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clima e meteorologia

O arquipélago da Madeira situa-se na região subtropical do Atlântico oriental, centrado aproximadamente a 32 ° 45 ’ de latitude norte e 17 ° 00 ’ de longitude oeste, a cerca de 900 km de Portugal continental (Sagres) e dos Açores (Santa Maria). É formado pelas ilhas da Madeira e de Porto Santo, com áreas da ordem dos 730 km2 e 23 km2, respetivamente, e pelos ilhéus das Desertas e das Selvagens, estes últimos a cerca de 300 km a sul da Madeira. A orografia é bastante acidentada, com as formações de maior altitude na parte oriental (pico Ruivo, com 1862 m) e na parte ocidental (planalto do Paul da Serra, com altitude da ordem dos 1300 m). De acordo com a classificação climática de Köppen-Geiger, as ilhas da Madeira e de Porto Santo apresentam clima temperado húmido, com zonas de verão seco e quente e outras zonas de verão seco e suave, dependendo da proximidade ao mar, da exposição solar e principalmente da altitude. Em intervalos de tempo regulares, com base em instrumentos específicos, é feita no arquipélago a observação à superfície dos principais descritores meteorológicos, designadamente a pressão atmosférica, o vento, a temperatura e a humidade relativa do ar. A respetiva difusão sincronizada aos níveis regional, nacional e internacional constitui a informação primária para a descrição do tempo presente e, por acumulação sucessiva, do conhecimento do clima. As primeiras observações meteorológicas à superfície, executadas com regularidade e de forma continuada no Funchal remontam a meados do séc. XIX, tendo sido executadas até meados do séc. XX no Palácio de S. Lourenço, e posteriormente no sítio dos Louros, na orla costeira leste da cidade, onde foi instalado o Observatório Meteorológico do Funchal. Graças à observação regular efetuada, no mínimo diariamente, às 09.00 h, estava disponível, em 2015, uma série longa de dados para o Funchal, o que permitia conhecer, e.g., a variação da temperatura média do ar e da quantidade de precipitação dos 151 anos anteriores e da temperatura da água do mar à superfície dos 65 anos anteriores, executada no porto do Funchal. Fig. 1 – Gráfico com a média anual da temperatura do ar à superfície, registada no Funchal entre 1865 e 2015 (151 anos) (Palácio de S. Lourenço e sítio dos Louros); e a média anual da temperatura da água do mar registada na Pontinha entre 1951 e 2015 (65 anos). Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. Dos registos anuais, destaca-se a subida da média anual da temperatura do ar a partir do início dos anos 70 do séc. XX. Desde 1971 até 2015, a temperatura média anual subiu cerca de 2,2 °C, o que corresponde a um valor médio da ordem de 0,5 °C por década. No entanto, entre 1996 e 2015, período em que as observações foram feitas sempre com o mesmo equipamento, devidamente calibrado, verificou-se que a temperatura do ar subiu cerca de 0,3 °C, o que corresponde a um valor da ordem de 0,15 °C por década, tendo a subida sido mais acentuada entre 1996 e 2004 (8 anos) do que entre 2005 e 2015 (11 anos). À semelhança da temperatura média do ar, a temperatura média da água do mar começou a subir no início da déc. de 70 do século XX, embora de forma menos significativa entre 1995 e 2015. Desde o início da déc. de 70, a diferença entre a temperatura média do ar e da água do mar variou entre 1,3 °C e 0,5 °C, embora nos últimos anos do intervalo essa diferença se tenha mantido próxima dos 0,5 °C. Entre 1995 e 2015, a temperatura média anual do ar variou entre 20,0 °C e 20,4 °C, e a temperatura da água do mar entre 20,4 °C e 21,1 °C. Fig. 2 – Gráfico com a evolução da precipitação média anual registada no Funchal entre 1865 e 2015, desde 1865 no Palácio de S. Lourenço e desde 1951 no sítio dos Louros (Observatório Meteorológico do Funchal). Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. A partir de uma análise simples da fig. 2, conclui-se que a quantidade de precipitação apresenta variabilidade interanual significativa. No 65 anos que medeiam entre o momento em que começou a haver registos no Observatório Meteorológico do Funchal e 2015, a precipitação anual mais baixa foi registada em 2015 (299,5 mm), correspondendo ainda ao quarto valor mais baixo desde 1865 (em 151 anos). O maior valor da quantidade de precipitação anual ocorreu em 2010 (1477 mm) e um valor próximo deste foi registado em 1895 (1420 mm). Entre 2010 e 2015, registou-se o maior período de anos consecutivos com os valores mais baixos da quantidade de precipitação no Funchal. Rede de observação A rede meteorológica do Funchal começou a ser construída em meados dos anos 30 do séc. XX, com a instalação de vários postos meteorológicos. Nos anos 50, a rede meteorológica era constituída por 15 postos, tendo 7 sido desativados durante a déc. de 80; restaram as estações do Funchal (1865), do Areeiro (1936), de Santana (1937), do Porto Santo (1939), do Lugar de Baixo (1941), do Santo da Serra (1942), da Bica da Cana (1950) e de Santa Cruz/Aeroporto (1958). No acompanhamento da modernização tecnológica registada particularmente durante a déc. de 80 do séc. XX, iniciou-se em 1995 a modernização da rede meteorológica do arquipélago da Madeira, com a instalação de duas estações meteorológicas automáticas em Porto Santo/Aeroporto (78 m) e no Funchal/Observatório (58 m); em 2002, foram instaladas cinco estações: Funchal/Lido (25 m), São Jorge (257 m), Chão do Areeiro (1590 m), Lugar de Baixo (40 m) e Ponta do Pargo (298 m); em 2009, e para reforçar a melhoria da previsão meteorológica, foram ainda instaladas duas estações automáticas no Caniçal/Ponta de São Lourenço (133 m) e nas Achadas da Cruz/Lombo da Terça (931 m). Posteriormente, e após o violento temporal de 20 de fevereiro de 2010, reconheceu-se a necessidade de aumentar a densidade de estações, pelo que foram instaladas, em finais de 2010, mais cinco estações automáticas em Quinta Grande (580 m), São Vicente (97 m), Santana (380 m), Bica da Cana (1560 m) Santo da Serra (660 m), tendo as três últimas substituído as estações clássicas existentes, das quais havia apenas uma observação diária, às 09.00 h. Posteriormente, e para completar a rede planeada em 2010, foram instaladas, em 2013, uma estação no Pico do Areeiro (1799 m), e em 2014 três estações: Porto Moniz (35 m), Pico Alto (1118 m) e Santa Cruz/Aeroporto (58 m), aqui para substituir a estação clássica. Estas 18 estações estão equipadas com instrumentos de observação da temperatura e humidade relativa do ar, precipitação e radiação solar global, estando 12 – Funchal/Observatório, Funchal/Lido, São Jorge, Areeiro, Lugar de Baixo, Ponta do Pargo, Caniçal/Ponta de São Lourenço, Santo da Serra, Porto Moniz, Pico Alto, Santa Cruz/Aeroporto e Porto Santo/Aeroporto – equipadas com instrumentos de medição do vento. Três destas estações estão ainda equipadas com instrumentos de medição da pressão atmosférica: Funchal/Observatório, Santa Cruz/Aeroporto e Porto Santo/Aeroporto. Assim, para a Madeira, a densidade de estações meteorológicas é da ordem de uma estação por cada 45 km2 para a temperatura e humidade relativa do ar e radiação solar global, e uma estação por 65 km2 para o vento. Para ilustração, apresenta-se na fig. 3 a distribuição e a localização das estações meteorológicas no arquipélago da Madeira, em 2015. Fig. 3 – Mapa com a distribuição e localização das estações meteorológicas no Arquipélago da Madeira em 2015. A redução na densidade de estações decidida para o arquipélago da Madeira resultou, em particular, da necessidade de melhoria da vigilância meteorológica, sentida após vários episódios de tempo rigoroso, em particular associados a precipitação forte, registados a partir do início de 2009, dos quais se apresentam alguns mais significativos: 27 fevereiro 2009: Funchal 82,7 mm/Areeiro 145,1 mm; 18 de dezembro de 2009: Funchal 36,7 mm/Areeiro 130,1 mm; 2 de fevereiro de 2010: Funchal 42,5 mm/Areeiro 184,7 mm; 20 de fevereiro: Funchal 144,3 mm/Areeiro 389,6 mm; 21 de outubro de 2010: Funchal 82,7 mm/Areeiro 147,0 mm; 26 de novembro de 2010: Funchal 155,1 mm, tendo sido o maior valor diário registado desde sempre/Areeiro 185,2 mm; 28 de dezembro de 2010: Funchal 50,7 mm/Areeiro 95,7 mm; 26 de janeiro de 2011: Funchal 103,4 mm/Areeiro 321,0 mm; 30 de outubro de 2012: Funchal 55,7 mm/Areeiro 258,1 mm; 6 de novembro de 2012: Funchal 19,3 mm/Areeiro 201,1 mm; 3 de março de 2013: Funchal 40,9 mm/Areeiro 274,4 mm; e muitos outros episódios em toda a ilha da Madeira, sendo de registar também os da Ribeira da Janela no dia 5 de novembro de 2012: 186 mm no Lombo da Terça/Porto Moniz; e de Porto da Cruz a 29 de novembro de 2013: 325 mm no Santo da Serra durante dois dias.   Fig. 4.1 – Fotografia de balão meteorológico com radiossonda. A rede de observação no arquipélago da Madeira inclui ainda um sistema de radiossondagens para observação da pressão atmosférica, do vento, da temperatura e da humidade relativa do ar, desde a superfície até cerca de 30 km de altitude, recorrendo ao lançamento de balão com radiossonda (fig. 4.1), executado uma vez por dias às 12.00 h, e ainda quatro estações de tempo presente, instaladas no Funchal/Observatório Meteorológico, em Chão do Areeiro, Pico do Areeiro e São Jorge, para observação da visibilidade horizontal e identificação do tipo de meteoros (chuva, chuvisco, granizo, saraiva e neve).   Fig. 4.2 – Estação meteorológica automática, em teste no Observatório Meteorológico do Funchal, para ser instalada nas Selvagens. Para completar a rede do arquipélago da Madeira, foi instalada uma estação meteorológica automática nas ilhas Selvagens no verão de 2016 (fig. 4.2), a qual permitirá essencialmente acompanhar a evolução de sistemas meteorológicos que se formem a sul da Madeira, para além de que os dados registados nestes ilhéus permitirão o estudo do clima local e o apoio de estudos científicos nos domínios dos ecossistemas locais.     Condições meteorológicas caraterísticas na região da Madeira Fig. 5.1 – Imagem de aproximação de superfície frontal fria As condições meteorológicas predominantes na região do arquipélago da Madeira são principalmente determinadas pela intensidade e localização do anticiclone dos Açores e pelas perturbações da superfície frontal polar que se fazem sentir especialmente de novembro a março, quando se deslocam do Atlântico Norte em direção à Europa, vindas de oeste. Durante o inverno, o anticiclone dos Açores está geralmente deslocado para sul da sua posição média, a sudoeste dos Açores. Importantes também na determinação das condições meteorológicas nesta época do ano são as depressões frontais que se deslocam sobre o Atlântico, que dão origem à aproximação e passagem de superfícies frontais, em particular de superfícies frontais frias (fig. 5.1), mais frequentes e mais ativas do que as superfícies frontais quentes, as quais dão origem a grande nebulosidade, chuva e aguaceiros por vezes fortes, em particular nas zonas montanhosas, e a ventos fortes dos quadrantes de sul. Fig. 5.2 – Imagem de localização do anticiclone dos Açores em dia de verão. Durante o verão, o anticiclone dos Açores, desloca-se frequentemente para nordeste relativamente à sua posição média anual, a sudoeste dos Açores, fortalece-se e estende-se com uma crista de altas pressões, que atinge o Nordeste da Europa (fig. 5.2). Fig. 5.3 – Imagem de depressão estacionária centrada entre Portugal Continental e os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Também de outubro a março, estabelecem-se por vezes, entre a Península Ibérica, os Açores e a Madeira, depressões frias estacionárias que afetam as condições meteorológicas nesta região e podem permanecer cerca de uma semana, dando origem, na região da Madeira, a grande nebulosidade com ocorrência de períodos de chuva ou aguaceiros por vezes fortes (fig. 5.3). Importantes são também as situações em que se observa um anticiclone muito desenvolvido, centrado a norte da latitude da Madeira, e orientado na direção oeste-leste, por vezes associado a baixas pressões sobre o continente africano, e em que a região da Madeira é atingida por vento de leste, muito quente e seco, vindo do deserto do Sahara, com poeira fina que dá origem a bruma. Nesta situação, a temperatura do ar na Madeira pode chegar aos 35 °C e a humidade relativa do ar descer para valores da ordem de 5 % nas regiões montanhosas. O clima da Madeira Para a caraterização do clima da Madeira, recorreu-se à classificação climática de Köppen-Geiger, a qual divide os climas em cinco grandes grupos, identificados por letras maiúsculas, e na qual o arquipélago da Madeira se integra no grupo [C], definido como clima temperado húmido. Para cada grande grupo, o tipo de clima é ainda especificado através de uma letra minúscula que refere o regime da precipitação, que para o arquipélago da Madeira, definido como húmido, é [s]; e uma segunda letra minúscula, que está relacionada com a temperatura média mensal, que para o arquipélago da Madeira é [a] ou [b], correspondendo a verão seco e quente (VSQ) ou verão seco e suave (VSS). No fig. 6, apresenta-se a metodologia utilizada com os limites relativos às temperaturas e precipitações mensais, de acordo com a classificação climática de Köppen-Geiger. [table id=88 /] Recorrendo à série de dados de 1971-2000 (30 anos), em particular às normais climatológicas, da temperatura do ar e da precipitação média mensal, para as estações do Funchal (costa sul, 58 m), do Areeiro (montanha, 1590 m), de Santana (costa norte, 380 m) e da ilha de Porto Santo (78 m), representadas graficamente na fig. 7, e aplicando a classificação de Köppen-Geiger, temos para o Funchal e para Porto Santo clima do tipo Csa (temperado húmido com verão seco e quente) e para o Areeiro e Santana clima do tipo Csb (temperado húmido com verão seco e suave). Fig. 7 – Gráficos com a temperatura do ar e a precipitação média mensal no período de 1971-2000, registadas nas estações meteorológicas do Funchal (58 m), do Areeiro (1590 m), de Santana (380 m) e de Porto Santo (78 m). Aplicando a mesma classificação para as estações que se apresentam na fig. 8, com séries de dados de cinco anos (2011-2015), verifica-se que no Funchal (58 m), no Lugar de Baixo (40 m), na Ponta do Pargo (298 m), em São Vicente (97 m), no Caniçal (133 m) e em Porto Santo (78 m) o clima é Csa (temperado húmido com verão seco e quente) e nas estações de Quinta Grande (580 m), São Jorge (257 m), Santana (380 m), Santo da Serra (660 m), Areeiro (1590 m), Bica da Cana (1560 m) e Lombo da Terça (931 m) o clima é do tipo Csb (temperado húmido com verão seco e suave). [table id=89 /] Legenda: H – Altitude T1 – Temperatura média do ar do mês mais frio I1 – Grupo climático R1 – Precipitação no mês mais seco R2 – Precipitação no mês mais chuvoso I2 – Indicador de tipo T2 – Temperatura média do ar do mês mais quente I3 – Indicador de subtipo TC – Tipo de clima Csa – Clima temperado húmido com verão seco e quente Csb – Clima temperado húmido com verão seco e suave   Na fig. 9 apresenta-se de forma gráfica, para nove das estações indicadas na fig. 8, os valores médios mensais da temperatura do ar e da precipitação para o período 2011-2015. Fig. 9 – Gráficos com a temperatura do ar e a precipitação média mensal no período de 2011-2015, registadas nas estações meteorológicas de São Vicente (97 m), São Jorge (257 m), Ponta do Pargo (295 m), Bica da Cana (1560 m), Santana (340 m), Lugar de Baixo (40 m), Funchal (58 m), Caniçal (133 m) e Porto Santo (78 m). Dos resultados anteriores, conclui-se que, para além da latitude, os fatores determinantes do clima da Madeira são a altitude e a proximidade ao mar. Assim, toda a faixa costeira sul até à cota de 500 m (a avaliar pelos valores da Quinta Grande), a faixa costeira norte até à cota de 100 m, aproximadamente (a avaliar pelos valores de São Vicente e de São Jorge), e o Porto Santo apresentam clima temperado húmido com verão seco e quente, e as restantes regiões clima temperado húmido com verão seco e suave. Resumo de apuramentos estatísticos (1971-2000) A fim de se conhecer com mais detalhe a variação dos vários parâmetros climáticos, apresenta-se uma descrição dos apuramentos estatísticos, também conhecidos por normais, para o período 1971-2000, relativos às estações do Funchal (58 m, costa sul), do Areeiro (1590 m, montanha), de Santana (380 m, costa norte) e do Porto Santo (78 m). (Todos estes dados foram recolhidos no Instituto do Mar e da Atmosfera.)   Temperatura do ar Nas regiões costeiras da ilha da Madeira e em Porto Santo, a temperatura mínima do ar raramente desce abaixo de 10 °C no inverno e a temperatura máxima poucas vezes ultrapassa 30 °C no verão. No entanto, nas terras altas da ilha da Madeira, consideradas acima dos 1000 m, observam-se com frequência valores da temperatura mínima do ar inferiores a 0 ºC. A região do Lugar de Baixo, na vertente sul, a jusante dos ventos dominantes, é a mais quente da ilha da Madeira. Os valores médios anuais da temperatura do ar na ilha da Madeira são maiores na costa sul do que na costa norte e diminuem para o interior da ilha, com a altitude. A temperatura média anual é de 19,0 °C no Funchal (58m), 8,8 °C no Areeiro (1590 m), 15,5 °C em Santana e 18,6 °C na ilha de Porto Santo (78 m). A temperatura média mensal varia pouco ao longo do ano, sendo maior no verão – 22,6 °C no Funchal, 14,3 °C no Areeiro, 19,0 °C em Santana e 22,5 °C em Porto Santo – e menor no inverno: 16,1 °C no Funchal, 4,9 °C no Areeiro, 12,8 °C em Santana e 15,6 °C em Porto Santo. As amplitudes térmicas diárias são pequenas, com valores médios mensais que variam de 5,7 °C a 6,5 °C no Funchal, de 5,9 °C a 8,5 °C no Areeiro, de 4,8 °C a 6,2 °C em Santana e de 4,8 °C a 6,1 °C em Porto Santo. O número médio de dias de verão, definidos como dias em que a temperatura máxima do ar é superior ou igual a 25 °C, é de 72 no Funchal, 7 no Areeiro, 7 em Santana e 39 no Porto Santo; o número de noites tropicais, ou seja, dias de temperatura mínima do ar superior ou igual a 20 °C, é de 28 no Funchal, 1 no Areeiro, 1 em Santana e 37 em Porto Santo. Os dias quentes, com temperatura máxima do ar superior ou igual a 30 °C, podem ser registados tanto nas regiões costeiras como nas regiões montanhosas da ilha da Madeira e também em Porto Santo, mas são bastante reduzidos; em média, inferiores a um dia por ano. As temperaturas máximas absolutas registadas foram 38,5 °C no Funchal, 30,6 °C no Areeiro, 34,1 °C em Santana e 35,3 °C em Porto Santo; e as temperaturas mínimas absolutas foram 7,4 °C no Funchal, -7,0 °C no Areeiro, 5,1 °C em Santana e 6,4 °C no Porto Santo. O número médio de dias do ano com temperatura mínima inferior a 0 ºC é praticamente nulo, exceto no Areeiro onde é de cerca de 40 dias. Precipitação De todos os elementos climáticos, a precipitação é a que apresenta maior variabilidade, existindo um contraste significativo entre a vertente norte e as zonas mais altas, onde ocorrem valores muito elevados de precipitação, e a vertente sul e o Porto Santo, com valores baixos de precipitação. No inverno, a precipitação ultrapassa os 1000 mm nas zonas mais altas, enquanto na costa sul é inferior a 300 mm. Nos meses de verão, a quantidade de precipitação varia entre os 150 mm nas zonas mais altas e menos de 50 mm na costa sul da ilha. O facto de chover mais na parte norte da Madeira durante o verão está claramente associado à direção dominante do vento do quadrante norte nesta estação do ano, e ao facto de a precipitação ser essencialmente de origem orográfica. Os valores médios anuais da precipitação na ilha da Madeira são maiores na costa norte do que na costa sul, aumentando com a altitude, sendo em regra maiores nas encostas voltadas a norte do que nas encostas voltadas a sul para regiões da mesma altitude. Os valores variam de 596 mm no Funchal a 2620 mm no Areeiro, com 1383 mm em Santana. No Porto Santo, o valor médio anual da quantidade de precipitação é 361 mm. Os valores médios mensais da quantidade de precipitação variam muito durante o ano, sendo os meses de outubro a março os mais chuvosos, com valor médio mensal mais elevado nos meses de novembro a janeiro. As maiores quantidades de precipitação diárias variam de local para local, desde o máximo de 215,0 mm no Areeiro, passando por 194,0 mm em Santana, até aos 97,7 mm no Funchal; em Porto Santo, o maior valor diário registado foi 73,0 mm. O número médio anual de dias em que a quantidade da precipitação é igual ou superior a 10 mm é máximo no Areeiro (70) e mínimo em Porto Santo (9), sendo 19 dias no Funchal e 40 dias em Santana. A assimetria norte-sul do número anual de dias com precipitação (≥0,1 mm) é muito significativa. Com efeito, na região do Funchal e noutros pontos da costa sul, ocorrem menos de 90 dias com precipitação por ano, enquanto na costa norte se observam mais de 150 dias por ano. Por outro lado, nas zonas mais altas registam-se mais de 200 dias por ano com precipitação, dos quais mais de 70 são dias com precipitação elevada, superior a 10 mm. Insolação A insolação (número de horas diárias de exposição solar) mensal varia durante o ano com bastante regularidade, Fig. 10 – Gráfico da insolação mensal no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. tendo o valor mínimo em dezembro: 134 h no Funchal, 102 h no Areeiro e 133 h na Ilha de Porto Santo. O máximo mensal é 231 h em agosto no Funchal, 241 h em agosto no Porto Santo e 285 h em julho no Areeiro. A insolação apresenta uma ligeira descida em junho no Funchal e em Porto Santo, mas que não se observa no Areeiro. A insolação mensal média tem assim, para o Funchal e para Porto Santo, uma distribuição bimodal, com máximos em maio e em agosto (fig. 10). Anualmente, o Porto Santo totalizou, neste período, 2157 h de sol e o Funchal 2057 h, estando o maior número de horas de sol em Porto Santo associado à menor orografia, que não favorece tão fortemente a formação de nebulosidade local. O Areeiro totaliza 2053 h de insolação, apresentando uma amplitude mensal de 183 h; o Funchal, com um número anual de horas de sol quase igual ao do Areeiro, tem uma amplitude mensal de 96 h. O número anual de dias sem insolação é de 11 no Funchal, 9 em Porto Santo e 42 no Areeiro; para este valor, contribui essencialmente o número de dias com muita nebulosidade que se registam nos meses de outubro a março. Evaporação (mm) Os valores médios mensais da evaporação nas regiões costeiras da ilha da Madeira e em Porto Santo variam pouco e com bastante regularidade durante o ano. Em geral, os máximos ocorrem em julho e agosto. A quantidade média anual de evaporação é maior em Porto Santo, com 1423 mm, seguindo-se, por ordem decrescente, na ilha da Madeira, o Funchal, com 1109 mm, o Areeiro, com 970 mm, e Santana, com 753 mm. A amplitude mensal é de 23 mm no Funchal, 117 mm no Areeiro, 19 mm em Santana e 36 mm em Porto Santo, sendo de concluir que a evaporação é máxima nas regiões montanhosas.   Humidade relativa do ar A humidade relativa do ar é em regra maior na costa norte do que na costa sul da ilha da Madeira, sendo a variabilidade mensal maior nas regiões montanhosas. Fig. 11 – Gráfico dos valores médios mensais da humanidade relativa do ar no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera.   Nas regiões costeiras da ilha da Madeira, os valores médios mensais da humidade relativa do ar apresentam pequena variação durante o ano, sendo menores no inverno do que no verão. Com efeito, o mês mais seco é abril no Funchal, com 69 %, e fevereiro e março em Santana, com 80 %. No Areeiro, os valores médios são mais altos no inverno, 85 %, do que no verão, 64 %. Também na ilha de Porto Santo a humidade relativa é maior no inverno, com 80 %, sendo nos meses de abril a julho da ordem dos 76 %. Na fig. 11, apresentam-se os valores médios mensais da humidade relativa do ar no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.   Vento O regime anual do vento é diferente na costa norte e na costa sul da ilha da Madeira, sendo os ventos predominantes de NE (10 %) e SW (10 %) no Funchal, de NE (38 %) no Areeiro, de WNW (14 %) e SE (10 %) em Santana/São Jorge, e de N (20 %) em Porto Santo. A frequência de calma é de 13,4 % no Funchal, 1,7 % no Areeiro, 4,0 % em Santana/São Jorge, e 2,3 % no Porto Santo. As rajadas superiores a 40 km/h ocorrem no Funchal com frequência de 1 % e muito raramente são registadas rajadas superiores a 70 km/h. Rajadas superiores a 70 km/h são registadas no Areeiro em 5 % das observações, em Santana/São Jorge em 0,6 % das observações e em Porto Santo em 0,2 %. Entre 1995 e 2015, a maior rajada do vento no Funchal foi de 86 km/h, em março de 2010; no Areeiro, foi de 160 km/h, em Santana/São Jorge, de 159 km/h e em Porto Santo, de 104 km/h, todas no mês de fevereiro de 2010. Assinale-se que os ventos fortes e muito fortes a que por vezes correspondem temporais, particularmente nas terras altas da Madeira e em Porto Santo, estão associados normalmente aos valores mais baixos da pressão atmosférica que em regra ocorrem entre novembro e março.   Temperatura da água do mar Os valores médios mensais da temperatura da água do mar à superfície variam com regularidade durante o ano. Os valores máximos ocorrem em agosto ou em setembro e os mínimos em fevereiro ou março. A temperatura média mensal é relativamente alta ao longo do ano, variando entre 17,8 °C em março e 23,3 °C em setembro no Funchal, e entre 17,3 °C em fevereiro e março e 22,4 °C em setembro no Porto Santo. A temperatura média anual é 20,2 °C no Funchal e 19,5 °C em Porto Santo. A amplitude média da variação mensal é 5,5 °C no Funchal e 5,1 °C em Porto Santo. Os valores observados na região raramente descem abaixo dos 15 °C e raramente ultrapassam os 25 °C.   Ondulação A ondulação na região da Madeira é geralmente fraca ou moderada, com rumos predominantes de NW a NE, exceto junto ao litoral sul da ilha da Madeira, em que predominam rumos de SE a SW. As situações que ocorrem mais frequentemente nos meses de inverno, e que correspondem à ocorrência de depressões no Atlântico Norte em latitudes entre 35° e 55° N, conduzem à geração de ondulação do quadrante NW na região da Madeira. A ondulação do quadrante NE é proveniente, em geral, de áreas de geração localizadas no bordo SE do anticiclone dos Açores, quando este se estende sobre a Europa Ocidental. Durante os meses de verão, cresce a importância desta situação relativamente à anterior, quer pela localização habitual nestes meses do anticiclone dos Açores, quer pelo menor número de depressões a atravessar o Atlântico Norte a latitudes suficientemente baixas para que a ondulação por elas provocada atinja a Madeira.   Pressão atmosférica Os valores da pressão atmosférica ao nível da estação apresentam diferenças quase constantes de local para local, resultantes das diferenças de altitude. Os valores médios mensais reduzidos ao nível médio do mar, registados no Funchal e em Porto Santo, variam pouco durante o ano – 3 hPa no Funchal e 3,3 hPa no Porto Santo –, sendo maiores no inverno e no verão, com diferença de cerca de 1 hPa, e menores na primavera e no outono. A variabilidade interanual dos valores médios mensais nos vários anos é maior durante o inverno e menor durante o verão: 15,0 hPa em janeiro e fevereiro e 2,4 hPa em agosto. Os valores mínimos ao nível médio do mar observados em anos recentes foram 985,9 hPa no Funchal, em 20 de fevereiro de 2004, e 985,8 hPa em Porto Santo, em 4 de março de 2013; os valores máximos foram 1037,2 hPa no Funchal, em 1 de janeiro de 2007, e 1039,3 hPa, em 25 de Janeiro de 2014, em Porto Santo.   Trovoada, granizo, neve e nevoeiro O número de dias com trovoada é de 7 no Funchal, 4 no Areeiro, 4 em Santana e 5 em Porto Santo, sendo a frequência maior no outono e na primavera. O número de dias com precipitação de granizo e saraiva é de 1 no Funchal, 14 no Areeiro, 2 em Santana e inferior a 1 no Porto Santo; a frequência é maior desde meados do outono até à primavera. O número médio de dias do ano com precipitação de neve e com geada é praticamente nulo na Madeira, exceto no Areeiro, em que são registados 7 e 16 dias, respetivamente, com maior frequência em janeiro e março. O número de dias com nevoeiro tem valores desde 1 no Funchal e em Porto Santo, 8 em Santana e 227 no Areeiro, sendo pouco nítida a variação ao longo do ano. É muito nítida e acentuada a variação em altitude. Victor Prior (atualizado a 29.01.2017)

Física, Química e Engenharia Geologia Ciências do Mar

castro, luís vieira de

Fig. 1 – Fotografia de Luís Vieira de Castro. Fonte: Museu Vicentes.   Luís Lopes Vieira de Castro nasceu no Funchal no dia 10 de maio de 1898. Concluiu o ensino secundário no Liceu do Funchal, após o que se matriculou em Direito na Universidade de Coimbra, vindo a acabar o curso em Lisboa em 1922. Foi depois para a sua terra natal, onde abriu banca de advogado, ao mesmo tempo que se dedicava ao jornalismo e à política. Monárquico integralista convicto, defendia a restauração da monarquia pré-liberal e o regresso à sociedade cristã e patriarcal tradicional, pugnando por uma monarquia orgânica, tradicionalista, antiparlamentar, que deveria apoiar-se no poder das corporações e dos municípios, sob o comando pessoal e incontestável do Rei. Desde cedo, em Coimbra, onde conviveu com monárquicos integralistas, vai dedicar-se ao jornalismo, fundando dois jornais académicos que estavam alinhados com o seu credo político, o Pátria Nova (1916) e o Restauração (1921), e colaborando ainda com outros. Nestes dois semanários, vai desenvolver e defender as ideias políticas e sociais que desejava ver implantadas no país. No Pátria Nova, combate pelos ideais do integralismo lusitano. No Restauração, começa por lutar pelas mesmas ideias, mas, a partir de 1922, com o Pacto de Paris, que leva ao rompimento do Integralismo Lusitano com o ex-Monarca português, D. Manuel II, então exilado em Inglaterra, vai afastar-se daquele movimento político, que passa a optar pelo pretendente legitimista D. Miguel, do ramo familiar de D. Miguel, Rei absoluto que governara o país entre 1828 e 1834. Tal como os seus amigos do Restauração, vai aderir à outra fação integralista, entretanto fundada por Alfredo Pimenta, a Ação Realista Portuguesa, que, embora integralista, não rejeitava D. Manuel. Em 1922, depois de concluída a licenciatura, regressa a casa e vai ser convidado pelo lugar-tenente do Rei, o madeirense Aires de Ornelas, para organizar a Causa Monárquica na Madeira. Funda então o Jornal da Madeira, em 22 de novembro de 1923, periódico de cariz regionalista que se apresenta como defensor de uma imprensa regional independente da nacional e que, segundo o seu fundador, aparece para defender a autonomia da Madeira do centralismo da república. É de facto Luís Vieira de Castro que, no princípio da déc. de 20, e na sequência da época festiva que se vivera na Madeira, em 1922, com a comemoração do 5.º centenário do descobrimento da Madeira, dá voz à propaganda autonomista, ao abrir, nas colunas do seu jornal, um espaço de debate dedicado a este tema. Promove então um inquérito sobre esta temática a algumas figuras ilustres da região. São auscultados o banqueiro Henrique Vieira de Castro, seu pai, e o P.e Fernando Augusto da Silva, entre outros. Não se pensava em independência, mas apenas numa descentralização administrativa, embora o sacerdote tenha defendido a criação de um partido autonomista. Estas ideias autonomistas, vazias de conteúdo, foram ficando no papel, visto que a conceção de Luís Vieira de Castro mais representava uma demarcação relativamente ao regime republicano do continente, que ele combatia. A autonomia, para ele, era apenas uma estratégia para colher dividendos políticos e aglutinar os descontentes contra a república, já que, no seu entender, essa autonomia só seria realizável dentro da monarquia tradicional e antiparlamentar. Isto mesmo o exprime logo no primeiro editorial do Jornal da Madeira: “Descentralização, no rigoroso sentido da palavra, teve-a Portugal, com licença dos espíritos avançados (?) no bom tempo antigo. Veio depois o liberalismo, com eleições, foguetes, discursos, sonetos e hinos – consoante reza o mestre Herculano – e surripiou-nos as atribuições conferidas pelos velhos forais, que eram as autênticas cartas de lei da nossa autonomia. Deu este caminhar para a morte, no tão citado congestionamento do Terreiro do Paço, espectro que nos persegue e atormenta […] para saciar o monstro do Terreiro do Paço e a sua dependência de S. Bento, foi necessário sacrificar quasi todos os valores úteis, por isso que os deslocaram do quadro natural onde deveriam exercer a sua função. A organização política do país é porém, no meu entender, incompatível com a efetivação desse belo pensamento. Quaisquer instituições que se apoiem em partidos políticos estão inibidas de conceder uma reforma administrativa que haveria fatalmente de bulir com o chamado equilíbrio constitucional. O regionalismo, apoiando-se na força histórica da tradição, será de substituir-se aos partidos políticos, gastos e desacreditados, constituindo-se em instrumentos das aspirações locais. Para que elas se convertam em realidade, não teremos de negar a unidade da Pátria” (CASTRO, 1923, 1). Mais do que a autonomia da Madeira, o que movia Vieira de Castro era a vontade de que triunfasse na Ilha uma orientação política diferente da do território continental, a ânsia de afirmação pessoal na política e a defesa dos seus interesses pessoais. A posição assumida perante a Revolta da Madeira, em 1931, viria, aliás, a confirmá-lo. Os problemas locais aparecem em larga escala nas páginas do seu jornal, mas nem sempre são expostos com a clareza que exigiria a sua resolução. A partir de 1924, começa a ser evidente que o país necessita de ordem e de autoridade e a república revela-se incapaz de as proporcionar. É então que Luís Vieira de Castro se vai tornar conspirador, participando nas várias tentativas – falhadas – de golpe contra a república. Neste âmbito, acompanha a preparação do golpe de 18 de abril de 1925, e a derrota no mesmo é considerada um parêntesis amargo na vida política de Luís Vieira de Castro, que acompanha o desenrolar do correspondente processo de julgamento, fazendo da república a ré do mesmo. Nesse ano, embora condenando as eleições, vai concorrer a elas, com sucesso. No entanto, devido a uma irregularidade encontrada nos boletins de voto, não chegará a assumir as funções de deputado. O golpe militar de 28 de maio de 1926 não é tão coberto pelo Jornal da Madeira como o fora o anterior, embora apareça uma entrevista com um militar, no próprio dia do golpe, dando conta dos preparativos e indicando para breve o seu eclodir. Este golpe vitorioso é comentado por Luís Vieira de Castro no seu jornal no dia 3 de junho. Congratulando-se com a vitória dos militares, integra-a no movimento de ressurgimento que caracterizava a época; no entanto, o cariz republicano do golpe põe-no na expectativa e continua dizendo que mantém a sua posição de monárquico que espera pela restauração da monarquia. A partir do contragolpe falhado, em 3 e 7 de fevereiro de 1927, começa o seu percurso ao encontro do regime do Estado Novo, que defende veementemente após a nomeação de Salazar para ministro das Finanças. Por esta altura, volta a defender a autonomia da Madeira, mas já sem a força e o entusiasmo do princípio da década. Em 1928, vai para Lisboa, com o objetivo de dirigir o Correio da Manhã, jornal da Causa Monárquica. A sua índole facciosa vai ser posta em evidência durante a crise por que passou a Madeira nos finais do ano de 1930 e nos princípios de 1931, que levou ao despoletar da já referida Revolta da Madeira. O seu comportamento face a este acontecimento é bastante dúbio. Em novembro de 1930, quando se dá a falência da casa bancária Henrique Figueira da Silva, e no início de 1931, aquando do célebre “decreto da fome”, é ele quem escreve os manifestos incitando o povo à insurreição; mas, quando a rebelião toma figura, ele retira-se de cena, tentando assim defender os seus interesses particulares, esquecendo os da sua terra. Durante estes incidentes, o seu jornal é tomado pelos revoltosos, que se servem das instalações para publicar o jornal Notícias da Madeira, porta-voz do movimento rebelde. Com o esmagamento do levantamento, Luís Vieira de Castro, de regresso ao seu jornal, condena-o como se não tivesse tomado parte ativa nele. Os seus opositores imputam-lhe então ter sido o seu grande impulsionador, e foi inclusivamente acusado de duplicidade por alguns dos seus correligionários políticos. Depois da Revolta da Madeira, pouco se ouviu falar de autonomia. A 30 de abril de 1932, recusa continuar na direção do seu jornal, que entretanto mudara de nome para O Jornal, “em virtude de ocupar outras funções para que era chamado” (O Jornal, 30 abr. 1932, 1) em Lisboa. Neste ano, O Jornal é vendido à Diocese do Funchal. Após o convite feito por Salazar aos monárquicos para que “não se prendessem a cadáveres” (SALAZAR, 1928, 169), entra para a União Nacional em 1934. Em 1940, é um dos organizadores do Congresso do Mundo Português, sendo seu vice-secretário geral. Entre 1942-1945 e 1946-1949, é deputado à Assembleia Nacional. Distinguiu-se também como comentador de política internacional em vários jornais. Foi ainda cônsul da Polónia, sócio da Academia Portuguesa da História, do Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia e da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. Para além de colaborar com diversos jornais e revistas, Luís Vieira de Castro publicou várias obras de carácter histórico, literário e político, entre as quais se salientam: Nebulosas, Livro Estranho, Civilizados, A Hora Internacional, A Nacionalidade Portuguesa, A Europa e a República Portuguesa, O Mundo Que Finda e o Mundo Que Começa, D. Carlos, Limbo, A Noiva de Dois Reis, O Exílio do Prior do Crato, Em Pé de Guerra, Pedra sobre Pedra, Homens e Livros, Rumo à Vitória, Quarto de Vigia. Faleceu em Lisboa a 7 de setembro de 1954.   Obras de Luís Vieira de Castro: Nebulosas, Livro Estranho (1916); Civilizados (1918); A Hora Internacional; A Nacionalidade Portuguesa (1919); A Europa e a República Portuguesa (1922); “Regionalismo” (1923); O Mundo Que Finda e o Mundo Que Começa, D. Carlos (1935); Limbo; A Noiva de Dois Reis (1936); O Exílio do Prior do Crato; Em Pé de Guerra (1938); Pedra sobre Pedra (1942); Homens e Livros; Rumo à Vitória (1943); Quarto de Vigia (1948).   Emanuel Janes (atualizado a 25.02.2017)

Personalidades

câmara, luís gonçalves da

(Funchal, c. 1519-Lisboa, 1575) Padre da Companhia de Jesus, foi confidente de Inácio de Loyola, confessor e preceptor do príncipe herdeiro, D. João Manuel, e, anos mais tarde, mestre, encarregado da instrução moral e intelectual do filho daquele, D. Sebastião, tornando-se também seu confessor e o seu mais íntimo conselheiro. Privou e correspondeu-se com importantes figuras seiscentistas, sendo uma personagem ambígua – odiada e admirada – e cujos percurso e legado são de uma importância indiscutível para a história da sua Ordem e do seu país. Palavras-chave: Companhia de Jesus; Jesuítas; Inácio de Loyola; D. Sebastião; Universidade de Coimbra. Luís Gonçalves da Câmara nasceu na Madeira, por volta de 1519, e faleceu na capital do reino, em 1575. Padre da Companhia de Jesus, foi confidente de Inácio de Loyola, confessor e preceptor do príncipe herdeiro, D. João Manuel, e, anos mais tarde, mestre, encarregado da instrução moral e intelectual do filho daquele, o Rei D. Sebastião, tornando-se também seu confessor e o seu mais íntimo conselheiro. Privou e correspondeu-se com importantes figuras seiscentistas, sendo uma personagem tenaz que recolheu ódio e admiração, algo que Camões terá até referido nos seus cantos, e cujos percurso e legado são de uma importância indiscutível para a história da sua Ordem e do seu país. Era trineto de João Gonçalves Zarco, o primeiro capitão do donatário do Funchal, e filho de João Gonçalves da Câmara, quarto capitão-donatário do Funchal, e de D. Leonor de Vilhena. Os seus avós paternos eram Simão Gonçalves da Câmara, terceiro capitão do Funchal, e D. Joana Valente, filha do primeiro governador da Casa do Cível. Os seus avós maternos, de ascendência nobre, eram D. João de Meneses, conde de Tarouca, prior do Crato e mordomo-mor dos Reis D. João II e D. Manuel I, e D. Joana de Vilhena. Era primo de D. João de Menezes, outro Jesuíta célebre. A vida religiosa também foi abraçada por outro dos seus irmãos, o P.e Martim Gonçalves da Câmara. Era sobrinho de D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego, e o seu irmão Simão Gonçalves da Câmara tornou-se o quinto capitão do Funchal e, a partir de 1576, conde da Calheta – para a atribuição do título, além da sua participação na caça às armadas de corsários, foi decisiva a influência que os seus dois irmãos tinham na corte. No séc. XVI, em plena época de ouro da cana-de-açúcar madeirense, a família do capitão do Funchal foi alcançando notoriedade na corte. Da sua juventude, nada é conhecido, até ingressar, em 1535, como bolseiro do Rei D. João III no Colégio de S.ta Bárbara da Universidade de Paris, cujo principal era o português Diogo de Gouveia, o Velho. Francisco Rodrigues, em História da Companhia de Jesus na Assistência a Portugal, confirma a sua naturalidade, “Lodovicus Goncalve de Camara nobilis funiculensis dioecesis” [“Luís Gonçalves da Câmara, nobre da Diocese do Funchal”], através do livro das atas reitorais da Universidade de Paris (RODRIGUES, 1931-1950, I, 1, 447). No tocante à sua ida para Paris, deveremos ter em consideração a importância que a rede de parentescos nisso desempenhou, numa altura em que esta cidade constituía um dos grandes centros de cultura europeia. Foi na capital francesa que Inácio de Loyola obteve o grau de mestre em Artes e de onde partiu, em fevereiro de 1535, sete anos após chegar a Paris, rumo à sua cidade natal. Será, portanto, pouco provável que o jovem Gonçalves da Câmara se tenha cruzado com Loyola nesse período, ao contrário da proximidade que estabeleceu com o francês Pedro Fabro, o único fundador da Companhia que era padre a 20 de agosto de 1534, a data de celebração da cerimónia que esteve na génese da futura Ordem. Em 1538, Câmara prestou juramento universitário. Após a conclusão dos seus estudos em Paris, onde alcançou o grau de mestre, também em Artes, regressou a Portugal, indo para a Universidade de Coimbra. Segundo António Franco, em Imagem da Virtude em o Noviciado da Companhia de Jesus…, com a refundação da Universidade de Coimbra, D. João III mandou regressar os Portugueses que estudavam em Paris. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, em Elucidário Madeirense, e Maria Augusta Cruz, em D. Sebastião, referem que Câmara foi um dos escolhidos pelo Rei para fazer parte do corpo docente da Universidade. Em 1544, reencontrou Fabro, que estava de visita a Coimbra, a quem foi atribuída a sua vocação. Depois desse encontro, Câmara retirou-se para a Vila de Coja, onde, afastado de tudo e de todos, pôde realizar os exercícios espirituais da Companhia. Ingressou na Ordem a 27 de abril de 1545, cinco anos depois do reconhecimento papal dessa jovem congregação. A sua entrada ocorreu um ano após ter sido revogado o limite de 60 professos na congregação, que tinha sido imposto por Paulo III na bula de fundação, possibilitando assim que a Companhia respondesse aos apelos de novos ingressos; nesse ano, começaram a chegar relatos de práticas penitenciais estranhas dos estudantes do Colégio de Coimbra, parcialmente instigadas pelo padre provincial português, o mestre Simão Rodrigues. Gonçalves da Câmara fez o seu noviciado no novo Colégio de Valença, onde era reitor o P.e Diogo de Miró, retornando depois para Coimbra, devido a uma enfermidade nos olhos. Tendo de se deslocar a Madrid, o madeirense reencontra-se com o P.e Pedro Fabro, em janeiro de 1546. Regressa a Coimbra cinco dias depois do encontro, que parece ter sido proveitoso, como se depreende da carta de recomendação que ele e o seu companheiro de viagem, Gonçalo Fernandes, receberam para entregar ao reitor do Colégio de Jesus. Em 1547, foi ordenado sacerdote e, no mesmo ano, nomeado reitor do Colégio de Coimbra, numa subida meteórica, substituindo o P.e Martinho de Santa Cruz, reitor quando Câmara ingressou na Companhia. Em pouco mais de dois anos, Luís Gonçalves da Câmara ingressa na Ordem e chega a reitor de um dos seus colégios. Já no séc. XVII o P.e António Franco relatava, na sua narrativa afetuosa e parcial, que Simão Rodrigues o retirou do cargo de reitor, atribuindo-lhe a função de cozinheiro, “no qual ofício se houve, como se só para ele entrara na Companhia” (FRANCO, 1930, 145). Aliás, o próprio Simão afiançava, em carta ao padre geral da Ordem, que “mais se gozava e maior contentamento recebia em ser cozinheiro da Companhia de Jesus do que mestre e confessor do príncipe”, num sinal que Rodrigues interpretou como de simples humildade, situação que Câmara, todavia, não iria reconhecer com complacência, e que seria o prefácio do confronto que iria abalar a província portuguesa (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 31). Em 1547, quando o madeirense era o reitor, Loyola escrevia à comunidade do Mondego sobre as práticas adotadas por aqueles estudantes, parcialmente instigadas por Simão Rodrigues, como anteriormente referido, e que estavam a chocar a comunidade e a comprometer a posição da Ordem em Portugal. Inspirados por interpretações erradas de algumas passagens dos Exercícios inacianos, alguns estudantes desfilavam por Coimbra carregando crânios e vestidos de forma pouco séria, numa atitude excessiva que Loyola repudiava. A carta do geral atesta a preocupação do líder da Companhia perante os testemunhos que chegavam a Roma: “Quando tal moderação está ausente, o bem é transformado em mal e a virtude em vício” (Monumenta Ignatiana…, 1903, 504). Em 1548, o padre madeirense parte para a primeira missão jesuíta em Tetuão (Marrocos), pretendendo prestar ajuda espiritual aos Portugueses e visitar os cristãos cativos, e acabando por regressar a Lisboa, novamente devido a doença. Francisco Rodrigues relata que, nesse ano, nascia em Roma a intenção de substituir o provincial português, cuja liderança não satisfazia inteiramente Loyola. Desde 1545, chegavam relatos da província portuguesa sobre a insubordinação de alguns membros da Companhia, incluindo do próprio provincial, perante as ordens oriundas de Roma. O P.e Simão, pela incoerência e pela imprudência que demonstrava ter em algumas das suas missivas – e de acordo com os relatos de outros padres –, estava a desagradar à cúpula da Companhia em Roma. A 9 de dezembro de 1550, quando Simão Rodrigues obteve do Rei a desejada licença para se ausentar para Roma, deixou o ofício de confessor do príncipe regente D. João ao P.e Gonçalves da Câmara, nomeado pelo próprio geral, que se ocuparia dessa missão até meados de 1552. O cargo conferia grande destaque à Ordem a que pertencesse o escolhido, e é certo que o confessor e o preceptor possuíam alguma influência nas decisões políticas que eram tomadas. Ampliava-se, deste modo, uma teia de interesses que criou muitos inimigos aos inacianos e lhes provocou muitos dissabores. No início da déc. de 50 do séc. XVI, a província portuguesa da Companhia viveu um período de “grande tribulação” (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 10), com uma profunda cisão no seu seio, a qual teve dois protagonistas: o próprio Simão Rodrigues, provincial desde 1546 e um dos prime patris da Ordem, e Luís Gonçalves da Câmara. Confrontavam-se, assim, os partidários de uma posição mais moderada e os adeptos de uma linha mais rigorosa, onde se inseria o madeirense. O cisma instalado acabou por conduzir a uma divisão interna na Companhia, prolongando-se durante as décadas seguintes. A 18 de agosto de 1551, atendendo a um pedido de D. João III, o padre valenciano Diogo Miró chegou, por determinação do geral, a Coimbra, onde se inteirou sobre a veracidade das críticas dirigidas ao provincial. As acusações contra Simão acumulavam-se e Loyola decidiu, por fim, afastá-lo do governo da província, sendo expulso do reino em 1553. Não parece haver registo dos delatores e das acusações finais contra o provincial, pela ausência de correspondência conservada. No início de 1552, são remetidas as missivas de Loyola que depunham o provincial. Após o seu afastamento, o cargo transitou para Miró e Simão foi designado líder da nova província de Aragão, que foi propositadamente erigida neste contexto. Nesse período, outros Jesuítas tornaram-se confessores das personalidades mais influentes do reino, potenciando as tensões externas contra província portuguesa da Ordem, agravadas pela própria celeuma interna. Alguns investigadores acusam Gonçalves da Câmara de desacreditar Simão Rodrigues perante a cúpula da Companhia, o que pode ser verificado nas críticas por ele enviadas a Roma, mediante as quais pretendia que o provincial, para além de deixar o governo da província, abandonasse Portugal. A (alegada) estima de outrora havia desaparecido por completo e a tensão entre ambos é relatada de tal forma que “só de ouvir o nome do P.e Simão Rodrigues, acendia-se de tal modo [Câmara], que parecia sair fora dos seus sentidos” (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 83). Nas cartas de Câmara estão patentes uma certa extrapolação que fez dos acontecimentos, o pendor negativo que conferiu à atuação do provincial e a interpretação fantasiosa das consequências do seu afastamento para a província. Nas suas palavras, os aliados do antigo provincial sairiam da Ordem ou seriam expulsos, por compactuarem com as suas ideias perversas. Após a expulsão de Rodrigues, pouco tempo passou até que o P.e Gonçalves da Câmara reincidisse na sua visão crítica sobre o governo da província e escrevesse para Roma, indicando a falta de habilidade de Miró para a liderança. Em 1553, Câmara deixou Portugal, chegando a 23 de maio a Roma, onde executou um trabalho que o perpetuou na história da Companhia. Quando se encontra com Loyola, o impacto é tão grande que o próprio Pedro Fabro, tão admirado pelo madeirense, parecerá, aos seus olhos, uma criança em comparação com a grandiosa figura do geral. No início de dezembro, para esclarecer o diferendo contra Simão Rodrigues, Loyola estabeleceu um julgamento e nomeou Gonçalves da Câmara como um dos acusadores. A 7 de fevereiro de 1554, foi pronunciada a sentença que ratificava a saída de Rodrigues do reino e do cargo. O padre madeirense saiu, uma vez mais, vencedor. A ida de Câmara a Roma estava relacionada com os problemas da província portuguesa, conforme amplamente relatado nas várias missivas trocadas entre Roma e Portugal ao longo dos anos, mas Câmara acabaria por ter aí uma missão ainda mais importante. O padre fundador recebia vários apelos para que deixasse um registo da sua vida, principalmente do período anterior ao reconhecimento da Ordem. O Jesuíta madeirense acabou por ser o escolhido – segundo alguns relatos internos, devido à sua memória prodigiosa – para o elaborar. Certamente, preferiu-se Gonçalves da Câmara devido ao seu empenho na resolução dos problemas da província portuguesa e à lealdade a toda rede de influências de que se cercava, e que crescia. As diligências e o comportamento de Câmara, durante todo o período de crise, e a sua intervenção na gestão desse processo turbulento foram decisivos para impedir uma cisão profunda entre Roma e Portugal, que comprometeria até a expansão da Ordem pelos novos domínios e a unidade e a continuidade de uma congregação tão jovem. A 26 de março de 1553, por sugestão do madeirense, Loyola escreve aquela que ficou conhecida como a “carta de obediência”, que selou o fim do conflito. Em agosto, começa a escrever a narrativa ditada por Inácio de Loyola em três curtos períodos: de agosto a setembro de 1553, em março de 1555 e de setembro a outubro de 1555. Câmara ouviu as memórias do fundador, fez breves apontamentos e depois ditou-os a um cronista. O madeirense assumiu os papéis de confidente e secretário do geral da Companhia, além do de ministro da sua casa, a partir de setembro de 1554. Devido à ausência de título nos vários manuscritos de Câmara, a obra ditada por Loyola acabou por ser publicada com diferentes nomes ao longo do tempo: Atas do P. Inácio, Feitos do P. Inácio, Autobiografia, entre outros, sendo apenas citada como Autobiografia por J. F. O’Connor, em 1900. Os relatos ficaram, durante vários séculos, nos segredos da Ordem. Depois do último encontro entre os dois, que teve lugar entre os dias 20 e 22 de outubro de 1555, o madeirense deixa Roma e os relatos da entrevista acabam por ser transcritos na cidade de Génova, em italiano. Anos mais tarde, em 1566, o terceiro geral da Companhia, Francisco de Borja, mandaria recolher todos os relatos dos manuscritos inacianos, proibindo a sua leitura e difusão, alegadamente por estarem incompletos, e encarregou o P.e Ribadeneira de executar uma biografia, que acabou por se traduzir numa versão em castelhano, de estilo clássico, dos próprios originais de Câmara. Entre os vários aspetos a serem investigados na biografia do madeirense está a relação entre a desconsideração que os seus escritos tiveram no governo de Borja, que se propagou no tempo, e a fama que o cargo na corte portuguesa lhe deu. Após quatro meses a desempenhar funções de secretário, em finais de janeiro de 1555, Câmara decidiu fazer o seu próprio registo acerca do que entendeu ser importante para ser recordado sobre o fundador, escrevendo o que seria o Memorial de lo que Nuestro Padre Me Responde acerca de las Cosas de Casa, Començado á 26 de Henero del Año de 1555, guardado, com alto secretismo, durante séculos. A sua presença discreta é mais importante do que se possa pensar. O Memorial assume-se como uma obra ímpar, que funciona como um precioso complemento da biografia inaciana. A 9 de março de 1555, poucos meses após a sua decisão sobre a escrita do Memorial, os trabalhos ditados por Loyola, que tinham sido interrompidos, recomeçaram. A partir desse momento, o tempo de escrita de Câmara foi repartido entre a Autobiografia e o Memorial. O labor foi interrompido com a morte do Papa Júlio III e retomado apenas a 22 de setembro. Em setembro e outubro, a narrativa da autobiografia absorveu Câmara quase por completo, devido ao ritmo acelerado imposto pelo fundador. Na véspera do seu regresso a Portugal, os relatos tinham fim. Cinco dia antes, a 18 de outubro, o Jesuíta interrompera os trabalhos do Memorial, retomados apenas em 1573, quando se encontrava em Évora. A narrativa ditada pelo fundador representa um documento histórico único, de valor incalculável, sendo a biografia espiritual de Loyola mais importante e a mais difundida. O método de trabalho para as duas obras foi distinto. Com Loyola, durante a preparação da Autobiografia, Câmara privou, por diversas vezes, na chamada “torre vermelha”, onde memorizava as conversas com o geral; após o encontro, recolhia-se na sua cela para ditar ao cronista o que tinha ouvido. Para a elaboração do Memorial, o madeirense registou o que viu e ouviu na presença do próprio Inácio, durante as atividades do quotidiano; posteriormente, também ditou estes escritos ao seu secretário pessoal; o objetivo foi a execução de um diário com o máximo possível de informações sobre o padre fundador, o qual foi composto durante pouco mais de seis meses. Durante a sua estadia em Roma, Gonçalves da Câmara manteve correspondência com D. João III. O Monarca não escondeu o desejo de ver o madeirense de regresso a Portugal. Quando deixou Roma, a 23 de outubro de 1555, fez-se acompanhar de vários Jesuítas e levou consigo várias cartas de recomendação. Além disso, Loyola atribuiu-lhe importantes prerrogativas: nomeou-o colateral do provincial português, o castelhano Miguel de Torres, que passava assim a partilhar o governo da província com o madeirense; isentou-o da obediência a qualquer superior da província, respondendo apenas ao Rei D. João III; concedeu-lhe escolher a casa da Companhia em que preferisse residir; e deu-lhe poder para declarar e determinar sobre a missão na Etiópia. A combinação desse poder com o temperamento explosivo de Câmara acarretou muitos problemas e queixas, que tinham origem no provincial, referindo a natureza colérica do madeirense, e até nos seus companheiros de Ordem. Em 1556, um Jesuíta escreveu que o governo da província estava partido entre Miguel de Torres, Luís Gonçalves da Câmara e Inácio de Azevedo. Ao seu regresso, o madeirense visitou vários colégios e analisou os problemas que a Companhia, por se encontrar “bastante desacreditada”, enfrentava nos estudos cuja superintendência lhe fora confiada (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 362). As reformas que conduziu pareceram produtivas e acabou por desempenhar um papel importante junto do Rei na manutenção da tutela da Companhia sobre o Colégio de Jesus. Em 1556, a Companhia perdeu o seu geral e idealizador, a 31 de julho, e o governo é entregue ao vigário geral, o P.e Diogo Laynez. A congregação que elegeu o segundo geral teve início a 19 de junho de 1558. A 9 de maio, chegaram a Roma os cinco padres eleitores portugueses, que se juntaram ao P.e Simão Rodrigues. Entre eles estava Luís Gonçalves da Câmara. Os enviados foram escolhidos, em novembro de 1556, na congregação provincial que foi celebrada na casa de S. Roque. O novo geral acabou eleito a 2 de julho de 1558, com 13 votos dos 20 eleitores. Poucos dias depois, o padre madeirense foi eleito para o Conselho Supremo da Ordem, com o cargo e o nome de assistente de Portugal. No final dos trabalhos, Câmara permaneceu em Roma. Ainda nesse ano, e no seguimento das decisões tomadas pela congregação, no sentido de organizar o governo da Companhia em “assistências”, Câmara foi nomeado um dos quatro assistentes. Em 1557, a morte do Rei português deu outro rumo e outro impulso à posição de Câmara, mesmo que alguns autores afirmem que tais acontecimentos ocorreram contra a sua vontade. Três dias após a morte do Monarca, a Rainha D. Catarina reuniu o Conselho e assumiu a regência e a tutoria do futuro Rei. Enquanto o nome do aio do jovem D. Sebastião foi escolhido pacificamente, o do seu mestre, que seria o responsável pela sua instrução intelectual e moral, não teve a mesma sorte. Amador Rebelo, padre jesuíta que coadjuvou Gonçalves da Câmara no seu ofício, e autor da Relação da Vida d’El Rei D. Sebastião (1685-1700), refere que a escolha, tanto do aio como do mestre, correspondeu a um desejo expresso de D. João III e muito apoiado pelo seu irmão, o cardeal D. Henrique. A escolha do tio-avô de D. Sebastião “recaíra desde o início no padre Luís Gonçalves da Câmara” (CRUZ, 2012, 77), enquanto a Rainha preferiria um religioso de outra Ordem. A influência exercida pelo Jesuíta Miguel de Torres, que foi confessor da mãe de D. Sebastião, acabou ajudando as pretensões do cardeal para que a nomeação incidisse sobre o madeirense, mas há autores que afirmam que a Rainha “escolheu e preferiu de própria vontade aquele religioso” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 253-254). Em pouco tempo, D. Catarina arrepender-se-ia de tal decisão. Em 1559, aquando da protelada deliberação dos governantes portugueses, Câmara estava, novamente, em Roma. Era certo que a presença de um Jesuíta num cargo de tamanha importância dava destaque à Ordem, mas também acarretava ódios e intrigas, e poderia fazer suspeitar da humildade que a Companhia pregava, dada a influência e dado o destaque da função. A 17 de abril desse ano, D. Catarina solicita ao geral, Diogo Laynez, a dispensa do madeirense, para que ele possa assumir e desempenhar as funções para as quais fora nomeado. O relevo e a preponderância que os Jesuítas ganham ao longo do tempo, acrescidos da juventude do instituto, irão contribuir para uma intensificação da oposição aos padres da Companhia. Em julho de 1559, Câmara parte de Roma rumo a Lisboa, onde só chega em dezembro. As funções iniciam-se apenas em meados do ano seguinte, quando o Rei já caminha para os seus sete anos. A relação estabelecida entre o mestre e o seu preceptor é descrita como sendo a “única afetivamente normal” de que pôde gozar o príncipe, “assumindo contornos de uma relação entre pai e filho” (CRUZ, 2012, 81). O contacto do mestre com o herdeiro do trono – sempre acompanhado do seu aio, D. Aleixo – era frequente: “Duas vezes no dia passava lição ao rei, e lha tomava” (FRANCO, 1719, I, 49). O P.e Câmara foi coadjuvado pelo P.e Amador Rebelo, que, além de ser o “mestre do A. B. C.”, como ele próprio se intitulava, assumiu o encargo da catequese. A primeira confissão de D. Sebastião acontece nos primeiros meses de trabalho de Gonçalves da Câmara, sendo este o seu confessor (CRUZ, 2012, 82). Ao longo do tempo, com o contacto diário, aumentava a proximidade entre o Monarca e o seu mestre. À sua visão diminuída, provavelmente devido a uma doença contraída na missão em Marrocos, juntavam-se vários problemas de saúde, que acabariam por dificultar e condicionar as deslocações diárias do mestre do Colégio de Santo Antão-o-Velho até ao paço da Ribeira, onde as lições tinham lugar. Os dois Jesuítas teriam autorização para tomarem a refeição intermédia no paço (o chamado “jantar”) e, nas deslocações da corte para outros paços (Boavista, Xabregas, Almeirim, Sintra, etc.), integravam o séquito. A função do mestre do Rei não teve fim na fase de instrução literária, que terminou por volta dos 12 anos. Gonçalves da Câmara desempenhou funções até aos 20 anos do Rei, tornando-se “a pessoa que mais intimamente o conheceu”, sendo “o suporte da constância afetiva, da confiança tranquilizadora e da dedicação inabalável” (CRUZ, 2012, 88). Porém, em 1566, o madeirense afasta-se das funções que desempenhava, sendo substituído por Luís de Montoya, frade agostinho. Ainda nesse ano, em outubro, a Madeira sofre um ataque corsário francês, o que desperta no P.e Luís Gonçalves da Câmara e no seu primo, o P.e Leão Henriques (confessor do cardeal D. Henrique), o alegado desejo de embarcar na armada de socorro que foi enviada ao Funchal. Câmara acabou por não ser autorizado pelo Rei a fazê-lo, tal como não obteve autorização para realizar outras deslocações que o afastariam do Rei. Segundo alguns investigadores, os irmãos Câmara desempenhavam uma influência certeira para que o Rei preterisse o cardeal, na disputa que o tio-avô e a avó protagonizavam. Após cerca de dois anos de ausência, o madeirense regressa ao cargo por insistência do Rei, quando este atinge a maioridade. Os historiadores diferem sobre o período de afastamento do P.e Gonçalves da Câmara, em que o agostinho desempenhou o cargo de mestre. A sua saída foi justificada, por um investigador americano, como relacionada com abusos sexuais infligidos pelo madeirense ao jovem Rei. Johnson, em “Um Pedófilo no Palácio…”, alega que a enfermidade de que o Rei sofria, relatada desde 1563 e relacionada com a “expulsão de pequenos cálculos renais” (CRUZ, 2012, 124), e que tem nos historiadores vários diagnósticos (espermatorreia, uretrite, infeção bálano-prepucial, crise renal, etc.), era uma doença venérea, gonorreia ou clamídia (ou ambas), causada por abusos sexuais perpetrados por Câmara, que teria sido contaminado na sua ida a Marrocos no final da déc. de 40. Considerada como uma versão apócrifa dos acontecimentos, não existem indícios credíveis que sustentem esta teoria, que está embrenhada e apoiada em algumas interpretações enganosas ou parciais e envolve contradições e erros na sua argumentação. A 20 de janeiro de 1568, quando completou 14 anos, D. Sebastião assumiu o governo do reino; em maio, já havia notícias da reintegração do P.e Gonçalves da Câmara como seu confessor, adensando o confronto entre o cardeal e D. Catarina, que vinha desde as acusações da influência castelhana da Rainha-Mãe na luta pela regência, o que também refletia a disputa, dentro da Companhia, entre os partidários da linha próxima de Câmara e os seus opositores. Francisco de Borja, que se tornou o terceiro geral da Ordem, ainda tentou remover Câmara do cargo de confessor, mas sem êxito. Dentro da própria congregação, a posição e a influência do madeirense incomodavam. A carta do Jesuíta António Correia ao geral retratava as intrigas do reino: “Dizem que Luís Gonçalves governa, e o cardeal é seu instrumento” (ARSI, Lus. n.º 62, 274). Em nada contribuiu para acalmar as hostes a ascensão a determinados cargos e a visibilidade do seu irmão, o P.e Martim Gonçalves da Câmara, que foi “sacerdote do hábito de S. Pedro [e, mais tarde, Jesuíta], doutor teólogo e antigo reitor da universidade” de Coimbra (ALMEIDA, 2003, 420), além de ser uma figura afeta ao círculo do cardeal. Martim assumiu a liderança da Mesa da Consciência (em 1564), do Desembargo do Paço e dos restantes tribunais e o cargo de escrivão de puridade (em 1569). Também foi vedor da Fazenda no Conselho Real. Com o protagonismo que Martim Gonçalves ganhava, muito por influência do cardeal, os ânimos de D. Catarina exasperam-se, em virtude da sua crescente aversão ao poder que os irmãos Câmara ganhavam. A ascensão do madeirense nos negócios do reino era justificada, por D. Henrique, pela importância que o jovem e inexperiente Rei tinha, fazendo-se cercar de ministros que zelassem pelos interesses do reino. Agora, eram dois Gonçalves da Câmara. Por altura da deslocação do Rei a Coimbra, chega às mãos do P.e Luís Gonçalves da Câmara uma carta anónima contra si, o seu irmão e a Companhia, em que se reflete toda esta celeuma, aguçada com as diligências em torno do casamento do Rei, e em que se defrontavam vários intervenientes, sendo cada vez mais forte a campanha de descrédito contra o madeirense. O confessor privava cada vez mais com o Rei, chegando às três horas por sessão, o que provocava e atiçava os seus críticos. Numa das deslocações à Universidade, a receção pouco amistosa que o Rei recebeu, com uma forte pateada, deve-se em parte aos irmãos Câmara. Os dois madeirenses eram personagens centrais na troça a D. Sebastião difundida nomeadamente nos pasquins da cidade, em que se justificava o facto de o Rei não contrair matrimónio com o estar abarregado (amigado) com os dois irmãos. Não podemos esquecer que já há muitos anos a Universidade e a Companhia estavam envolvidas em grandes disputas, que cessariam com a assinatura de um contrato, em 1572. Este documento assegurava que a Universidade pagaria uma renda ao Colégio das Artes, entre outras prerrogativas conseguidas para a Companhia. A intervenção do madeirense foi fulcral para o processo, o que terá fomentado os movimentos opositores e críticos à sua figura. Sobre os matrimónios falhados do Monarca, interessa dissipar a maquinação criada para culpar os irmãos Câmara, difundida durante o reinado e ampliada nos séculos seguintes. Quando a esposa de Filipe II, Isabel de Valois, morreu, em 1568, seria natural que o Monarca desposasse a sua cunhada, Margarida. França enviou uma embaixada a Madrid, mas o Monarca de Castela mostrou-se pouco decidido no apoio à pretensão de Carlos IX, irmão de Margarida. Face a tão reservada resposta, o Rei de França buscou um enlace na corte portuguesa, o que agradou aos partidários do cardeal. A esse respeito, Fortunato cita um manuscrito da Biblioteca de Paris: “Martim Gonçalves da Câmara, e o Mestre seu irmão, […] foram de parecer que convinha muito ao reino de Portugal aquela aliança de parentesco com França” (ALMEIDA, 2003, 421 e 422). Tudo foi alterado quando Filipe II pediu a D. Sebastião que não aceitasse desposar a irmã do Rei francês. O Rei concordou e deixou ao seu primo o ónus da escolha da futura esposa. Estava combinado que D. Sebastião desposaria a arquiduquesa Isabel e Carlos IX a arquiduquesa Ana. Ambas eram filhas de Maximiliano, Imperador do Sacro-império Romano-Germânico e primo de Filipe II. A todos o arranjo pareceu bem e foi relatado que os irmãos Câmara concordavam com tal perspetiva. Tudo se alteraria, novamente, quando Filipe II decidia desposar Ana e ao Rei de França era deixada a prometida do Rei português, Isabel, sendo os matrimónios concretizados. D. Sebastião desposaria Margarida de Valois, que tinha sido por ele recusada a mando do seu primo. Fortunato volta a referir documentação coeva, indicando que o Rei português não respondeu, por conselho dos irmãos Câmara, a três cartas sobre a mudança de planos que Filipe II lhe remeteu. Além de Filipe II alegar que se tinha visto forçado a dar D. Isabel ao Rei de França, em prol do cristianismo, refere que se comprometeu, com o cardeal de Guise, em relação ao casamento de D. Sebastião com Margarida de Valois (CRUZ, 2012, 152-153). Tal ingerência, em favor do poder de Castela e do Sacro-Império nos negócios portugueses, provocou duras críticas até da Rainha D. Catarina, castelhana de nascimento. Quando D. Sebastião recusa o casamento proposto por Filipe II, os inimigos do P.e Luís Gonçalves da Câmara começam a imputar-lhe a culpa pela rejeição do Rei, esquecendo ou minimizando a intromissão do Monarca de Castela. Sobre as acusações recebidas, o padre madeirense responde ao geral, recordando o que já tinha manifestado aquando da sua escolha para mestre do Rei: “Dei por escrito muitas causas, para não dever tomar este cargo, e uma delas era que todas as coisas que não fossem bem recebidas do mundo, a culpa delas se daria aos que andassem junto do rei” (ARSI, Lus. n.º 64, fls. 98-99v.). Ao contrário do que os seus críticos pregavam, para o Jesuíta os grandes problemas enfrentados pelo Rei estavam na sua política reformadora, conforme atestava a sua missiva ao geral em Roma. Tais reformas causavam ao Monarca fortes dissabores, agravados pela derradeira ameaça de D. Catarina se retirar para Castela, de acordo com o pedido feito pelo seu sobrinho. O madeirense, já muito doente e quase cego, referiu ao geral o seu cansaço e a sua vontade de permanecer retirado no Colégio de Coimbra por mais algum tempo, o que teria feito, não fosse a insistência do Rei para que regressasse à corte. Ainda nesse ano, o Jesuíta Miguel Torres foi dispensado do seu ofício de confessor, alegadamente pela influência nociva que Gonçalves da Câmara teve sobre ele. D. Catarina escreveu ao seu sobrinho, a 8 de junho de 1571, descrevendo um suposto complô que os três confessores jesuítas da corte desenvolveram para criar a discórdia entre o Rei, o seu tio-avô e ela própria. No mesmo dia, a Rainha enviou uma missiva ao Papa sobre a necessidade do matrimónio real para libertar o seu neto da sujeição aos irmãos Câmara. A relativa acalmia nas relações entre o neto e a avó, após uma breve reaproximação, foi interrompida quando o Rei se recusou a cumprir os seus desejos, que incluíam o afastamento dos irmãos Câmara e do próprio cardeal, e quando esses pedidos vieram a público. Foi notório o apoio de Filipe II, que escreveu à sua tia indicando a premência em afastar Gonçalves da Câmara do Rei, sendo necessário reunir esforços e apoiantes, entre os quais o geral e o próprio Papa, para alcançar esse objetivo. Em 1571, a Rainha D. Catarina escreve ao Papa Pio V, atribuindo ao madeirense a culpa pelo ódio generalizado à Companhia. A colagem ao poder e a alegada intromissão nos assuntos políticos estão entre as críticas dirigidas aos padres inacianos, conforme é manifesto na missiva da Rainha ao Papa: “Não posso deixar de sentir o ódio que também por esta causa têm geralmente à Companhia, sendo a culpa particular deste padre [Luís Gonçalves da Câmara]” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 625). E a contestação ao poder dos irmãos Câmara, segundo alguns dos seus detratores desse período, também está patente n’Os Lusíadas: “Nem Camenas, também, cuideis que cante/Quem, com hábito honesto e grave, veio,/Por contentar o Rei no ofício novo,/A despir e roubar o pobre povo” (VII, 85, 5-8, it. nosso); “Nem tão-pouco direi que tome tanto/Em grosso a consciência limpa e certa,/Que se enleve num pobre e humilde manto/Onde a ambição acaso ande encoberta” (VIII, 55, 1-4, it. nosso). Uma interpretação coeva, combatida por alguns, mas que encontra suporte até no séc. XXI, nomeadamente em Vítor Aguiar e Silva. Apesar de a carta da Rainha ao Sumo Pontífice não ter tido o efeito esperado, o geral, seu amigo de infância, visitou, no final de 1571, as províncias espanhola e portuguesa, também movido pelos seus apelos, acompanhado do legado papal, o cardeal Alexandrino, que no futuro seria um fortíssimo crítico da presença dos irmãos Câmara na corte. Quando o P.e Francisco de Borja chegou a Madrid, D. Catarina enviou D. Juan de Borja, embaixador espanhol em Lisboa e filho do geral, para que ele pedisse a Filipe II que o P.e Luís Gonçalves da Câmara fosse chamado pelo geral, o que o Rei de Castela se recusou a fazer. Já em Portugal, o P.e Borja pede paciência à Rainha e promete enviar o madeirense para Roma, o que nunca se chegou a concretizar. O padre geral só chegaria a Roma a 28 de setembro de 1572 e faleceria passados três dias. Ainda durante a visita do legado papal a Portugal, o Jesuíta madeirense escreve a D. Sebastião, reiterando o cansaço já manifestado e a vontade de se retirar: “Parece que não me querem já matar, ando, todavia, sem gosto algum, ainda que trabalho pelo encobrir o mais que posso” (SERRÃO, 1987, 218). Com a morte de Francisco de Borja, a 30 de setembro de 1572, a Rainha vê mais uma oportunidade para afastar, definitivamente, Câmara do Rei. Se o seu jogo de influências fosse vitorioso, conseguiria que o madeirense fosse eleito padre geral e rumasse, permanentemente, para Roma. Na congregação provincial celebrada em Évora durante o mês de dezembro foi debatida a antiga polémica envolvendo os primos Gonçalves da Câmara e Leão Henriques: “Se conviria que os dois […] se depusessem o cargo de confessores […] o que perturbava o sossego da vida regular, e desdizia inteiramente de nosso Instituto” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 388). A congregação conclui que os confessores não deveriam renunciar, ignorando as “murmurações do povo ignorante ou de homens sem religião” (Id., Ibid., 388). Para possível ressentimento do P.e Gonçalves da Câmara, e desespero da Rainha, D. Sebastião não autoriza a ida do padre jesuíta à terceira congregação geral, que elegeu o novo líder da Ordem, apesar de o madeirense ter sido um dos delegados designados para esse efeito na congregação provincial. A posição defendida pela comitiva portuguesa, liderada pelo seu primo, o P.e Leão Henriques, na qualidade de vice-provincial, era a de que o próximo padre geral não fosse castelhano nem cristão-novo, numa clara oposição à eleição do P.e Juan Afonso de Polanco, homem de confiança dos três anteriores gerais, que se enquadrava nesse retrato. Aliás, essa posição foi apoiada pelo Rei e pelo seu tio-avô, que remeteram missivas ao Papa Gregório XIII, a Filipe II e à congregação, nesse sentido. A congregação geral, que reuniu 47 religiosos da Companhia, acabou por ser favorável aos desejos dos Portugueses, apoiados pelos Italianos, defensores do processo de “des-Hispanización [desispanização]” (CASTRO, 2012, 199), e elegeu o P.e Everardo Mercuriano, belga, com 27 votos, a 22 de abril de 1573. No início de 1574, a 11 de janeiro, um acontecimento perturbará e marcará o Rei: o P.e Luís Gonçalves da Câmara, alegando motivos de saúde e espirituais, parte para Évora, abandonando a corte. Alguns meses depois, Câmara remeteu uma missiva ao geral, referindo que se sentira preso nos seus 14 anos de serviço a D. Sebastião e que já não possuía “forças espirituais nem corporais para sofrer o cativeiro” (ARSI, Lus., n.º 65, 208). Estava-se, pois, perante um homem com grandes dotes intelectuais, descrito como feio, cego de um olho e extremamente gago, de “presença bruta” (CRUZ, 2012, 81), e completamente esgotado. Apesar dos constantes pedidos para se afastar da corte, nunca tal tinha sido autorizado, mas agora, logo após a eleição do novo geral, o seu desejo seria concretizado. Outra possibilidade é a de que o afastamento do preceptor não corresponderia a um verdadeiro desejo seu, mas sim a uma imposição por pressão da corte, em consequência de desgaste, ou mesmo pelo retorno de um antigo inimigo. Em abono desta interpretação, refira-se um acontecimento ocorrido no ano anterior. Em setembro de 1573, o P.e Simão Rodrigues, afastado há várias décadas da província portuguesa, num processo em que Câmara teve um papel decisivo, tinha regressado ao reino, motivado e legitimado pela missão de que o novo geral o incumbira, no sentido de o informar sobre o antigo desacordo existente na província. Continuavam a existir duas fações: na sua ala mais conservadora e rigorosa, destacava-se a influência do padre madeirense; na outra, liderava o P.e Manuel Rodrigues, que seria eleito padre provincial do reino. Em Évora, em consonância com o pedido feito pelo geral da Companhia, e também pelo reitor do Colégio, o madeirense Manuel Álvares, o P.e Gonçalves da Câmara retoma os trabalhos do Memorial, interrompido há quase duas décadas. Conclui a sua redação por volta da Festa de Pentecostes de 1574. Apesar de fisicamente afastado da corte, a sua influência não se desvaneceu com facilidade. Afinal, o Jesuíta Maurício Serpe, que o substituiu como confessor do Rei, acompanhara o madeirense enquanto professor de Latim e responsável pelos moços fidalgos companheiros do Rei. A posição de Câmara era contrária à incursão real em territórios africanos e coadunava-se com a política do cardeal D. Henrique, que defendia que o matrimónio deveria preceder qualquer campanha militar, para garantir que a linha de sucessão do trono não ficasse comprometida. Recolhido em Évora, o Jesuíta desloca-se ao paço da Boa Vista em Lisboa, por ordem do provincial, para tentar demover o Rei da sua incursão armada em África. Apesar das acusações de controlo do P.e Gonçalves da Câmara sobre o Monarca, o madeirense não terá sucesso na sua missão. Em 1574, o P.e Simão Rodrigues escreve ao geral, a partir de Coimbra, retratando Câmara como um homem “excessivamente caprichoso, […] eficacíssimo em suas fantasias e apreensões”. Se a sua vontade não fosse atendida, tinha “desmaios, ânsias e dor de coração” (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 87). O tempo nunca sanaria as feridas das lutas do passado. No mesmo ano, D. Sebastião segue para África, apesar da forte objeção da sua avó, do seu tio-avô e do próprio Gonçalves da Câmara. O madeirense ruma para Coimbra, onde o seu estado de saúde se agrava. Escreve ao Rei, pedindo o seu regresso, o que acontece em novembro, quando o Jesuíta, já em Santo Antão, recebe a visita do Monarca. Entre as cartas enviadas a D. Sebastião, apelando ao seu retorno, nenhuma teve tanto impacto, e prova disso poderá ser o facto de a visita real acontecer no dia seguinte à atracagem em Lisboa. Nos meses posteriores, a sua saúde degrada-se irremediavelmente, até que, a 15 de março de 1575, às 04:30 da manhã, morre em Lisboa. Um conterrâneo seu, o P.e Manuel Álvares, vice-reitor do Colégio, dá a notícia da sua morte a Roma. Durante os últimos meses de vida, o seu estado de saúde esteve sob os cuidados do seu “companheiro inseparável”, o P.e Amador Rebelo. Certo é que a sua morte provocou grande consternação no Rei, que se fechou no quarto durante três dias, recusando falar. Depois, encerrou-se no mosteiro de N.ª Sr.ª do Espinheiro por cerca de mais 10 dias. “Que quereis que faça, se eu não conheci outro pai nem outra mãe, senão ao P.e Luís Gonçalves da Câmara”, terão sido, segundo o P.e António Franco, as palavras com que o Rei terá exprimido o seu desgosto (FRANCO, 1930, 148). O Monarca não demonstrou tamanha comoção com a morte da sua mãe, nem a demonstraria com a da avó ou a da tia, declarando, em jeito de epitáfio, que “ninguém sabia quanto devia ao padre Luís Gonçalves da Câmara, senão ele só” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 270-271). Em Lisboa, o Rei visitou a sepultura do madeirense no Colégio de S.to Antão e assistiu a uma missa em sua memória. Em maio de 1576, o seu irmão, Martim Gonçalves da Câmara, abandonou a corte e os cargos que desempenhava, numa posição que já estava muito desgastada. Em 1578, a morte de D. Sebastião e a desastrosa missão africana, que acarretou a perda da independência, constituíram “um locus paradigmático utilizado de maneira recorrente pela literatura antijesuítica” (FRANCO, 1996, 1, 121). Essa crítica foi muito alimentada pelo poder, pelo protagonismo e pela influência dos irmãos Câmara. A sua influência e a sua posição na corte fomentaram o mito contra a Companhia, com vários autores a recorrerem à narrativa que lhes atribuía parte da responsabilidade (ou toda ela) pelo desastre de Alcácer-Quibir. Essas críticas foram potenciadas pela posição de destaque de outros Jesuítas que eram confessores na corte, o que, combinado com a política de apoio à Companhia, contribuiu para consolidar suspeitas e acusações. Para além de tudo o que o P.e Luís Gonçalves da Câmara atingiu em vida, os seus escritos perpetuaram e difundiram elementos únicos da biografia inaciana. A sua atuação despertou sentimentos antagónicos, nunca sendo indiferente aos seus companheiros, amigos e inimigos.   Luís Eduardo Nicolau (atualizado a 25.01.2017)

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caldeira, antónio manuel de sales

António Manuel de Sales Caldeira nasceu a 27 de janeiro de 1912, no Porto da Cruz. Filho de João Pedro Sales Caldeira e de Maria Ana Larica Sales Caldeira, casou-se com Rita de Acácio Silva Oliveira de Sales Caldeira, natural de Lisboa, com a qual teve três filhos: Maria Emília Oliveira Sales Caldeira, João Pedro Sales Caldeira e Rita de Acácia Sales Caldeira. Após a conclusão do liceu, Sales Caldeira matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde se licenciou com 23 anos. Foi subdelegado do Tribunal do Trabalho e posteriormente abriu banca de advogado, tendo muita clientela, primeiro na R. Gonçalves da Câmara, de onde transitou para a R. das Pretas n.º 7, e finalmente, na Rua João Tavira n.º 31-1.º. Além de ter sido consultor jurídico de várias empresas comerciais e industriais, esteve também ligado à política. Foi um dos fundadores do Partido Social Democrata (PSD) após o 25 de Abril, e à data da morte era presidente do Congresso Regional do PSD. Muito ligado ao desporto, ao qual dedicou um incontestável apoio, chegou a ser presidente do Clube Desportivo Nacional e do Club Sports Madeira. O Jornal da Madeira de 22 de dezembro de 1981, chega mesmo a referir que o Clube Desportivo Nacional lhe fica a dever dedicação ilimitada. Ainda relacionado com desporto, Luiz Peter Clode refere que António Manuel de Sales Caldeira foi o precursor do Rally da Madeira a nível Europeu. Faleceu no Funchal a 21 de dezembro de 1981, tendo sido sepultado no Cemitério de S. Martinho no dia 22 do mesmo mês. As participações do seu falecimento, no Diário de Notícias de 22 de dezembro de 1981, incluem as da família, do PSD, do grupo parlamentar do PSD na Assembleia Legislativa Regional, do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, da Assembleia Geral da Ordem dos Advogados, da Direção do Clube Sports Madeira e também das empregadas dos cabeleireiros Capucine, dos quais Sales Caldeira era proprietário. Já no Jornal da Madeira da mesma data pode ler-se um artigo que evidencia as qualidades de Sales Caldeira, descrevendo-o como uma figura bastante conhecida e prestigiada da advocacia madeirense, sendo um homem dinâmico e íntegro.       Cláudia Neves (atualizado a 25.02.2017)

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preto, alberto gonçalves

Pedro Alberto Gonçalves Preto nasceu na freguesia da Sé, Funchal, a 7 de setembro de 1907, filho de Francisco M. de Freitas Gonçalves Preto, advogado e jornalista, e de Sofia Amélia Gonçalves Preto. Casou-se com Maria Aurora de Sousa Gonçalves Preto, com quem teve um filho, Edgar Reinaldo de Sousa Gonçalves Preto, cineasta. No dia 12 de dezembro de 1917, com apenas 10 anos, foi atingido por estilhaços de uma granada num ataque de submarinos alemães, que despejaram sobre o Funchal 50 obuses de grosso calibre em plena Primeira Guerra Mundial, ficando com uma permanente, mas ligeira, deformação no braço direito. Morador na R. da Carreira, no Funchal, Gonçalves Preto tirou o curso no Liceu Jaime Moniz e frequentou a Universidade em Lisboa, cidade que “de lés-a-lés calcorreou de velhusca capa e batina” (Re-nhau-nhau, 25 maio 1971, 4) e onde contactava frequentemente com o conterrâneo e amigo Teixeira Cabral e o caricaturista Reinaldo Ferreira, conhecido como Repórter X. Desde o tempo do liceu começou a firmar qualidades enquanto jornalista. Fundou e dirigiu, em conjunto com Arnaldo Barão, a Piada Académica, cuja realização foi para Preto uma espécie de alvorada no jornalismo. Trabalhou no jornal O Fixe, sob a direção de Jaime de Macedo, de onde sai em consequência de uma cisão. Ao lado de João Miguel, amigo de longa data, Gonçalves Preto funda o Re-nhau-nhau, um jornal satírico. Sob a direção de Gonçalves Preto e tendo como editor João Miguel, o primeiro número, especial, sai no dia 16 de dezembro de 1929. Trimensário humorístico cuja redação foi montada no n.º 42 da travessa das Violetas, dirigia-se, na primeira página, “Aos briosos da briosa academia” do liceu do Funchal, título acompanhado de duas caricaturas, uma de Teixeira Jardim, presidente da academia, e outra de Liberato Ribeiro, presidente da executiva. Na capa deste número especial, o Re-nhau-nhau dá os primeiros ares da sua graça ao ser dedicado aos “‘miaus’ futuros pais da pátria em geral e às noivas em particular”. No dia 20 de dezembro de 1929, saía para as bancas, já com cariz mais político, o n.º 1, intitulado “Donde irradia a ordem e o progresso!...”. Gonçalves Preto dirigiu o trimensário durante 42 anos, ininterruptamente, até ao final da sua vida. A edição de 25 de maio de 1971 ainda o refere como diretor. Ao mesmo tempo que dirigiu esta publicação, Gonçalves Preto foi chefe da secção de serviços administrativos da Caixa de Previdência e Abono de Família do distrito de Funchal. Ou assinando com o seu nome, ou com o pseudónimo Gonçalves Cor Ausente, Gonçalves Preto escreveu tanto prosa como poesia, sendo neste género literário que publica, em 1955, Versos de Gonçalves Preto – Perfis de donzelas várias: “Tão linda que em pequenina/Havia um rapaz, por graça/Que ao vê-la passar, ladina/Dizia em voz cristalina:/– “É a minha noiva que passa”.//Cresceu, tornou-se mais linda,/E agora, o mesmo rapaz/Cheio de saudade infinda/Ao vê-la, suspira ainda,/E já não sabe o que faz,//Seus doces olhos castanhos/Duma suave ternura,/Têm qualquer coisa de estranho,/E a qualquer criatura/No coração fazem lenhos” (PRETO, 1955, 2). Nos palcos do teatro amador e nos salões privados, Gonçalves Preto declamava poesia. Em 24 de agosto de 1933, com João Santana Borges e Filipe Correia, chegou a estrear, no Teatro Municipal do Funchal, uma revista teatral com o título O fim do mundo. Pedro Gonçalves Preto morreu no hospital dos Marmeleiros, no Funchal, no dia 15 de maio de 1971. Foi sepultado no cemitério Nossa Senhora das Angústias, em São Martinho.   Obras de Pedro Gonçalves Preto: Versos de Gonçalves Preto – Perfis de Donzelas Várias (1955).       António José Macedo Ferreira (atualizado a 03.02.2017)

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sousa, josé de barros e

Fig. 1 – Dr. José de Barros e Sousa. Fonte: Dicionário Corográfico de Câmara de Lobos: http://www.concelhodecamaradelobos.com/dicionario/sousa_jose_barros.html (acedido a 23 set. 2015). Nasceu no sítio da Torre, freguesia de Câmara de Lobos, a 1 de março de 1859. Era filho de José Barros da Silva, sapateiro e trabalhador agrícola, e de Valentina Luísa de Sousa. Concluído o ensino secundário, no Liceu Nacional do Funchal, licenciou-se em Direito, na Universidade de Coimbra, a 23 de junho de 1884, enveredando pela carreira da Magistratura. Dois anos depois, casou, na freguesia de Santa Maria Maior, com Maria Alexandra Lomelino, filha de Justiniano José Lomelino de Serpa e de Fortunata Augusta de Castro. Foi delegado do Procurador Régio na comarca da Ponta do Sol, de 1887 a 1900, juiz de Direito na Comarca de Santa Cruz, a partir desta última data, e depois em várias comarcas do território continental, nomeadamente Resende, Oliveira do Hospital (1909) e Vila da Feira (1914). Era desembargador da Relação do Porto quando se aposentou, em 1929, falecendo em dezembro do ano seguinte nesta mesma cidade. A 24 de fevereiro de 1917, assumiu-se como um dos fundadores da Associação de Assistência aos Pobres de Espinho, que distribuía refeições e prestava assistência médico-social aos pobres e doentes, acabando por transformar-se, por portaria de 24 de julho de 1937, na Misericórdia de Espinho. Foi também, no Porto, um dos fundadores e primeiro presidente do ramo “Fraternidade” da Sociedade Teosófica de Portugal (1925-27). Publicou, em 1921, Preceitos de Moral da Infância e traduziu e editou, em 1926, Salvação para Todos, de Emile Catzeflis. Faleceu em 1930. Obras de José Barros e Sousa: Preceitos de Moral da Infância (1921).   Gabriel Pita (atualizado a 10.02.2017)

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