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mosteiro novo

O conjunto edificado denominado “Mosteiro Novo”, que foi depois seminário, embora tendo essa designação, nunca chegou a ser mosteiro, nem sequer recolhimento. Enquadra-se, assim, na vasta série de instituições pias criadas em momentos difíceis relativamente às quais, por morte dos instituidores, desaparece a vontade e os fundos para as instituir verdadeira e concretamente. A doação destes edifícios para um futuro mosteiro ou recolhimento foi feita pelo Cón. Manuel Afonso Rocha, a 17 de dezembro de 1638, perante um tabelião e o bispo D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650). Declarou então que tinha dado início a um mosteiro composto de casas, oficinas, igreja e coro, sob a invocação de S. José, destinado a religiosas ou religiosos, sob a cláusula de lhe celebrarem algumas missas e ofícios pela sua alma. Como o conjunto não estava concluído, entregava o governo e a sua administração à proteção do prelado e seus sucessores, dentro da intenção de o mesmo vir a servir de “recolhimento para damas ou mulheres de qualidade”. Caso tal não fosse possível, gostaria que o mosteiro fosse entregue “a religiosos virtuosos mendicantes ou outros que ali fizessem mais serviço a Deus” (SILVA e MENESES, 1998, II, 398-399). As informações do cónego, em princípio afastavam-se algo da realidade, não existindo qualquer “igreja com coro” e somente, na melhor hipótese, uma capela ou um oratório privado, pois que não se conhece para ali qualquer autorização de culto passado pela autoridade eclesiástica. Cerca de 10 anos depois, em 1647, o prelado dava autorização para ali residirem os sobrinhos do fundador, o Cón. António Spranger Rocha, seu irmão, o P.e Inácio Spranger e suas irmãs. Tudo indica ser então e ainda somente um espaço residencial e, muito provavelmente, a autorização do prelado era a oficialização da situação que se mantinha do anterior. Esta família viveu aí ao longo de todo o século, pois em 1691 faleceu nestas casas o também Cón. António Spranger, sobrinho dos anteriores. As casas devem ter ficado então devolutas, pois em finais de 1698, o bispo D. José de Sousa de Castelo Branco (1698-1722), pouco depois de tomar posse da Diocese, o que ocorreu a 28 de agosto de 1698, transferiu para ali o seminário diocesano, até então alojado no chamado colégio de S. Luís anexo à capela daquela evocação e ao paço episcopal. A 3 de janeiro de 1702 emitia um decreto com os novos estatutos do seminário, os quais foram confirmados, depois de ouvidos os elementos do mesmo, passando a ter um reitor, 10 colegiais e um número de pensionistas a livre arbítrio do bispo. Por 1720, Henrique Henriques de Noronha descrevia o conjunto edificado, então sob a evocação de S. Gonçalo e com uma “nobre igreja” dedicada a Jesus, Maria e José, onde existiam dois altares laterais, um de S. Gonçalo de Amarante e outro, de N.ª S.ra do Bom Despacho (NORONHA, 1996, p. 304). O terramoto de 1 de novembro de 1748 afetou bastante o edifício, tendo sido retirado dali o seminário, mas, por volta 1760, este regressou às mesmas instalações. O conjunto edificado que chegou até nós deve ser produto das obras dos finais do séc. XVII e inícios do XVIII, embora com obras de reabilitação dos anos seguintes, mas que não alteraram substancialmente a organização geral da estrutura. O conjunto do antigo Mosteiro Novo e do seminário apresenta um amplo pátio interior, sobre o qual corre o corpo que dá para a rua, que ainda no séc. XXI era chamada R. do Seminário, com uma pequena capela a nascente, profanada e sem qualquer recheio. A entrada para o pátio fica a poente desse corpo, parecendo manter preexistências dos finais do séc. XVII ou inícios do XVIII, com dois interessantes lanços de escadas e entrada para o piso nobre com alpendre refeito no séc. XIX. Ao longo da rua apresenta três portais ao gosto das primeiras décadas do séc. XVIII, mas a organização da fenestração parece anterior, salvo a janela com balcão, que deve corresponder à campanha de obras do séc. XIX. O edifício poente do pátio parece ter sido montado para os seminaristas internos, tal como o que corre sobre a rua parece ter sido ocupado pelos quadros superiores do seminário. O seminário foi transferido, em 1788, para o antigo colégio dos Jesuítas, mas logo em 1801 voltava ao edifício original, dada a instalação no colégio das forças inglesas de ocupação. Em 1909, o seminário era transferido para o novo edifício levantado na cerca do extinto convento da Encarnação, construído então pela Junta Geral do Distrito, mas a 20 de abril de 1911, com a extinção dos seminários pela República, voltava a funcionar, sem carácter oficial, nas antigas instalações do Mosteiro Novo. Em breve também o edifício era confiscado pelo Estado, tendo passado, em 1971, por uma remodelação total para a instalação do Laboratório Distrital de Análises Dr. Celestino da Costa Maia, até então a funcionar num edifício da R. das Pretas. Em 1976, e com a transferência do laboratório, o edifício ficava devoluto, tendo tido nova remodelação em 1988, e nova designação, então de Laboratório de Saúde Pública Dr. Câmara Pestana. Em 2000 voltava a estar parcialmente devoluto, aguardando definição de reutilização.     Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)

Arquitetura Património Religiões

melo, antónio júlio de santa marta do vadre de mesquita e

António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), 3.º visconde de Andaluz, foi para a Madeira como secretário-geral do governador, D. Tomás de Sousa e Holstein, marquês de Sesimbra; porém, o marquês de Sesimbra não estaria um ano no lugar. António Melo foi nomeado para o lugar de governador civil do Funchal em setembro de 1879. Coube ao seu Executivo tentar acalmar a agitação política, que se devia à nomeação de nobres da Corte, o que não se enquadrava já na vida política portuguesa. Palavras-chave: Arranjos familiares; Governo civil; Partidos Políticos; Regeneração; Tumultos populares.   O governador civil do Funchal D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), do Partido Regenerador, foi exonerado em 1868 pelo Executivo do açoriano conde de Ávila, António José de Ávila (1806-1881), do Partido Reformista ou Partido Popular, então uma cisão do Partido Histórico (Partido Histórico e Partidos políticos). As complexas alianças entre estes partidos levaram o Governo de Lisboa a colocar em S. Lourenço duas figuras da aristocracia da Corte de Lisboa: o marquês de Sesimbra, D. Tomás de Sousa e Holstein (1839-1887), filho do duque de Palmela (1781-1850), como governador civil, e o 3.º visconde de Andaluz, António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), como secretário-geral. Estas duas escolhas foram alicerçadas em vagas ligações familiares às antigas famílias insulares e foram por certo resultado da pressão dos elementos do Partido Histórico, incapazes de compreender as novas realidades dos meados e da segunda metade do séc. XIX. O marquês de Sesimbra era casado com uma filha dos marqueses da Ribeira Grande, descendentes de Zarco, mas dos Açores, e viria a ser sogro do futuro conselheiro Aires de Ornelas e Vasconcelos (1866-1930); o visconde de Andaluz estaria para se casar com uma filha do barão da Conceição, Fortunato Joaquim Figueira (1809-1885), abastado proprietário que se havia fixado no Funchal nesse mesmo ano de 1868. O marquês de Sesimbra – ou de Cezimbra, como então aparece escrito – foi nomeado por decreto de 9 de setembro e viria a tomar posse a 17 de outubro de 1868, após Te Deum na catedral do Funchal celebrado à uma da tarde; disso nos dá conta o visconde de Andaluz, seu secretário-geral, que o comunicou às autoridades do Funchal, convidando-as para o evento. A administração do marquês ir-se-ia pautar por uma simples gestão administrativa, sendo praticamente toda a correspondência assinada pelo secretário-geral. Realizadas eleições em maio do seguinte ano de 1869, e passado o verão, o marquês de Sesimbra retirou-se, nos primeiros dias de setembro, para o continente, não completando um ano de governo na Madeira. Palácio e Fortaleza de São Lourenço. 1870. Arquivo Rui Carita O visconde de Andaluz tinha sido nomeado governador civil do Funchal por decreto de 4 de setembro, tomando posse a 8 do mesmo mês. Faria então uma proclamação aos “Habitantes do distrito do Funchal! Por decreto de 4 do corrente Houve por Bem Sua Majestade” nomeá-lo governador civil. Apelava então: “Auxiliai-me com o seu conselho e com as suas luzes […] pela prosperidade desta Terra, que eu hei de esforçar-me em promover os interesses dela com solicitude e dedicação” (ABM, Alfândega do Funchal, circular de 9 set. 1869). Era um discurso um pouco ultrapassado para a época, semelhante às proclamações liberais dos anos 30 e 40, conhecidas no Funchal durante a vigência da Junta Governativa de 1847 e o conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891) – proclamações que alguns anos depois ainda viriam a surgir, então ainda mais estranhas ao contexto político da época. O novo governador tentou fazer face à situação algo agitada que se vivia, não só política, como geral. No arquipélago, nem sempre se encontrava gente à altura para os vários locais diretivos e, ao mesmo tempo, não se conseguiam definir especificamente estruturas partidárias, daí resultando vagas organizações articuladas em relações pessoais em torno dos membros mais influentes das elites locais. Em maio de 1870, e.g., tendo o visconde de Andaluz suspendido o administrador do concelho de Santana, “não havendo naquela localidade pessoa com os requisitos necessários para, na atual conjetura entrar na referida vagatura”, solicitava à Casa Fiscal da Alfândega do Funchal a disponibilização do funcionário Joaquim Pinto Coelho (1817-1885) para ocupar o lugar (Ibid., Alfândega do Funchal, of. 23 abr. 1870) – uma nomeação acertada, considerando o tempo em que aquele funcionário ocupou o lugar da Alfândega. Nos inícios de 1870, por decreto de 2 de janeiro, procedeu-se à dissolução das Cortes e, a 3 de fevereiro seguinte, à reunião das assembleias eleitorais. Na Madeira, as eleições decorreram a 1 de maio, voltando a sair os nomes de Luís Vicente de Afonseca (1803-1878) e Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901). Porém, as eleições decorreram muito mal e, especialmente em Machico, ocorreram tumultos graves. Acontece que o governador destacara para os principais centros eleitorais forças de Caçadores 12, nem sempre comandados por elementos capazes de manter o sangue frio. As forças militares acabaram por se refugiar na igreja matriz e, acossadas pela populaça, fizeram fogo sobre a multidão, o que resultou em vários mortos (Tumultos populares). Houve também incidentes em outros locais, inclusivamente no Funchal. O Partido Popular, que se achava na oposição, tinha um certo domínio sobre as massas populares e quando Joaquim Ricardo da Trindade e Vasconcelos (1825-1906), então membro do Partido Fusionista, desembarcou no Funchal, ido precisamente de Machico, foi preso na Pontinha e conduzido à Pr. da Constituição para justiça popular. Evitou o assassinato o jovem Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898), uma das figuras prestigiadas do Partido Popular, que se interpôs entre os populares e Trindade e Vasconcelos. Como o visconde de Andaluz tinha feito vários contactos e estabelecido um pacto de não intervenção nos assuntos do Partido Popular, foi isso que aconteceu em relação a novas alterações da ordem pública em Machico, aquando dos funerais das vítimas do dia 1 de maio. Os acontecimentos de Machico produziram grande sensação na imprensa madeirense e, de imediato, no continente, sendo o visconde violentamente atacado nas Cortes e na imprensa de Lisboa. Em julho ainda apareciam na comunicação social de Lisboa abaixo-assinados respeitantes aos acontecimentos de Machico e à maneira pouco ortodoxa como haviam sido encaminhados juridicamente. Um conjunto de cinco guardas da Alfândega do Funchal, e.g., fora indiciado e preso “pelo crime de cumplicidade nas mortes e ferimentos feitos pela força militar dentro do templo de Machico” (A Revolução de Setembro, n.º 8416, Lisboa, 5 jul. 1870, 1). O despacho fora emitido pelo juiz da comarca oriental do Funchal, Cassiano Sepúlveda Teixeira, e os guardas não entendiam como podiam ser acusados de “crimes eleitorais e políticos” e de “crimes de violência contra membros da assembleia eleitoral” (Ibid.), quando o que estava em causa era uma série de mortes entre a população local, cujos autores tinham sido os soldados de Caçadores 12, como se queixam então os guardas António José Nunes, Jacinto Augusto Ferreira, Januário Esteves de Sousa, Augusto Celestino Lacerda e António Vieira. O visconde de Andaluz foi exonerado em poucos dias, por dec. de 14 de maio de 1870. Foi nomeado como governador do distrito do Funchal Afonso de Castro (1824-1885), que tomou posse a 19 desse mês de maio, mas que não estaria na Madeira senão oito dias, face a mais uma intentona militar do duque de Saldanha (1790-1876) em Lisboa. Poucos meses depois, e face ao insucesso das nomeações, D. João Frederico da Câmara Leme voltava a ocupar o lugar de governador civil. O 3.º visconde de Andaluz era bacharel em Direito e herdou o título de seu pai, Joaquim José dos Mártires de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1806-1863), que o tinha recebido por doação de sua tia materna, Maria Bárbara do Vadre de Almeida Castelo Branco, viúva do 1.º visconde, António Luís Maria de Mariz Sarmento, dado do casamento não ter havido descendência. Embora tenha sido uma situação algo insólita, o 3.º visconde de Andaluz, um ano depois do falecimento do pai, conseguiu a confirmação do título por carta régia do D. Luís (1838-1889), de 17 de dezembro de 1864. Casou-se no Funchal com D. Ana Joaquina Figueira, filha dos barões da Conceição. Desse casamento houve quatro filhas, tendo-se a mais velha casado com o conde de Vila Verde, D. Pedro de Almeida e Noronha Portugal Camões Albuquerque Moniz e Sousa (1865-1908). A 4 dezembro de 1890, o 3.º visconde de Andaluz ainda seria nomeado governador civil de Santarém, lugar que ocupou até 2 de janeiro de 1892. Terá falecido cerca de 10 anos depois.   Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)

Direito e Política História Política e Institucional Personalidades

música tradicional

A música tradicional madeirense da atualidade resulta da combinação de um conjunto de elementos trazidos por sucessivas levas de povoadores. Na Região Autónoma da Madeira (RAM), estes contributos foram evoluindo de forma isolada, mas recebendo pontuais influências de novas populações, de visitantes ocasionais ou ainda, a partir do séc. XX, dos meios de comunicação social de âmbito nacional, com particular incidência nas estações radiofónicas, ou da generalização do ensino oficial, com a chegada de docentes de diversos pontos do país. Deste modo, popularizaram-se na RAM canções que, com o tempo, têm vindo a assumir, para muitos, um carácter tradicional. Como é natural, trata-se de peças cuja identificação nem sempre é fácil, pois há pouca investigação feita sobre o tema nas diversas regiões do país. No caso particular das cantigas religiosas, é ainda necessário referir a influência de sacerdotes portadores de orientações precisas por parte da hierarquia ou de uma formação padronizada nos seminários que frequentaram. Um último aspeto que poderá estar na origem de algumas influências alheias é o regresso de emigrantes que trazem das terras onde viveram elementos tradicionais passíveis de ser incorporados na tradição. No entanto, seja por o fenómeno ser ainda relativamente recente, em termos de mecanismos de mudança cultural, seja apenas por ainda não ter havido quem o estudasse seriamente, a verdade é que não se sabe, atualmente, se essa componente se manifesta. Não é possível definir características genéricas da música tradicional madeirense. Por esse motivo, e de modo a facilitar a exposição, optou-se por abordar aqui, separadamente, cada um dos grandes géneros musicais, após uma primeira referência ao bailinho, o elemento mais conhecido e identitário da tradição musical da RAM. Aborda-se igualmente a mourisca, que, embora com menor realce, constitui também um modelo musical transversal a diversos géneros. Bailinho Com um padrão rítmico bastante simples, o bailinho é executado geralmente na tonalidade de Sol Maior, por ser aquela a que mais facilmente se adapta a voz. É esta melodia que está na base de muitos dos mais conhecidos bailes regionais, sendo também a forma assumida pela mais popular forma de canto improvisado em despique da RAM (com o nome de bailinho, retirada, meia noite ou outro). Encontramo-lo ainda a dar o “som” de muitos romances tradicionais, cantigas narrativas, cantigas de lazer, etc. De certa forma, é um elemento que, por si só, permite a qualquer não madeirense identificar uma melodia como sendo da RAM, sendo, atualmente, a forma musical mais presente e espontânea em todos os ambientes festivos na Região, acompanhada por qualquer instrumento ou mesmo por formas improvisadas de criar som. É importante chamar aqui a atenção para uma confusão bastante frequente resultante da coincidência do nome deste género musical. Existe uma canção muito conhecida, interpretada pelo cantor madeirense Max, que tem precisamente o nome de “Bailinho da Madeira”. No entanto, apesar da referência na sua letra ao bailinho, musicalmente esta nada tem a ver com ele. Antes pelo contrário, a música tradicional que serviu de inspiração para algumas das suas frases musicais foi o charamba. A grande popularidade desta canção tem feito com que seja frequente a confusão. Mourisca A mourisca madeirense dos começos do séc. XXI apresenta características que a aproximam de um vira valseado. Musicalmente, baseia-se no compasso binário composto, padrão rítmico de 6/8. Harmonicamente, tem a forma tradicional de alternância entre tónica e dominante. Na tradição local, principalmente a que se pode identificar através de recolhas efetuadas em anos anteriores, encontram-se formas de mourisca em diversas circunstâncias. Existem referências e alguns registos de mouriscas cantadas em despique, com letras improvisadas; contudo já não se encontram cultores desta prática, sobrevivendo apenas como canção de letra fixa. A sua grande força é traduzida numa dança, conhecida predominantemente na zona sul da ilha, em torno da Camacha, da Gaula, do Machico e do Caniçal. Existem algumas referências quanto à existência da mourisca dançada pelos populares em outras zonas, como os Canhas. Esta pode ser denominada, de forma indiferente, como mourisca ou chama-rita. No Porto Santo, existia o baile sério, nos começos do séc. XXI executado apenas pelo grupo folclórico desta ilha. Trata-se de uma variante da mourisca madeirense, com uma letra própria. Os habitantes da ilha consideravam-no a dança dos grupos mais abastados da ilha, em oposição à meia volta ou ao baile do ladrão, associados às classes populares. A sua letra é fixa, tal como na mourisca da ilha da Madeira, alternando quadra com refrão. As quadras são entoadas alternadamente por uma mulher e por um homem, sendo o refrão cantado em coro. Cantigas de trabalho Como resultado da transformação dos modos de vida e das atividades produtivas rurais, as cantigas associadas ao trabalho encontram-se atualmente numa situação peculiar. Com efeito, a verdade é que, nas zonas rurais, já não se ouve cantar a chamusca, a cava, a sementeira, a erva, a ceifa do trigo, a malha na eira, a boiada ou cantigas do moleiro, de acartar lenha, dos borracheiros, do linho, dos pastores, etc. Com o desaparecimento das atividades agrícolas que lhes estavam associadas, estas cantigas perderam o seu carácter funcional. De uma forma geral, podemos considerar que as cantigas de trabalho assumem diversas das características a seguir enunciadas: – Género exclusivamente vocal, sem acompanhamento instrumental; – Estrutura musical vulgar, nalguns casos simétrica; – Melodia simples e curta, muitas vezes irregular, com intervalos curtos; – Andamento lento e livre, dependente da respiração de cada um. O seu tempo é relativo e variável, dependendo da sensibilidade de quem canta e também do trabalho associado; – A tonalidade é a que melhor serve ao intérprete. Por vezes, verifica-se um prolongamento da última nota (de 8 ou 12 tempos finais), como, por exemplo, na cantiga da ceifa, da carga ou dos borracheiros. Não há mudança de tom; – Padrão rítmico: 2+2; 4+4; – Canto monódico. No entanto, a sua entoação pode variar, existindo diferentes formas de o fazer: a) Um único intérprete canta a totalidade da cantiga, ou cada um canta a sua quadra; b) Uma voz inicia a quadra e, nos dois últimos versos, os restantes participantes acompanham em uníssono imperfeito; c) Todos entoam, em conjunto, quadras já conhecidas; d) Cada um improvisa a sua quadra. – Sem refrão; – Forma de cantar: alto (agudo), voz de cabeça; – São frequentes os modos arcaicos (sistema modal); As características mais notórias da letra são: – A mesma letra pode servir para diferentes melodias, podendo ser de temática completamente alheia à tarefa. Esta é geralmente pouco profunda, mas ligada à tarefa do dia-a-dia, às dificuldades da vida. São temas recorrentes: Deus, amor, saudade, tristeza, alegria, humor, malandrice; – É frequente a apropriação de versos já conhecidos e pertencentes a cantigas de lazer, de carácter religioso ou romances tradicionais; – O cantar de improviso é um fator importante neste género de música associada ao trabalho caseiro, dependendo da capacidade poética de quem canta; – Entre as quadras ou versos, são frequentes os apupos ou onomatopeias; Listam-se abaixo algumas das mais significativas cantigas de trabalho madeirenses. Borracheiros Na costa norte da Madeira, as uvas eram tradicionalmente apanhadas e levadas para um lagar local. O mosto era posteriormente acartado para as adegas do Funchal, onde iria fazer parte do processo de produção do famoso vinho generoso. A ausência de boas vias de comunicação obrigava a que o seu transporte fosse feito em odres (borrachos) carregados aos ombros de homens pelas veredas da serra. Podiam juntar-se várias dezenas de borracheiros, que, em fila, faziam o percurso até à cidade. Como forma de atenuar a dureza da caminhada, iam entoando uma cantiga específica. O primeiro homem da fila era o chamado candeeiro, que cantava umas quadras de métrica irregular, a que respondiam os restantes (o gado), com vivas. O último do grupo era o boieiro. O canto servia para animar os elementos do grupo, fazendo alusão ao próprio caminho, podendo também incluir elementos de troça em relação a algum componente ou de incentivo ao esforço. A construção de estradas e infraestruturas levou ao inevitável fim dos borracheiros. Em 1974, por iniciativa de Eduardo Caldeira, constituiu-se um grupo, no Porto da Cruz, que recuperou essas tradições, apresentando-as em diversos eventos madeirenses. Cantiga da carga A força humana foi, desde sempre, o elemento que assegurou o transporte na ilha. Mesmo cargas pesadas eram levadas aos ombros ou à cabeça. Por vezes, onde os terrenos o permitiam, podia recorrer-se à ajuda de animais para facilitar a tarefa. No entanto, a ida à serra para recolher lenha para aquecer a casa ou cozinhar, ou para cortar erva para o gado que, no palheiro, a aguardava, dificilmente escapava à necessidade da força humana para o transporte dos pesados fardos. Esta cantiga era entoada naqueles percursos do regresso, aliviando, de certa forma, a dureza do esforço. A letra era composta por quadras, que podiam ser improvisadas, intercaladas por apupos e entoadas numa cadência lenta, acompanhando o ritmo lento da tarefa. Cantiga de embalar Adormecer uma criança é uma tarefa que pode ser árdua e que está muito dependente do tempo necessário para atingir o objetivo. Assim, a tradicional cantiga de embalar tem um andamento muito lento, sem grandes irregularidades. A letra tem versos intercalados por onomatopeias destinadas a fazer adormecer mais facilmente a criança.   Cantigas de carácter religioso O ciclo do Natal O primeiro momento do ciclo do Natal na Madeira, em termos musicais, é constituído pelas Missas do Parto. No seu estudo sobre o tema, Rufino da Silva (1998) afirma que os cantos que têm presença certa nestas cerimónias são conhecidos, pelo menos, desde finais do séc. XIX>, sendo no entanto impossível determinar se são de origem madeirense. Segundo o mesmo autor, estes cânticos apresentam traços de lirismo popular, revelam influência minhota pela harmonização em terceiras e a sua estrutura harmónica é basicamente de alternância entre a tónica e dominante e quase exclusivamente em modo maior. Embora esta seja a caracterização da maior parte das canções, o autor detecta nalgumas delas traços de influência do canto gregoriano.   Romagem. Missa do Galo. Boaventura. Foto: Rui A. Camacho A missa da Noite de Natal é um mais alto momento das vivências religiosas da população regional. Associadas à importância litúrgica de comemorar o nascimento de Cristo, há diversas práticas tradicionais que ajudam a que esta seja realmente a grande Festa. Em alguns locais, esta celebração ainda assume características muito próprias, terminando com as romagens, nas quais grupos de vizinhos, familiares ou amigos percorrem a nave do templo tocando e cantando, para levar até ao sacerdote as suas oferendas. A própria missa é intercalada por diversos momentos de representação e entoação de cantos, como o da “Anunciação aos Pastores” ou a “Pensação do Menino”, tradicionalmente cantados junto do presépio. Possivelmente, estes serão os últimos vestígios de um ancestral auto apresentado na ocasião. A alteração das condições de realização da cerimónia, incluindo alguma necessidade de encurtar a sua duração, poderá estar na origem da eliminação de componentes ou redução do número de estrofes entoadas, daí resultando a sobrevivência de apenas algumas canções isoladas. As romagens são um bom exemplo de uma outra realidade: o que aqui é tradicional é o contexto de interpretação e não a canção em si. Apesar de ser uma tradição que tende a perder-se, nos locais onde se mantém, a principal preocupação dos vários grupos que preparam a sua romaria é mostrar qualquer coisa que as pessoas presentes na igreja não conheçam, pelo menos no que respeita à letra, pelo que muitas vezes se adapta uma música conhecida a uma letra criada. Principalmente nas zonas onde essa preocupação pela conservação da tradição é maior, o grupo que apresente uma romaria que ele ou outro cantou naquela igreja no ano anterior ou dois anos antes, da qual toda a gente se lembra, é alvo de troça, uma vez que não foi capaz de preparar e apresentar uma romagem original, o que obriga a questionar o lugar da tradição. A tradição está na prática de as pessoas de um determinado sítio se reunirem e levarem uma canção para a missa de Natal, com ou sem instrumentos. Por definição, se o que o grupo tem de apresentar é uma novidade, então as músicas não podem ser tradicionais. O que acontece por vezes é que se o público gostar de uma romaria de Natal, seja pela situação em que ela foi apresentada, seja pela qualidade artística da sua melodia ou da sua letra, esta permanece e pode tornar-se tradicional, como uma cantiga de passatempo.   Noite de Reis. Foto: Rui A. Camacho Cantiga de Reis Na noite de 5 para 6 de janeiro, formam-se grupos que percorrem as casas dos vizinhos ou amigos, entoando cantos próprios da época, como forma de desejar um bom Ano Novo. Ao chegar à porta, canta-se enquanto se aguarda que o dono da casa abra e ofereça a todos as bebidas e bolos que os esperam. Depois de uns minutos de convívio, há que prosseguir o percurso, que dura até de manhã. Em cada zona da ilha tende a haver um canto próprio desta noite, embora haja alguns mais conhecidos que são partilhados por várias localidades. A cantiga é entoada em uníssono por todos os participantes. A sua estrutura melódica é constituída por duas partes distintas: uma primeira cantada em compasso de 3/4 e uma segunda em compasso de 3/8, embora haja casos em que surge o compasso 2/4. No final, é frequente haver uma quadra de despedida aos donos da casa. Espírito Santo. Camacha. Foto: Rui A. Camacho Espírito Santo Após a Páscoa, começam as visitas das insígnias do Espírito Santo às casas. Num número de domingos variável em função da quantidade de locais a percorrer, forma-se um grupo constituído pelos festeiros, portadores das insígnias (pendão com a pomba desenhada, coroa e cetro), músicos e duas ou quatro saloias (meninas que transportam cestos para acolher as ofertas). Ao chegar a cada casa, as saloias entoam o Hino, que pode variar de freguesia para freguesia, alusivo à entrada do Espírito Santo, a que se seguem o pedido e o agradecimento das esmolas ao dono da casa. Podem seguir-se outras cantigas, de acordo com pedidos feitos pelos moradores e/ou decisão dos festeiros. Cantigas de lazer Cantos improvisados Brinco em bailinho O despique em bailinho é, ainda hoje, o momento alto da festa popular. Em qualquer arraial tradicional, ou mesmo nas festas familiares, se pode encontrar um brinco. Um músico, pelo menos – tocando rajão, braguinha ou viola de arame, hoje frequentemente substituídos pelo acordeão –, atrai uma roda de cantadores que, à vez, entoam as suas quadras, podendo haver um acompanhamento adicional de palmas (se necessário, pode-se prescindir inclusivamente da presença de músicos). Musicalmente, encontramos uma melodia tonal, com base na harmonia da tónica, dominante.   Despique. Arraial de Ponta Delgada. Foto: Rui A. Camacho O canto é, no essencial, improvisado. No entanto, um bom despicador pode recorrer, se necessário, a quadras decoradas. Esta situação será um recurso aceite no contexto de um despique que se prolongue num arraial. A tentativa de “atirar” quadras críticas ou irónicas sobre os restantes pode proporcionar momentos de grande alegria. A forma poética escolhida é a quadra de verso curto, com rima cruzada (ABAB ou ABCB). Habitualmente, cada verso é bisado, e após o segundo verso toca-se o interlúdio musical. Por vezes, o despicador acrescenta mais dois versos (rima CB ou DB), como mecanismo que permite completar melhor a ideia. Em casos mais raros, poderá ser entoada uma nova quadra completa, tendência que se tem tornado mais comum em tempos mais recentes, possível sinal de uma menor capacidade inventiva e de síntese. A satisfação dos presentes é manifestada por meio de apupos. O despicador, ao chegar a sua vez, pode prescindir de participar, passando a vez ao seguinte. A conclusão mais natural do despique será a que resultar do progressivo abandono dos participantes, vencidos pelo mais inspirado. Num arraial, o brinco poderia prolongar-se por longo tempo, sendo um dos grandes momentos de animação antes da generalização dos grupos de música moderna. Na ilha do Porto Santo, é habitual chamar “Retirada” ao despique em bailinho. Charamba   Charamba. Foto: Rui A. Camacho É hoje a forma musical associada por excelência à viola de arame, embora tradicionalmente pudesse ser acompanhado por outros instrumentos. É uma forma de canto despicado, quase exclusivamente masculino. Na maior parte das vezes, os tocadores não participam no canto, sendo este alternado entre os participantes, que podem cantar quadras ou estrofes mais longas e também com uma métrica variável. A sequência é obrigatoriamente no sentido dos ponteiros do relógio. Ao conjunto dos charambistas que participam numa determinada sessão chama-se “quadrado”. Segundo alguns dos intérpretes tradicionais, o importante neste género musical era o conteúdo do que se cantava. Nalguns casos, acordava-se previamente um tema (fundamento) que estaria obrigatoriamente presente em todas as intervenções. O tema poderia também ser acordado após quadras iniciais entoadas pelos participantes. No momento do canto, o intérprete tem toda a liberdade de definir o andamento e a extensão dos seus versos. Se necessário, o tocador terá de “ir atrás” do cantor, prolongando as frases musicais ou repetindo-as. Para alguns, a opção é ir tocando uns acordes muito simples durante o canto. As quadras são entoadas com repetição de cada verso ou repetindo cada par de versos. Após a repetição, há o indispensável interlúdio musical, que tem uma forma padronizada e bem definida, num padrão rítmico regular de 2/4 (embora possa mudar para 5/8), sendo ele que, musicalmente, define o charamba. A estrutura harmónica é simples, baseando-se na Tónica e Dominante do tom de Sol maior. O seu andamento é lento/andante. Jogos cantados Nos momentos de convívio dos mais jovens, seja entre si, seja com os adultos da família ou amigos, as lengalengas e os jogos ocupavam um lugar importante. Estes apresentam uma grande diversidade de características, podendo ser cantados ou não, tal como ter associada uma coreografia própria. Embora não sendo possível efetuar generalizações, existe um conjunto de aspetos que se podem apresentar como sendo muito comuns aos jogos cantados: – São cantados em tom maior, com refrão e um ritmo simples; – É habitual possuírem refrão, cantado por todos em uníssono, intercalado com outras partes entoadas a solo por algum dos participantes; – Sem acompanhamento instrumental; – Recurso a acompanhamento de palmas; – A sua letra é composta maioritariamente por quadras de verso curto Muitos dos jogos têm uma coreografia associada. Os jogadores podem colocar-se em roda simples ou dupla, podendo ter um elemento no centro, podem estar em fila, frente a frente, etc. Histórias Outra forma muito comum de passar o tempo livre, ou mesmo acompanhar as longas horas de trabalho do bordado, era contando ou cantando histórias. Estas podiam assumir características diversificadas. Tanto podiam ser os antigos romances da tradição hispânica, como narrativas inspiradas em factos da vida real, como ainda histórias de animais ou mesmo lengalengas. Um elemento importante é assumirem, com grande frequência, um carácter didático ou terem uma conclusão moral. A sua componente musical varia muito. Ainda podemos encontrar alguns romances com as suas melodias ancestrais, a par de outros textos a que se foi adaptando uma música mais recente. Nestes casos, o facto de se tratar de uma melodia bem conhecida facilitava a sua memorização e podia tornar mais recetivos os ouvintes. De qualquer modo, são sempre melodias com frases musicais curtas, que se vão repetindo ao longo de todo o texto. Danças As duas formas dançadas mais comuns na RAM são os já referidos bailinho e mourisca. Para além delas, pode referir-se duas outras tradicionais da ilha do Porto Santo, a Meia Volta e o Ladrão, e uma outra, a Dança das Espadas, associada à festa de São Pedro, na Ribeira Brava. Meia volta Na ilha do Porto Santo, os momentos de festa em família ou com vizinhos e amigos tinham lugar nas eiras ou num espaço amplo dentro de casa. Aí, o tocador da rabeca colocava-se no centro e os restantes participantes do baile iam formando pares em roda (pares que nunca se tocavam, realçavam alguns dos mais antigos). Na roda, incluíam-se os tocadores dos outros instrumentos, como o rajão e viola de arame. Caso único nas danças da RAM, existia um mandador que orientava a sequência coreográfica do baile, ao mesmo tempo que cantava e tocava a viola de arame. Os restantes cantadores ficavam fora da roda. A música tem ainda hoje carácter modal (frígio), claro sintoma da sua antiguidade, embora todas as hipóteses até hoje lançadas para explicar a sua origem sejam puramente especulativas. Tradicionalmente, o canto era improvisado. Atualmente extinto da tradição, são elementos do Grupo Folclórico local que preservam a sua recordação. Musicalmente, apresenta uma sequência harmónica de três acordes: Sol, Lá, Sol, tom de Sol maior. O andamento é moderado e mantém-se sempre inalterável, mudando o número de notas musicais, criando uma intensidade sonora e desenvolvendo uma dinâmica rítmica, enquanto o violino executa uma interessante melodia com base na escala de Sol maior. A meia volta é única em relação a todas as outras músicas tradicionais. Dança das espadas Música tradicionalmente executada durante os festejos de São Pedro, na Ribeira Brava. Praticada até meados do séc. XX, esta dança desapareceu progressivamente da tradição, sendo alvo de trabalho de reconstituição em finais do século, tendo posteriormente retomado o seu lugar na festa.   Dança das Espadas. Ribeira Brava. Foto: Rui A. Camacho É interpretada por um conjunto de homens com um trajo próprio, tendo duas partes distintas: uma executada em marcha e a outra com uma coreografia própria. Aspecto peculiar, a dança é apenas instrumental, sem qualquer canto associado, o que faz com que seja a única dança da tradição popular que apresenta essas características. Musicalmente, é simples, baseando-se apenas em quatro compassos, em tom maior. Embora haja registo de ligeiras alterações, podemos definir o acompanhamento musical como sendo feito por rajão, braguinha, viola de arame e pandeiro.   Jorge Torres Rui Camacho (atualizado a 01.02.2018)

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pescas

O mar é uma constante no imaginário lusíada. Foi com o mar que se cumpriu Portugal e, durante muito tempo, no dizer do poeta, o mar foi português. Isto foi dito porque os portugueses se lançaram, no séc. XV, à sua conquista, batendo as barreiras do medo que atormentavam desde a antiguidade os potenciais navegantes do Atlântico. A economia das ilhas não se resumiu aos produtos trazidos pelos colonos europeus, pois elas também dispunham de recursos marinhos e terrestres. Quanto ao primeiro aspeto, é necessário ter em conta que os insulares, pela forma de assentamento ribeirinha, se assumiram como exímios marinheiros e pescadores, tendo, por isso mesmo, extraído do mar um grande número de recursos com valor alimentar. A atividade piscatória nos principais portos e ancoradouros cativou a sua atenção pela abundância de peixe e mariscos, mas raras vezes satisfez as necessidades das populações. O Atlântico, próximo das ilhas e da costa africana, era considerado, desde a antiguidade, como um espaço privilegiado de pesca, descoberto pelos cartagineses, no séc. VI a. c.. Desta forma, aquilo que os portugueses buscavam não era só novas terras, mas acima de tudo riquezas no mar e em terra. Tenha-se em atenção, por exemplo, que os primeiros frutos do reconhecimento da costa africana estão no mar – o óleo e a pele de lobo-marinho provenientes das expedições posteriores à de 1436 ao Rio do Ouro, tal como o documenta Gomes Eanes de Zurara. Note-se ainda que alguns autores fazem eco da riqueza em peixe dos mares da Madeira, como prova a expedição que João Gonçalves Zarco fez para o reconhecimento da costa sul da ilha. Depois disso, múltiplos visitantes testemunharam essa riqueza. Cadamosto, em meados do séc. XV, refere que a ilha é rica “em garoupas, dourados e outros bons peixes” (ARAGÃO, 1981, 36). Em 1698, o governador D. António Jorge de Melo refere que “o peixe é muito bom e não caro, que remedeia muito a terra” (NASCIMENTO, 1930, 15). Em 1853, Isabella de França acrescenta a esta ideia de riqueza piscícola a descrição de alguns peixes, como a abrótea, o atum, o chicharro, o congro, o cherne, a garoupa, o pargo, a raia, o salmonete e a tainha. Diversos autores referem a abundância de peixe nas costas das ilhas. Deste modo é cada vez maior o conhecimento do peixe disponível à volta da Ilha, muito evidente na lista de A. Biddle, de 1910, e nos diversos estudos científicos que entretanto se fizeram. A área marítima definida pela costa ocidental africana, entre o Cabo Aguer e a entrada do Golfo da Guiné, era muito rica em peixe, sendo frequentada pelos vizinhos da Madeira e das Canárias, bem como pelos pescadores algarvios e andaluzes. Todavia, o balanço das capturas dos madeirenses e dos açorianos não foi suficiente para colmatar a carência dos mercados, uma vez que havia necessidade de importar peixe salgado ou fumado da Europa do norte. A descoberta do Atlântico é um ato simultâneo com a da Ilha. Os portugueses demandam a sul, à procura das terras, míticas e verdadeiras, já debuxadas nos mapas. João Gonçalves Zarco decide fazer o reconhecimento da costa madeirense: este momento merece ser referenciado, não só por ser o primeiro encontro com a costa, mas também pelas revelações que lhe permitem o batismo dos diversos acidentes da costa. Na primeira busca, conseguiu boas oportunidades de abordagem e de fixação, enquanto, na segunda, a fauna marinha move a sua atenção. Um bando de garajaus deu nome a uma ponta: a Ponta do Garajau. Os lobos-marinhos que, no dizer do cronista, “era enquanto, e não foi pequeno refresco para a gente, porque mataram muitos deles, e tiveram na matança muito prazer e festa” (FRUTUOSO, 1873, 40), deram nome à Câmara de Lobos. No ano imediato, tratou-se do assentamento e reconheceu-se a terra que ficara no desconhecimento: a Ponta do Pargo, assim chamada pelo facto de aí terem pescado um pargo enorme: “e o maior que até aquele tempo tinham visto, pela razão do qual peixe ficou nome aquela Ponta a do Pargo” (Id., Ibid., 69). O facto de a toponímia da costa revelar algumas associações à fauna marinha é revelador do interesse que os navegadores depositavam nesta riqueza e do empenho com que a observavam: Porto das Salemas (Porto Santo), Baixa da Badajeira (Madeira), Porto do Pesqueiro (Madeira). Os mares da Madeira eram ricos em variedades e quantidades de peixe, como confirmam inúmeros visitantes estrangeiros. Em 1853, Isabella de França refere o chicharro, o peixe-espada, o gaiado, o atum, a abrótea, o pargo, o cherne, a garoupa, a tainha, o salmonete, a pescada, e o congro. A sua apreciação destes peixes faz-se pela sua aparência, e não pela degustação, pois deverá tê-los visto na praça ou nos portos das localidades por onde embarcou. A respeito do atum, tece o seguinte testemunho: “O atum é feio e escuro, de cerca de seis pés de comprido, carne avermelhada e grossa. É um espectáculo dos mais ridículos ver o campónio regressar a casa com a cabeça do atum na extremidade do bordão. A pesca do atum não corre sem perigo, pois já se tem visto puxar um homem pela borda fora” (FRANÇA, 1970, 117). Já em 1817, o governador Lúcio Travassos Valdez informa do envio, pelo mercador João Baptista Gambaro, estabelecido em Câmara de Lobos, de dois barris de atum, conservado de diversas formas (cozido, salgado e seco), que poderia ser uma alternativa ao bacalhau estrangeiro no abastecimento às embarcações. Desta forma, durante muito tempo, a disponibilidade do peixe estava limitada aos sistemas de conservação disponíveis. O peixe fresco era um privilégio quase só das zonas ribeirinhas e com portos de pesca. Aos demais, ficava o peixe salgado ou seco. Foi assim até que se começou a desenvolver a indústria de conservas, fundamentalmente de atum, em princípios do séc. XX, no Porto da Cruz (1909), no Paul do Mar (1912), em Pedra Sina (1939), no Penedo do Sono, em Porto Santo (1944), no Machico (1949). Atente-se que, na Madeira, o incremento da congelação só aconteceu a partir de 1972, sendo a primeira unidade criada em 1966, pela empresa Somagel. Por outro lado, a revelação e a descoberta do mar ganharam interesse devido à possibilidade de fruição das riquezas piscícolas. Mas a atenção do europeu ao mar não se orienta apenas neste sentido. O mar é a sua via de comunicação e para se servir dela é preciso conhecê-la, perceber os sistemas de correntes e ventos, compreender os acidentes da costa, os baixios, etc. É neste contexto que os portugueses iniciam uma ação pioneira que irá permitir o melhor conhecimento do mar e das suas possibilidades e recursos. As pescarias e as viagens de navegação e de descoberta ao longo da costa africana confundem-se. Os madeirenses pescavam nas costas da Berberia, um dos melhores bancos de peixe do Atlântico, como se conclui duma reclamação dos pescadores, em 1596, sobre o tributo que pagavam a João Gonçalves de Ataíde pelo peixe que de lá traziam. A pesca foi, a par da atividade agrícola, uma ocupação das gentes insulares ribeirinhas. Aliás, num espaço como a Madeira, onde a orografia condicionou a circulação terrestre, o mar é a via fundamental que liga os vários núcleos de povoamento que, por esse motivo, no início, se anicham no litoral. O mar foi o meio de comunicação mais usual e importante da comunidade insular, verificando-se a valorização da construção naval; ela surge, não apenas com a finalidade de assegurar o fornecimento de embarcações de cabotagem, mas também para dar apoio à navegação atlântica, no reparo das embarcações fustigadas pelos acidentes ou pelas tempestades oceânicas. Os estaleiros de construção e reparação naval proliferavam nas principais ilhas do meio insular, sendo esta atividade transformadora regulamentada e apoiada pelas autoridades locais e centrais, que, por exemplo, asseguravam as licenças necessárias para o corte das madeiras e definiam as dimensões e a capacidade das embarcações a construir. Os estaleiros de reparação e construção naval da Madeira situar-se-iam no Funchal, principal porto da Ilha, e em Machico, sede da capitania do norte, onde as madeiras eram abundantes. A construção de embarcações para a pesca está testemunhada desde o início da ocupação da Ilha. João de Barros refere mesmo que João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz fizeram duas embarcações no Porto Santo, certamente com troncos de dragoeiro, tal como refere Frutuoso. Ao contrário do que acontece no início do séc. XXI, a pesca não era uma atividade exclusiva de alguns núcleos do sul; na verdade, alargava-se a toda a Ilha, apesar de se ter evidenciado mais na vertente sul. Para o ano de 1889, existe referência a 2158 pessoas ocupadas na atividade da pesca, para um total de 493 embarcações, 338 das quais estavam empenhadas na faina do atum e 121 na do gaiado. A presença dos grandes cetáceos está também testemunhada na Madeira desde muito cedo. Em 1595, foi capturada a primeira baleia na zona; sabe-se que outra rendeu 64.000 réis em 1692, enquanto uma terceira, já em 1899, ficou por menos de metade, isto é, 30.000 réis. Em 1741, Nicolau Soares pretendia estabelecer uma fábrica de transformação de baleia na Madeira, mas a resistência das indústrias da Baía, temerosas da concorrência, impediu-o de levar por diante tal objetivo. A indústria em questão só terá lugar após a Primeira Grande Guerra, conhecendo-se três fábricas: Garajau, Ribeira Janela e Caniçal. A conserva de peixes torna-se numa realidade, nos primeiros anos do séc. XX, altura em que surgem a fábrica da Ponta da Cruz, de João A. Júdice Fialho (1909), a fábrica do Paul do Mar, de António Rodrigues Brás (1912), transferida em 1928 para a Praia Formosa, a fábrica de Pedra Sina, em S. Gonçalo, de Maximiano Antunes (1939), a fábrica de Machico (1949), de D. Catarina Andrade Fernandes Azevedo, Francisco António Tenório e Luís Nunes Vieira, e a fábrica do Porto Santo (1944). A partir daqui, o pescado da Ilha passará a ter dois destinos – o consumo público e a indústria de conservas –, o que veio permitir um aumento das capturas. Até então, o único destino era o consumo público, sob a forma de fresco ou salgado. Tenha-se em conta o interesse nas salinas em Câmara de Lobos e na Praia Formosa, de que existem testemunhos desde o séc. XVIII, mas que nunca adquiriram grande dimensão e interesse. É evidente a preocupação das autoridades no sentido da preservação deste recurso marinho. Assim, em 1547, a vereação acusa alguns pescadores de cana de usarem foles e redes, mantado a “criação de peixe” e o “peixe miúdo”, proibindo tal ação com a pena de 500 reais. Esta determinação passou a postura, sendo a pena de 1000 reis, que subia para 2000 réis, no caso de o visado ser pescador. A medida voltou a ser recordada em 1623. Ao longo dos tempos, continuamos a assistir a esta manifestação de interesse pela preservação deste recurso, que se alarga, em épocas posteriores, ao combate ao sistema de pesca através de bomba. Os aparelhos usados na armação da pesca na primeira década do séc. XX são referidos por A. Loureiro. Também se defendeu a indústria por meio de regulamentos que delimitavam a forma da pescada quanto às redes a usar e que, no séc. XIX, restringiam o uso abusivo de bombas, testemunhadas no norte da Ilha e na Ponta de Sol, situação que levou a uma portaria de 1877, recomendando ao governador medidas contra essa prática. O pescado chegava mais ao Funchal, onde tinha escoamento imediato e um preço mais favorável. Deste modo, sucedia que as diversas localidades da vertente sul, embora dispondo de núcleos piscatórios, se debatiam quase sempre com a sua falta, pelo facto de os pescadores preferirem a sua venda na cidade. As autoridades municipais foram portanto forçadas a tomar medidas. Em Machico, os pescadores da vila estavam obrigados a venderem aí 1/4 do pescado, passando, em 1640, para 1/3; no ano de 1638, esta limitação de saída era total, sobretudo na época da Quaresma, em que o consumo de pescado aumentava. Por outro lado, em 1751, não obstante recomendar-se que a venda do pescado fosse feita primeiro à população local, podendo as sobras ser depois levadas ao Funchal, refere-se o privilégio dado a algumas embarcações para o fornecimento, fora desta regra, ao convento de S. Francisco, ao juiz dos Resíduos e às capelas do Funchal. Já na Ponta do Sol, a Câmara proibiu, em 1704, a sua venda para fora do concelho e, em 1727, obrigava os pescadores a irem todos os dias ao mar, sob pena de 2000 réis. Idêntica obrigação existia em Machico para o ano de 1679, onde os pescadores preferiam o serviço de barqueiros ao da pesca. Atente-se que, em 1674, na Ponta de Sol, o arrais de um barco foi preso por não trazer peixe do mar. Mesmo assim, o Funchal não estava devidamente abastecido de pescado, necessitando de importar arenque salgado de Inglaterra. A prova disso está no facto de o foral de 1516 isentar os ingleses do pagamento do dízimo. Em 1768, o governador e Cap.-Gen. Sá Pereira, em carta ao conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, testemunha sobre uma representação dos moradores da Madeira, “sobre o promover-se a pescaria tão útil, e tão necessária aqui para que este povo possa livrar-se da miséria, a que está reduzido por falta de alimento, obrigado a sustentar-se de carnes, e peixes salgados, e corruptos, que aqui introduzem os Ingleses com grave prejuízo dos seus habitantes” (SANTOS, 2010, 368). Em 1771, o mesmo governador, no capítulo 26 do regimento dado ao Porto Santo, penaliza os moços indigentes, obrigando-os a dedicarem-se à agricultura ou às pescas. Já em 1783, o corregedor organiza um regulamento para as pescas nas ilhas da Madeira e Porto Santo – o Estabelecimento das Pescarias das ilhas da Madeira e Porto Santo –, que não teve efeito. Finalmente, em 1792 foi autorizado o estabelecimento de uma Fabrica de Pescaria, e Salinas, a ser instalada na Praia Formosa. E em novembro de 1822 foi formada uma Sociedade Piscatória na Madeira, com intuito de promover as pescarias, vindo, para o efeito, pescadores de Sesimbra para ensinar aos madeirenses as artes da pesca. Tais carências levavam a Ilha a importar peixe seco e salgado de Lisboa, do Algarve, das Canárias, de Santa Cruz da Berberia, de Cabo Verde, da Irlanda, da Escócia, da Noruega, da Suécia, da Dinamarca, do norte de França, da América do Norte e da Terra Nova. Os ingleses eram quem mais abastecia a Ilha deste peixe importado, muitas vezes com qualidade duvidosa, pois foram insistentes as reclamações sobre a venda de peixe podre. De acordo com informações da imprensa do Funchal, a partir do último quartel do séc. XIX, são frequentes as referências ao abastecimento do Funchal com peixe, lapas, caramujos e carne das cagarras das ilhas Selvagens. Os proprietários das ilhas organizavam campanhas temporárias com trabalhadores para a caça e a pesca, retornando ao Funchal com elevadas quantidades de produto salgado ou seco para venda na cidade. A faina da caça às cagarras e aos coelhos e da pesca ocorria entre os meses de agosto e outubro. No retorno, os trabalhadores enchiam a embarcação que os trazia de volta com caixas de lapas, caramujos, engodos, barris de salga de coelhos, cagarras, e peixe, sacos de penas de cagarra e óleo de cagarra. O peixe era fundamentalmente o atum, a cavala e o gaiado, que descarregavam no Funchal ou em Câmara de Lobos. Em 1907, sabemos da safra de 13.000 gaiados que foram vendidos no Funchal a 240 réis ao kg. Já em 1912, a safra foi de 16.000 gaiados, havendo problemas entre os pescadores e a firma proprietária quanto à distribuição dos quinhões. Os mares das Selvagens eram, assim, ricos em pescado, alcançando o imposto do mesmo, no primeiro quartel do séc. XX, valores elevados, apenas suplantados pelo Funchal e pela Câmara de Lobos. A faina nestas paragens era sempre complicada, acontecendo, por diversas vezes, naufrágios e situações de falta de mantimentos, indo, muitas vezes, as embarcações arribar à ilha vizinha de Tenerife. Desta forma, em novembro de 1916, os pescadores regressados ao Funchal mandaram celebrar uma missa de ação de graças na igreja de S. Gonçalo, por não terem sido vítimas de qualquer desastre. A pesca e a venda do peixe fresco, resultante desta faina, ou seco e salgado, por importação do estrangeiro ou de produção própria na Ilha, estavam sujeitas a apertadas medidas de controlo que consideravam a salvaguarda da saúde e a sanidade públicas e também a especulação dos vendedores. Aqui é clara uma evidência: em terra banhada pelo mar, onde o peixe abunda, o peixe da safra local era limitado e parece que a faina era pouco atrativa para os homens do mar, que preferiam dedicar-se à função de barqueiros nas ligações costeiras. Desta forma, são insistentes as reclamações das vereações municipais, quanto à sua falta como à coação dos pescadores para irem ao mar. Em 1847, foram estabelecidas isenções de direitos à entrada de peixe salgado, para suprir problemas de fome. Sabemos que, no ano imediato, a sua importação foi de 6464 arrobas, na sua maioria da Terceira, de Portimão e de Lisboa. A venda do pescado era feita na praça, de acordo com condições estabelecidas pelas posturas. Estava proibida a revenda do peixe fresco ou salgado sem licença dos oficiais da câmara. O peixe que sobrava de um dia para outro era salpresado e, depois de mostrado aos almotaceis, poderia ser vendido. Todo o peixe deveria ser aí vendido a preços tabelados e a todos os que o procuravam, de modo a evitar o uso abusivo dos mais ricos que, através dos seus escravos, procuravam tirar o peixe à força às vendedeiras. A carência de peixe é uma constante na Ilha, acusando a vereação, em 1547, de os madeirenses não quererem ir pescar, pois “onde devem de ir pescar quatro vezes na semana muitas vezes não vão senão uma e isto porque a tal preço dão o peixe que assim se remedeiam com um dia de trabalho na semana como se todos os dias trabalhassem [...]” (COSTA, 1998, 404). Desta forma, os homens-bons da Ponta Sol, em 1782, assistiam, no Calhau, à distribuição do peixe. As praças para a venda do peixe existiram em todos os municípios, sendo uma forma de regular e fiscalizar a venda do pescado. Na sua falta, o peixe vendia-se em locais determinados pela câmara, como sucedia em 1856, na Madalena do Mar. Temos notícias das praças da Ponta de Sol, em 1840, a qual foi reformada em 1931, do Porto Moniz, em 1894, de S. Vicente, em 1896, e do Porto Santo, em 1889. A do Funchal existe desde o séc. XV, tendo sido ampliada em 1730. Sabemos ainda que, desde 1546, existia no Funchal uma rua do peixe, que pode estar associada a este espaço público de venda. A partir de 1840, temos o mercado do peixe de S. Pedro, reformado em 1880 e 1889, e em 1940 integrado no mercado dos lavradores. A lota aparece no arquipélago da Madeira em 1953, no Funchal, seguindo-se outras em Câmara de Lobos, Machico, Santa Cruz, Paul do Mar, Porto do Moniz, Porto Santo, Caniçal, Ribeira Brava e Calheta. A lota passa a substituir o calhau como espaço de primeira venda da safra, por leilão ou contrato. Os funcionários municipais, almotaceis e guardas-mores da saúde tinham especial cuidado na fiscalização do pescado fresco ou seco que se vendia na Ilha. O pescado salgado ou seco importado, nomeadamente pelos mercadores ingleses, não era apresentado para venda nas melhores condições, obrigando, inúmeras vezes, os funcionários da saúde a intervir, gerando alguns conflitos com esta comunidade. Em 1634, os comerciantes ingleses Roberto Veloni e Diogo Dom são acusados por colocarem à venda, em lojas suas onde empregavam vendedeiras, peixe (bacalhau e sardinha) em más condições. Em 1813, repete-se esta situação, com a casa inglesa Murdoch Yuille Wardop & Comp a reclamar uma indemnização pelo pescado lançado ao mar pelo guarda da saúde. Nesta mesma data, o bispo, em visita à Camacha, refere o uso na alimentação de arenques e cavalas salgados que, trazidos pelos ingleses, se apresentavam muitas vezes em má qualidade e deitavam um mau cheiro. A Madeira importava pescado seco e salgado de diversos portos nacionais e estrangeiros. Torna-se difícil entender a razão desta importação de peixe seco ou salgado, tanto mais que os mares da Ilha eram ricos em peixe. Para além de poder ser uma imposição desta comunidade inglesa, com domínio quase total do mercado da Ilha, poderão ser outras as razões para esta valorização do pescado importado, ainda que de má qualidade pelas condições de acondicionamento. Em 1827, Alfred Lyall afirmava que “há grande abundância de peixe, de grande variedade e de muitas espécies, normalmente muito bom, mas talvez inferior em sabor e firmeza na sua carne, quando comparado com o dos nossos mares” (SILVA, 2008. 111). A necessidade de assegurar a subsistência dos colonos obrigou ao aproveitamento dos recursos disponíveis no meio com valor alimentar, como foi o caso da pesca, uma atividade das populações ribeirinhas. O peixe foi também um dos recursos mais valorizados no início da ocupação da Ilha. A prova disso está no imposto lançado, o dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca. No Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, este era cobrado pelos Jesuítas que, desde a segunda metade do séc. XVI, tiveram assento na Ilha. O mareante e o barqueiro, tal como o pescador, assentaram morada na zona ribeirinha pelo apego ao mar, junto do burburinho do calhau, onde poderiam ouvir o marulhar das ondas. A zona do calhau, depois Corpo Santo, acolhia o maior número de marinheiros, barqueiros e pescadores, cuja influência foi dominante nesta área citadina. Em Machico, Santa Cruz, Ribeira Brava, Calheta e na ilha do Porto Santo havia igualmente uma comunidade de homens do mar com morada fixa junto ao calhau ou aos ancoradouros. O grupo de madeirenses com ligação ao mar era elevado, mas parece existir uma predileção pela atividade ligada ao transporte costeiro, em detrimento da pesca. Os municípios instavam os homens do mar para irem à pesca, mas estes preferiam outros serviços mais remunerados. Em 1889, temos, em toda a Ilha, 2158 indivíduos associados a 493 barcos (127 de 4 remos, 200 de 2 remos e 121 canoas). Destes, como já referido em cima, 338 estavam dedicados à faina do atum e 121 ao gaiado, assumindo estas duas espécies uma importância dominante nas pescarias. A pesca ocupava, em 1914, mais de 1500 pescadores com 537 embarcações; já em 1931 existiam 1500 pescadores, que usavam 24 embarcações a motor e 508 à vela ou a remos. A partir de 1853, os governadores civis atuaram no sentido da valorização dos portos de pesca do arquipélago com diversos melhoramentos. O desenvolvimento de algumas indústrias no séc. XX levou à sua valorização. Em 1908, Vicente de Almeida D’Eça refere os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Aldonça, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, São Jorge, Ponta Delgada, São Vicente, Seixal, Porto do Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara de Lobo e Porto Santo. Em 1909, Adolfo Loureiro assinala os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, S. Jorge, Ponta Delgada, S. Vicente, Porto Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara Lobos e Porto Santo. Esta situação é também testemunhada por Orlando Ribeiro, em 1947, quando esteve na Ilha em estudos, afirmando em 1949 que “nas encostas da Madeira a cada abrigo correspondia um porto de pesca” (RIBEIRO, 1985, 104). Os mares da Madeira, embora não tão ricos como os do continente, apresentavam uma variedade significativa, pois podia-se pescar desde moluscos (lapas e caramujos), a crustáceos (caranguejo) e peixe (alfonsinho, bodião, boga, castanheta, chicharro, cavala, chicharro, mero, moreia, pargo, peixe espada preto, sardinha, salmonete, solha, tunídeos). São ainda assinalados diversos pesqueiros, isto é, espaços marinhos próximo à costa, onde este pescado aparece com abundância: Pedras, Cabeço Baixinho, Cabeço do Moinho, Largo do Mesinho, Pé da Poita, Pedra Lage, Pedra do Marracho, Pedra do capitão, e Canto do Porto.   Direitos e tributos O pescado estava sujeito a diversos tributos sendo, no início, considerado como uma renda dos capitães, que auferiam, pela sua exploração, o foro e o dízimo. A 26 de setembro de 1433, o infante D. Henrique recebeu das mãos de D. Duarte a posse vitalícia das ilhas da Madeira, de Porto Santo e das Desertas. Ainda nesta data, a Coroa, a pedido do infante D. Henrique, concedeu todo o cuidado espiritual das ilhas à ordem de Cristo, reservando para si o foro e o dízimo do pescado. Este dízimo foi abolido a 5 de abril de 1808, por ordem de Beresford, aquando da ocupação inglesa da ilha da Madeira. No Porto Santo, a referida abolição ocorreu em 1832. O dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca, no Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, era cobrado pelos Jesuítas. Temos dados sobre a arrecadação deste rendimento para os anos de 1759 a 1761. Já da receita da diocese sabemos que, em 1517, era de 200$000 réis, subindo, em 1581, para 363$600 e, em 1583, para 454$500. Este tributo foi abolido, na Ilha, por alvará de 20 de outubro de 1803, situação que só teve efeito durante quatro meses. Entretanto, os pescadores estabeleciam, entre si, alguns compromissos com o valor da faina. Assim, no Caniçal, existiu o quartão, que era o mesmo que um quarto, a parte que cada pescador do Caniçal tirava do seu quinhão da pesca para o pároco da freguesia, como forma de custear as despesas de serviço religioso, em seu benefício, durante o ano. Eram reservados ainda outros quartos – para as festas da Senhora da Piedade, de S. Sebastião, do Espírito Santo e do Santíssimo Sacramento. A par destes, existiram outros tributos de cariz social, como o socorro que apoiava os companheiros doentes, e o quinhão morto para acudir a qualquer desastre, do qual, no fim do ano, entre 25 de dezembro e 1 de janeiro, era distribuído o sobrante entre todos, sendo conhecido como a ajuda do pão-da-festa ou passadia. Em 1937, surgiu a Associação de Socorros Mútuos dos Pescadores da Madeira, que em 1953 deu lugar à Casa dos Pescadores, com instalações em Machico e Câmara de Lobos (1939), no Paul do Mar (1944), no Funchal (1950) e no Caniçal (1954). Em 1817, na tabela dos direitos ad valorem cobrados no Funchal, temos a indicação da sua cobrança sobre o peixe fresco, com sal ou de conserva, relativamente às seguintes espécies: atum, chicharro, carapau, lampreia, salmão e sardinha. Em 1954, o imposto ad valorem, de 3 % sobre o pescado, rendia à câmara do Funchal 115.000$000 escudos. O imposto de pescado era uma receita do Estado e da Câmara Municipal. No reinado de D. Maria, foi determinado, por alvará com força de lei, de 20 de junho de 1787, que fossem levantados os impostos sobre o pescado, porque haviam contribuído para a situação de decadência a que tinham chegado as pescarias do Reino e das ilhas adjacentes. O imposto sobre os barcos de pesca e pescarias (1830/1843), foi criado por decreto de 9 de novembro de 1830, sendo substituído, em 10 de julho de 1843, por outro imposto, de 6 % sobre os lucro da venda do pescado fresco, nomeadamente sobre as partes ou quinhões, excetuando apenas as comedorias, as caldeiradas, as restomengas e as carnadas; a sua coleta foi atribuída à Junta do Crédito Público. Pela lei de 10 de julho de 1843, só eram obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercessem a sua indústria em água salgada e somente naquela parte dos rios até onde chegassem as marés vivas do ano. Pelo decreto de 3 de dezembro de 1891, foram criados, na dependência do Ministério dos Negócios da Fazenda, diversos postos fiscais, com a missão especial de cobrar o imposto de pescado. Este imposto, cobrado pela Guarda Fiscal, era também conhecido como dízimo, e só foi abolido por decreto-Lei n.º 237/70, de 25 de maio. Sobre a cobrança do imposto de pescado encontramos as seguintes informações: em 1921, era de 59.257$96 escudos, sofrendo uma quebra significativa, no ano imediato, para 4346$48; em 1933, era de apenas 1259$52.   Peixe à mesa Por fim, importa verificar qual a importância que os recursos marinhos assumem no quotidiano e na alimentação dos madeirenses. A dieta dos madeirenses baseava-se no aproveitamento dos recursos disponíveis com valor alimentar, isto é, a caça e pesca e os derivados da atividade pecuária, como a carne, o queijo e o leite. A pesca terá sido importante na atividade das populações ribeirinhas, que usufruíam de uma grande variedade de mariscos e peixe. Através dos livros de receita e despesa, podemos acompanhar o dia a dia da mesa conventual, onde é regular a presença de carne e peixe, frescos ou salgados. No convento da Encarnação, a mesa dos sécs. XVII e XVIII era farta. O pão corria todos os dias à mesa, acompanhado de carne ou peixe. O peixe comia-se às quartas, sextas, sábados e dias prescritos pela Igreja. Poderia ser bacalhau, atum sardinha, arenques, pargos e chicharros. Mas nem sempre foi assim, uma vez que, por diversas vezes, foi manifestada a dificuldade no abastecimento de peixe aos conventos, o que fez com que estivessem isentos da obrigação da abstinência. A abstinência da carne era geral na altura da Quaresma, o que elevava o consumo de pescado. As pastorais determinavam regras sobre o consumo de carne e peixe pelos fiéis. Assim, a carne não podia ser misturada com o peixe e todos aqueles que estavam sujeitos ao jejum só podiam servir-se da carne ao jantar, sendo exceção os domingos, onde o consumo estava facultado. Daqui resulta a tradição popular do consumo da carne aos domingos. A mesa do mundo rural e da gente pobre é pouco conhecida. O pouco que se sabe resulta do testemunho de alguns estrangeiros. Esta servia-se quase só do que a terra dava, isto é, frutas, passas de uvas, figos passados e inhame. Consumia-se algum peixe fresco ou seco, pescado na costa, mas a carne e o pão parecem ser uma raridade. Esta frugalidade está presente em todos os testemunhos de autores estrangeiros. Assim, na segunda metade do séc. XVIII, George Forster destaca que “os camponeses são excecionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne” (FORSTER, 1986, 72), mais o milho americano, o inhame e a batata-doce, que era o principal ingrediente na alimentação do camponês. A isto juntava-se o consumo de peixe fumado ou em salmoura, importado pelos ingleses, que servia de conduto ao inhame, à batata e ao pão. O peixe consumido era o bacalhau dos Estados Unidos e o peixe seco, salgado ou em salmoura do Norte da Europa, destacando-se o arenque de fumo ou de salmoura, muito apreciado pelo povo como conduto para o pão e as batatas. Esta situação ainda perdurava na década de 50 do séc. XX, altura em que as capturas de pescado de cerca de duas toneladas eram ainda incipientes para satisfazer o consumo e as indústrias de conservas. No Funchal, existia uma praça onde este era vendido aos interessados de acordo com uma lista de prioridades. Primeiro, deveriam servir o capitão, depois os conventos e os oficiais da governança e, finalmente, o povo. Em 1732, o bispo tinha um barco que provia às suas necessidades de pescado. Na Ponta de Sol, em 1782, um homem bom do concelho assistia a esta distribuição do pescado. A generalização das praças e dos mercados do peixe nos demais concelhos só aconteceu muito mais tarde: no Porto Santo, em 1889, no Porto Moniz, em 1894, e em S. Vicente, em 1896.   Ciências do mar O mar não foi valorizado apenas como recurso económico. Já a partir do séc. XVII se regista o seu valor científico com os diversos estudos realizados. A passagem pelo Funchal de alguns cientistas ingleses propiciou uma primeira descoberta de muitas das raridades da fauna marinha nos mares madeirenses. Tenha-se em conta as expedições de Hans Sloane (1687) e James Cook (1768 e 1772). No decurso do séc. XIX, redobrou o interesse pela Ilha por parte de súbditos ingleses residentes ou de passagem pelo Funchal. Destes, podemos destacar os estudos de Richard Lowe (1833-1846), interrompidos com a sua morte num naufrágio em 1874. James Yate Johnson seguiu-lhe o encalço e publicou alguns estudos até à sua morte em 1900. O empenho dos madeirenses no estudo da fauna marinha poderá ser assinalado com os estudos de João José Barbosa du Bocage. O primeiro apelo neste sentido foi feito por José Silvestre Ribeiro quando, em 1850, criou o Gabinete de História Natural, que desapareceu com a sua saída, em 1852. A aposta no estudo e na divulgação dos recursos marinhos só aconteceu mais tarde, com a criação do Aquário do Museu Municipal, que foi aberto ao público em 1951. A publicação do Boletim do Museu Municipal, desde 1945, e os estudos de Adão Nunes, de Adolfo César de Noronha e de Günther Maul vieram a revelar quão rico é o património marinho madeirense.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

Biologia Marinha História Económica e Social

posturas

Regulamentos provindos dos corpos administrativos locais, as câmaras municipais, no sentido de adaptar a legislação geral às condições específicas do espaço municipal, visando sempre o benefício da conservação da Ilha. A primeira informação que temos sobre a sua existência na Madeira resulta de uma recomendação feita pelo infante D. Fernando ao capitão do Funchal, a 3 de agosto de 1461, com a indicação de que não interferisse nas posturas e de que estas fossem impostas a todos os funchalenses. Palavras-chave: município; legislação; administração. Ocupam o lugar mais baixo da hierarquia da legislação; são regulamentos locais, provindos dos corpos administrativos, as câmaras municipais, que se faziam “na forma da lei”, no sentido de adaptar a legislação geral às condições específicas do espaço municipal e tinham sempre, como princípio fundamental, o “benefício da conservação da Ilha” (PACHECO, 2002, 96), como se afirmava em 1724. Tal como se dizia em 1524, a todos acometia a obrigação de guardar a ordenação régia e as posturas da câmara. A primeira informação que temos sobre a existência de posturas na Madeira resulta de uma recomendação feita pelo infante D. Fernando ao capitão do Funchal, a 3 de agosto de 1461, no sentido de este não interferir nas posturas e de todos os funchalenses as cumprirem. Depois, em 1468, o infante D. Fernando refere as posturas que Dinis Anes de Grãa, ouvidor do duque, dera aos moradores de Câmara de Lobos. Acrescente-se que, em 21 de junho de 1481, foi feita uma postura para apregoar as posturas. As posturas eram aprovadas em vereação, tombadas em livro próprio e depois divulgadas em público, pelo porteiro da Câmara, através de pregão. A 1 de abril de 1598, fez-se reunião da nobreza e do povo para ler as posturas, que foram depois apregoadas em praça pública. Foram também publicitadas através de edital ou na imprensa, a partir do séc. XIX. Até ao regime liberal, as mesmas eram lidas na praça do pelourinho pelo porteiro da câmara, como referimos, fazendo-o este com alguma frequência e por determinação da vereação. A primeira ordem nesse sentido é de 21 de julho de 1481. Esta faculdade manteve-se sempre como uma prerrogativa fundamental do direito e poder municipais. As alterações de regime, nos sécs. XIX e XX, não retiraram ao município esta capacidade de elaborar as suas posturas e regulamentos. A novidade mais significativa prende-se, certamente, com a sua impressão. Com a República, estas passaram a ser destinadas a regulamentar as situações de polícia urbana e rural, atendendo especialmente às medidas de salubridade pública. A Madeira usufruía, no séc. XV, de condições particulares, com o senhorio e as capitanias, que diferenciavam a sua administração da das demais partes do reino. Todavia, as cartas de doação definem a precariedade deste processo e a capacidade de mandar e julgar, e nunca de legislar. Neste último aspeto, deveriam os capitães sujeitar-se aos forais ou regimentos gerais do reino. A capacidade de legislar surgiu apenas com a afirmação do município. As posturas são a materialização desse anseio, sendo os seus capítulos uma tentativa de dar voz às aspirações de uma região, no caso, o município. A ela se reconhece, assim, o caráter autónomo da administração, sendo o poder assente na jurisdição local (foral e posturas) e no exercício dos magistrados eleitos, destes últimos, os juízes com alguma capacidade jurisdicional. As posturas municipais, mercê da sua dupla fundamentação, refletem, no enunciado, as ordenações régias, reescritas de acordo com as particularidades de cada município e os sentimentos comunitários do justo e do conveniente. A par disso, de acordo com as ordenações afonsinas, o legislador deveria atender “ao prol e bom regimento da terra”. Deste modo, o seu articulado era o espelho da vivência quotidiana do município e da adequação das ordenações e regimentos do reino às novas e particulares condições políticas e económicas locais. Tais condicionantes justificam o seu caráter precário e a permanente mudança desse código, o que conduziu a diversas compilações e originou constantes alterações do articulado; a reforma das posturas sucedeu-se com frequência, como se poderá verificar pela leitura das atas das vereações. Talvez, por isso, em muitos municípios, não se fez a necessária compilação em livro, ficando as posturas apenas lavradas nas atas das vereações em que foram aprovadas. Por outro lado, o facto de serem, por vezes, medidas legislativas de ocasião promovia a sua rápida inadequação e a necessidade da sua reformulação ou revogação. Note-se que, em 18 de julho de 1738, o município do Funchal reuniu em sessão para reformar as posturas, “por não se poderem observar em parte as posturas antigas” (Id., Ibid., 66). As posturas são a fonte mais importante para o estudo do direito local. A circunstância de refletirem, no seu enunciado, as preocupações e domínios de intervenção locais leva-nos a valorizá-las fortemente como fonte para o estudo e conhecimento da realidade municipal. Ao surgirem como normas reguladoras dos múltiplos aspetos do quotidiano do município, são o indício mais marcante da mundividência local. De acordo com as ordenações e regimentos concedidos, o município tinha atribuições legislativas particulares resultantes, nomeadamente, da necessidade de adaptação das disposições gerais do reino às condições do espaço a que seriam aplicadas; por um lado, tínhamos as disposições gerais, estabelecidas pela Coroa e, por outro, as normas de conduta institucionalizadas no direito consuetudinário, que impregna e define as particularidades da vivência local. O município português, nos sécs. XVI e XVII, dispunha de uma ampla autonomia e de uma elevada participação das gentes na governança. Todavia, com o decorrer da prática municipal, essa autonomia acabou por revelar alguns atropelos, que levaram a Coroa a limitar a sua alçada por meio da intervenção de funcionários régios como o corregedor. Tendo em consideração essa ambiência, os monarcas filipinos, aquando da união das coroas peninsulares (1580-1640), procuraram cercear os poderes dos municípios portugueses, procedendo a algumas alterações na sua orgânica. A intervenção e alçada dos cargos municipais definidas nas ordenações e regimentos régios não careciam de uma redefinição no código de posturas e, deste modo, o código das posturas apenas estabelecia normas para a intervenção dos funcionários municipais empenhados na sua aplicação: os rendeiros do verde e os almotacés. As normas para serviço destes funcionários municipais eram da exclusiva competência da vereação e homens-bons e surgem nas posturas. Aos almotacés competia a fiscalização do normal cumprimento das posturas. No ato de juramento deste ofício, insistia-se na necessidade de guardar as posturas e proceder a pregões. Por outro lado, os almotacés davam juramento aos jurados dos lugares para as fazerem cumprir. A partir da República, esta função de fiscalização passou para os guardas cívicos. No Antigo Regime, o município, representado através dos vereadores, eleitos de entre os homens-bons, detinha amplos poderes. Através do código de posturas, normas gerais de conduta aplicáveis a toda a jurisdição, o município intervinha na economia, por meio da regulação do abastecimento local, do aproveitamento das terras e das águas, da definição dos locais de compra e venda dos produtos, do controlo do armazenamento, transporte e distribuição de bens essenciais, como os cereais, do controlo dos preços, pesos e medidas. São poucos os registos e códigos de posturas para os municípios madeirenses. Muitos se perderam ou as compilações não aconteceram na forma da lei. De uma maneira geral, estes encontram-se avulsos em atas das vereações, sendo impressos, como referimos antes, apenas a partir da segunda metade do séc. XIX. Eis as posturas que estão disponíveis em compilações: para o Funchal, posturas, contas e taxas para contas, relativas aos anos de 1481, 1512, 1550, 1572, 1587, 1598, 1598, 1599, 1620, 1625, 1627, 1631, 1649, 1675, 1738, 1745, 1746, 1755, 1769, 1780, 1869-1885, 1920; e registo de regimentos e posturas, relativas a 1789-1851; para Câmara de Lobos, as respeitantes aos anos de 1852, 1855, 1859, 1860, 1863, 1864, 1865; para Machico, as posturas de 1598, 1627, 1780; para o Porto Santo, as de 1780, 1791, 1796. Desde o séc. XIX que a sua publicação é obrigatória, porém, só temos conhecimento da impressão das do Funchal (1849, 1856, 1890, 1895, 1912, 1954), Machico (1598, 1627, 1780, 1856), Porto Moniz (1859, 1890), Santana (1837, 1841), Calheta (1842), Porto do Moniz (1890), São Vicente (1897) e Ponta do Sol (1900). Recorde-se que, na República, a lei n.º 88 de 7 de agosto de 1913 (art. 100.º, n.os 3, 4, 5, 6 e 7; art. 104.º, n.os 1, 3 e 4) determina a obrigatoriedade da comissão executiva municipal proceder à sua publicação. O texto das posturas estabelece as normas que regulam o funcionamento dos cargos municipais e da administração da fazenda municipal, como já indicámos, as atividades económicas, desde a mundividência rural, oficinal e mercantil, às condutas de sociabilidade, através da regularização dos costumes e dos comportamentos de alguns grupos marginais, como as meretrizes, escravos e mancebos, e ainda as regras de salubridade dos espaços públicos. As caraterísticas ou vetores das sociedades e economias insulares refletem-se no articulado das posturas, vale a pena referi-lo de novo. Deste modo, a maior ou menor valoração de determinado tópico é, sem dúvida, resultado da sua premência no quotidiano insular. De acordo com a divisão em sectores de atividade económica, constata-se o predomínio do sector terciário. Esta tendência para a terciarização da realidade socioeconómica deverá resultar, por um lado, do facto de o meio urbano gerar um maior número de situações que carecem da intervenção do legislador e, por outro, da expressão plena do seu domínio na vida económica. É necessário ter em consideração que esta realidade varia nos diversos municípios. No Funchal, os sectores secundário e terciário encontram-se numa situação muito próxima, ao contrário do que sucede com Angra, onde o último tem uma posição dominante. O predomínio dos sectores secundário e terciário poderá resultar de diversos fatores. Em primeiro lugar, convém referenciar que as posturas incidem preferencialmente sobre a urbe, espaço privilegiado para a afirmação do sistema de trocas e oferta de serviços, reanimado pelo seu carácter atlântico e europeu. Além disso, a animação oficinal e comercial do burgo, pelo seu ritmo acelerado, implicava uma maior atenção, mercê também do maior número de situações anómalas. A mundividência rural perpetuava técnicas e relações sociais ancestrais, sendo a sua atividade regulada pela rotina e ritmo das colheitas e estações do ano. De facto, no meio rural, pouco ou nada mudava com o decorrer dos anos. Deste modo, o legislador municipal canalizou a sua atenção para o quotidiano do burgo, marcado pela sucessão de mudanças. Para as sociedades em que a faina rural se tornou importante e definidora dos vetores socioeconómicos, esse espaço não poderia ser menosprezado. A ocupação e exploração do espaço insular fez-se de acordo com os componentes da dieta alimentar do íncola (o trigo e o vinho) e dos produtos impostos pelo mercado europeu para satisfação das necessidades das praças europeias (o açúcar e o pastel). Todavia, o primeiro grupo agrícola, pela sua importância na vivência quotidiana das populações insulares, solicitava maior atenção do município, pelo que 58% das posturas relacionadas com a faina rural incidiam sobre esses produtos, enquanto o grupo sobrante merecia atenção de apenas 15%. A distribuição dos referidos produtos obedecia às orientações da política expansionista da Coroa e dos vetores de subsistência e condições climáticas de cada ilha. Tais condicionantes implicaram uma ambiência peculiar dominada pela complementaridade agrícola das ilhas ou arquipélagos. Deste modo, as posturas organizar-se-ão de acordo com essa característica do mundo insular atlântico, refletindo, no seu articulado, a importância desses produtos na vivência de cada burgo. A abundância ou carência do produto em causa definia situações diversas na intervenção do legislador. No primeiro caso, essa intervenção abrangia todos os aspetos da vida económica do produto. No segundo, incidia preferencialmente sobre o abastecimento do mercado interno, definindo aí normas adequadas ao normal funcionamento desses circuitos de distribuição e troca. Assim se justifica a similar importância atribuída às posturas sobre o vinho. A pecuária assumia, em todo o espaço agrícola insular, uma dimensão fundamental, graças à sua tripla valorização económica (faina agrícola, dieta alimentar e indústria do couro). O seu incentivo conduziu a uma valorização da intervenção municipal na venda de carne nos açougues municipais, bem como das indústrias de curtumes e calçado. Note-se que, ao nível da intervenção do legislador local, essa situação é apresentada na inversa, uma vez que a sua carência implicava uma regulamentação mais cuidada e assídua do senado do que a sua abundância. O desenvolvimento da indústria de couro tinha implicações ao nível da salubridade do burgo, pelo que o senado sentiu a necessidade de regulamentar rigorosamente esta atividade, definindo os locais para curtir e lavar os couros e o modo de laboração dos mesteres ligados a essa indústria. A par disso, procurava-se assegurar a disponibilidade desta matéria-prima para a indústria do calçado, proibindo-se a sua exportação. Esta situação, aliada a outras medidas tendentes à defesa da salubridade do burgo, revela que a pecuária tinha uma importância fundamental nestas ilhas; era daí que se extraiam a carne para a alimentação, os couros para a indústria de curtumes e o estrume para fertilizar as terras, além do usufruto da sua força motriz no transporte ou lavra das terras. Na realidade, era uma grande fonte de riqueza. Uma das mais destacadas preocupações dos municípios insulares resultava dos danos quotidianos do gado solto, não apastorado, sobre as culturas, nomeadamente nas vinhas, searas e canaviais. Daí a necessidade de delimitação das áreas de pasto e a obrigatoriedade de cercar as terras cultivadas. Além disso, um conjunto variado de pragas infestava, com frequência, as culturas, o que obrigava a uma participação conjunta de todos os vizinhos. No domínio agrícola, a atenção do município variava segundo as culturas predominantes. Assim, no Funchal, que abarcava uma das mais importantes áreas de produção açucareira da ilha da Madeira, essa preocupação incidiu sobre os canaviais e engenhos, definindo a cada um o complexo processo de cultura e transformação. Os componentes da dieta alimentar insular adquiriram uma posição relevante na intervenção dos municípios madeirenses, o que demonstra as grandes dificuldades no assegurar dessa necessidade vital. Tal preocupação, no entanto, era muito variável no tempo e no espaço, adequando-se à realidade agrícola de cada urbe e à sua conjuntura produtiva. Deste modo, o seu articulado, para além de refletir a dupla dimensão espaciotemporal, evidencia uma das componentes mais destacadas da alimentação das gentes insulares. Tudo isto resultará, certamente, do facto de a dieta alimentar manter a sua ancestral origem mediterrânica, sendo, deste modo, pouco variada, o que colocava inúmeras dificuldades no abastecimento do meio urbano e justificava o consumo reduzido de legumes e peixe, potenciando o consumo abusivo de pão e vinho. Sendo os mares insulares ricos em peixe e marisco, e toda a vivência dessas populações dominada pelo mar e extensa costa, não se percebe bem o desinteresse pelas riquezas alimentares marítimas em favor da carne. Note-se que as posturas referentes à carne são praticamente o dobro das que referem o peixe. Apenas no Funchal o peixe merece a atenção do legislador; aí regulamenta-se não só a sua venda, mas também a pesca. A importância relevante do pão e da carne na alimentação insular implicou uma redobrada atenção das autoridades municipais sobre a circulação e venda destes produtos, pelo que o código de posturas acompanha todo o processo de criação, transformação, transporte e venda dos mesmos. De igual modo, é atribuída particular atenção ao quotidiano que envolve a atividade das azenhas, dos fornos e do açougue municipal. O moleiro deveria ser habilitado e diligente no seu ofício, tornando-se obrigatório o exame e o juramento anual em vereação. Na sua ação diária, atribuía-se particular atenção ao peso do cereal e da farinha, bem como ao ato de maquiar; na Madeira, essa tarefa estava a cargo de um rendeiro dos moinhos. No Funchal, este domínio mereceu uma cuidada atenção nas posturas. A necessidade de precaver danos na farinha e farelo levou o legislador a proibir a existência de pocilgas e capoeiras nas imediações dos moinhos. Além disso, a animação do espaço circundante tornava necessária a intervenção do município na definição de normas de conduta social, no sentido de moralizar e disciplinar o comportamento dos frequentadores habituais do moinho. Deste modo, não era permitido às mulheres casadas ou mancebas permanecerem aí, ao mesmo tempo que lhes era vedada a prestação de qualquer serviço na moenda. Ao moinho sucedia o forno, coletivo ou privado, que assegurava a cozedura do pão consumido no burgo. A afirmação pública deste espaço resultava da existência das condições do ecossistema insular; na Madeira, após uma fase inicial em que estes eram privilégio do senhorio, assistiu-se a uma excessiva proliferação de fornos no burgo e arredores. Todavia, a maior parte do pão aí consumido era oriundo dos fornos públicos. Deste modo, o município procurava exercer um controlo rigoroso sobre o peso e preço do pão; ambos eram fixados em vereação, de acordo com as reservas de cereais existentes nos celeiros locais. Além disso, em momentos de penúria, era a vereação que procedia à distribuição dos cereais pelas padeiras. A preocupação com o abastecimento de pão surgiu apenas no Funchal, onde foi ativa a intervenção dos almotacés sobre o fornecimento dos cereais e farinha, fabrico do pão, verificação do seu peso, e estabelecimento do preço de venda ao público. Tenha-se em consideração que este município foi pautado, desde finais do séc. XV, por uma extrema carência de cereais, o que gerou, como é óbvio, esta especial atenção por parte da vereação. O açúcar, ao invés, afirmou-se na economia insulana como o principal incentivo para a manutenção e desenvolvimento do sistema de trocas. Tal situação, associada ao caráter especializado da safra do açúcar, tornou necessária a sua coordenação pelo código de posturas na Madeira. A intervenção municipal não se resumiu apenas aos canaviais e ao complexo processo de laboração do açúcar, mas também integrou outros domínios que contribuíam, de modo indireto, para o desenvolvimento da indústria em causa. Assim se justifica a extrema atenção concedida às águas e madeiras, elementos imprescindíveis para a cultura e indústria açucareiras. Neste domínio, a intervenção municipal adequou-se às condições mesológicas de cada área produtora, variando as suas iniciativas de acordo com a maior ou menor disponibilidade de ambos os fatores de produção. Na Madeira, desfrutando a Ilha de um vasto parque florestal e de abundantes caudais de água, não houve necessidade de intervir exageradamente neste domínio, reservando-se a atenção para a safra do engenho. As posturas definem os cuidados a ter com a cultura dos canaviais, o transporte da cana e lenha pelos almocreves, bem como a ação dos diversos mesteres no engenho. A esse numeroso grupo de agentes de produção que asseguravam a laboração do engenho era exigido o máximo esforço para que o açúcar branco extraído apresentasse as qualidades solicitadas pelo mercado consumidor europeu. Deste modo, concedeu-se especial atenção à formação dos mestres de açúcar, refinadores e purgadores, ao mesmo tempo, exigiu-se ao senhor uma seleção criteriosa dos seus agentes, que deveriam prestar juramento em vereação, todos os anos. Essa atuação era reforçada com a intervenção do lealdador, um oficial concelhio que tinha por missão fiscalizar a qualidade do açúcar laborado. O uso abusivo, por parte dos seus agentes, levou o município a estipular pesadas coimas para o roubo de cana, socas, mel e bagaço. Além disso, procurava-se evitar a existência de condições que apelassem ao furto, definindo-se a proibição de posse de porcos a qualquer agente que laborasse no engenho ou a impossibilidade do pagamento dos serviços ser feito em espécie. O processo de laboração e transformação de artefactos era um sector destacado de animação do burgo, ocupando um numeroso grupo de mesteres com assento em áreas ou arruamentos estabelecidos pelo município. A necessidade de um apertado sistema de controlo sobre a classe oficinal, no sentido de promover a qualidade dos artefactos produzidos, e de tabelar os produtos e as tarefas, condicionou essa enorme atenção do legislador insular, ocupando cerca de 20 % das posturas em análise. De acordo com as posturas do séc. XVI, podia-se adquirir potes, alguidares, panelas, tigelas, vasos, púcaros, fogareiros, luminárias, canjirões, mealheiros, talhas. As posturas do séc. XVI referem a prática corrente de alagar o linho nas ribeiras da cidade, com muito dano das águas, pelo que se recomendava o uso de poços separados. A sua cultura espalhou-se por toda a Ilha, ganhando uma posição de destaque nas freguesias do norte, como foi o caso de São Jorge e Santana. Os alfaiates localizam-se na cidade do Funchal, o que poderá significar que, no meio rural, o corte do vestuário era caseiro. Aliás, é aqui que encontramos maior informação sobre esta atividade nas posturas municipais. O município não só regulamentava o feitio das diversas peças de vestuário, como também determinava os preços do produto. É necessário ter em consideração que essa expressão da vida oficinal do burgo não é igual em todas as posturas dos municípios estudados. Apenas no Funchal é patente a sua maior incidência e a variedade dos ofícios abrangidos, sendo menor nos municípios açorianos. A maioria dos ofícios referenciados pertence ao sector secundário e terciário, tendo o primário fraca representatividade. Tal situação expressa a importância que ambos os sectores de atividade assumiam nos municípios e resulta do facto de estes domínios serem mais vulneráveis às mudanças do devir histórico e propiciadores da fraude e furto. Os ofícios são o esqueleto em que assenta a vivência do burgo, pois vivificam e animam toda a atividade dos arruamentos e praças. Donde o grande empenhamento demonstrado pelo código de posturas, onde se destaca a atividade transformadora e o sector da alimentação, sendo maior, no primeiro caso, na indústria do calçado e, no segundo, na moenda do cereal e venda de carne. Também nos sécs. XVI e XVII, os ofícios indicados nas posturas incidem sobre os sectores secundário e terciário, com especial destaque para a atividade transformadora e sector alimentar. O facto vai ao encontro da visão geral do articulado das posturas, mantendo-se, aqui, o predomínio do sector terciário. Apenas no Funchal o secundário se aproxima deste, mercê do elevado desenvolvimento da estrutura oficinal, situação contrastante com a exígua referência e sobriedade dos municípios açorianos, por exemplo. A intervenção do legislador municipal na faina oficinal orientava-se no sentido da regularização dessa atividade. Aí se definia, de modo rigoroso, o processo de laboração e a tabela de preços para as tarefas e artefactos. A qualidade do serviço e produto não resultava apenas da concorrência na praça, mas, fundamentalmente, da vigilância das corporações e da exigência do exame ao aprendiz. O juramento anual associado à necessidade de prestação de fiança completava o controlo municipal. Todavia, na Madeira, os ourives e tanoeiros deveriam apresentar, em vereação, a sua marca, para que constasse nos livros da câmara. A oficina dá lugar ao mercado ou praça, espaço privilegiado para a distribuição e escoamento dos artefactos. Aí, o município redobrava a sua atenção, de modo a estabelecer regras regulamentares do sistema de trocas. Esta surge como uma das suas principais preocupações, pois das posturas que consideramos, cerca de 28% incidem sobre o mercado, repartindo-se essa atuação entre o abastecimento de bens alimentares e artefactos. Nesse domínio, é dada particular atenção aos pesos, medidas e preços. A praça domina o espaço urbanizado, estabelecendo uma peculiar compartimentação dessa área, de acordo com as exigências dos vetores internos e externos da vida económica. Aos edifícios da fiscalidade sucedem-se os armazéns e lojas de venda, orientados a partir desse centro. A importância deste espaço no quotidiano está justificada por uma dupla intervenção, primeiro, submetendo os diversos ofícios à prestação anual de juramento e fiança, depois, por meio de uma intervenção permanente dos almotacés. À vereação estava acometida também a tarefa de estabelecer os preços de venda ao público dos diversos géneros de produção local. Todos os anos, entre outubro e janeiro, eram estabelecidos preços para os produtos colhidos no concelho: vinho, cereais, cebolas, feijão, favas, batata, carne, laranjas, limões, inhame, vimes, cana doce. As atas das vereações e as posturas municipais revelam-nos muitos dos problemas resultantes do abastecimento de bens alimentares e artefactos no mercado madeirense. As posturas são a face visível da intervenção reguladora do município no mercado e comércios interno e externo. Para o mercado local, a intervenção assentava num apertado sistema de vigilância, como antes afirmámos, incidindo sobre os preços de venda de mais bens alimentares e artefactos, fixados em vereação. Já para o mercado externo, a intervenção ia no sentido de limitar as trocas com o exterior aos excedentes ou produtos a isso destinados, de forma a evitar situações de rotura com o abastecimento local, mas quase sempre com grande insucesso, pois, num edital da Câmara do Funchal de 1784, refere-se “o abuso inveterado e a extraordinária relaxação que praticam infinitas pessoas em fraude das posturas deste senado, estabelecidas contra os que exportam para fora da terra géneros que a ela são precisos” (ARM, Câmara Municipal..., Editais, lv. 235, fls. 27-28v.). Mas, porque as posturas e regulamentos protecionistas entravam em conflito com os interesses dos comerciantes e até do próprio Estado, as câmaras perderam estas prerrogativas, em 1836. A ação do município delineava-se de acordo com o nível de desenvolvimento socioeconómico de cada cidade. Os espaços de grande animação comercial necessitavam de maior atenção e de uma regulamentação exaustiva do movimento de entrada e saída, orientada de diferentes formas. A defesa da produção interna implicava, necessariamente, condicionamentos no movimento de entrada. Por outro lado, a carência, nomeadamente de bens alimentares, conduziu ao estabelecimento de medidas incentivadoras da sua entrada e de um controlo rigoroso do seu transporte e armazenamento. Estas últimas posturas estavam apoiadas na limitação imposta à sua saída ou reexportação. Estão incluídos neste caso: cereais, vinho, azeite, pescado, gado, carne, biscoito, linho e couro. Todavia, a intervenção dos municípios insulares foi variável, em consequência de uma situação socioeconómica diversa. Pela importância que têm na vivência das populações insulares, os cereais merecem redobrada atenção no código de posturas. Com efeito, as posturas adaptaram-se à conjuntura cerealífera municipal e insular, o que conduziu a uma permanente mobilidade do seu articulado: de facto, foram das poucas posturas que se alteraram com uma periodicidade mensal ou anual. A fragilidade do plano económico insular, associado à sua extrema dependência do mercado europeu e atlântico, condicionou o nível de desenvolvimento do sistema de trocas, marcado por múltiplas dificuldades no abastecimento. Deste modo, as autoridades municipais fizeram incidir a sua ação sobre o sistema de trocas, de maneira a assegurar a subsistência das populações insulares. Como referimos, o articulado das posturas frumentárias ia ao encontro da conjuntura particular de cada município e, no geral, do mundo insular. Aí definiam-se medidas compatíveis com as reservas de cereais existentes nos granéis públicos e privados, dando-se particular atenção ao preço, peso do pão e contingentes para exportação. É de salientar que, em todos os municípios, quanto ao fabrico da farinha e à necessária intervenção do moleiro, era comum a preocupação dos munícipes e governantes. O vinho faz parte do grupo de culturas ou produtos atingidos por este tipo de medidas protecionistas, mercê da sua importância na dieta e sistema de trocas insulares. As posturas estipulavam medidas de proteção da cultura, nomeadamente em face da depredação do gado nos vinhedos e dos furtos de uvas, bem como normas para a venda do vinho atavernado. No primeiro caso, fixaram a proibição da venda de uvas sem indicação ou licença do dono. No segundo, procuraram evitar os processos fraudulentos na sua venda, com a fuga ao pagamento da imposição e à baldeação de vinhos de diferentes qualidades. Assim, cada taberna só podia dispor de duas pipas de vinho (branco e tinto) e ambas varejadas e abertas por um oficial concelhio, o rendeiro do vinho. A época de abertura do vinho novo, que, de acordo com a tradição, se celebrava pelo S. Martinho (patrono dos alcoólicos, em parceria com S. Plácido e S.ta Bebiana), tinha também expressão nas posturas municipais, definindo, desde tempos recuados, a proibição de beber e vender vinho novo antes desta data (11 de novembro). A carne e o peixe, produtos cuja venda e manuseio exigiam especiais cuidados, ocupam também um lugar de destaque nas posturas. Estabeleceram-se normas reguladoras de todo o processo de circulação e venda. Assim, não era permitida a sua venda fora da praça e, mesmo aí, teria que ser feita por agentes habilitados pela vereação. Deste modo, aos proprietários de barcos, arrais ou pescadores estava vedado o comércio a retalho. Ambos os produtos deveriam ser almotaçados e, depois, postos à venda. A carne, para além do seu corte obrigatório no açougue pelo marchante, que arrematava semanalmente o seu fornecimento ao concelho, tinha a venda permanentemente vigiada por um oficial concelhio. A venda por peso ou medida facilitava o dolo dos vendedores pouco honestos que falsificavam os meios de medição. Deste modo, o município era obrigado a redobrar a sua vigilância sobre o retalhista, sendo o seu alvo principal as vendedeiras. Daí o estipular-se o uso obrigatório de pesos e medidas aferidos pelo padrão municipal, em todas as ilhas, sendo a respetiva conferência anual e a cargo do almotacel. A preocupação do legislador insular incidia mais sobre as questões económicas, que, pela sua importância na vivência quotidiana, justificavam redobrada atenção. A sociabilidade, no acanhado espaço insular, não implicava uma intervenção permanente do município. Além disso, a marginalidade não era preocupante, mercê da coação exercida pela limitação espacial, que impossibilitava uma fácil evasão e proliferação. Em certa medida, essa relativa mobilidade das sociedades insulares, abertas às influências do meio exterior, contribuiu para que se desvanecessem as cambiantes típicas. A urbe, espaço compartimentado da realidade insular, era animada com a ação dos diversos agentes económicos nos domínios da produção, transformação, transporte e comércio. Essa múltipla sociabilidade, resultante de uma escala de estratos socioprofissionais, de forasteiros, vizinhos e marginais, implicava a necessária definição de convivência social adequada à normalidade do quotidiano e relacionamento social. A marginalidade, em terras onde a mão de obra detém uma importante componente escrava, resulta deste grupo social ou daqueles que a ele já pertenceram, os libertos. A eles associam-se os vadios, os mancebos de soldada e as meretrizes. Enquanto os escravos estavam relacionados, preferencialmente, à safra do açúcar, as meretrizes abundavam nas cidades portuárias como o Funchal. Os escravos constituíam, todavia, a principal preocupação dos municípios no domínio social. Deste modo, no articulado das posturas, estabeleceram-se minuciosamente os padrões de comportamento do grupo, estipulando-se os limites da sua sociabilidade, além de outras formas de delimitação ou segregação social. Assim, ao escravo era vedado o acesso a casa própria e mesmo a possibilidade de coabitar na urbe: deveria residir nos anexos da fazenda ou quinta do senhor, não podendo ausentar-se sem a anuência do mesmo. Fora do seu apertado circuito de movimentação, o escravo deveria ser identificável pelo sinal e não podia usar arma, nem permanecer fora de portas após o toque para recolher. Em face disto, o seu quotidiano deveria restringir-se ao serviço da casa e terras do senhor. Acresce que ninguém, nem mesmo os libertos, poderia acolher, alimentar ou esconder qualquer escravo foragido. A defesa da moral pública, devidamente regulamentada nas ordenações do reino, mereceu as necessárias adaptações nas sociedades atlânticas, definindo o espaço e as formas de convívio social locais. Com a finalidade de proteger a reputação da mulher casada, delimitou-se a área de intervenção e convívio da mancebia e coagiu-se o sexo oposto a manter um comportamento regrado com as mulheres na fonte, ribeira e via pública. A promoção das necessárias condições de vida do burgo completou-se com a já referida procura de um nível adequado de salubridade do espaço de convívio e de labor social. A premência das doenças, nomeadamente a peste, colocava a obrigação de o município intervir com medidas sanitárias. Estas acentuaram-se em determinadas áreas, de acordo com o nível de salubridade e de ruralidade associado à animação da atividade oficinal predominante. Da intervenção do município nesse domínio, é de destacar o facto de as preocupações sanitárias resultarem, em parte, da presença considerável de animais no burgo e da sua circulação no local, do uso abusivo da água das fontes, poços, levadas e ribeiras para lavar ou beber e para o uso industrial, mais o necessário asseio das ruas e praças públicas. Daí a necessidade de pôr termo a essa tendência exacerbada de ruralização do meio urbano, delimitando a área de circulação e, no caso da Madeira, a construção de abrigos para os animais, conhecidos como palheiros. A água doce, elemento vital do quotidiano e faina agrícola, particularmente nas ilhas, mereceu atenta regulamentação por parte dos municípios, onde se procurou regularizar o uso do bem, de modo a evitar o seu furto e dano com as atividades artesanais, sobretudo, aquelas que trabalhavam com o linho e o couro. A fonte, espaço privilegiado do quotidiano da urbe, teve especial atenção neste contexto, restringindo-se o seu uso como bebedouro para animais ou estendal de roupa. O Funchal era, sem dúvida, de todos os municípios, aquele que desfrutava de melhores condições de salubridade. A sua situação geográfica, talhada por três ribeiras, associada à delimitação do espaço agrícola, assim o permitem afirmar. Note-se que, nas atas das vereações, bem como no código de posturas, a preocupação com o asseio das ruas e praças é pouco relevante. A adesão da população a estas normas de conduta é atestada pelas infrações, prontamente combatidas pela vereação através das coimas. Por um lado, esta fiscalização repressiva e, por outro, a assídua divulgação das regras, através dos pregões do porteiro da câmara, fizeram com que estas medidas fossem do conhecimento dos munícipes. Aos infratores das normas era imposta uma coima, que consistia em açoites, na prisão ou numa pena pecuniária, que revertia como receita para a câmara. O rendeiro e o alcaide tinham o encargo de aplicar as penas. A coima estabelecida no código de posturas reforçava o articulado da postura, mercê da relação existente entre o valor da mesma e a importância atribuída pelo município a cada aspeto regulamentado. Este regime penal municipal estava a cargo dos rendeiros e do alcaide, procedendo o primeiro à cobrança e o segundo à captura do transgressor, com a prisão estipulada. Note-se que a coima não se resumia apenas ao pagamento pecuniário, podendo ser um misto de moeda e prisão, perda do produto em causa ou, ainda, pagamento dos danos. Com o Estado Novo, as multas aplicadas aos transgressores das posturas passaram a ser partilhadas com o Estado, que arrecadava 25 % do seu valor. Ainda ao nível das sanções, no caso das posturas sobre os danos provocados pelo gado, acumulava à pena o pagamento dos danos. A partir do séc. XIX, com o aparecimento da imprensa periódica, a lista dos infratores, como as posturas, passou a ser publicada nos jornais. A intervenção do município, a este nível, era implacável, conforme se poderá verificar, consultando o resumo das receitas municipais e das intervenções assíduas da vereação. O código de penalizações variou com o decorrer dos tempos, de acordo com as áreas em questão, adequando-se à realidade socioeconómica que lhe servia de base. A taxa era estabelecida de acordo com o grau de gravidade e transgressão. As penas assumiam uma forma diversa na sua aplicação, que podia ser, como antes, o pagamento em dinheiro, variando entre 50 a 6000 reis; uma pena de prisão, que podia ir até 30 dias e era complementada pela indemnização pelos danos causados, nomeadamente, pelo gado nas culturas agrícolas, implicando a perda do produto ou artefacto produzido ou transacionado. A primeira reincidência dos infratores podia conduzir à oneração da coima. Usualmente, a primeira vez era punida com pena dobrada e a segunda podia implicar açoites, desterro perpétuo ou temporário. O valor da pena pecuniária, bem como o número de dias de prisão eram estabelecidos pela vereação, segundo uma tabela ou matriz que deveria existir em cada município. Esta oscilava entre os 500 e os 2000 réis, podendo, em situações excecionais, atingir um valor superior a 1500 réis. As penas extraordinárias incidiam preferencialmente sobre os aspetos que assumiam maior importância para a vivência do burgo ou que eram suscetíveis de fácil infração. Assim, os ofícios de moleiro, vendeiro, carniceiro e boieiro situam-se entre os mais onerados pela coima. O mesmo sucedia com a regulamentação do comércio externo, sobretudo, em relação à saída do vinho, cereais, linho e couro. A eficácia da aplicação e arrecadação das coimas dependia, em certa medida, do empenho do denunciante, mercê do usufruto de parte da coima. Em todas as localidades, o denunciante recebia parte significativa da pena, entre 1/3 e 1/2. As frações sobrantes eram aplicadas de modo diverso: quando em três partes, essa quantia era dividida pelo acusador, cativos e concelho; quando em duas, atribuía-se metade ao acusador e a restante ao concelho. A formulação destas posturas não é original, uma vez que tem o seu fundamento na legislação do reino, por um lado, e no código de posturas de Lisboa, por outro, tendo-lhe servido ambos, de certo modo, como matriz. As ordenações régias definiram os parâmetros de atuação do legislador insular. O facto de o modelo institucional do município de Lisboa ter sido a base para a constituição do madeirense e de este ter, por sua vez, influenciado o articulado institucional da nova sociedade madeirense que teve repercussão nos Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Brasil, conduziu a essa influência em cadeia. A partir daqui, conclui-se que o município de Angra foi o que manteve maior fidelidade ao postulado das ordenações do reino, embora se tenha afastado do articulado das posturas de Lisboa, ao invés do que sucedeu nos municípios do Funchal e Ponta Delgada. Tendo em conta a anterioridade do processo de ocupação madeirense e o facto de o código de posturas funchalense ser o mais antigo, é natural que este tenha influenciado, de forma importante, a elaboração das de Angra e Ponta Delgada. Confirma-se assim que a influência do modelo institucional madeirense foi decisiva para a organização da estrutura institucional açoriana e que essa não se limitou aos aspetos formais. É de salientar o número significativo de posturas específicas de cada município que, a par da maior incidência em alguns domínios, se diferenciam dessa realidade. Estas situam-se maioritariamente no domínio da agricultura e da produção artesanal, aspetos típicos do múltiplo processo de desenvolvimento socioeconómico de cada município ou ilha. Um dos seus traços mais peculiares assenta nos sectores da faina açucareira, do pastel, do pascer do gado e do aproveitamento dos recursos do meio. As situações resultantes dessas formas variadas de exploração dos recursos implicavam uma maior atenção do legislador local, até porque não se encontravam situações similares em Lisboa. Nesta última cidade, insistia-se mais no asseio do espaço urbano e na atividade oficinal e de troca do que na faina agrícola. Os códigos de posturas das novas sociedades do Atlântico português resultaram de uma simbiose das ordenações régias com os usos e costumes de cada burgo, como ficou exposto. A influência das posturas do reino ter-se-á verificado nos primórdios da criação destas novas sociedades, mercê da transplantação das normas de sociabilidade continental e dos usos e costumes dos locais de origem dos primeiros povoadores. Naturalmente, o devir do processo histórico condicionou uma evolução peculiar destas sociedades, o que conduziu a uma sistematização original deste direito nas ilhas, algo evidente nas posturas insulares, sobretudo, quinhentistas e seiscentistas. De facto, o código de posturas insulares dos sécs. XV e XVI surge como a expressão mais lídima do direito local do novo mundo. A sua elaboração fez-se, pois, de acordo com as condições subjacentes à criação das novas sociedades insulares e atlânticas. Convém referenciar, ainda, que, se considerarmos as posturas como reflexo das manifestações multiformes da vivência socioeconómica, será lógico admitir uma diversa formulação em relação ao articulado das cidades litorais e interiores do continente. Assim, as cambiantes peculiares da mundividência insular definem, como vimos, o código e articulado das posturas insulares. Confrontadas as posturas das ilhas portuguesas com as das Canárias, neste domínio, surgem algumas diferenças pontuais, pois o direito municipal não se adequa à relativa autonomia definida pelos alvarás e regimentos régios. Deste modo, na Madeira e nos Açores, onde as autoridades locais usufruíam de amplos poderes e a sua capacidade legislativa estava entravada pela insistência das ordenações régias e regimentos, o legislador (açoriano-madeirense) foi forçado a afinar pelo mesmo diapasão peninsular, submetendo-se ao articulado das posturas de Lisboa. Ao invés, nas Canárias, os munícipes beneficiavam de ampla capacidade legislativa, elaborando o código de posturas de acordo com as solicitações da vida local. Esse rasgo de originalidade acentuou-se, em todos os municípios, apenas no domínio socioeconómico.   Alberto Vieira (atualizado a 15.02.2018)

Direito e Política

serviço de estrangeiros e fronteiras

O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) é um serviço de segurança que depende do Ministério da Administração Interna, tem autonomia administrativa e se integra no quadro da política de segurança interna do país. O controlo de estrangeiros, no que respeita à sua entrada, permanência e saída de território nacional, foi desde os anos 40 do século XX uma tarefa cometida à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, depois designada por Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) e, após 1968, por Direção Geral de Segurança (DGS), a qual esteve sedeada durante muitos anos na rua da Carreira n.º 155, no Funchal. A PIDE/DGS tutelou os estrangeiros e fiscalizou a sua estadia em Portugal desde os anos 40 do século XX até ao dia 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos. Nos finais de abril, tal incumbência e os seus ficheiros passaram para a tutela da Guarda Fiscal (GF). Existiriam nessa altura cerca de 30.000 processos de cidadãos portugueses e estrangeiros, devidamente organizados e arquivados; o número de processos de cidadãos portugueses ultrapassava os 10.000. Sobre os portugueses, existia um ficheiro pormenorizado referente às viagens, quer internas, isto é, para o Continente e Açores, quer para o estrangeiro, fosse em férias, fosse por emigração, com um número de fichas individuais muito superior aos 10.000 processos acima referidos. Nessas fichas eram anotados os movimentos de cidadãos na condição de passageiros, quer por via marítima quer, posteriormente a 1964, por via aérea, uma vez que a mesma organização controlava as fronteiras portuguesas e, por tal razão, as da Madeira. A PIDE/DGS era dirigida, à altura da sua extinção na Madeira, pelo inspetor Anatólio, que tinha sob a sua direção cerca de 12 agentes da polícia política, os quais foram enviados para Lisboa nos finais de abril de 1974 sob escolta da PSP, sendo presos, após julgamento, por um período indeterminado e variável, no Estabelecimento Prisional de Alcoentre. Nessa altura, estariam domiciliados na Madeira com processos ativos cerca de 400 cidadãos estrangeiros, muitos deles nascidos na Madeira ou nela residentes de longa data. Em 1976, existiriam legalizados na Madeira cerca de 700, sendo as mais importantes comunidades a inglesa, a alemã, a venezuelana – muitos de cujos membros eram de origem portuguesa – e a nórdica; nos anos 80, juntaram-se-lhes angolanos, cabo-verdianos e guineenses e, já nos anos 90 e inícios do século XXI, ucranianos, russos, romenos, moldavos e brasileiros, que foram legalizados em três processos de regularização extraordinária, respectivamente em 2001, 2003 e 2005, este último exclusivamente para cidadãos brasileiros. As fichas que se encontravam na posse da PIDE/DGS foram mandadas queimar, cerca de um mês após a revolução de abril, à ordem da PSP, a quem o controlo de cidadãos estrangeiros foi cometido no dia 28 de maio de 1974; por essa razão, todo o acervo referente a estrangeiros passou da tutela da GF para a da PSP, tendo ficado sedeado no comando desta polícia, sito na rua do Carmo da cidade do Funchal, com a designação interna de Serviço de Estrangeiros (SE) e sob a autoridade do Ministério de Interior, posteriormente designado por Ministério da Administração Interna. Desse acervo referente a cidadãos nacionais não restou uma única ficha, ou um simples processo, escapando apenas os documentos de identidade ou de viagem que haviam sido apreendidos pela PIDE/DGS, nomeadamente bilhetes de identidade e passaportes, alguns dos quais foram devolvidos aos seus legítimos titulares. Os documentos que não foi possível devolver, por impossibilidade de localização do seu titular foram devolvidos à Conservatória dos Registos Centrais (os bilhetes de identidade) e entregues no Palácio de São Lourenço (os passaportes), ficando à guarda do Governo Civil da Madeira. Os processos de cidadãos estrangeiros da PIDE/DGS que transitaram para o novo serviço mantiveram-se até 2005 sob a jurisdição e guarda do Serviço de Estrangeiros, depois Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Este acervo incluía peças documentais únicas, muitas delas referentes a cidadãos estrangeiros nascidos na Madeira e ligados por sangue e nome a muitas das principais e mais influentes famílias da Região, como os Blandy, os Hinton, os Welsh, os Garton ou os Gesch. A estes processos juntaram-se também documentos estatísticos, carimbos, selos brancos, chancelas e demais parafernália administrativa e de controlo de fronteiras da PIDE/DGS, cuja destruição foi ordenada, em 2005, pelo Diretor Regional, ficando na sede do serviço, sita à rua Nova da Rochinha, apenas os designados processos ativos. O SE esteve sedeado na PSP de 28 de maio de 1974 até ao verão de 1977. A partir de 1977, passou à tutela direta do MAI, ganhando autonomia administrativa e funcional e uma nova designação: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) Enquanto esteve na PSP, o SE foi chefiado administrativamente por Gabriel Oliveira, coadjuvado, na qualidade de oficial de diligências, por Manuel Abreu. Na qualidade de operacionais, na fiscalização de estrangeiros e de instalações hoteleiras trabalhavam 5 agentes e subchefes da PSP. A partir de 1977, o SE foi dirigido por um diretor, o primeiro dos quais foi o capitão França Machado, originário do Porto da Cruz. O controlo de fronteiras manteve-se, nos postos de fronteiras, sob a tutela da GF até agosto de 1992 em Portugal continental e até 7 de outubro desse mesmo ano no aeroporto do Funchal, data em que se deu a transferência desse comando para o SEF. Foi nomeado Inspetor Responsável desse Posto de Fronteira, designado por PF004, o inspetor SEF José Felisberto de Gouveia Almeida e como adjunta de comando a inspetora SEF Fátima Teixeira, com 24 inspetores-adjuntos SEF. A fronteira aérea do Porto Santo, PF007, passou para a tutela SEF em 1997, sob o mesmo comando, e o mesmo aconteceu pouco depois com as fronteiras marítimas, tanto a do Porto do Funchal, PF 208, quanto a da Marina do Porto Santo, PF223, todas unificadas sob o mesmo comando. O SE, depois SEF, tem também uma delegação no Porto Santo; teve uma delegação em Machico, a qual foi extinta no final de 1980. A partir de 2004, o SEF na Madeira ocupou um balcão duplo na Loja do Cidadão do Funchal, local onde a partir de 2006 se passaram a fazer todos os atendimentos de cidadãos estrangeiros que solicitavam os seus serviços. Os diretores da Direção Regional do SE/SEF na Madeira entre 1977 e 2015 foram: de 1977 a 1979, o capitão França Machado; de 1979 a 1983, o capitão Fonseca Ferreira; de 1983 a 1993, o major Renato Trindade; de 1993 a 2004, o inspetor SEF José Felisberto de Gouveia Almeida; de 2004 a 2007, o inspetor SEF César de Jesus Inácio; de 2007 a 2009, o inspetor SEF Luís Frias; de 2009 a 2012, a inspetora SEF Fátima Teixeira; de 2012 a 2015, o inspetor SEF Paulo Torres. O SEF Madeira é um Serviço com tutela directa do SEF e, por via deste, do Governo Central, via Ministério da Administração Interna.     José Felisberto Almeida (atualizado a 30.12.2017)

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