de casais. Esta foi a solução para resolver os problemas sociais das ilhas e garantir a soberania das terras do Sul brasileiro. Em 1746, temos o envio de casais açorianos e madeirenses para o Sul, como garantia de defesa das fronteiras do Tratado de Madrid. A fundação da cidade de Portalegre é feita por um madeirense, sendo aqui a presença de colonos, fundamentalmente, açoriana. Nos sécs. XIX e XX, o Brasil continuou a ser um destino cobiçado pelos insulares. A história e o quotidiano registam de forma evidente esse movimento. Nos sécs. XVIII e XIX, as ligações comerciais das ilhas com o Brasil mantêm-se suportadas na oferta insular de vinho e vinagre, mantendo-se o retorno de açúcar e aguardente. No séc. XX, o Brasil continuou a ser o El Dorado para os insulares, nomeadamente os madeirenses, que encontram no Rio e em Santos a possibilidade de fuga às dificuldades da guerra ou às difíceis condições de sobrevivência. A Inquisição exercia a sua atividade através do tribunal de Lisboa, a quem pertencia a jurisdição de todo o espaço atlântico. A ação do tribunal não era permanente e fazia-se através de visitadores enviados às ilhas. Na Madeira e nos Açores, realizaram-se três visitas: em 1575, por Marcos Teixeira, em 1591-1593, por Jerónimo Teixeira Cabral e em 1618-1619, por Francisco Cardoso Tornéo; todavia, só é conhecida a documentação das duas últimas visitas. Nas ilhas, é manifesta a conivência das autoridades com a presença da comunidade judaica, o que poderá resultar das facilidades iniciais à sua fixação. O Tribunal do Santo Ofício interveio apenas nas ilhas da Madeira e dos Açores, levando a julgamento alguns judeus, mas poucos, a avaliar pela comunidade aí existente e pela sua insistente permanência. No intervalo de tempo entre as visitas, o tribunal fazia-se representar pelo bispo, o clero, os reitores do Colégio dos Jesuítas, os familiares e os comissários do Santo Ofício. A presença da comunidade judaica era evidente. Os judeus, maioritariamente comerciantes, estavam ligados, desde o início, ao sistema de trocas nas ilhas, sendo os principais animadores do relacionamento e do comércio a longa distância. A criação do Tribunal do Santo Ofício em Lisboa obrigou os judeus a avançarem no Atlântico, por força da perseguição que lhes era movida, primeiro para as ilhas, depois para o Brasil. A diáspora fez-se de acordo com os vetores da economia atlântica, pelo que deixava um rasto evidente na sua rede de negócios. O açúcar foi, sem dúvida, um dos principais móbeis da atividade, quer nas ilhas, quer no Brasil. A par disso, o relacionamento com os portos nórdicos facilitou uma maior permeabilidade às ideias protestantes, o que gerou inúmeros cuidados por parte do clero e do Santo Ofício na visita às embarcações que chegavam ao Funchal. Outra motivação para a deslocação dos madeirenses para o Brasil decorria da necessidade de defesa daquele território. A libertação do Maranhão, em 1642, foi obra de António Teixeira Mello, enquanto em Pernambuco a resistência aos holandeses foi organizada desde 1645 por João Fernandes Vieira. Assim, a defesa da soberania portuguesa foi conseguida também com o envio de companhias de soldados desde a Ilha. O envio de soldados madeirenses para o Brasil continuou ao longo do séc. XVII, deste modo, temos a ida, em 1631, de João de Freitas da Silva; em 1632, de Francisco de Bettencourt e Sá; em 1646, de Francisco Figueiroa e, em 1658, de D. Jorge Henriques com 600 homens. Em 1696, temos o envio de 100 soldados para o estado do Maranhão. Já em 1734, a nova leva teve como destino Santos. Em 1774, foram 200 soldados da Madeira na companhia de 1000 homens enviados ao Rio de Janeiro. Para Santa Catarina temos notícia do envio de militares nos sécs. XVII e XVIII, antecedendo o período de colonização insular. Francisco de Figueiroa está, desde 1628, ligado a diversas campanhas em Pernambuco, mas, em 1646, encontrava-se na Madeira quando recebeu do Rei a carta de patente de mestre de campo. O terço de Francisco de Figueiroa é constituído por quatro companhias, sendo uma comandada pelo Cap. Manoel de Azevedo, que já havia servido no Rio de Janeiro, na Baía e em Pernambuco. Manoel Homem d’El-Rei era o capelão nomeado pelo próprio mestre de campo, enquanto António Faria era o ajudante. A despesa deste serviço é coberta pela Provedoria da Fazenda no Funchal, com o dinheiro reservado para a fortificação da Ilha. João de Freitas da Silva, sobrinho de Braz de Freitas da Silva, foi morto em Pernambuco à testa da companhia de 100 homens que havia levantado. Em razão disso teve seu tio, em 07/08/1647, uma comenda de Cristo com 100 cruzados de pensão. Heitor Nunes Berenguer, filho de Cristóvão Berenguer, foi distinguido com uma comenda e hábito da Ordem De Cristo Para seu filho Belchior e uma promessa de 40$000 de pensão, por terem ambos servido na Baía e em Pernambuco (26/10/1648). Francisco foi capitão duma companhia enviada a Angola e serviu também em Pernambuco e Castela. Obteve 30$000 de tença nas obras pias, com hábito de Santiago e alvará de ofício de justiça para quem casasse com sua filha. Joane Mendes de Vasconcelos ajudou no Brasil a matar os flamengos e foi sargento e alferes. Em 12/08/1648, deu-lhe o monarca a mercê de 20$000 réis de pensão, em comenda de Santiago, ou um foro de Setúbal da mesma quantia e hábito daquela Ordem. Apoio financeiro-militar Em 1637, com a ocupação holandesa de Pernambuco, os madeirenses foram convidados a participar com uma finta de 13.000 cruzados, sendo 10.000 angariados pela capitania do Funchal e apenas 3.000 pela capitania de Machico, para as despesas com a restauração do Brasil; este valor foi cobrado a partir do real de água e do cabeção das sisas. Os madeirenses reclamaram, dizendo que o dinheiro fazia falta na Ilha, para a fortificação e preparação da defesa contra os corsários, apontando o caso de 1566. A propósito referem o gasto de 800 cruzados da renda da imposição do vinho com este fim, ao mesmo tempo que manifestam o seu desagrado pela despesa e o mal-estar criado com as três alçadas de 1615. Consideram, ainda, que este encargo sobre o preço do vinho podia afugentar os mercadores do porto. Já a vereação de Machico, em maio, apontava a pobreza da Ilha e as dificuldades que o mesmo finto iria causar aos madeirenses. No processo de defesa do Brasil, destacam-se várias personalidades madeirenses, que ficaram figurando no panteão de heróis libertadores de Pernambuco. Francisco de Figueiroa Nasceu na Madeira nos finais do séc. XVI. Em 1663, dizia ter mais de 60 anos. Foi o mais idoso dos participantes nas guerras de restauração, em Pernambuco. Começou a sua vida militar, em 1615, numa expedição comandada por Manuel Dias de Andrade, com o intuito de expulsar os piratas argelinos que se haviam fixado no Porto Santo. Em 1624, tomou parte na expedição que correu a costa de Portugal, comandada por D. Manuel de Menezes. No mesmo ano, tomou parte na chamada “jornada dos vassalos”, comandada por D. Fradique do Toledo Osório, que recuperou a Baía ao poder holandês. Em 1626, fez parte da armada que se destinava a proteger a frota da Índia nos mares próximos da Europa, onde costumava ser atacada por holandeses e ingleses. Esta expedição foi assolada por grandes temporais, fazendo muitos desaparecidos devido aos naufrágios. Figueiroa salvou-se a nado. Em 1628, embarcou na expedição sob comando de Rui Calaça Borges, com a missão de expulsar da ilha de Fernando de Noronha os holandeses que ali se haviam fixado, comandados pelo famoso pirata “Pé de Pau”. A 10 de janeiro do ano seguinte, estava de volta a Pernambuco. Em fevereiro desse ano, Figueiroa estava, de novo, a enfrentar os holandeses, sob o comando do Cap. Pereira Temudo, a quem coube defender as praias do Rio Tapado e Pau Amarelo, onde haviam desembarcado holandeses. O Cap. Temudo morreu em combate com os holandeses e Francisco Figueiroa foi o escolhido para o substituir. A 25 de fevereiro de 1629, foi mandado para o Forte de S. Jorge, para reforçar a guarnição do Cap. António de Lima, que acabaria derrotada pelos holandeses. Feitos prisioneiros, os portugueses foram obrigados a jurar não tomar arma de novo, o que Figueiroa, entre outros, se recusou a fazer, ficando prisioneiro por algum tempo. Em março, já era referido noutros serviços como capitão. A 10 de agosto, participou na guarnição das obras da trincheira de defesa do vau do Rio Beberibe, no Buraco de Santiago, que os holandeses destruíram a 23 de setembro. Tomou parte na refrega que se seguiu ao incêndio da casa de Francisco do Rego, nas Salinas, permanecendo aqui algum tempo, para defesa de várias casas que os holandeses incendiavam. A 10 de junho de 1631, Figueiroa distinguiu-se na defesa da Estância da Passagem dos Afogados. Em 1633, participou na defesa do Arraial do Bom Jesus, que era alvo de ataque dos holandeses. No ano seguinte, participou na defesa do cabo de Santo Agostinho e suas fortalezas, onde tinham desembarcado os holandeses. Em 1639, dirige-se a Angola, sendo nomeado almirante da expedição. A 20 de abril, a sua nau foi forçada a arribar à ilha da Madeira, por não trazer a carga bem arrumada, chegando a Luanda a 18 de outubro desse ano. Aqui, foi nomeado ouvidor-geral e corregedor da comarca. Exerceu bem estes cargos, administrando a justiça com a mesma qualidade com que guerreava. A 30 de maio de 1641, partiu do Recife uma expedição de 21 navios holandeses, com o objetivo de tomar Luanda e ocupar Angola, de forma a dominar o mercado de escravos da região, que era importante para o fornecimento de mão de obra para os engenhos de Pernambuco. A 17 de maio de 1643, os holandeses atacaram, de surpresa, o Bengo, matando e aprisionando os seus moradores, entre os quais o governador e o ouvidor, Francisco de Figueiroa. Do Bengo, os prisioneiros foram levados a Luanda e, daí, muitos embarcaram para o Recife, entre eles Figueiroa. Do Recife foi para a Baía e dali foi mandado para o reino, no ano de 1644. No princípio do ano de 1646, Figueiroa encontrava-se na Madeira, onde recebeu, em abril, uma carta de D. João IV, a nomeá-lo mestre de campo do terço das ilhas de Pernambuco, indicando-lhe o caminho do Brasil e recomendando que se fizesse acompanhar do maior número de gente das ilhas que pudesse, para socorrer o Brasil de ataques dos holandeses. Em 1647, chega à Baía e, em 1653, ao Recife, distinguindo-se em várias batalhas da guerra da restauração. Em reconhecimento pelos seus serviços, o Rei, em 1654, fez-lhe mercê de uma comenda da Ordem de Cristo, de Santo Ildefonso, do bispado de Coimbra da mesma ordem, e deu-lhe o governo de Cabo Verde e ainda o de Paraíba, caso João Fernandes Vieira não o quisesse. Mais tarde, perante recurso, o Conselho Ultramarino fez-lhe mercê do foro de fidalgo com moradia ordinária. O Rei, a 21 de abril de 1655, concedeu-lhe o foro e acrescentou a promessa do aumento da comenda de 120 para 150$. Não se sabe quando veio Figueiroa para Portugal, mas sabemos que já cá estava, em 1656. A 14 de março, é nomeado para o cargo de governador e capitão-general das ilhas de Cabo Verde, que governou até 1662. Aqui foi objeto de uma devassa, sendo preso, em 1664, solto no ano seguinte, e autorizado a regressar a Portugal. António de Freitas da Silva Foi capitão nas guerras de Pernambuco, general da Armada Real, comendador da Ordem de Cristo e participou na restauração do Brasil. Era descendente de João de Freitas da Silva que, em 1631, levantou, na ilha da Madeira, a suas expensas, uma companhia de 100 homens para servir em Pernambuco, logo após a tomada desta cidade pelos holandeses, perdendo aí a vida. João Fernandes Vieira (c. 1610-1681) São várias as teses sobre a sua filiação, que levantaram dúvidas e controvérsia. Diz-se que nasceu por volta do ano de 1610, filho segundo de Francisco de Ornelas Muniz, do Porto da Cruz; que tinha o nome de Francisco de Ornelas; que fugiu sozinho e por iniciativa própria para o Brasil, com apenas 10 anos, tendo mudado de nome, quando aí chegou, para João Fernandes Vieira. Em Pernambuco, cidade para onde se dirigiu e onde se fixou, serviu como assalariado e, depois, como auxiliar de marchante. No início das invasões holandesas ao Recife, apresentou-se como voluntário para servir na guerra e participou, em 1630, na defesa do forte de S. Jorge, tendo aí ficado três dias e três noites de sentinela. Nesta altura, já gozava de uma situação económica desafogada, dispondo de dois criados ao seu serviço. Em 1635, caiu o Arraial na posse dos holandeses e a amizade que o ligava a Jacob Stachouwer conduziu-o a uma aproximação aos holandeses, com quem estabeleceu estreitas ligações. Inicia-se, aqui, a sua ascensão social e económica na sociedade pernambucana do seu tempo. Em 1638, Stachouwer regressa à Holanda e faz de Vieira seu procurador, assumindo este a administração dos três engenhos daquele (do Meio, Ilhetas e Santana). Em 1639, Vieira era já uma figura de proa da comunidade portuguesa de Pernambuco, sendo o seu nome indicado, em junho desse ano, para o cargo de escabino de Olinda, não sendo, no entanto, o escolhido. A partir daqui, Vieira acomodou-se à governação holandesa, de forma a poder servir os seus interesses de senhor de engenho e de homem de negócios. Em 1640, Vieira considerou-se plenamente vitorioso na sua longa ascensão, de menino de açougue a senhor de engenho de amplos haveres. Após a compra dos três engenhos, que adquiriu a crédito, adiantou dinheiro à Fazenda Real e serviu de intermediário na compra de açúcar para a Companhia das Índias Ocidentais. Contratou a captura de escravos pertencentes aos emigrados de Pernambuco, arrematou o contrato da pensão dos engenhos e, ao mesmo tempo, negociava no Recife com loja de comércio, de que também o encarregara Stachouwer, comprando grandes quantidades de fazendas, de roupas e de escravos. Arrematou a cobrança dos três principais contratos das rendas da colónia. Representou os moradores portugueses da várzea do Capibaribe na assembleia que se reuniu de 27 de agosto a 4 de setembro de 1640. Em 1641, Vieira encarregou-se, por contrato com o Alto Conselho Holandês, de estabelecer dois trapiches nas margens dos rios Capibaribe e Beberibe, para recolher caixas de açúcar. Ainda neste ano, arrematou a cobrança de vários impostos, como os dízimos dos açúcares de Pernambuco, por 154.000 florins, e os de Itamaracá, por 5000 florins, as pensões dos engenhos de Pernambuco, por 29.000 florins, e o dízimo das freguesias de Iguaraçu, S. Lorenço, Paratibe e N.ª Sr.ª da Luz por 5.000 florins. Em outubro de 1641, os holandeses Laureus Cornelissem de Jonge e Jan Sybrantsen Schoutsen trespassaram-lhe o contrato da balança. Ao mesmo tempo, contraiu dívidas enormes. Tomou, à sua conta, os engenhos comprados a crédito por Stachouwer e por este em sociedade com Nicolaes de Ridder, já referidos, comprometendo-se a pagar por eles 119.000 florins. Além destes engenhos, adquiriu escravos e cobres. Vieira possuía também terras onde criava gado e cortava pau-brasil. Foi eleito escabino de Maurícia para os anos de 1641 e 1642, tendo sido reconduzido para o cargo no ano seguinte. Para manter toda esta situação económica, alimentou uma estreita amizade com os holandeses, a quem serviu de conselheiro, obsequiando-os com lautos banquetes. João Fernandes Vieira era por eles considerado como pelos serviços prestados aos holandeses. Comportou-se sempre com dissimulação pois, ao mesmo tempo que colaborava com os holandeses, não se afastou da fidelidade ao seu país, nem deixou de combater ao lado dos que lutavam contra a usurpação holandesa. Em 1638, após a conjura contra os holandeses, interferiu em favor dos presos. A partir de 1641 ou começos de 1642, Vieira fez parte do principal núcleo de reação contra os holandeses, que era o dos senhores de engenho e lavradores da Várzea do Capibaribe, do qual seu sogro era uma das figuras de proa. Todo o prestígio acumulado nestes anos iria fazer dele o chefe, do qual iria depender a vitória ou o fracasso da insurreição pernambucana. A partir de 1645, insatisfeito com o estado de coisas a que chegara a ocupação holandesa, João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros vão liderar a revolta dos naturais da terra pela restauração do território brasileiro, devolvendo-o à soberania portuguesa em 1654, num movimento a que chamaram Insurreição Pernambucana. O movimento começou no engenho S. João da Várzea, a 15 de junho de 1645, onde um grupo de 300 homens derrotou 1200 holandeses. Assim começou a guerra de restauração, que terminou em janeiro de 1654, com a capitulação do Recife. Na sociedade de então, o senhor de engenho era a figura de maior destaque, um verdadeiro senhor feudal, que possuía privilégios e integrava a chamada nobreza terratenente. João Fernandes Vieira rapidamente se tornou feitor-mor, fazendo crescer a sua riqueza graças aos seus esforços e às doações recebidas do seu empregador, Afonso Rodrigues Serrão, e de sua mulher, bem como da amizade com Jacob Stachouwer. Quando morreu, em Olinda, a 10 de janeiro de 1681, era proprietário de 16 engenhos e muitas terras onde criava gado, no Rio Grande do Norte, chegando a promover uma leva migratória de casais madeirenses e açorianos para o Nordeste brasileiro. Comércio Foi o açúcar a principal ou uma das principais causas da rede atlântica de negócios, que perdurou por alguns séculos. A Madeira, que até à primeira metade do séc. XVI havia sido um dos principais mercados do açúcar do Atlântico, cede lugar a outros (Canárias, São Tomé, Brasil e Antilhas). Deste modo, as rotas divergiram para novos mercados, colocando a Ilha numa posição difícil; por um lado, os canaviais foram abandonados na sua quase totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante indústria de conservas e doces e, por outro lado, o porto funchalense perdeu a animação que o caracterizara noutras épocas. A solução possível para debelar esta crise foi o recurso ao açúcar brasileiro, usado no consumo interno madeirense, para as indústrias que dele precisavam, ou como animador das relações da Ilha com o mercado europeu. Por isso, os contactos com os portos brasileiros adquiriram uma importância fundamental nas rotas comerciais madeirenses do Atlântico Sul. Tal como refere José Gonçalves Salvador, as ilhas funcionaram, no período de 1609 a 1621, como o “trampolim para o Brasil e Rio da Prata” (SALVADOR, 1978, 247). É o mesmo quem esclarece que estas rotas podiam ser diretas, ou indiretas, sendo estas últimas traçadas através de Angola, São Tomé, Cabo Verde ou da costa da Guiné. O Brasil foi, a partir de finais do séc. XVI, o principal mercado para o vinho Madeira, onde era trocado por açúcar. A Coroa proibiu, em 1598, os mercadores e as embarcações provenientes do Brasil de fazerem escala na Ilha, como forma de defesa do açúcar local. A medida foi considerada lesiva para o comércio do vinho e favorável ao de La Palma. Os madeirenses reclamaram em 1621, obtendo autorização para comerciar o vinho no mercado brasileiro. A partir daqui, os contactos com o Brasil tornaram-se assíduos, afirmando-se pela sua posição dominante no consumo do vinho Madeira. Em 1663, Eduard Barlow conduziu 500 pipas ao Rio de Janeiro, justificando-se a escolha pelo facto de ser o único vinho que se adaptava aos locais quentes. Esta situação favoreceu a frequência do vinho no mercado brasileiro, nomeadamente na Baía e em Pernambuco. Este último porto recebeu, entre 1687 e 1694, um volume de 2249 pipas. As rotas comerciais definiam um circuito de triangulação, de que são exemplo as atividades comerciais de Diogo Fernandes Branco, no período de 1649 a 1652. Desde finais do séc. XVI, estava documentado o comércio do açúcar, servindo os portos do Funchal e de Angra do Heroísmo como entrepostos para a sua saída legal ou de contrabando para a Europa. Este comércio de açúcar do Brasil foi, por imperativos da própria Coroa ou por solicitação dos madeirenses, alvo de frequentes limitações. Assim, em 1591, ficou proibida a descarga do açúcar brasileiro no porto do Funchal, medida que não produziu qualquer efeito, pois, em vereação de 17 de outubro de 1596, foi decidido reclamar junto da Coroa a aplicação plena de tal proibição. Desde 1596 é evidente uma ativa intervenção das autoridades locais na defesa do açúcar de produção local, o que constitui uma prova evidente de que se promovia esta cultura. Em janeiro daquele ano, os vereadores proibiram António Mendes de descarregar o açúcar de Baltazar Dias. Passados três anos, o mesmo surge com outra carga de açúcar da Baía, sendo obrigado a seguir para o seu porto de destino, sem proceder a qualquer descarga. O não acatamento das ordens do município implicava a pena de 200 cruzados e um ano de degredo. Esta situação repete-se com outros navios nos anos subsequentes, até 1611, v.g.: Brás Fernandes Silveira, em 1597; António Lopes, Pedro Fernandes, “o grande”, e Manuel Pires, em 1603; Pero Fernandes e Manuel Fernandes, em 1606; e Manuel Rodrigues, em 1611. A constante pressão dos homens de negócios do Funchal envolvidos neste comércio veio a permitir uma solução de consenso para ambas as partes. Assim, em 1612, ficou estabelecido um contrato entre os mercadores e o município, em que os primeiros se comprometiam a vender um terço do açúcar da Madeira. Note-se que, desde 1599, estava proibida a compra e venda deste açúcar, sendo os infratores punidos com a perda do produto e a coima de 200 cruzados. Mas, a partir de dezembro de 1611, ficou estipulado que a venda de açúcar brasileiro só seria possível após o esgotamento do da Madeira. Por esse motivo, os vereadores entregaram Domingos Dias nas mãos do alcaide, sob prisão, por ter vendido 50 caixas de açúcar brasileiro aos ingleses. Em 1620, a transação do açúcar da Madeira e do Brasil era feita à razão de um por dois, ou seja, por cada caixa do Brasil deviam ser vendidas duas da Ilha, sendo o embarque feito por licença assinada por dois vereadores e um juiz. Para assegurar este controlo, os escravos e barqueiros foram avisados de que, sob pena de 50 cruzados ou dois anos de degredo para África, não poderiam proceder ao embarque de açúcar sem autorização da Câmara. Em 1657, a proporção entre o açúcar da Ilha e o do Brasil açúcar era de metade. Após a restauração da independência de Portugal, o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações. Primeiro, foi a criação do monopólio do comércio com o Brasil, através da Companhia criada para esse efeito, depois, o estabelecimento do sistema de comboios para maior segurança da navegação. Desta situação, estabelecida em 1649, ressalva-se o caso particular da Madeira e dos Açores que, a partir de 1650, passaram a poder enviar, isoladamente, dois navios com capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, que seriam, posteriormente, trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Mais tarde ficou estabelecido que os madeirenses não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar. Por determinação de 1664, estes navios pagavam um donativo de 50.000 réis, existindo no Funchal um comissário dos comboios, que procedia à arrecadação dos referidos direitos. No ano de 1676, era Diogo Fernandes Branco quem os administrava. De acordo com as recomendações do Conselho da Fazenda, a arrecadação dos direitos de entrada do açúcar do Brasil era lançada em livro próprio. Estes dados permitem avaliar a importância das relações comerciais entre a Madeira e o Brasil, assentes, predominantemente, no açúcar. Para o período de 1650 a 1691, foi possível identificar 39 navios provenientes da Baía, do Rio de Janeiro, de Pernambuco e do Maranhão, com mais de 10.000 caixas de açúcar. Destes, 18 são navios de Pernambuco, com 3343 caixas de açúcar e 71 caras (i.e., a primeira parte do açúcar da forma, que era o açúcar mais puro e de melhor qualidade). A partir da Baía, do Rio de Janeiro e do Recife, chegava o açúcar, a farinha de pau e o mel. D. Guiomar de Sá assumiu aqui um papel destacado na segunda metade do séc. XVIII. À sua conta, entraram na Ilha 2058 arrobas de açúcar branco e 438 de mascavado, com origem no Rio de Janeiro ou em Pernambuco. Um facto de particular interesse é a participação neste comércio das comunidades da Companhia de Jesus da Baía, do Rio de Janeiro e do Maranhão que, usufruindo do privilégio de isenção dos direitos, também colocavam açúcar das fazendas no mercado madeirense, conduzindo à Ilha 82 caixas de açúcar, sendo 7 do Maranhão, 65 da Baía e 10 do Rio de Janeiro. No séc. XVII, o grosso das exportações em torno do açúcar na Ilha tem como origem o Brasil: em 1620, do açúcar exportado do porto do Funchal, 23.560 arrobas eram do Brasil e 1992 da produção local, enquanto em 1650 surgem só 83 caixas do Brasil e 111 caixas de produção madeirense. Para o período de 1650 a 1691 conse­guimos identificar 53 navios provenientes da Baía, do Rio de Janei­ro, de Pernambuco, de Paraíba, do Pará e do Maranhão, que conduziram ao Funchal mais de 10.000 caixas de açúcar. O açúcar brasileiro foi, na segunda metade do séc. XVI, uma mercadoria importante do comércio na Ilha e das principais fontes de receita para o Erário Régio. Esse período marca o início da quebra do comércio, que teve repercussões evidentes no negócio de casca e conservas. Assim, em 1779, o governador João Gonçalves da Câmara refere que o comércio da casca estava quase extinto. O movimento das duas embarcações madeirenses consignadas ao comércio com o Brasil fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda, mediante as licenças, e a sua entrega deveria ser feita no sentido de favorecer todos os mercadores da Ilha. Para estes navios havia uma escrituração à parte na Alfândega. Mesmo assim, nos dados compilados é bem visível a presença, neste tráfico, de embarcações não autorizadas, como se pode verificar pelo movimento de entradas no porto do Funchal. Os navios não incluídos no número estabelecido para a Ilha declaram sempre ser vítimas de um naufrágio ou de ameaças de corsários, o que não os impede de descarregarem sempre algumas caixas de açúcar. Será esta uma forma de iludir as proibições estatuídas. Para o séc. XVIII, o movimento amplia-se, não obstante as insistentes recomendações para o respeito da norma estabelecida no século anterior. Nesta centúria, foi possível reunir 117 licenças para o período de 1736 a 1775, que equivaleram a 151 ligações com Pernambuco, que assumem uma posição dominante à frente da Baía. Neste circuito de escoamento e comércio do açúcar brasileiro, é evidente a intervenção de madeirenses e açorianos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso comércio do açúcar, tabaco e pau-brasil. Mas o trajeto destas rotas comerciais ampliava-se até ao tráfico negreiro, cobrindo um circuito de triangulação. Para isso, os madeirenses criaram a sua própria rede de negócios, com compatrícios fixos em Angola e no Brasil. Releva-se a figura de Diogo Fernandes Branco, cuja atividade incidia, preferencialmente, na exportação de vinho para Angola, onde o trocava por escravos que, depois, ia vender ao Brasil para conseguir açúcar. O circuito de triangulação fechava-se com a chegada das naus à Ilha, vergadas sob o peso das caixas de açúcar ou dos rolos de tabaco. A partir daqui iniciava-se outro processo de transformação do produto em casca ou conservas. Esta era uma tarefa caseira que ocupava muitas mulheres na cidade e arredores. Os mercadores, como Diogo Fernandes Branco, coordenavam todo o processo, de acordo com as encomendas que recebiam, uma vez que o produto, depois de laborado, deveria ter rápido escoamento. Os principais portos de destino situavam-se no Norte da Europa: Londres, Saint-Malo, Hamburgo, Rochela, Bordéus. Diogo Fernandes surge-nos neste circuito como o interlocutor direto dos mercadores das praças de Lisboa (no caso, Manuel Martins Medina), Londres, Rochela e Bordéus, satisfazendo a sua solicitação de vinho e derivados do açúcar a troco de manufaturas, uma vez que o dinheiro e as letras de câmbio raramente encontravam destinatário na Ilha. A par disso, manteve a sua rede de negócios apoiado em alguns mercadores de Lisboa e das principais cidades brasileiras. São múltiplas as operações comerciais registadas na sua documentação epistolar. À primeira vista, parece-nos que se especializou em duas atividades paralelas: o comércio de vinho para Angola e Brasil, e o de açúcar e derivados para a Europa. Esta situação repercute-se, de modo evidente, na produção e no comércio de casca, que era um dos principais sustentáculos da produção local de açúcar e importação do Brasil.   Alberto Vieira (aualizado a 24.02.2018)

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sociedade de desenvolvimento da madeira

A constituição da sociedade concessionária da administração e exploração da Zona Franca da Madeira (ZFM), o Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM), inscreveu-se no quadro da Convenção de Quioto de 1973, que admite a gestão de zonas francas por autoridades públicas ou por pessoas singulares ou coletivas. Para esse efeito, a Região Autónoma da Madeira (RAM) assinou, em 1984, em Nova Iorque, um protocolo com a Pelican Finance Corporation, a qual se comprometeu a constituir a Madeira Investment Company como veículo para um investimento até 20 milhões de dólares na ZFM, enquanto sócia da sociedade a constituir em parceria com a RAM, ficando estipulado que a RAM deteria 25 % do capital social, com direitos especiais de voto. No desenvolvimento e aprofundamento do protocolo foi constituída a Sociedade de Desenvolvimento da Madeira (SDM), em cerimónia decorrida a 30 de novembro de 1984 na Quinta Vigia, sede da Presidência do Governo Regional da Madeira (GRM), com a intervenção do notário privativo do Governo. Em 1986, a Assembleia Regional da Madeira autorizou o GRM a adjudicar a administração e exploração da ZFM em regime de concessão de serviço público, o que veio a acontecer em 1987. Nesse ano, a SDM transformou-se em sociedade anónima e o capital social detido pela Madeira Investment Company foi adquirido pelo empresário madeirense Dionísio Pestana. A opção por uma gestão em moldes empresariais privados derivou não só da aplicação dos princípios de simplificação e desburocratização administrativas, com reconhecimento da detenção de know-how por parte da concessionária, mas também da conveniência e vantagem de a interlocução com o mundo empresarial ser assegurada num plano e registo de igual natureza e pulsação. A concessão foi adjudicada por um prazo de 30 anos, sem prejuízo da sua renovação ou prorrogação. No exercício das suas competências, por força da lei e do contrato de concessão, a SDM procedeu à construção das infraestruturas internas da Zona Franca Industrial (ZFI), cabendo ao GRM adquirir os imóveis, que permanecem na sua titularidade, necessários à instalação da ZFI e assegurar o abastecimento dos serviços básicos até ao perímetro da ZFM. Após a celebração do contrato de concessão, a SDM iniciou a atividade concessionada e, em 1989, procedeu à primeira ação promocional do CINM, através de um seminário realizado na Law Society, na cidade de Londres, dando, assim, o primeiro passo formal para a promoção da Madeira em mercados onde o seu nome era desconhecido na sua qualidade de centro internacional de negócios. Esse trabalho foi desenvolvido por meio de seminários, de conferências, de reuniões com instituições, de empresários e escritórios de advogados, de auditores e consultores económicos e financeiros em todos os continentes, como também mediante uma rede de correspondentes e representantes contratados para o efeito pela SDM. Em 2012, a Assembleia Legislativa da Madeira, a propósito do processo de revisão dos limites máximos aos benefícios fiscais (plafonds), reconheceu o trabalho da SDM, numa resolução tomada sem votos contra e com os votos favoráveis dos três partidos do arco governamental (PSD, CDS e PS), considerando que a promoção efetuada era tão difícil como eficaz, tão complexa como eficiente e persistente. Além destas competências, a concessionária tem, ainda, a faculdade de emitir uma pronúncia sobre o mérito das candidaturas ao licenciamento de atividades, com emissão, por delegação de poderes, da respetiva licença, de aprovar os projetos de instalação, com emissão de licença de construção, das empresas na ZFI e de fiscalizar o exercício das atividades pelas entidades licenciadas. Para além das obrigações legais e contratuais, a concessionária, com o estatuto de parceiro institucional do Governo da República e do Governo Regional, participa, desde sempre, no processo de produção legislativa e de solução de questões emergentes, nas negociações dos regimes fiscais do CINM junto da Comissão Europeia, bem como na modelação inicial dos tratados, para evitar a dupla tributação, e ainda no Código de Conduta para a Fiscalidade das Empresas, no âmbito da União Europeia, e no Fórum para as práticas fiscais prejudiciais, que foi encetado no contexto da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. A concessionária permitiu ao erário público, inclusivamente, a existência de um regime flexível e exequível de cobrança das taxas de instalação e anuais de funcionamento, pagas pelas empresas licenciadas no CINM, recebendo a RAM uma percentagem das mesmas, assim como a usufruição de dividendos, enquanto acionista da concessionária.   José António Câmara (atualizado a 31.12.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social

shaw, george bernard

O dramaturgo irlandês George Bernard Shaw foi uma das personalidades famosas que visitaram a Madeira e ficaram hospedadas no célebre Hotel Reid’s Palace. Shaw desembarcou na Madeira em dezembro de 1926 para uma “cura de sol”. Mais tarde, a estadia seria descrita pelo New York Times como um período bastante criativo. Além disso, Shaw aprendeu a dançar tango e usufruiu das cálidas águas do Oceano Atlântico. Palavras-chave: dramaturgo; viagem; cura; sol. Dramaturgo, romancista, ensaísta e jornalista irlandês nascido a 26 de julho de 1856, em Dublin. Recebeu, em 1925, o Prémio Nobel da Literatura, passando pela Madeira um ano depois. Filho de George Carr Shaw, um pequeno comerciante de cereais e detentor de um pequeno cargo de oficial civil, e de Elizabeth Lucinda Shaw, uma cantora profissional que lhe transmitiu o gosto pela música, nasceu no seio de uma família anglo-irlandesa protestante que fazia parte das classes mais privilegiadas de uma Irlanda marcadamente pobre. Tendo consciência desta realidade, Shaw repudiou desde sempre a pobreza, tal como o país que o viu nascer. Foi igualmente marcado pela casamento falhado dos pais, não sendo, pois, de admirar que as suas obras reflitam sobre o tema do casamento e da vida conjugal. Tendo-se mudado para Londres quando a mãe conheceu o professor de música George John Vandeleur Lee, viu-se envolvido num meio musical que o motivou, mais tarde, a ganhar a vida como crítico de música, ao mesmo tempo que iniciava uma pesquisa social que serviria de génese às suas obras literárias. Rebelde e com sensibilidade social, nunca deixou de expressar o que pensava sobre os males da sociedade que conheceu e em que viveu, bem como os males do mundo em geral. Foi aliás este seu carácter rebelde que o levou a abandonar prematuramente os estudos na Dublin English Scientific and Commercial Day School, exatamente por detestar a imposição dos ensinamentos escolares e religiosos. Assim, apesar da educação religiosa, cedo se rebelou contra as instituições que impunham limites à liberdade, tendo sido um opositor da rigidez vitoriana. Foi um grande antagonista do Cristianismo, porque abominava as superstições e aquela que considerava uma religião vingativa ensinada às crianças na catequese. Dizia-se contra um Deus maléfico que não hesitava em sacrificar inocentes. Antes de se tornar um dramaturgo de renome, Bernard Shaw já havia começado a sua luta política, mostrando propensão para o compromisso social, que marca todo o seu percurso social e literário. A sua escrita e os seus discursos panfletários de socialista fabiano refletiam, então, a sua rebeldia. Nesta medida, os seus primeiros romances abordam já questões ligadas à doutrina socialista, sendo marcados pelas leituras que fez de Progress and Poverty, de Henry George, e de Das Kapital, de Karl Marx. No início, os seus romances, sendo reveladores de uma obra que se rebelava contra a sua própria classe social, credo e todo um conjunto de regras adquiridas e impostas, não tiveram sucesso em Inglaterra, mas eram muito lidos nos EUA e em vários países europeus. Foi esta personalidade controversa que, a 30 de dezembro de 1924, desembarcou na Madeira, tendo ficado hospedado no Hotel Reid’s. O facto é relatado no livro Reid’s Palace: The Most Famous Hotels in The World, de Andreas Augustin. Citando uma reportagem publicada no New York Times, Augustin refere que Bernard Shaw foi à Madeira para uma cura de sol, aproveitando a sua passagem pela ilha para umas lições de tango, tendo regressado depois com melhor saúde a Londres. Contudo, o próprio admitiria que a sua passagem pela Madeira não foi apenas curativa. O período em que permaneceu na ilha correspondeu também a uma grande fase criativa, tendo aí completado uma peça que seria pouco depois levada à cena. Na Madeira, George Bernard Shaw teve também lições de tango pela mão de Max Rinder, professor de dança do Reid’s Palace. Segundo Augustin, o dramaturgo deixou mesmo uma dedicatória a Rinder, na qual admitia que o instrutor de dança teria sido o único homem que lhe tinha ensinado alguma coisa. Para além disso, terá realizado várias excursões e apreciado as cálidas águas do Atlântico, onde costumava mergulhar, facto documentando por uma foto publicada no livro de Augustin. O dramaturgo irlandês falaria mais tarde sobre a sua passagem pela Madeira numa peça jornalística publicada pelo New York Times, a 28 de janeiro de 1926. Na altura, e quando confrontado com a declaração de Max Rinder de que tinha ensinado Shaw a dançar o tango na Madeira, George Bernard Shaw disse que tais afirmações eram literalmente verdadeiras. O dramaturgo acabaria por acrescentar que não continuou as suas lições de tango após o regresso a Londres porque não tinha o tempo nem a juventude necessários para tal. George Bernard Shaw foi, assim, uma das muitas personalidades que passaram pelo Hotel Reid’s, que acolheu outros nomes famosos, como alguns elementos da Casa dos Lordes britânica, o artista Max Römer e o político Winston Churchill, entre outros. A obra de Bernard Shaw chegou tardiamente a Portugal, já depois de este ter sido consagrado com o prémio Nobel da Literatura em 1925, tendo sido poucas as obras traduzidas para português. De realçar, contudo, que, em 1956, a peça Santa Joana foi representada no Teatro D. Maria II pela Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, sendo acolhida com grande sucesso. Bernard Shaw faleceu em 1950, deixando uma vasta obra onde se inclui crítica, romance, ensaio e drama moderno, de cariz explicativo e denunciante, antes mesmo da consciencialização e politização do teatro épico de Brecht. Obras de George Bernard Shaw: Cashel Byron’s Profession (1886); An Unsocial Socialist (1887); The Quintessence of Ibsenism (1891); Widowers’ Houses (1893); The Perfect Wagnerite: A Commentary on the Ring of the Niblungs (1898); Plays: Pleasant and Unpleasant (1898); Three Plays for Puritans (1901); Man and Superman (1903); The Irrational Knot (1905); John Bull’s Other Island and Major Barbara: How He Lied to Her Husband (1907); The Doctor's Dilemma, Getting Married, & The Shewing–up of Blanco Posnet (1911); Love Among the Artists (1914); Misalliance, the Dark Lady of the Sonnets, and Fanny's First Play (1914); Pygmalion (1914); Heartbreak House, Great Catherine, and Playlets of the War (1919); Back to Methuselah: A Metabiological Pentateuch (1921); The Apple Cart: A Political Extravaganza (1930); Immaturity (1931); The Adventures of the Black Girl in Her Search for God (1932); An Unfinished Novel (1958).   Raquel Gonçalves (atualizado a 30.12.2017)

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impostos e direitos

É a principal fonte de receita do Estado. É uma das formas de o Estado fazer face à despesa pública. Incidem sobre o património, a renda e o consumo, de que resulta a designação de diretos, para os dois primeiros, e de indiretos para o último. De acordo com a distribuição da taxa ou quota, podemos, também, defini-los como de capitação, soma fixa, contingente ou repartição. Atente-se às designações: por um lado, temos a indicação de direitos, que aparece com frequência no período senhorial, que vai até 1497, e que define os privilégios que o senhorio tem sobre os colonos pelo facto de possuir determinada jurisdição. Já o imposto nos remete para a ideia de algo que é posto por força da autoridade. A lista de tributações que onerava o arquipélago é extensa e estas aparecem sob múltiplas designações ao longo do tempo. Assim, temos: contribuições − contribuição sumptuária, contribuição sobre as rendas de casa, contribuição predial, contribuição para a segurança social, contribuição pessoal, contribuição pessoal e única, contribuição industrial de seguros, contribuição para o fundo de desemprego, contribuição extraordinária para as estradas, contribuição industrial, contribuição de registo sobre transmissões a título gratuito, contribuição especial, contribuição autárquica, contribuição de juros, contribuição de registo ou de registo sobre transmissões a título oneroso, contribuição de registo sobre transmissões a título gratuito; impostos − imposto adicional (1882-1911), imposto automóvel, imposto complementar (1890-1911, 1928-1988), imposto de camionagem em transporte público de passageiros (1940-1986), imposto de capitais (1923-1988), impostos de chancelaria (1797-), imposto de circulação (-2007), imposto de compensação (1955-1990), imposto de consumo sobre bebidas alcoólicas (1985-), imposto de consumo sobre cerveja (1985-), imposto de consumo sobre o café (1986-1992), imposto de consumo sobre o tabaco (1986-), imposto de criados e cavalgaduras (1801-1860), imposto de estradas (1850-1860), imposto de jogo (1989-), imposto de justiça, imposto de mais-valias (1965-1988), imposto de pescado (-1970), imposto de produção relativo à industria extrativa de petróleos e minérios radioativos e afins (1970-), imposto de registo (1929-), imposto de rendimento (1880-1882), imposto de rendimento global (1922-), imposto de rendimento sobre juros (-1922), imposto de salvação nacional (1928-1941), imposto de 6 % sobre o pescado fresco (1843-), imposto de sisa, imposto de selo (1797-1988), imposto de selo sobre o património, imposto de selo sobre as especialidades farmacêuticas (-1984), imposto do selo sobre os produtos de perfumaria e de toucador (-1966), imposto do selo sobre aguardente ou álcool provenientes da destilação de vinho, borras de vinho, bagaço de uvas e água-pé, de produção alheia (-1966), imposto do selo sobre as cartas de jogar (-1966), imposto de trabalho, imposto de transações (1966-1984), imposto de transações sobre as prestações de serviços (1966-1984), imposto de transmissão de propriedade (1838-1860), imposto de turismo (-1984), imposto de uso, porte e detenção de arma (1949-), IVA (1984-), imposto de valorização (1935-), imposto de viação (1860-1880), imposto do cadastro (1945-), imposto especial sobre motociclos, barcos de recreio e aeronaves (1983-1991), imposto especial sobre o consumo (1999-), imposto especial sobre o jogo (1994-), imposto especial sobre veículos ligeiros de passageiros e mistos (-1990), imposto extraordinário (1898-1911), imposto ferroviário (1951-1984), imposto geral sobre as transações (1922-1929), imposto interno de consumo (-1991), imposto mineiro e de águas minerais (1967-1998), imposto municipal de prestação de trabalho (-1979), IMI – imposto municipal sobre imóveis (2003-), IMT – imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (2003-), imposto para a amortização das notas do banco de Lisboa (1848-1860), imposto para a defesa e valorização do ultramar (1961-), imposto para o serviço nacional de bombeiros (1979-), imposto para o serviço de incêndios (1949-1988), imposto pessoal sobre o rendimento (1922-1928), imposto profissional (1929-1988), imposto sobre a indústria agrícola (1963-1988), imposto sobre a aplicação de capitais (1922-1988), impostos sobre a despesa, imposto sobre a industria agrícola (1963-1988), imposto sobre a produção de petróleo (1971-), imposto sobre a venda de veículos automóveis (1973-2007), imposto sobre as rendas de casa, imposto sobre sucessões e doações (1838-2003), imposto sobre as transmissões de propriedade (1838-1860), imposto sobre as transmissões a título puramente benéfico, imposto sobre boîtes, night clubs, discotecas, cabarets, dancings e locais noturnos congéneres (1983-1992), imposto sobre derivados do petróleo (1928-), imposto sobre minas (1927-1964), imposto sobre o açúcar, imposto sobre o álcool (1992-), imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas (1999-), imposto sobre o consumo (1867-), imposto sobre o consumo das bebidas alcoólicas (1993-), imposto sobre o consumo de bebidas engarrafadas e de gelados (-1966), imposto sobre o valor das transações (1922-1984), imposto sobre os lucros e fortunas (1920-), ISP – imposto sobre os produtos petrolíferos (1986-), imposto sobre veículos (1972-), imposto suplementar sobre os vencimentos (1941-), imposto sobre consumos supérfluo ou de luxo (1961-), impostos sobre o património, IRC – imposto sobre o rendimento de pessoas coletivas (1988-), IRS – imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (1988-), imposto sobre o rendimento global dos funcionários públicos (-1922), imposto sobre o rendimento pessoal global (1933-), imposto sobre o rendimento de capitais (1962-1988), imposto sobre os lucros excecionais ocasionados pelo estado de guerra (1942-), imposto sobre os prédios (1801-), imposto sobre o rendimento do petróleo (1971-1988), ISV – imposto sobre veículos (2007-), imposto sucessório (1870-2003), imposto suplementar (1940-1950), imposto suplementar sobre mercadorias importadas (1922-),; e taxas ou prestação pecuniária resultante de uma relação do contribuinte com o bem ou serviço público − custas judiciais, taxa burocrática, TCE – taxa de conservação dos esgotos, taxa de propriedade industrial, taxa de radiodifusão, taxa de salvação nacional, taxa municipal de transporte, taxa militar, taxa de regularização da situação militar, taxa social única. Também há impostos diretos e indiretos de acordo com a incidência. No grupo dos indiretos, a quota do imposto corresponde à razão direta dos produtos ou dos valores que o produto apresenta no mercado, incidindo sobre os valores permutados, pelo que as situações que estabelecem são passageiras e os valores incertos e invariáveis. São impostos indiretos: imposto de selo (1797-), contribuição pessoal (1860-1872), contribuição de rendas de casa (1872-1911), contribuição sumptuária (1872-1922), imposto de transações (1922-1929 e 1966-1987), taxa de salvação nacional (1928-1966) e imposto sobre o valor acrescentado (1987-). As leis n.º 64/77, de 26 de agosto e n.º 6791, de 20 de fevereiro, definem estes impostos como os que recaem sobre o consumo, onerando a utilização da riqueza ou do rendimento, estando neste grupo: IVA (imposto sobre o valor acrescentado), imposto sobre os produtos petrolíferos, imposto sobre os veículos, imposto sobre o tabaco, IUC (imposto único de circulação), IMT (imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis), imposto aduaneiro, imposto de selo, imposto automóvel, imposto sobre o consumo do tabaco, imposto sobre o consumo das bebidas alcoólicas, imposto sobre o álcool, imposto para o Serviço Nacional de Bombeiros. Deveremos considerar, ainda, os chamados direitos banais, resultantes do uso obrigatório de fornos, moinhos e lagares dos senhores mediante pagamento dos respetivos direitos de utilização. Com a Revolução Liberal, determinou-se a sua abolição, o que já havia acontecido em relação a alguns, por decreto de 20 de março de 1821, com expressão na Constituinte de 7 de abril de 1821. Outro decreto de 26 de abril de 1821 aboliu os serviços pessoais, os direitos banais e as prestações pagas pelos moradores de um lugar apenas em reconhecimento do senhorio, mas a abolição de todos estes só foi conseguida por lei de 22 de fevereiro de 1846. Com efeito, no início da ocupação da Madeira, o senhorio usufruía de direitos banais que passou para os capitães, por carta de doação. Na Carta de Doação da Capitania de Machico (1440), encontramos privilégios de fruição própria, como o domínio exclusivo dos moinhos exceto nos braçais, e a posse dos fornos de poia, exceto de fornalha para uso próprio e o exclusivo, sob condições da venda de sal. Já na Doação do Porto Santo (1446), são acrescentados direitos sobre serras de água e outros engenhos. Resquício disso é o Lg. dos Moinhos, no Funchal, onde o capitão detinha um conjunto de azenhas que se serviam da água da ribeira de Santa Luzia. O último moinho foi destruído em 1910. De acordo com as cartas de doação, os moinhos ficavam em poder dos capitães que cobravam a maquia, i.e., um alqueire em 12, sobre todos os que aí moessem cereais. Para além destes impostos de âmbito nacional, houve outros cuja incidência aconteceu apenas na Ilha, como foi o quarto/quinto/oitavo do açúcar, o imposto das estufas e da aguardente, a que se juntam alguns adicionais a diversos impostos, como forma de encontrar receitas para cobrir as despesas de instituições locais como a Junta Geral, a Junta Agrícola da Madeira e a Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal. Formas de arrecadação A forma da coleta dos direitos da Fazenda Real variava entre a perceção direta, a cargo de funcionários da Fazenda, e o arrendamento feito por particulares. No primeiro caso, procedia-se ao lançamento e à arrecadação, efetuados diretamente pelos serviços respetivos da Fazenda Real, enquanto no segundo se entregava esta coleta aos chamados arrendatários ou rendeiros que haviam feito os lanços e que se obrigavam ao pagamento do valor arrematado em quartéis. A arrematação era o ato que determinava e conferia ao arrematante o poder de arrecadação das rendas, em troca do pagamento de um valor fixo em prestações, conforme estabelece o contrato de arrendamento. Desta forma, a Fazenda Real assegurava, anualmente, os réditos necessários para a sua despesa, deixando de estar dependente das boas ou más cobranças dos direitos. Para além disso, não necessitava de sustentar uma logística para a cobrança, a arrecadação e o armazenamento dos produtos tributados. Na primeira metade do séc. XVI, os direitos sobre o açúcar e os direitos da Alfândega despertaram o interesse de diversos comerciantes, que intervieram no seu arrendamento. Para o efeito, foram constituídas várias sociedades, sendo de referir que para o período de 1506-1508, os quartos foram arrendados a Martim de Almeida, Fernão Alvares, Benoco Amador, Quirino Catanho, Álvaro Dias, Feducho Lamoroto, João Lombarda e Henrique Vamdura. No mesmo período, os direitos da Alfândega ficaram nas mãos de Martim de Almeida, Benoco Amador, Onésimo Castanho, Álvaro Dias, João Lombardo, Francisco Viola Maroto. Finalmente. Para o período de 1516-18, quer os direitos do açúcar, quer os da Alfândega, foram arrematados por uma sociedade composta por Simão Acciaioli, Lopo de Azevedo, Luís Dória, Benedito Morelli, António Spínola, Duarte Fernandes, Gonçalo Pires e Gregório Álvares. Este processo era realizado de forma anual, mas, em 1581, a Provedoria estabeleceu um contrato de seis anos com Manuel Duarte e Heitor Mendes para os referidos tributos, no que mereceu a reprovação das Câmaras. O rendeiro deveria proceder à entrega do valor estabelecido e satisfazer o valor correspondente à redízima das capitanias. Estes rendeiros deveriam entregar ao almoxarife os produtos e o dinheiro necessários para o pagamento das despesas dos ordenados, das tenças, das ordinárias e dos padrões de juro, conforme lista prévia de autorização estabelecida pelo provedor da Fazenda. Depois disto, os mesmos rendeiros deveriam proceder a duas entregas da quantia estabelecida em Lisboa, na segunda metade do séc. XVI à Casa da Mina, em datas fixas: no dia de S. João Baptista e no fim de dezembro. Quando os rendeiros não satisfaziam o valor estabelecido para o arrendamento, o provador intimava os cinco recebedores eleitos pela Câmara a executar os bens do arrendatário. O contrato estabelecia a obrigatoriedade de apresentação de fiança, que funcionava como garantia do seu pagamento. Quanto às miunças, o arrendamento era feito na Câmara, na presença do provedor da Fazenda, sendo a atividade controlada pelos recebedores da Câmara, com poderes para aceitar ou rejeitar os lanços. O anúncio do lançamento destas rendas fazia-se em praça pública, pelo pregoeiro. A partir do aparecimento da imprensa diária, passou a ter divulgação nos jornais. Em 10 de junho de 1854, um anúncio do delegado do Tesouro no Funchal, publicado no Seminário Oficial n.º 6, informava que estavam em praça, para arrematação, os dízimos do vinho, dos cereais, dos legumes e da fruta de espinho. Esta primeva forma de perceção dos direitos, que assentava no arrendamento foi definida nas Ordenações Afonsinas (liv. 1, tit. 3). Apenas os direitos das alfândegas eram cobrados por funcionários (liv. 2, tit. 50). Por alvará de 9 de maio de 1654, foi determinado que a cobrança da décima passasse a ser feita por comissões populares, ficando proibido o seu arrendamento, para, segundo se diz, “não se acrescentar moléstia aos povos”. A partir do séc. XVIII, com Montesquieu, ganhou expressão a forma de perceção direta, considerada como mais justa e feita sem opressão. Entre nós, estas ideias fazem-se sentir a partir da lei de 22 de dezembro de 1761: “proíbo que em tempo algum sejam contratados, ou arrendados d’aqui em diante os direitos [...] e que estes passem ao tesoureiro geral dos seus recebimentos.” De acordo com a mesma lei, o regime de contratos abrange o da Alfândega da ilha da Madeira. A lei não anula as situações anteriores e continuaram a coexistir situações de contratos, sendo de referir, para a Madeira, os contratos da Alfândega, dos 2 %, dos dízimos e miunças da ilha da Madeira. O decreto n.º 22 de 16 de maio, que estabeleceu a nova forma de administração da Fazenda, não interfere no sistema de arrecadação tributária, embora refira a necessidade de criação de recebedores gerais de província e concelhios. Todavia, a partir de então, é quase nula a representação da forma de arrendamento, que se resume ao subsídio literário, do tabaco, do sabão, real de água e dízimos. A cobrança dos impostos passa a estar a cargo dos recebedores de comarca. Reformas fiscais A lei de 22 de dezembro de 1762, que criou o Erário Régio, marca um dos momentos mais significativos da reforma fiscal do Antigo Regime, em que se estabeleceu, de forma clara, a centralização da contabilidade pública. A partir da Revolução de 1820, esboçaram-se mudanças no sistema tributário que a instabilidade política e a guerra civil não permitiram concretizar em plenitude. A Revolução Liberal de 1820 veio determinar uma nova atitude da administração fiscal e tributária: as contas passaram a ser publicadas e o governo foi obrigado a submeter às Cortes, para aprovação, o Orçamento e as contas. A Constituição de 1822 abriu caminho a uma mudança total da administração financeira. A reforma estabelecida passou por uma uniformização dos diversos tributos e uma adequada racionalização das receitas. A faculdade de lançar imposto passou do rei para as Cortes (art.124.º, II), que passaram a fixar os impostos e a despesa pública e a determinar todos os aspetos relacionados com as alterações do sistema (art. 103.º), ficando ao rei atribuída apenas a função de decretar a sua aplicação (art. 123.º). A mesma estabelecia as regras financeiras pelas quais se regia, de acordo com o novo sistema (arts. 224.º a 236.º). Consagraram-se os princípios da generalidade e igualdade tributária (art. 225.º), sendo os impostos lançados de forma proporcional aos rendimentos (arts. 216.º, 223.º, 228.º). O secretário de Estado dos Negócios da Fazenda (arts. 152.º, 227.º) ficava com o encargo de preparar o orçamento, que deveria ser submetido às Cortes. A nova Constituição, outorgada por D. Pedro IV a 19 de abril de 1826, reafirmava e reforçava as normas da administração fiscal e da fazenda, consagrando o princípio de que ninguém estava isento do pagamento de contribuições. A principal alteração aconteceu no Regime Constitucional, com a reforma de José Xavier Mouzinho da Silveira (1780-1849), ministro da Fazenda, de maio a junho de 1823 e de março de 1832 a janeiro de 1833. Os primeiros passos foram dados nos Açores, em 1832, com a publicação dos primeiros decretos, seguiu-se o resto do país, a partir de 1834. A sisa foi reduzida à transmissão onerosa de imóveis (dec. n.º 13, de 19 de abril), os direitos aduaneiros foram reformados (dec. n.º 14, de 20 de abril), os dízimos abolidos (dec. n.º 40, de 30 de julho), bem como os foros (dec. n.º 42, de 13 de agosto). Esta reforma provocou uma profunda alteração, com o fim do sistema fiscal senhorial e dos privilégios e exclusivos da Igreja. Ao Estado foi dada, a partir de então, a faculdade de estabelecer e arrecadar impostos. Entretanto, estabeleceram-se algumas alterações em alguns impostos, mas a política, até à instauração da república, foi quase sempre marcada pelo aumento da tributação, através de diversos adicionais aos impostos diretos e indiretos. A Constituição de 1838 voltou a afirmar a generalidade dos tributos (art. 24.º). Por outro lado, era a Câmara dos Deputados quem tinha poderes sobre os impostos (art. 54.º), enquanto as Cortes ficaram com a missão de os votar e de estabelecer o valor da receita e da despesa (art. 37.º), bem como da forma de pagamento da dívida pública e da venda dos bens nacionais. Previa-se, já, a criação de um Tribunal de Contas para verificar e liquidar as contas do Estado (art. 135.º). O ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda ficava obrigado a apresentar, anualmente, as contas e o Orçamento, nos primeiros 15 dias da legislatura (art. 136.º). A partir de 1851, com a estabilização do regime político, apostou-se em reformas globais do sistema fiscal, que foram, porém, acontecendo de forma espaçada, ao longo do tempo. No Ato Adicional de 1852, estabeleceu-se que os impostos eram votados apenas por um ano. Já a Constituição de 1911 era clara ao afirmar que ninguém era obrigado a pagar um imposto que não tivesse sido aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Até as taxas e os impostos locais deveriam passar pelo Congresso da República. A prática dos governos foi distinta e, por diversas vezes, tivemos a criação de imposto sem o beneplácito do Congresso. Sucedeu assim em 1832 e, posteriormente, na situação de instabilidade vivida entre 1917 e 1926. Até à instauração da república, a principal novidade fora o imposto de rendimento, criado em 1880, mas que teve vida efémera por força das convulsões populares que gerou. Em 1911, a República debateu-se com várias dificuldades de carácter financeiro que não permitiram encarar soluções – que só viriam a acontecer em 1922. A lei n.º 1368, de 21 de setembro de 1922, reformou o sistema fiscal, apostando na sua modernização, no sentido da tributação do rendimento real e da criação de um imposto geral de rendimento. Ao mesmo tempo, a necessidade de equilibrar as contas do Estado obrigou à criação de um adicional de 25 % e depois, em 1924, de 40 % sobre a contribuição predial rústica, a contribuição industrial e o imposto sobre a aplicação de capitais. Com o Governo da Ditadura Militar e do Estado Novo, tivemos a mais importante reforma fiscal, resultado dos trabalhos de uma comissão presidida por Oliveira Salazar. Essas reformas surtiram efeito a partir de 1928, com especial destaque para o período em que Salazar foi ministro das Finanças; no essencial, repuseram a situação de 1922, ajustando-se, obviamente, à conjuntura da guerra e do processo de desenvolvimento económico, o que conduziu ao aparecimento de novos impostos. Esta reforma foi posta em prática em função de três decretos – n.º 15.290, de 30 de março de 1928, n.º 15.466. de 14 de maio de 1928 e n.º 16.731, de 13 de abril de 1929 – e perdurou no tempo, chegando até 1963. Desta forma, a Constituição de 1933 não alterou significativamente a Constituição Liberal, acentuando o princípio de que nenhum cidadão está obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados de acordo com a Constituição e aprovados pela Assembleia Nacional (art. 8º, n.º 16). A medida mais diferenciadora desta reforma diz respeito ao orçamento que assenta na Lei de Meios, autorizando a receita e despesa aprovada pela Assembleia Nacional e o Orçamento em si. No período de 1958 a 1965, houve nova reforma fiscal, ditando que a tributação passasse a ser feita sobre os rendimentos reais, da qual resultaram vários códigos publicados nos anos imediatos. Com o regime democrático, estabelecido em abril de 1974, a reforma fiscal só veio a acontecer na déc. de 80 do séc. XX, por força da entrada de Portugal na Comunidade Europeia, o que obrigou a uma harmonização fiscal comunitária. Em 1984, surgiu o IVA e, em 1988, o IRS e o IRC. A Constituição de 1976 determina que é a Assembleia da República que tem o poder de fazer as leis sobre o orçamento; ao governo era dada a faculdade de legislar nesta matéria apenas quanto à sua regulamentação. Por outro lado, todos os textos constitucionais consagram o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei fiscal. Um dos aspetos que se evidencia aqui é o da integração da Segurança Social no orçamento e da integração do plano e do orçamento. Com a revisão constitucional de 1982, deixou de existir a Lei do Orçamento e o Orçamento Geral do Estado, passando a existir unicamente o Orçamento de Estado. Entretanto, a Segurança Social, que tinha orçamento autónomo desde 1977, passa a estar integrada no Orçamento de Estado. Quanto ao sistema tributário, a Constituição de 1976 é clara relativamente à criação de imposto, que só pode acontecer por lei da mesma. Também a legalidade da sua cobrança depende de autorização anual, estabelecida na Lei do Orçamento. Quanto à forma da sua aplicação, releva-se os princípios da generalidade e igualdade. O imposto é entendido, ao mesmo tempo, como uma forma de suprir as necessidades de financiamento das despesas públicas e de repartir com justiça a riqueza e os rendimentos. O principal enfoque tributário incide sobre a proposta de criação de um imposto sobre o rendimento, a necessidade de proceder a uma unificação dos impostos que incidem sobre as empresas, e normativas acerca do imposto sobre as sucessões e doações e dos impostos que incidem sobre o consumo. Instituições Para assegurar este quadro de arrecadação e administração das receitas dos impostos, foram surgindo, ao longo do tempo, estruturas adequadas, algumas assumindo carácter particular nas ilhas, ajustando-se às condições locais e aos tributos cobrados, que em algumas situações, no caso dos que incidiam sobre as culturas e aproveitamento dos recursos, eram distintos dos do continente do reino. A criação dos almoxarifados acontece, na Madeira, com a criação das capitanias, existindo um para cada uma. A esta repartição competia a arrecadação dos direitos devidos ao duque e senhor da Ilha. A partir do séc. XVI, estão integrados na Provedoria da Fazenda Real. Entretanto, na déc. de 80, do séc. XV, o almoxarifado do Funchal foi desdobrado em almoxarifados da Alfândega e dos Quartos, para superintender os serviços da Alfândega e da arrecadação dos direitos sobre a produção de açúcar. O da Alfândega funcionava na dependência da Contadoria, com o intuito de coordenar o trânsito de entrada e saída de mercadorias, existindo um no Funchal e outro em Machico. Na déc. de 50 do séc. XVI, estes foram, de novo, unidos, passando a chamar-se almoxarifado da Alfândega e dos Quartos. Nos começos da centúria seguinte, o almoxarife foi extinto, sendo substituído pelo feitor. Na Madeira, foi criado, em 1467, para proceder ao processo de lançamento e arrecadação do tributo, o quarto (1467) e, depois, quinto (1516) que recaía sobre o açúcar. A partir de 1508, surgem as comarcas para a administração do lançamento e da arrecadação do quinto sobre o açúcar. Foram criadas cinco comarcas, sendo uma em Machico (Santa Cruz) e quatro no Funchal (Funchal, Ribeira Brava, Câmara de Lobos e Ponta de Sol). A Contadoria encarregava-se de arrecadar as rendas e de proceder aos pagamentos. A primeira referência de que dispomos ao cargo de contador data de 1470, pelo que este organismo terá sido criado pelo senhor da Ilha, o infante D. Fernando, na déc. de 60. Tinha a superintendência dos almoxarifados, um para cada capitania. As Alfândegas, criadas posteriormente, estarão também sob a sua supervisão. Aliás, o contador do duque será também o juiz das Alfândegas. Com a reforma pombalina de 1761, foram criadas quatro contadorias com funções distintas. As Alfândegas foram criadas, na Madeira, por ordem de D. Beatriz, em 1477, como forma de combater a fuga aos direitos por parte dos madeirenses. Para o efeito, criou-se uma em cada capitania, mas foi a do Funchal que assumiu a função de primaz, a partir de 1509, passando a controlar todo o movimento de entradas e saídas. Entretanto, a partir de 1507, dá-se a criação de postos alfandegários em Ribeira Brava, Ponta de Sol, Calheta, Machico e Santa Cruz, como forma de facilitar a saída do açúcar produzido nestas localidades. Esta medida fora já autorizada por carta da infanta D. Beatriz, de 1483. Os dois últimos, Machico e Santa Cruz, foram extintos em 1515, para dar lugar à Alfândega de Santa Cruz. A partir de 1509, desaparecem todas as alfândegas e postos alfandegários fora do Funchal, passando a existir uma única Alfândega, com sede no Funchal, que centraliza todo o movimento de entrada e saída de mercadorias. Apenas Santa Cruz poderá, ainda, manter o despacho de mercadorias de exportação para Lisboa. Com D. Manuel, acontece uma profunda alteração na estrutura da Fazenda Régia, com o aparecimento da Provedoria da Real Fazenda do Funchal (1508-1755). A Provedoria era o órgão de cúpula de administração da Fazenda Régia na Ilha, com alçada sobre as capitanias do Funchal, de Machico e do Porto Santo; Francisco Álvares, que à data exercia o cargo de contador e juiz da Alfândega, foi nomeado provedor. A Provedoria da Fazenda superintendia a Alfândega, a Contadoria e exercia competência sobre os resíduos, os órfãos, as capelas e os concelhos. A Provedoria dependia do vedor da Fazenda e, a partir de 1591, do Conselho da Fazenda. Por resolução régia de 6 de abril de 1775, ordenou-se a substituição da Provedoria pela Junta da Real Fazenda. A Junta da Real Fazenda do Funchal (1775-1832) era presidida pelo governador e capitão-general, sendo composta pelos seguintes deputados: corregedor da comarca, juiz de fora, como procurador da Fazenda, um tesoureiro geral, eleito pela Junta, e um escrivão da Fazenda e da receita e despesa da Tesouraria Geral. Foi criada, também, a Contadoria Geral para uma adequada escrituração de todas as contas, de acordo com novas normas contabilísticas, a cargo de um contador geral, sob a supervisão de um deputado escrivão da Fazenda. A Junta da Real Fazenda do Funchal detinha a administração e arrecadação dos dinheiros e das rendas reais. Assim, a Contadoria Geral encarregava-se da arrecadação dessas rendas, nomeadamente a imposição do vinho e das estufas, enquanto ação do subsídio literário, e procedia à cobrança e administração dos dinheiros do subsídio literário; a repartição do Erário Régio superintendia todos os dinheiros das rendas reais da Ilha. A esta competia, através do Almoxarifado da Alfândega do Funchal, a arrecadação dos dinheiros e das dívidas que, ulteriormente, eram usados no pagamento dos ordenados aos militares, religiosos e demais oficiais régios, nas obras de fortificação e das igrejas, assim como nas suas alfaias e nos seus ornamentos. A Junta foi extinta com as demais existentes, no reino e nas províncias ultramarinas, pelos decs. n.os 22, de 16 de maio de 1832, e 65, de 28 de junho de 1833, mas, na Madeira, esta situação só aconteceu por decreto de 23 de junho de 1834, que a substituiu, interinamente, por uma Comissão. Durante o período de 1834 a 1843, a administração da Fazenda esteve a cargo desta Comissão Interina da Fazenda Pública da Província da Madeira e da Casa da Comissão Liquidatária das Dívidas de Estado no Distrito do Funchal. Estes serviços continuaram na superintendência do governador, adequando-se a nova estrutura administrativa a 7 de fevereiro de 1843, altura em que passaram para a Repartição de Fazenda do governo civil, em conformidade com as alterações estabelecidas pelo decreto de 12 de dezembro de 1842. Entretanto, foi criado, pelo dec. n.º 22, de 16 de maio de 1832, o cargo de recebedor geral, para superintender os negócios da Fazenda no distrito, o que se estendeu à Madeira em 1 de julho de 1835. Este passou a designar-se recebedor do distrito por decreto de 28 de julho de 1835. Por decreto de 12 de setembro de 1846, deu lugar ao de contador da Fazenda e, a 13 de dezembro de 1849, ao delegado do Tesouro. A Administração da Fazenda dos Distritos Administrativos foi criada por decreto de 10 de novembro de 1849, que estabeleceu a reforma da Fazenda Pública. Pelo regulamento de 28 de janeiro de 1850, estas repartições são separadas dos governos civis e ficam subordinadas ao delegado do Tesouro, que estava na dependência direta do Ministério da Fazenda.   Funcionários Às instituições supracitadas corresponde um quadro de funcionários que assumem diversos papéis na administração tributária. O almoxarife é o oficial do fisco, a quem estavam acometidas as tarefas de cobrar as rendas e proceder aos pagamentos. Com a doação das ilhas à Ordem de Cristo e a fundação das capitanias, o infante D. Henrique estabeleceu para cada uma delas um almoxarife, que tinha a seu cargo a administração dos direitos que eram devidos ao senhorio. Este era apoiado pelos chamados homens do almoxarifado, dois para cada almoxarifado. No período de arrendamento a particulares, deveremos apenas considerar o rendeiro, i.e., aquele que arremata as rendas. As rendas ou direitos eram arrecadados por rendeiros que as haviam arrematado através de lanços. Depois de lançada a renda, deveria conferir-se a seriedade dos credores e fiadores através de pregões, por nove dias, de forma a decidir-se pela arrematação. Concluído o processo da arrematação da renda, quer o rendeiro, quer os credores, ficavam com os seus bens cativos até ao momento em que saldassem o contrato. Terminado o contrato, e entregues todos os quartéis estabelecidos no ato do arrendamento, o almoxarife passava uma carta de quitação. Caso não tivesse acontecido a boa cobrança, a Fazenda Real mandava executar os bens do rendeiro, ou do seu fiador, até à sua total liquidação. De acordo com os Regimentos de 1516 e as Ordenações de 1521, quando arrematavam rendas superiores a 20$000, eram considerados rendeiros do rei e detinham privilégios especiais, sendo dispensados de servir na guerra e nas armadas, e não podendo ser presos, salvo em casos de homicídio ou de flagrante delito, durante o período de duração do contrato de renda. Devido aos problemas com a arrecadação das rendas, nomeadamente das sisas, eram autorizados a andar armados. Os estimadores estavam sob a alçada dos rendeiros do ramo dos direitos do açúcar. De acordo com a renda arrematada, temos o chamado rendeiro do verde, a quem competia arrecadar a renda do brabo ou do verde, proveniente do lançamento das coimas por incumprimento das posturas municipais e das ervagens, do corte de árvores e suas ramas. Para além disso, tinha a missão de salvaguarda das terras em face dos danos dos gados soltos. Nas suas obrigações incluía-se varrer a praça, em especial nos dias festivos, dar os ramos para o dia de Ramos e, no dia de Páscoa, apresentar uma dança das espadas. Após a sua eleição, o rendeiro devia prestar juramento e apresentar um fiador que se comprometesse, em caso de falha, a assegurar a renda arrematada; o fiador podia proceder à arrecadação da renda em caso de falta do rendeiro. Ao porteiro cabia proceder à cobrança das rendas dos foreiros; no entanto, quando surgiam pagadores mais renitentes, a decisão cabia à vereação, que mandava proceder contra os devedores. Foi, e.g., o que sucedeu com D. João de Herédia que, em 1681, devia ao concelho da Ponta de Sol 32$700, tendo sido intimado a pagar pelos oficiais camarários. O porteiro da Alfândega tinha à sua guarda o selo da Alfândega e as mercadorias que estavam depositadas nos armazéns da mesma. Na Capitania do Funchal, o cargo era acumulado com o de porteiro dos contos e do almoxarifado. O porteiro dos contos era o funcionário da Casa dos Contos, que tinha à sua guarda os livros dos contos, e que provia as diversas repartições do material necessário ao seu funcionamento. Acumulava as funções de porteiro da Alfândega, selador dos panos e porteiro do Almoxarifado. O porteiro das sisas, como o nome indica, era o funcionário que tinha por função executar as sisas. Alealdadores eram aqueles que procediam ao alealdamento do açúcar nos engenhos, uma operação de fiscalização destinada a atestar a qualidade de fabrico do produto. Eram eleitos, anualmente, pelo Senado da Câmara. Ainda, em 1505, D. Manuel estabeleceu que os canaviais dos estimadores deveriam ser avaliados pelos antecessores no cargo. O contador era o funcionário que presidia à contadoria, competindo-lhe defender os interesses reais. Era o oficial do topo da Fazenda senhorial na Ilha e tinha sob a sua alçada o almoxarife e o escrivão. Tal como o almoxarife, era nomeado pelo duque. De acordo com estas obrigações, os contadores procediam, em janeiro, às arrematações das rendas, providenciando o envio do caderno dos registos aos vedores da Fazenda até finais do mês. Deviam deslocar-se ao reino para prestar contas, sendo substituídos por pessoas da sua confiança. Na ilha da Madeira, a primeira indicação da presença deste cargo é de 1470, estando provido Diogo Afonso, que passou a acumular com o de juiz da Alfândega a partir de 1477. Em 1498, exercia o cargo Francisco Álvares que, na sua ausência em Lisboa, foi substituído por João Roiz Parada. Em 1508, com a criação da Provedoria da Fazenda, o contador passa a acumular o cargo de provedor, passando a designar-se provedor da Fazenda. Com a reforma pombalina da Fazenda, em 1761, foram criadas quatro contadorias no Erário Régio, cada uma presidida por um contador geral. Este estava obrigado a entregar ao tesoureiro-mor dois balanços anuais das contas, de acordo com o sistema das partidas dobradas, um a 10 de janeiro e outro a 10 de julho. Com a reforma liberal, aparece a figura do contador de Fazenda, nomeado pelo Rei, sob proposta do Conselho de Estado, que tinha como missão superintender a Contadoria Geral. Para a Madeira, pela resolução régia de 6 de abril de 1775, foi estabelecida uma Contadoria Geral sob a inspeção do deputado escrivão da Fazenda, a cargo de um contador geral, para escrituração das contas. Este cargo foi mudando de designação em consonância com as reformas tributárias. A Constituição de 1822 estabelecia, para cada distrito, um contador de Fazenda, de nomeação régia, para superintender, nos distritos, os serviços da Contadoria da Fazenda. O cargo foi criado por decreto de 12 de setembro de 1836. O provedor da Fazenda tinha atribuições e posição semelhantes ao ouvidor-mor, que perdeu essa qualidade a partir de 1478. Em 1508, com a criação da Provedoria da Fazenda no Funchal, o então contador Francisco Álvares passa a acumular com o cargo de juiz da Alfândega e provedor, passando a designar-se provedor da Fazenda. Competia-lhe, também, a supervisão do arrendamento dos direitos reais e da sua cobrança e os pagamentos feitos pelo almoxarife, tendo como subalternos um escrivão e um porteiro. Encontrava-se, igualmente, na sua alçada a resolução de alguns pleitos relacionados com o processo de arrendamento das rendas da Alfândega até ao valor de 2$000. De acordo com o Regimento de 1550, deveria superintender o processo de arrecadação dos direitos do açúcar, proceder ao arrendamento das miunças, elaborar a folha de pagamento de ordenados, côngruas, tenças e padrões, por onde o almoxarife deveria proceder aos pagamentos, e examinar os livros de contas de receita e despesa dos almoxarifes e recebedores. Feita esta conferência, o provedor passava aos almoxarifes e recebedores a quitação do seu recebimento pelo vedor da Fazenda, em Lisboa. Também a partir de então, o cargo perde o carácter patrimonial e passa a ser ocupado em regime de comissão de serviço. Esta situação resultou dos abusos cometidos por Simão Esmeraldo, que conduziram a uma reclamação da Câmara do Funchal, em 1542. Desta forma, em 1554, a Coroa enviou à Ilha o doutor Pedro Fernandes, na qualidade de juiz de fora e provedor e juiz da Alfândega. Mas esta situação excecional deixou de ser possível passados oito anos, uma vez que a Coroa, em 1562, proibiu a acumulação, pelo juiz de fora, dos cargos de provedor e juiz da Alfândega, sendo o licenciado Lourenço Correia o último a acumular estas funções, por provimento de 1559. Em 1582, com a nomeação do licenciado João Leitão para o cargo, a Coroa filipina associou-o ao de corregedor. Mas em 1606, com a nomeação do novo provedor da Fazenda, Manuel de Araújo de Carvalho, volta-se à separação dos cargos. O provedor é o interlocutor direto na Ilha, dos vedores da Fazenda e, depois de 1581, no Conselho da Fazenda. De acordo com informação de 1768, sabemos que este continuava a servir de vedor da Fazenda na ausência do seu proprietário ou seu ouvidor. Por feitor da Alfândega, entende-se aquele que a administrava e que veio substituir o almoxarife, tendo a seu cargo a coordenação do serviço de vigilância das atividades da Alfândega, como sejam o despacho das mercadorias e a cobrança da dízima de entrada e saída. Ainda, a partir de 1550, o feitor da Alfândega do Funchal tinha a função de mandar confecionar as conservas para guarda-reposte do Rei e o despacho do açúcar dos direitos reais na Ilha. Por alvará de 2 de julho de 1550, o Rei enviou João Simão de Sousa ao Funchal, com a função de feitor da Alfândega do Funchal, para tratar de assuntos deste serviço, com poderes de despacho com o juiz dos feitos da Fazenda. Era coadjuvado por um escrivão. Na segunda metade do séc. XVI, a Alfândega do Funchal apresentava dois feitores, enquanto a de Santa Cruz tinha apenas um. A primeira referência documental a este cargo surge apenas em 1532, relativamente à Alfândega do Funchal. Papel fundamental tinha o escrivão, pois dele dependia a escrituração das contas. Também aqui vamos encontrar uma variedade de designações, de acordo com a instituição ou atividade. Assim tivemos o escrivão da Alfândega, que escriturava todos os registos. No séc. XVI, a Alfândega do Funchal dispunha de dois, sendo um encarregado do registo dos despachos de entrada e o outro de saída. Acumulavam funções na Alfândega de Santa Cruz. O escrivão do almoxarife era o oficial subalterno do almoxarife que procedia ao lançamento em livro das rendas. O escrivão do contador era o oficial subalterno do contador que tinha por função lançar as contas; quando o contador acumulava as funções de juiz de Alfândega, este era também escrivão do juiz da Alfândega. O escrivão da Fazenda e contos era o funcionário da Provedoria da Fazenda, subalterno do provedor, que assistia aos despachos, emitia os mandados de pagamento despachados pelo provedor, e registava as provisões régias sobre os pagamentos e outros assuntos da Fazenda no livro do registo dos contos; este oficial acumulava, desde 1521, as funções do escrivão das execuções. O soldo era de 6$407 reais em dinheiro e emolumentos, devidos pelos mandatos de pagamento. O escrivão da renda da imposição tinha por função escriturar as rendas da imposição, i.e., os direitos pagos pela venda do vinho em público nas tabernas. O escrivão da ribeira tinha por função, a partir de 1513, fazer o registo de todos os bens que não passavam pela Casa da Alfândega; tinha despacho na ribeira ou calhau. O escrivão das execuções tinha funções acumuladas pelo escrivão da Fazenda e contos. O escrivão das sisas realizava o registo de todos os atos relacionados com o tributo, como da repartição do cabeção e, no caso de não estar encabeçado, todas as transações sujeitas a sisa. O escrivão do almoxarifado da Alfândega e quintos era o funcionário subalterno do almoxarifado que auxiliava o almoxarife em todas as operações do expediente; era ele quem fazia o registo de todo o movimento financeiro, das provisões régias que determinavam os pagamentos, nos livros de receita e despesa, e passava os conhecimentos de quitação dos pagamentos realizados. No Almoxarifado de Machico, acumulava as funções do escrivão dos quintos; estava associado ao quintador, correspondendo, igualmente, um a cada, pelo que houve quatro no Funchal e um em Santa Cruz. Deveria estar presente no processo de arrecadação dos direitos do açúcar para lançar, em livro próprio, as quantidades e qualidades entregues pelo lavrador ao quintador. O escrivão das pipas de vinho para o donativo vem referenciado, em 1647, na lista de funcionários do município do Funchal, tendo a função de lançamento das pipas relacionadas com o donativo de guerra. A execução das dívidas competia ao alcaide, que poderia designar-se de acordo com a sua esfera de ação. Assim o alcaide das sisas era o oficial que tinha por missão executar as dívidas das sisas. O alcaide do mar tinha como missão coordenar o serviço marítimo de carga e descarga das mercadorias, de forma a evitar qualquer extravio. Em Machico, existiram dois com estas funções sendo um para a sede da capitania e outro para a vila de Santa Cruz. Na primeira localidade, o mesmo acumulava as funções de guarda da ribeira. O procurador da Fazenda ou solicitador da Fazenda era o oficial da Fazenda que tinha o encargo de proceder à arrecadação das dívidas à Fazenda Real. Em 26 de novembro de 1561, Fernão Lopes foi nomeado para este cargo. Era apoiado, nas suas funções de execução das dívidas, pelo alcaide do mar e pelo inquiridor dos feitos da Alfândega. Em algumas situações, temos a nomeação de solicitadores para missões específicas de cobrança de dívidas, como sucedeu, em 1558, com Manuel de Figueiró, a quem foi atribuída a missão de proceder à cobrança das dívidas não satisfeitas ao almoxarife Simão Rodrigues. Em 1573, o mesmo foi nomeado executor de todas as dívidas da Madeira. Para proceder à execução das dívidas, o executor deveria notificar os devedores e colocar os seus bens em execução, através de pregão público. Passados os 30 dias, se não houvesse nenhum lanço, o executor atribuía um valor ao produto em causa, e este passava a fazer parte dos próprios da Coroa. Ao procurador dos feitos da Fazenda competia a defesa dos interesses da Fazenda Real em todas as situações de contencioso sobre os direitos reais. Desta forma, estava informado sobre os feitos que corriam com o provedor da Fazenda, o vedor e o juiz da Alfândega. Deveria ser licenciado. Com a mesma alçada, temos ainda outros funcionários, como o juiz da Alfândega, que superintendia a administração da Alfândega. Encontramos o Regimento para estes cargos em Lisboa (1520) e no Porto (1535). Na Madeira, este cargo aparece em 1477, com a criação das Alfândegas, sendo exercido pelo contador do duque, pelo que era acumulado pelo mesmo. A ele competia, não só o julgamento dos casos sobre a administração da Fazenda, como a coordenação da ação dos oficiais da repartição, estabelecendo o horário de serviço e os produtos que podiam ser despachados, no calhau, sob a sua supervisão. A partir do séc. XVI, esta função de despacho passa para o feitor, que assume a função de coordenação e supervisão das questões ou pleitos que envolvam a Alfândega. Existiram dois: um para cada Alfândega da Ilha, apenas a partir de 1563, altura em que foi provido o primeiro juiz da de Santa Cruz sendo, até então, o cargo acumulado com o do Funchal. Todavia, em meados do séc. XVI, o do Funchal acumulava as funções com o de Machico, separando-se, a partir de 1563, com a nomeação de Tomé Alvares Usadamar. O juiz da imposição do vinho tinha o encargo de julgar as causas relacionadas com a imposição do vinho, um direito lançado para as despesas de funcionamento das câmaras municipais. O juiz das sisas, encarregado de julgar os feitos relacionados com o rendeiro ou recebedor das sisas e era eleito pela câmara para mandatos trienais. Tinha ao seu serviço um escrivão. Para a Madeira, temos referência a alguns cargos específicos, como o estimador, o quintador e o arrieiro-mor. O estimador do açúcar ou avaliador era aquele que procedia à estimativa ou avaliação da produção dos canaviais para, sobre a mesma, ser lançado o tributo. O ofício foi criado em 1467, sendo quatro o número de postos, em que se incluía o escrivão do Almoxarifado. Com a reforma do sistema de tributação de 1515, este cargo foi extinto pois a cobrança do quinto do açúcar deixou de estar baseada no estimo. Os estimadores eram eleitos pela vereação, de entre a lista de homens bons do concelho, para um período de três anos, devendo ser confirmados pelo senhor da Ilha. Recebida a confirmação, deveriam prestar juramento em Câmara, na presença do contador. No estimo de 1494, refere-se um João Adão, com a indicação de estimador por parte do povo e Martim Gomes, escrivão e estimador por parte do duque. A partir de 1495, a sua indicação passou a ser feita por sorteio, com o método dos pelouros. Os eleitos eram residentes na localidade onde deveriam proceder ao estimo e atuavam em conjunto com o almoxarife e seu escrivão. Em casos em que fossem suspeitos de favorecerem alguns dos agricultores, o almoxarife podia substituí-los. O arrieiro-mor era o funcionário encarregado de conduzir os vinhos às tabernas. Era uma forma de controlo da venda do vinho em público, para se lançar a imposição deste produto. Este ofício ainda se mantinha em 1804, altura em que João Pombo solicitou a propriedade vitalícia do mesmo. O quintador ou recebedor dos quintos era o funcionário que arrecadava o quinto, criado em 1515, para substituir o quarto sobre os açúcares, que recaía sobre a produção dos engenhos. O quintador dispunha de um livro (livro dos quintos) onde lançava todo o movimento de arrecadação do imposto. Competia-lhe, ainda, passar os respetivos comprovativos de pagamento, documentos que permitiam a saída do açúcar do engenho e que deveriam ser apresentado na Alfândega no momento de saída, ficando depois arquivados na Casa dos Contos, com acesso limitado ao provedor da Fazenda, ao almoxarife e ao feitor da Alfândega. No início, estes eram escolhidos pelos oficiais régios de entre os moradores e não tinham carta de ofício; depois, passaram a ser providos por carta régia. Pedro Fernandes teve nomeação régia para o cargo em 1545, funções que já exercia há 12 anos. O seu número era equivalente em Machico. No séc. XVI, na Calheta, existiu um regime especial em que um oficial régio e um morador se substituíam, de forma trienal, no exercício do cargo. Para cada uma das antigas comarcas – Funchal, Calheta, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Santa Cruz – era provido um quintador. Nas primeiras localidades, era apoiado por um escrivão. Ambos tinham de soldo um moio de trigo por ano. O seu provimento manteve-se no séc. XVII, mesmo com a produção reduzida ou sem qualquer significado comercial. Nos sécs. XVII e XVIII, manteve-se a mesma estrutura de arrecadação dos direitos da Coroa, mas adaptada à dimensão da cultura. Por mandado de 20 de dezembro de 1686, foi ordenada a extinção, a partir de 30 de julho, dos quintadores do açúcar de Santa Cruz, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta, pelo facto de a Ilha já não produzir açúcar. Mas cedo se reconheceu o erro de tal medida, uma vez que o açúcar continuou a produzir-se, ainda que em quantidades inferiores. O recebedor ou rendeiro é o funcionário que recebe as rendas. Há outros recebedores, relacionados com as instituições: o recebedor do almoxarife, oficial subalterno encarregado do recebimento das rendas e o recebedor da Fazenda dos distritos, criados por decreto de 24 de abril de 1836, com o objetivo de procederem à cobrança das receitas da Fazenda e enquadrados numa política que facilitasse a sua cobrança; o recebedor das alfândegas, que tinha o encargo de receber e arrecadar os direitos alfandegários; o recebedor dos direitos e das rendas do rei, que tinha o encargo de receber todos os direitos do rei; o recebedor dos contratadores das rendas, que era o funcionário encarregado pelos contratadores das rendas de proceder à sua arrecadação; beneficiavam da mesma jurisdição que estava acometida aos almoxarifes, podendo o cargo referir-se a uma renda específica – daí o recebedor da imposição, que tinha o encargo de receber e arrecadar o dinheiro da imposição do vinho, e o recebedor da miunça, ou carreteiro, que recebia o dízimo ou miunça e o transportava ao local de recolha. Em caso de contrato de arrendamento, era apresentado pelos rendeiros ao provedor da Fazenda, perante o qual prestava juramento; noutras circunstâncias, era nomeado pelo próprio provedor. Para além disso, deveria dar conta ao escrivão dos quintos da recebedoria da sua área, em relação aos produtos arrecadados e seus proprietários. A Fazenda Real tinha celeiros e adegas para a recolha dos cereais e do vinho, de onde procedia à sua distribuição, de acordo com as ordinárias estabelecidas por alvará régio, em género. Muitas vezes, os clérigos recebiam as suas ordinárias na terra. No caso em que a sua arrecadação era feita por rendeiros, esta função de redistribuição das ordinárias da lista era desempenhada pelo próprio rendeiro. Por fim, o recebedor da sisa tinha o encargo de receber e arrecadar as sisas.   Documentação e Impostos A 14 de julho de 1836, o Palácio da Inquisição ao Rossio, edifício onde estava instalada a Junta de Juros e a Contadoria do Tribunal do Tesouro, foi alvo de um incêndio que destruiu toda a documentação, tendo sido esta, depois, transferida para o Palácio dos Almadas, também no Rossio. O dec.-lei n.º 28.187, de 17 de novembro de 1937, criou o Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, que teve como fundo principal toda a documentação existente na Direcção-Geral da Fazenda Pública, proveniente de diversos serviços, extintos em 1934, da secretaria geral do Ministério dos Negócios da Fazenda, dos Cartórios da extinta Casa Real e das Companhias Geral, de Comércio e Navegação para o Brasil, a Índia e Macau. Com a sua extinção, pelo dec.-lei n.º 106-G/92, de 1 de junho, o acervo foi integrado nos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo. A cultura contabilística em Portugal foi muito precária, atingindo, de forma particular, as políticas arquivísticas de preservação de fundos documentais a ela ligados. Olhando aos espólios disponibilizados pelos arquivos públicos, nota-se esta pouca atenção e uma insuficiente preservação do património documental relacionado com a atividade financeira e contabilística do Estado e das instituições públicas. A documentação da Provedoria da Fazenda do Funchal (1508-1775) e da Junta da Real Fazenda do Funchal (1775-1832), um dos principais suportes para este tipo de informação, é muito incompleta. A documentação deste núcleo é posterior a 1640, com particular incidência para o período que vai de meados do séc. XVIII ao fim desta instituição, em 1834. Mesmo assim, as disponibilidades documentais são limitadas. Assim, para os rendimentos globais, a informação é mais completa a partir das últimas décadas do séc. XVIII. Quanto aos diferentes impostos cobrados e sob a sua administração, o panorama é idêntico. Há informação sobre os direitos do açúcar (1600, 1689-1766), para um período em que o mesmo tem uma importância relativa. Dos demais tributos, temos a assinalar apenas: bula da santa cruzada (1611), dízimos (1766-1768, 1775-1833), dízima (1768-1773, 1775-1838), décimas (1809-1833), novos direitos (1649-1833), papel selado (1803-1825), selo (1810-1834), sisa (1810-1842), subsídio literário (1776-1834) e 4,5 % da imposição da carne (1775-1842). Das alfândegas da Ilha, aquilo que resta da documentação prende-se com a do Funchal e é ainda mais incompleto. Na Torre do Tombo, estão os documentos recolhidos no séc. XIX, que vão até ao ano de 1834; no Arquivo Regional da Madeira, está disponível a documentação posterior a esta data e até 1970, recolhida entre 1951 e 1975. A Alfândega do Funchal apresentava, por força da atividade de exportação do açúcar e do vinho, uma receita significativa no quadro das alfândegas nacionais. Mas a informação sobre os direitos de entrada e saída da mesma, a principal receita da instituição e da Ilha, aparece de forma lacunar desde 1650. Para o período anterior, e que medeia entre a sua criação em 1477 e esta centúria, faltam dados. Temos dados avulsos para os anos de 1505, 1506, 1523-1524. Atente-se ao facto de que, para o período áureo do açúcar, não dispomos de documentação que permita com exatidão asseverar o rendimento do senhorio e da Coroa; para além desta ausência dos registos da receita de entrada e saída, não dispomos de informação capaz para saber da importância do rendimento com outras cobranças de direitos, nomeadamente o quarto (1467), o quinto (1515) e o oitavo (1675). Faltam, ainda, registos e documentos importantes das instituições mais recentes, como a Junta Geral do Funchal (1832-1895, 1901-1976), não dispondo os arquivos da Região de todos os orçamentos e contas, e.g.. É evidente uma indisciplina financeira, uma confusão e falta de eficácia tributária, com inúmeros tributos, taxas e impostos, muitos dos quais nunca foram cobrados, a que se soma a incúria na preservação da documentação. O panorama é deveras desolador e torna quase impossível um trabalho, no âmbito da história financeira para os sécs. XV a XVIII, um dos períodos mais pujantes da economia madeirense. Para além disso, é notória uma disparidade dos dados financeiros apresentados nas publicações e nos documentos das várias entidades. A primeira questão prende-se com a deficiente cultura contabilística que sempre existiu. Por outro lado, as informações estatísticas só permitem seriações a partir do séc. XIX e, mesmo nesta centúria, os dados são, muitas vezes, escassos. No que diz respeito ao período até ao séc. XIX, as lacunas são imensas. No que diz respeito aos séculos anteriores a XIX, como referimos, os dados são avulsos e não permitem as necessárias seriações. Até à altura em que foi criado o Erário Régio, em 1761, carecemos de uma contabilidade centralizada, para além de não dispormos de orçamentos ou cômputos, quer da receita, da despesa ou da dívida pública. Faltam os livros dos contadores da Provedoria da Fazenda, os registos completos da Alfândega. No caso da despesa, são de significativa importância os orçamentos do Estado a partir de 1834, que, embora estivessem já estabelecidos na Constituição Liberal de 1822, só tiveram execução a partir desta data. Entretanto, os dados estatísticos são posteriores, uma vez que, só a partir de 1875, temos a informação oficial através do Anuário Estatístico. Recorde-se que o Instituto Nacional de Estatística só foi fundado em 1935, embora seja evidente, a partir de 1836, uma preocupação das estruturas de poder central no sentido da recolha de informação estatística. Deste modo, em 1836, surgiu, no Ministério do Reino, o primeiro serviço oficial de estatística, que ficou conhecido como Comissão Permanente de Estatística e Cadastro do Reino. Também o Código Administrativo de Passos Manuel, publicado no mesmo ano, impunha a todas as autoridades dos distritos a recolha deste tipo de informação. O Código de Costa Cabral (1842) segue as mesmas orientações, atribuindo aos governadores civis responsabilidade quanto ao cadastro e à estatística dos distritos. Em 1857, foi criada a Comissão Central de Estatística, que tinha como objetivo dirigir os vários níveis institucionais e centralizar a publicação de dados. Poucos anos depois, em 1859, foi criada a Repartição de Estatística do Ministério das Obras Públicas. Relativamente aos períodos anteriores, a informação disponível é, deste modo, avulsa.   Alberto Vieira (atualizado a 18.12.2017)

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