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oratória sacra

O povoamento e o consequente desenvolvimento do arquipélago da Madeira concretizou-se segundo a estrutura religiosa e social católica, constituindo a pregação uma das principais formas de morigeração e de educação na fé, bem como de crítica social e política. Enquanto Diocese, e mesmo antes de sê-lo, o arquipélago viu nascer e atuar no seu território variadíssimos virtuosos do púlpito, desde membros da Ordem de Cristo a Jesuítas, passando por membros de outras ordens religiosas e pelos bispos funchalenses, tendo alguns deixado obra homilética publicada e outros apenas a fama perpetuada nos anais. Palavras-chave: oratória; história religiosa e eclesiástica; Igreja Católica.   No arquipélago da Madeira e Porto Santo, originariamente, a assistência religiosa processou-se em sincronia com o povoamento, ficando tais realidades sociológicas acorrentadas à determinação do poder monárquico, ao empenho dos colonizadores e ao espírito missionário do clero regular e secular metropolitano. Placa giratória e apoio relevante para a navegação dos périplos atlânticos, sobretudo ao longo da costa africana, o primeiro achamento da Madeira, segundo o cronista António Cordeiro, jesuíta da charneira dos sécs. XVII e XVIII, foi “casual, e só parcial”, e à ordem do infante D. Henrique se fez a descoberta de toda a Ilha (CORDEIRO, 1981, 67-71), “que do muito arvoredo assim se chama”, como n'Os Lusíadas se lembra (canto V, estrofe 5). Recorde-se que o cronista Zurara, em Crónica de Guiné, relata que, após o segundo cerco de Ceuta (1418), dois escudeiros da casa do infante D. Henrique pediram-lhe licença para ir a caminho da Guiné e, com vento contrário, acabaram por chegar à ilha de Porto Santo, reconhecendo ser fácil povoá-la (ZURARA, 1973, 345). Se crédito simbólico pode merecer a verosímil narrativa legendária do mediévico e infausto incidente do nobre inglês Machim, chegado à Madeira mais por “destino do acaso, do que por impulso do engenho”, o primeiro ato religioso aí praticado consistiria no enterro de Ana de Arfet, noiva do desafortunado fidalgo bretão, que, no local, pôs “de pedra uma campa em cima, e um crucifixo que consigo trouxera a defunta e levantou mais sobre ela uma grande Cruz de pau, com um letreiro em latim, que continha o sucesso, e pedia aos Cristãos que em alguma hora ali fossem, fizessem naquele lugar uma Igreja da invocação de Cristo Senhor nosso” (CORDEIRO, 1981, 67). A verosimilhança do evento da abordagem de Machim, tido por lendário, encontra mero contexto histórico na cartografia do séc. XIV que regista os arquipélagos da Madeira e das Canárias: a carta dita de Medici, de cerca de 1370, onde aparecem indicações de “porto sancto”, ilha de “lo legname”, i.e., Madeira, e ilhas “deserte”, notícias que em Portugal se conheciam. Percorrido o relato quinhentista de Francisco Alcoforado, constata-se que, a 2 de julho de 1419, o Cap. João Gonçalves Zarco, ao saber encontrar-se no sítio da Rocha, “aonde os Ingleses tinham desembarcado”, logo decidiu sair a terra, “e com ele dois sacerdotes, e alguns dos nobres que vinham, e desembarcados todos no lugar das sepulturas, deram as graças a Deus por lhes descobrir aquela nova terra, e fazendo benzer água, na terra a foram lançando, e tomando posse dela em nome do mesmo Deus”. De seguida, “achando uma casa formada dentro do grande tronco de uma árvore, ali prepararam altar, fizeram celebrar Missa, e no fim dela responso de defuntos sobre as duas sepulturas de Ana Arfet, e Machim; e tudo no dia da Visitação de S. Isabel” (Id., Ibid., 69). Não tardou o retorno ao reino, tendo o capitão e seus companheiros chegado a Lisboa no fim de agosto, relatando ao Rei o acontecido. Foi grande o entusiasmo com que D. João I recebeu a notícia do feito de João Gonçalves Zarco, e “tanto o festejaram os Sereníssimos Senhores Rei, e nosso Infante, pai, e filho, que mandaram fazer logo procissões públicas de ação de graças a Deus” (Id., Ibid., 70). Deliberou então o Monarca incumbir Zarco, no verão seguinte, de povoar a ilha da Madeira e as que houvesse em redor, dando “ampla licença a toda a pessoa que quisesse embarcar então, e ir povoar as duas ilhas, de Porto Santo e Madeira, e especialmente aos homiziados, e condenados que houvesse em cadeias do Reino”. Atilado no recrutamento oferecido, Zarco não quis “levar culpado algum por causa da Fé Divina, ou de traição, ou de ladroíce” (Id., Ibid., 71). Em nova viagem, prossegue o narrador Alcoforado, e desembarcados no porto de Machim, lançaram as fundações da igreja pedida pelo inglês, com sua mulher naquela terra sepultados. Entrados no Funchal, que do muito funcho recebera o nome, a iniciativa da fundação da igreja de S.ta Catarina partiria de D. Constança Rodrigues, esposa de Gonçalves Zarco, que assim testemunhava a sua piedade. E daqui se seguiu um rosário de outras: frente à morada do capitão-donatário, sita no alto da baía do Funchal, foi erguida a igreja da Conceição, tendo em vista o seu jazigo; num alto sobranceiro a Câmara de Lobos, demarcou-se o lugar onde se levantaria a igreja do Espírito Santo, e, abaixo, num ponto de serras muito altas, ali traçou outra igreja da vera cruz; ao chegar a uma “furiosa ribeira”, que ficou com “o nome de Ribeira Brava” (Id., Ibid., 73), um sítio escolhido além da Ponta do Sol, destinou-o para uma igreja dedicada ao apóstolo Santiago; depois, “deram em desembarcadouro, a que chamaram Calheta [...] e num alto de boa vista de mar, e terra traçou a Igreja de N. Senhora da Estrela (Id., Ibid., 74). Ficou assim a dever-se-lhe a obra meritória destas primeiras igrejas para as famílias dos colonos, a quem foi entregue a lavoura da terra que as queimadas na densíssima floresta deixavam capaz de cultivo e onde se lançaram gado, aves e animais domésticos que da metrópole os capitães-donatários haviam trazido. De mencionar, ainda, o que, na obra Saudades da Terra, o cronista de finais de Quinhentos Gaspar Frutuoso refere: ao tocarem os povoadores a ilha de Porto Santo, “foram dar a um porto da banda de Leste, onde acharam uns frades da Ordem de S. Francisco, que escaparam de um naufrágio, de que todos pereceram senão eles, os quais acharam quase mortos, por não terem que comer. Donde deram nome a este porto, que ora se chama o Porto dos Frades” (FRUTUOSO, 2007, 43). A propósito, tenha-se presente que os castelhanos começaram desde o séc. XIII a manter grande atividade com Marrocos. Por isso, torna-se natural a passagem pelas Canárias de franciscanos ibéricos para a evangelização do Norte de África muçulmano, segundo o plano de missionação de Raimundo Lulo (1232/1235-1316). Assim se entende que ventos contrários desviassem navios da rota a seguir, provocando naufrágios e acostagens ocasionais ao arquipélago da Madeira. Do povoamento à criação da Diocese do Funchal Coroa e donatários, atuando de acordo com as sintonias exigíveis, lançaram-se na criação de um espaço insular adjacente economicamente inovador, levando a Madeira, segundo o historiador Alberto Vieira, a afirmar-se, no decurso do séc. XV, como “viveiro experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo – os cereais, o pastel, a vinha [de Malvasia] e a cana de açúcar”, trazida da Sicília (VIEIRA, 1999, 26). Ao falar, no capítulo V da Crónica de Guiné, das razões por que o infante D. Henrique mandara povoar as ilhas atlânticas, referindo-se à Madeira, Zurara escreve: “Ele fez povoar no grande mar Oceano cinco ilhas, as quais ao tempo da composição deste livro [Crónica de Guiné], estavam em razoada povoação, especialmente a ilha da Madeira; e assim desta como das outras, sentiram os nossos reinos muito grandes proveitos, scilicet: de pão e açúcar; e mel e cera; e madeira e outras muitas coisas, de que não tão somente o nosso reino, mas, ainda os estranhos, houveram e hão grandes proveitos” (ZURARA, 1973, 30). Com o incremento das terras de sesmarias por regimento do infante D. Henrique, acentua Álvaro Rodrigues de Azevedo, “cresceu prodigiosamente a população” (FRUTUOSO, 2007, 471-476). Reinóis e estrangeiros não cessaram de afluir ao arquipélago: nobres e mercadores, gente dos mesteres mecânicos de Portugal e Espanha, mouros cativos e escravos das Canárias e negros africanos. No âmbito das sociabilidades próprias do tempo, a teia de afinidades consanguíneas de Portugueses “limpos, e nobres”, o cronista António Cordeiro, citando Gaspar Frutuoso, nomeia que, provenientes dos originários povoadores, havia fidalgos e nobres, “como Perestrellos, Calassas, Pinas, Vasconcellos, Mendes, Vieyras, Castros, Nunes, Pestanas” (CORDEIRO, 1981, 67), os quais “se apresentaram logo com a melhor nobreza das outras ilhas” e se tornaram alfobre de militares, magistrados e eclesiásticos (FRUTUOSO, 2007, 512-533). Coube-lhes o exercício da autoridade, da justiça, do governo e da defesa, como pediam o aumento demográfico do arquipélago e o afluxo de abordagens de navios a sulcar o Atlântico, por cabotagem, refúgio e comércio, e o crescente ataque de corsários europeus, por vezes com pilotos portugueses a guiá-los, e de piratas magrebinos. No respeitante ao espiritual, a Madeira dependia da jurisdição da Ordem de Cristo, de que, embora leigo, D. Henrique era o grão-mestre. Pertencia à prelatura eclesiástica assegurar o envio de sacerdotes, o fornecimento de alfaias e o sustento dos ministros e dos lugares de culto, existentes e a edificar. As povoações, centro das capitanias, iam sendo dotadas de vigários e, à medida que os núcleos populacionais se alargavam e tornavam consistentes, surgiam as paróquias, cujas primeiras nove apareceram entre 1430 e 1450, ao longo da orla marítima. No quotidiano, progredia a prática cristã, do batismo à sepultura, da administração dos sacramentos às missas dominicais e de dias de preceito, e às festas e devoções cristológicas, marianas e santorais, em que a alocução homilética de recorte catequético e moralista se fazia ouvir, se proferida por sacerdotes mais zelosos e capazes. Ficava, assim, grande parte da ação religiosa à responsabilidade do priorado dos freires do Convento de Tomar, como cimeira estância hierárquica jurisdicional eclesiástica, e assim se manteve até à criação da Diocese. A escravatura de negros africanos, no espaço antropológico-económico das lavras latifundiárias madeirenses, em constante aumento, a partir da intensificação dos engenhos de açúcar, viria a ser inquestionavelmente uma realidade sociorreligiosa a cuidar. Gaspar Frutuoso, em Saudades da Terra, informa: “No rol da confissão, no ano de 1552, se acharam na Cidade do Funchal entre negros e mulatos cativos, dois mil e setecentos; e depois no mesmo ano foram ter a ela quatro navios com trezentos escravos, que fizeram por todos três mil […]” (FRUTUOSO, 2007, 251). No título 10, constituição décima, das Constituições Synodaes do Bispado do Funchal, ordena-se aos párocos, curas e donatários que promovam o casamento de escravos, pois “muitos escravos e escravas se deixam comummente estar em contínuo pecado de amancebados” (Constituições Synodaes..., 1585, 60). Pode-se, no entanto, conjecturar que, para esta atividade pastoral, no grau permitido pela situação decorrente, apoios vários viessem não apenas da Ordem Franciscana, a primeira a pôr pé no arquipélago, como de clérigos metropolitanos e desembarcados das armadas em trânsito, decididos a permanecer na Ilha in perpetuum, instados ou de livre vontade. Lê-se em Memórias Seculares e Eclesiásticas que, aos franciscanos castelhanos do Porto Santo trazidos com Gonçalves Zarco para a Madeira, foram-se juntando “outros da própria nação, e Italianos, que buscando no inculto da Ilha, a ignorância das suas pessoas, faziam eternos os seus nomes, na cultivação das virtudes. Destes foi um aquele venerável Fr. Rogerio, Pregador, e Castelhano pelos anos de 1430, que depois foi fundador do Convento de S. Bernardino da Atouguia, e veio a dar a vida no exercício evangélico, em ano de 1466, nas Ilhas de Cabo Vede” (NORONHA, 1996, 231-232). Em 1449, a pedido de D. Afonso V e por ordem do provincial franciscano, foram para a metrópole, a fim de fundarem o Convento de Xabregas, dois sacerdotes: Fr. Filipe, castelhano, e Fr. Pedro de Monção, português. Acompanhada da correspondente cifra numérica de vizinhos, em que se regista um número apreciável de vilas, como Machico, Santa Cruz, Ponta do Sol, Calheta e São Vicente – imagem elucidativa do crescimento demográfico e económico, a rondar as 16.000 almas, com relevo para a vila do Funchal, que D. Manuel, em 1508, elevou a cidade e dotou de alfândega e sé catedral –, a panorâmica da distribuição de igrejas e freguesias, descrita pelo P.e António Cordeiro referente a finais do séc. XVII, por historicamente frágil que possa ser quanto à sua fidedignidade, evidencia a evolução atingida pela Madeira no dealbar da era quinhentista. Percebe-se, assim, que tenha havido consistência bastante para a mutação decisiva sofrida pelo arquipélago no religioso: a elevação a diocese em 1514, desmembrada da jurisdição eclesiástica da Ordem de Cristo, e até, com a promoção a arquidiocese, aliás de pouca dura, o facto de ter vindo a englobar outros territórios ultramarinos de soberania portuguesa. Lembre-se que a Diocese do Funchal foi criada pela bula Pro Excellenti Proeminentia, de 12 de junho de 1514, do Papa Leão X. A elevação a arquidiocese, compreendendo as Dioceses de Angra, Cabo Verde, São Tomé e Goa, pelo Papa Clemente VII, ocorreu em 1533, sendo prelado o arcebispo D. Martinho de Portugal, falecido a 1547; esta acabou por ser extinta em 1551, no pontificado de Júlio III. Para primeiro bispo do Funchal nomeou o Monarca um nobre, D. Diogo Pinheiro, pessoa de toda a confiança do Monarca e vigário dos frades tomaristas, que Leão X, apesar de ver preterido o candidato por ele mesmo proposto, confirmou. Nem este nem o sucessor, D. Martinho de Portugal, embaixador e bispo cortesão, pisaram o solo funchalense; nem ainda o carmelita D. Gaspar do Casal, confessor de D. João III e teólogo tridentino de renome, titular que foi de 1551 a 1556, e iam passadas mais de três décadas desde a criação da Diocese. E assim se gorou a expectativa de serem aplicadas no bispado as orientações recebidas do magno Concílio, a começar pelo cumprimento da obrigatoriedade das visitas pastorais e da residência do bispo na sua Diocese. No sólio episcopal funchalense, foram titulares imediatos: D. Jorge de Lemos (1556-1569) e D. Fernando de Távora (1569-1573), ambos frades da Ordem de S. Domingos. O primeiro permaneceu na Ilha durante cinco anos (1558-1563) e aplicou as determinações de Trento, procurando ajustá-las aos circunstancialismos que se ofereciam; o segundo, inquisidor geral, pregador, capelão e esmoler de D. Sebastião, talvez por medo do mar e por falta de visão, nunca foi ao Funchal, tendo o seu governo durado quatro anos. Com a presença destes bispos, seria de pensar no possível estabelecimento da Ordem de S. Domingos na Madeira, o que não aconteceu, tendo-se esvaído assim a esperança de estímulos para uma pastoral de catequese e pregação popular, como era timbre dos dominicanos, na linha tridentina do confrade D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, cujo Catecismo, com seus esquemas homiléticos, acabaria por ter, na Ilha, assinalável difusão. Pertencendo, desde o início do povoamento do arquipélago, a jurisdição espiritual à Ordem de Cristo, principiou o infante D. Henrique, zeloso no serviço de Deus, a dar-lhe a requerida execução. Di-lo o cronista Gomes de Zurara ao escrever, em cerca de 1453, volvida que era uma trintena de anos, que o envio “lá de outras gentes” fora acompanhado do “corregimento de igreja” e clérigos que se estendeu pela “grande parte” daquela terra em “breve tempo” aproveitada (ZURARA, 1973, 347). E, como a população crescia, passou a existir, então, “em ela moradores, fora outras gentes, que aí havia, assim como mercadores, e homens e mulheres, solteiros, e mancebos, e moços e moças, que já nasceram na dita ilha, e isso mesmo clérigos e frades, e outros que vão e vêm por suas mercadorias e coisas que daquela ilha não podem escusar” (Id., Ibid., 348). Foram surgindo assim, ainda em vida do infante, nas donatarias, vilas e paróquias, a saber: Funchal, Machico, Ribeira Brava e Ponta do Sol, providas de seus vigários, curas e capelães. Cabia-lhes a celebração de missas, dominicais e festivas de obrigação, e a administração dos sacramentos do batismo, da penitência, do matrimónio e da extrema-unção; e, quanto possível, o ensino da catequese e a pregação da palavra de Deus, no momento da homilia. Sucedeu, deste modo, que o infante D. Fernando, filho adotivo do ínclito navegador, a pedido das populações, proveu de mais clérigos as circunscrições carentes. O mesmo procedimento se registou enquanto D. Manuel, duque de Beja, que sucederá no trono a D. João II, foi responsável daquele mestrado. Referem, e.g., fontes históricas que Fr. Nuno Gonçalves seria o primeiro vigário do Funchal, e Fr. João Garcia do Machico, ambos freires tomaristas, ao que se presume. Da vigaria funchalense, a partir de 1490, tomaria conta Fr. Nuno Cão, mestre em Teologia, grande letrado e sujeito de não menor virtude. Sendo deão da colegiada em 1508, continuaria a exercer a função de pároco enquanto “se não criaram os dois curas” (NORONHA, 1996, 68). Antes da elevação da Ilha a Diocese, em 1514, não descurou o vigário-geral da Ordem de Cristo de providenciar o envio de bispos à Madeira, a fim de acorrer ao necessário exercício do ministério episcopal: administração dos sacramentos do crisma e da Ordem, concomitantemente com a visita pastoral e a instrução dos fiéis. Há notícia da passagem pela Ilha de bispos de anel, titulares de dioceses já desaparecidas, e auxiliares de prelados residenciais, que iam da metrópole e de terras vizinhas. Prática continuada no tempo de D. Diogo Pinheiro, primeiro bispo do Funchal, que, em 1516, enviou D. Duarte dumiense, assim mencionado por ser titular da extinta Diocese de Dume, sita no território contíguo a Braga; e, dois anos depois, pediu o mesmo serviço pastoral a D. João Lobo, bispo de anel da prelatura de Tânger, respeitado por sua “doutrina e virtudes”, o qual, em todas as freguesias visitadas, crismou e benzeu cálices e paramentos para o culto, de forma a deixar, no regresso a Lisboa, em 1519, “as igrejas em boa ordem, e os povos com grande consolação” (Id., Ibid., 69-70). A presença do púlpito, no decorrer deste período de estruturação da cristandade madeirense, acompanha o natural ritmo da organização eclesiástica no terreno. É o caso do pregador próprio da Sé do Funchal, havendo até, em 1557, notícia de dois, para cuja remuneração existiam côngruas estabelecidas; e os das colegiadas do Machico e Ponta do Sol, também da mesma década e com idêntica base de sustento. É certo que a oratória sagrada, no quotidiano, pautava a prática religiosa litúrgica e devocional, de que as inúmeras capelas votivas e a multidão de oragos constituem relevante prova. O sermão passa a inserir-se nas ocorrências públicas, em que a ligação ao sagrado expressa, como apelo e ação de graças, a fé arreigada do cristão na intervenção do divino. De resto, os ciclos do Advento, do Natal, da Quaresma, da Páscoa e do Pentecostes, com suas preparações e prolongamentos, dão lugar a uma pregação dita ordinária, ao passo que as festas cristológicas, marianas e de santos originam uma outra, denominada extraordinária, que se estende à ocorrida a pretexto do apelo ao sobrenatural em emergências graves da vida social e da nação, ou motivada por fins preceituados pela hierarquia eclesiástica. Nada, no fundo, de que a metrópole não ofereça abundante exemplário. A ilustrar de alguma forma este último subgénero de pregação, noticiam os anais da Madeira a carta de D. Manuel, de 28 de julho de 1515, a comunicar à Câmara do Funchal que, por bula de Leão X – no intuito de se acorrer às despesas que a Coroa fazia no serviço de Deus e “exaltação de sua Santa Fé, na conquista, e Igreja de África contra os Mouros” –, eram concedidas, para tão “Santa cruzada, muitas e grandes indulgencias que nela em assim para os vivos, como finados”, e “graças, e perdões”. Para sua execução, o Monarca enviava ao Funchal o seu capelão João Vaz com o pregador licenciado Fr. Jorge de Mançoylos e ordenava que o povo da cidade se juntasse na Sé à clerezia e fossem “em procissão receber a dita Santa cruzada à borda de água” e a conduzissem à mesma Sé, a fim de “ouvirem uma pregação, que por o dito Pregador será dita” (Id., Ibid., 492). Por sua vez, em auto da edilidade, relativo a mais um milagre do padroeiro e protetor do Funchal, o apóstolo Santiago Menor, que, a 21 de janeiro de 1521, salvara já a cidade da peste de que a cada dia resultavam muitos doentes e feridos, consta que, a 2 de janeiro de 1538, tremendo “a terra muito grandemente” e sem parar até ao mês de maio, com numerosos feridos e mortes, o alívio sentido o atribuiu o vulgo à intercessão do santo protetor, indo a Câmara, o clero e o povo em solene procissão à sua igreja, onde logo pelos vereadores “foram entregues, e postos sobre o altar as varas dos guardas mores [da saúde pública]; e aí ficaram, e estão em memória”. Ato contínuo, o pregador da cidade, licenciado Fr. Vicente, na oração pronunciada, “denunciou publicamente a todo o povo a determinação dos Regedores, louvando-a muito, e a confiança que puseram em as mãos do Senhor Deus, o que muito contentou a todo o povo […]” (Id., Ibid., 495). Não faltariam, pois, com a multiplicação de novos templos e devoções, motivos para o aumento do ministério do púlpito e, ainda, de oradores sagrados a exercê-lo. Da chegada dos Jesuítas à queda de Pombal A entrada na Madeira da Companhia de Jesus, na segunda metade do séc. XVI, deu ensejo a novo salto da vida religiosa e cultural da Ilha, com acentuada incidência na oratória sacra, pois, como a bula do Papa Júlio III acentua, a congregação inaciana destinava-se a trabalhar na expansão da fé cristã através da pregação da palavra de Deus para a salvação das almas. Reconheça-se que uma casualidade a trouxe. É certo que alguns homens insignes, oriundos de terras madeirenses, tinham, anos antes, ingressado na Ordem Inaciana, por certo por influência de familiares: o P.e Luís Gonçalves da Câmara, nascido no Funchal em 1518, companheiro desde a primeira hora de S.to Inácio de Loiola, mestre e diretor de consciência de D. Sebastião, e irmão de Martim Gonçalves da Câmara, reitor da Universidade de Coimbra e escrivão da puridade do dito monarca; o P.e Leão Henriques, de Ponta do Sol e descendente de capitães-donatários da Ilha, homem da máxima confiança do cardeal D. Henrique, seu confessor e testamenteiro; o P.e Manuel Álvares, nato em 1526 na Ribeira Brava, autor da celebérrima Gramática Latina e reitor da Universidade de Évora; o P.e Sebastião de Morais, nascido no Funchal em 1534, confessor da neta de D. Manuel, a infanta D. Maria, casada com Alexandre Farnésio, duque de Parma, e eleito primeiro bispo do Japão, falecido na viagem quando para lá se dirigia. Circunstância imprevista trouxe, de facto, os Jesuítas à Madeira: a 3 de outubro de 1566, um grupo de corsários franceses atacam o Funchal e 16 dias de saque e barbárie mergulham a população no desespero. Pela narrativa de Gaspar Frutuoso – pormenorizada no descritivo sangrento e devastador, a espelhar assimilada tradição oral, aliás de si bem próxima – se dá a conhecer que, no domingo 18 de outubro, dia seguinte à festa litúrgica de S. Lucas, na missa celebrada no convento franciscano ao lado da Sé, houve um frade dominicano, companheiro de outro, de nome Martinho Tamayo, pregador da cidade, ambos bons letrados e castelhanos da nação, que pronunciou um sermão emotivo ditado pela crudelíssima tragédia ante uma assistência de fiéis que viera à missa. Tomando a afirmação de S.to Agostinho “os males que padeceram nossos pecados os mereceram”, de evidente providencialismo histórico, porquanto argumentava que as vítimas apenas haviam sofrido o que as suas culpas pediam, procurou o frade mostrar “como os pecados daquela cidade foram os que haviam trazido os luteranos a ela a fazer tal estrago de vidas e fazendas, e tais insultos e sacrilégios nos templos de Deus e coisas dedicadas ao Culto Divino; e não ficou nenhum estado [grupo social] sem particular repreensão, com grande choro de todos os circunstantes”. Acrescenta o cronista: “deteve-se o Padre muito em consolar o povo; e que muito lhe seriam prestadas aquelas lágrimas, se tivessem paciência, e melhorassem as vidas” (FRUTUOSO, 2007, 277). Fr. Tamayo, tendo embarcado no segundo ou terceiro dia após o saque num navio saído para Portugal, seria um dos que levaram a Lisboa a notícia do acontecido. Na armada de socorro, logo enviada de Lisboa, foram para a Madeira três membros da Companhia de Jesus: o padre andaluz Francisco Várea, o sacerdote viseense Francisco Gonçalves e o irmão coadjutor Simão. Movia-os o zelo da assistência espiritual aos moradores, de confortá-los na dor, de catequizá-los e levá-los a vida mais santa. O P.e Várea, castelhano, começou a pregar diariamente na Sé, enquanto o P.e Gonçalves peregrinava pelos arredores do Funchal, proferindo sermões de missão para conduzir os povos à vida honesta nos trabalhos e negócios, e à reforma dos costumes licenciosos e das superstições, e os eclesiásticos ao cumprimento das suas obrigações ministeriais. Regressados à metrópole um ano volvido, movem diligências junto de D. Sebastião para a fundação de um colégio na cidade do Funchal. Por sua vez, o jesuíta madeirense P.e Leão Henriques convence o geral, P.e Francisco de Borja, a aceitar o pedido, que em 1568 a Ordem Inaciana aprovaria. Acentuavam as missivas enviadas para Roma ser a Madeira terra onde “passam todas las naves van a las Indias, Brasil, etc.”, de “hluenos aires, mui fértil, empero muy faltas y necessitadas de doctrina spũal [espiritual], e os habitantes “no biv como son obligados”. O P.e Leão Henriques também lembrava haver “gente bastante a prover muito bem o colégio” (RODRIGUES, 1938, 41). E, na carta régia de 20 de agosto de 1569, sublinhava-se que, de sua criação, o fruto a esperar era: “modo e ordem de seu governo, zelo e vigilância na salvação das almas, boa instrução da gente e pureza da santa fé católica com sua doutrina” (CARITA, 1987, 28-29). De seguida, partiram da metrópole os fundadores: três padres, Manuel Sequeira, Pedro Quaresma e Melchior de Oliveira; dois mestres de latinidade e gramática, Vasco Baptista e Baltazar Esteves; cinco estudantes coadjutores. O início das aulas, após a inauguração solene na ermida de S. Sebastião, foi a 6 de maio de 1570, festa litúrgica de S. João ante portam latinam, ou seja S. João Evangelista, que será o orago do templo a ser erguido entretanto. O Colégio recebeu logo visita dos frades franciscanos residentes num convento vizinho, o que foi entendido como sinal de bom augúrio. As relações com os Franciscanos vieram, contudo, a sofrer desagradável desentendimento, pois os frades seráficos, a seguir, hostilizaram os Jesuítas em público, nas igrejas e nos púlpitos, enquanto estes, por seu lado, como se lê num manuscrito portuense inaciano setecentista, “não se dando por sentidos ou afrontados de seus discursos, principiaram também a dali em diante em seus sermões e exortações aos fiéis, a incentivarem que socorressem com as suas esmolas os religiosos de S. Francisco, encarecendo e louvando com os maiores encómios as suas extremadas e observantes pobrezas”. Ao reconhecerem, porém, estes “quanto errados estavam em seus discursos”, passaram a venerar “a caridade dos da Companhia”, e a paz voltou (Id., Ibid., 35-36). Por esse tempo, os padres inacianos, que desde o desembarque no Funchal estendiam as pregações aos “largos mais concorridos”, receberam, em 1570, inesperada, embora passageira, ajuda de cerca de um mês, quando aportaram à cidade os 40 confrades que, conduzidos pelo P.e Inácio de Azevedo, indo na armada de D. Luís de Vasconcelos, se dirigiam à missionação do Brasil, e na cidade prestaram intenso serviço em atos de culto e pregações (Id., Ibid., 36). Tendo saído da Madeira, foi a nau que os transportava apresada pelo corsário francês calvinista Jacques Sória, que chacinou o P.e Inácio de Azevedo e os seus companheiros, ficando estes a ser lembrados como os 40 mártires do Brasil. Para sustentação do Colégio, foi-lhe entregue pela Coroa, em 1569, a soma de 350 mil reis de dízimos da Ribeira Brava e 250 mil da Alfândega do Funchal, empenhando-se os Jesuítas na formação académica do clero diocesano. Em 1577, a cadeira de Casos de Consciência, que três anos antes tinha a frequentá-la 30 alunos, foi entregue ao P.e Pedro de Mascarenhas, de 35 anos e irmão de D. João de Mascarenhas, da melhor nobreza do reino, casado com Aldonça Mendes, filha do capitão-donatário D. Simão Gonçalves da Câmara, conde da Calheta, vila em que os Jesuítas, a pregar pela Ilha, e desde abril em Ponta do Sol, foram mandados exercer, alguns anos depois, o mesmo ministério. Entretanto, vencidas dificuldades económicas em 1586 e ultrapassadas certas oposições à Companhia de Jesus em 1594, encabeçadas, na corte espanhola, em período de domínio filipino, pelo capelão-mor e bispo de Viseu, presidente do Conselho de Portugal em Madrid, procedeu-se às fundações do novo edifício do Colégio em 1599, abrindo o pátio das escolas em 1619 e a monumental igreja de S. João Evangelista 10 anos decorridos. Foram estas realidades com que justamente a Madeira se regozijou nas derradeiras décadas de Seiscentos. Daí resultou: o ensino e a educação da juventude; a docência de Latim, Retórica, Teologia Moral e Casos de Consciência, tão necessários para os ministérios sacerdotais exercidos na cidade do Funchal, vilas dos arredores e zonas rurais do interior; a prática das obras de caridade; a presença crescente de alunos, desde início em média de 200, e de sacerdotes nas aulas de casos de consciência, preparação valiosa para a confissão; o afluxo quotidiano aos sacramentos da penitência e eucaristia, aos sermões e às pregações frequentes dos padres Manuel Sequeira e Fernão Guerreiro (1550-1617), escutados com sumo proveito. Ocorreu a entrada dos Jesuítas durante o governo do dominicano D. Fr. Jorge de Lemos (1556-1569), que, desde 1563, se encontrava na metrópole e seis anos depois resignava, embora em 1573 ainda vivesse. Sucedeu-lhe, em 1569, o confrade e irmão do bispo de Cochim, D. Fr. Fernando de Távora, os dois pertencentes ao grupo de cinco mitrados escolhidos por D. João III para as dioceses ultramarinas. Não estando, pois, na Madeira, que rondaria pelas 20.000 almas, quando os Inacianos desembarcaram, encontrava-se a Diocese administrada, como era de norma, por um vigário capitular, até porque o Funchal dispunha de cabido com deão e cónegos em exercício. Face a este contexto histórico, percebe-se a provável interferência da Companhia de Jesus na nomeação de D. Jerónimo Barreto (1573-1585), sagrado com 29 anos, abaixo dos 30, idade pelo Concílio de Trento fixada como mínima. O eleito, irmão do jesuíta D. João Nunes Barreto, patriarca da Etiópia, era assaz abonado por suas qualidades morais e capacidades intelectuais, sustentadas pelo bacharelato conimbricense em Cânones e Teologia. Contaria, ainda, com o empenho do inaciano P.e Luís Gonçalves da Câmara, confessor e mestre de D. Sebastião, e de seu irmão Martim, escrivão da puridade do monarca. Deve-se a D. Jerónimo Barreto a publicação das Constituições Synodaes saídas do sínodo que convocou a 18 de outubro de 1578, apresentando-as como justas e necessárias por toda a clerezia, “por as que havia no Bispado serem antigas e muito breves”, datadas do governo do arcebispo D. Martinho de Portugal. As então promulgadas foram-no “conforme a variedade e mudança dos tempos”, segundo o deliberado no “sagrado Concílio tridentino, e o Concílio Provincial de Lisboa”, metrópole de que a Diocese do Funchal era sufragânea. Continham “muitas coisas que convinha ser declaradas por constituições”, por fim só em 1585 publicadas. Tornava-se efetivamente imperioso serem conhecidas e postas em prática, pois, escreve o prelado, o exigem “o serviço de Deus, instrução dos sacerdotes, e ministros do culto divino, e da justiça, doutrina de nossos súbditos, reformação de seus costumes, e bens das igrejas do Bispado” (Constituições Synodaes..., 1585). A impressão deixada pela leitura total dos 30 títulos destas Constituições é não se diferenciarem das coevas de outras dioceses, inclusive quanto ao que cabe aos curas dizerem aos fiéis na estação das missas de domingo e dias de preceito (tít. 12, const. IV) e à obrigação de só admitirem sacerdotes a pregar em suas igrejas se aprovados pelo prelado (tít. 23, const. II). O sucessor, D. Luís de Figueiredo de Lemos (1585-1608), que fora provisor da Diocese de Angra no governo do bispo D. Pedro de Castilho (1578-1583), teve o mérito, como prelado zeloso, de aplicar os decretos do Concílio de Trento e das Constituições aprovadas no sínodo convocado por D. Jerónimo Barreto, e por si dadas ao prelo. Tendo, porém, reunido um novo sínodo, a 29 de junho de 1597, na Sé do Funchal, entre as “muitas e graves ocupações” resultantes das visitas pastorais à Diocese, decidiu “prover com estatutos necessários ao bom governo, e bem das almas”, reduzindo-os a umas breves constituições, a que chamou Extravagantes, impressas com prólogo de 15 de agosto do mesmo ano, mas apenas em 1601. Dos 20 títulos estatuídos ressaltam: o XVI, que trata dos ouvidores de sua jurisdição, que inclui o de Arguim, na costa africana; e o XIX, que recomenda aos escrivães dos ouvidores que se conformem “com escrivães seculares, e estilo do Auditório”, o que denota a preocupação de evitar confrontos com a autoridade civil e de subordinação ao poder político (Constituições Extravagantes..., 1601, 34-37 e 40-42). Nos fins do séc. XVI, a Madeira, musculada social e eclesiasticamente, teve de enfrentar duas vicissitudes políticas de crucial importância para o reino de Portugal: o domínio filipino e a Restauração de 1640, podendo-se sentir, nas duas circunstâncias, a relevante intervenção da oratória sacra. Do que é possível conhecer e induzir, ao contrário da reação patriótica de parte relevante do clero religioso e secular das ilhas açorianas, onde houve heroica resistência ao poder castelhano, no Funchal, D. Jerónimo Barreto aceitou a legitimidade de Filipe II à Coroa portuguesa, como aliás fizera em Angra o bispo D. Pedro de Castilho, aquando das incursões patrióticas dos partidários e das forças navais do Prior do Crato, ambos, de resto, compensados: o primeiro com a transferência, em 1585, para a Diocese de Faro, e o segundo para a de Leiria (1578-1604/1605) e com a nomeação para inquisidor-geral. Atitude diferente não se notou, ainda, em D. Luís de Figueiredo Lemos, que, estando ao serviço do bispado angrense, fora criatura de D. Pedro de Castilho. Por sua vez, o bispo D. Lourenço de Távora (1610-1617) – frade capucho, mestre de Teologia no Colégio Universitário de Coimbra, e sobrinho por via materna do vice-Rei Cristóvão de Moura, e ao tempo à frente da Diocese do Funchal – veio a ser, simultaneamente, governador militar da Ilha em 1614, sinal revelador da confiança que merecia à administração filipina. Três anos depois, foi nomeado para Elvas, em óbvia promoção pelos serviços pastorais prestados e pelo cumprimento do que dele se esperava, em conformidade com a política castelhana, sem esquecer a predominância do clã dos Herédias, esteio dos ocupantes castelhanos. Seguiu-se o longo episcopado de D. Jerónimo Fernando (1619-1650), que se recolheu à metrópole em 1641, período em que se revelou o maior orador sacro madeirense do tempo o franciscano Fr. Gregório Baptista, nascido no Funchal em fins do séc. XVI, de vida errante, até religiosa, tendo desaparecido na Catalunha na época das guerras defensivas restauracionistas. No chão da Madeira, pregou na Ponta do Sol e deixou, impressos em 1629, três tomos de sermões sobre as domingas de todo o ano, alguns, por certo, pronunciados em terras da Ilha que lhe fora berço. Durante o bispado de D. Jerónimo Fernando, o Colégio dos Jesuítas do Funchal promoveu soleníssimas festas, com procissões, representações teatrais e, por certo, sermões, por ocasião da canonização de S. Francisco Xavier, o apóstolo do Oriente, e de S.to Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, ocorrida a 12 de março de 1622, não se conhecendo, porém, os pregadores que os terão proferido. No dia 25 de julho de 1632, festa de Santiago Maior, padroeiro do Funchal, foi consagrado o seu templo com missa solene e procissão, tendo a participação da Câmara, do bispo e do governador, havendo pregações oito dias antes e depois. Nesse dia, houve pregação pelo comissário da Ordem Franciscana, Fr. Diogo da Transfiguração, sendo que, no oitavário a seguir feito, houve em cada dia pregação, a saber: no primeiro, pregou o jesuíta P.e Baltazar Saraiva; no segundo, o franciscano Fr. António de Pádua; no terceiro, o jesuíta P.e Manuel da Costa; no quarto, o franciscano Fr. Luis da Encarnação; no quinto, o licenciado P.e Francisco Rabelo, vigário da Ponta do Sol; no sexto, o capelão da igreja de Santiago; e, no domingo seguinte, o jesuíta P.e João de Távora, reitor do Colégio da Companhia de Jesus. Do Funchal era também o presbítero secular Francisco de Castro, mestre em Artes e doutor em Teologia pela Universidade de Évora, que se entregava ao ministério da pregação. De entre os sermões proferidos, só dois se conhecem publicados e ambos em La Rochelle, em França: o da Conceição de Nossa Senhora, em 1653, na igreja da colegiada de S. Pedro da cidade funchalense, a cujo grémio pertencia, por ocasião da missa nova do P.e Matias Aguiar de Menezes, em que, segundo acontecia na parenética patriótica do período aclamatório, deu enfático recorte ao milagre de Ourique na sua dimensão de promessa messiânica do Quinto Império a cumprir por rei português – e D. João IV era Rei, na altura; o da Visitação de Nossa Senhora, em 2 de julho de 1655, data carismática da descoberta da Madeira, na igreja da Casa da Misericórdia. O pregador, no entanto, parece não haver gozado de longa vida, pois faleceu de lepra em Cabo Verde, para onde se teria dirigido em busca de cura. Mais três oradores sacros madeirenses viveram na época da Restauração, até finais do séc. XVII. António Veloso de Lira, natural da Calheta, em 1616, mestre em Humanidades pelo Colégio funchalense dos Jesuítas, que frequentou, e estudante de doutoramento em Teologia, na Universidade de Salamanca, que abandonou mal proclamada a aclamação de 1640, escreveu um importante e curioso panfleto patriótico, Espelho de Lusitanos em o Cristal do Salmo XLIII, editado em Lisboa, no ano de 1643; e, se não deixou impresso qualquer sermão, refere em tom encomiástico, nessa obra, a parénese aclamatória da conjuntura, sendo em 1670 cónego da Sé do Funchal, em cuja cidade, a 4 de janeiro de 1691, faleceu. Nascido no começo do séc. XVII, o Cón. Pedro Correia Barbosa, que exerceu o cargo de vigário-geral e governador do bispado da Madeira, publicou, na oficina lisboeta de Pedro Crasbeeck, entre vários outros, o sermão panegírico de Santo António, pregado na Sé do Funchal, a 13 de junho de 1697, a fechar o oitavário celebrado em honra do grande taumaturgo, de quem era fervoroso devoto. Reconhecida a independência de Portugal, recuperada pela Restauração de 1640, e reatadas as relações diplomáticas com a Santa Sé, em 1670, passou esta a aceitar os bispos nomeados pela Coroa portuguesa, encontrando-se entre as sedes vacantes a do Funchal. O eleito, confirmado em 1671, foi um cisterciense do mosteiro de Alcobaça, D. Gabriel de Almeida, mestre em Artes e doutor em Teologia, lente de Sagrada Escritura na Universidade de Coimbra, capelão de D. Luísa de Gusmão, pregador ao tempo de reconhecida fama, com sermões impressos, um dos quais foi pronunciado em 1649, nas exéquias celebradas em sufrágio do malogrado infante D. Duarte, irmão de D. João IV. Com a duração de um triénio, a finalizar em 1674, foi algo turbulento o seu governo na Diocese, em cuja Sé catedral se encontra sepultado e onde proferiu as paréneses que do seu ministério se esperaria. Ao séc. XVIII, natural do Funchal, em 1697, pertence o franciscano Fr. Manuel Rodrigues que, ainda com 15 anos, embarcou para o Brasil, a fim de se incorporar no regimento de seu tio, o Cap. Manuel Neto Barreto, embora logo em 1715 se alistasse no do mestre de campo Manuel de Almeida Castêlo e seguisse rumo à colónia do Sacramento, em alturas do diferendo entre o Governo de Lisboa e o de Madrid. Sentindo vocação religiosa, entrou em 1719 na Ordem de S. Francisco, no Convento argentino de Córdova, em que se formou, mas veio a acabar a vida, assaz tormentosa, em Lisboa, onde se entregou ao ministério da pregação com geral agrado. Há, no elenco de seus sermões dados ao prelo entre 1732 e 1757, um na festividade do Coração de Jesus, culto ao tempo em rápida difusão, e dois referentes à pessoa de D. João V: o das melhoras pela sua saúde, na altura da grave enfermidade que sofreu em 1742, e o do seu funeral ocorrido em 1750, a enfileirar entre os panegíricos lutuosos da decadência do barroco. No longo bispado de D. José de Sousa Castelo Branco (1698-1721), teólogo e inquisidor, lembrado em seu zelo de pastor nas visitações às paróquias da Diocese, há referências a pregadores franciscanos como Fr. António do Sacramento, Fr. Pedro da Encarnação e Fr. João do Deserto, os quais, a partir de seu convento, atuavam em toda a Ilha. De assinalar será o comportamento do bispo jacobeu D. Frei Manuel Coutinho (1725-1741), de quem a Câmara do Funchal delatava a D. João V escandalizar-se com os pregadores que espalhavam “doutrinas comuns”, isto é, moralmente laxistas. Escrupuloso, no seguidismo da orientação do movimento sigilista, inquietava-se com o teor de semelhantes pregações que divergiam das por ele proferidas em “todas as freguesias” em que pregava “repetidas vezes, e muitas também na catedral, não tantas como devia e queria, porque o impediam as suas contínuas enfermidades” (TRINDADE, 2012, 308). Os desregramentos morais de vários géneros que afligiam o rigoroso prelado corriam a par da profunda ignorância religiosa experimentada pelas ovelhas. Daí revelar o seu zelo a atenção que dava ao anúncio da palavra de Deus nas visitas à Diocese, como em fonte histórica coeva se regista: “uma ou mais práticas ao povo, para o que regularmente vão outros sacerdotes regulares, ou seculares, fora dos oficiais da visita, antes ou depois dela e as vezes com a mesma visita, máxime quando o prelado visitava: os mesmos visitadores suprem muito bem esta falta, se em alguma ocasião a tem havido” (Id., Ibid., 309). Por isso, no relatório aquando da visita ad sacra limina de 1735, entregue em Roma, testemunhava: “segundo as minhas forças, […] a pregação da palavra de Deus frequentemente se realiza, tanto na Catedral como nas povoações suburbanas e do campo, nas quais eu exerço este múnus e os próprios párocos e outros presbíteros louvavelmente desempenham” (Id., Ibid.). Assim aconteceu quando, com alguma demora na passagem pela Madeira, Fr. Luis Reis, dominicano das Canárias, e seus companheiros foram aproveitados para tais fins pelo prelado, que, além do convite a outros sacerdotes que reconhecia hábeis no ministério do púlpito, recorria a membros da sua Ordem Seráfica, a fim de pregarem missões. Ao anuírem, como se deu nos anos de 1735 e seguinte, quatro franciscanos fizeram “uma boa e proveitosa missão em toda a Ilha”. O mesmo sucedeu, em 1737, com os Capuchos da província da Piedade, Fr. João da Palmeira e Fr. Luís Chaves, salvos providencialmente de um naufrágio, ao regressarem de Cabo Verde, os quais, desembarcados na Madeira, a rogo do bispo, se entregaram a esse labor com proveito para tantas almas carentes de sã doutrina. E nunca, de resto, D. Fr. Manuel Coutinho deixava de se esforçar por levar missionários “de fora”, nem sempre, aliás, com êxito (Id., Ibid., 310-312). Ao rastrearem-se as contas de confrarias madeirenses, referentes a pagamentos de sermões festivos durante o governo deste prelado, aparecem os nomes dos cónegos João Rodrigues Oliva, pregador na festa da invocação de N.ª Sr.a do Bom Despacho da freguesia da Sé em 1736 e 1737, e Silvestre Lopes Barreto, que lhe sucedeu em 1738, do Dr. Fr. Manuel Marques, em 1739 e 1741, bem como o P.e João da Silva Seixas, em 1740, e do Dr. António Francisco Bettencourt, convidado no mesmo ano. De assinalar que o dito religioso Manuel Marques, ao incorrer no desagrado de D. Fr. Manuel Coutinho, por motivo do teor de suas pregações, foi por ele suspenso e mantido encarcerado em dependência da Sé Catedral. Pressionou também o superior franciscano de Fr. José de Santo António a penitenciá-lo “com açoites” e retirar-lhe a faculdade de confessar e pregar, sob a acusação, conforme queixa enviada para a corte portuguesa pelo Senado da Câmara funchalense, de haver reproduzido um sermão, há mais de duas décadas pronunciado, em que o bispo se sentira provocado (Id., Ibid., 310). Esta orientação pastoral seria mantida pelo prelado sucessor, D. Fr. João do Nascimento (1743-1751), formado em Cânones por Coimbra, mas franciscano do Convento do Varatojo, caldeado por essa pregação missionária em “muita parte do reino”, antes da sua nomeação episcopal (NORONHA, 1996, 124-128). Referência obrigatória importa fazer às pregações ocorridas por ocasião do terramoto de 1748, no início da madrugada de 31 de março. Os abalos na altura sentidos afetaram “igrejas, vilas, lugares, campos e casas particulares” do Funchal, tendo provocado crudelíssimas mortes em consequência de tamanha destruição. Às explicações naturais aventadas, seguiu-se a publicação de “preces” na Sé, gravemente atingida (FRUTUOSO, 2007, 697). A onda de preces e “rogativas” estendeu-se às comunidades religiosas e colegiadas da cidade, realizando-se uma procissão de penitência em que o bispo, D. Fr. José de Santo António, acompanhou, debaixo do pálio, “a imagem milagrosa do Senhor Crucificado” do Convento de S. Francisco, “e em todas as estações fizeram os Religiosos algumas exortatórias, e doutrinais; recolhida ao mesmo convento, pregou com a sua costumada elegância, o M.R.P. Definidor Fr. Manoel da estrela; e foram tantas as lágrimas, e os suspiros, que chegou o silêncio das vozes a ser o maior panegirista da fatalidade” (Id., Ibid., 699-700). Outro cortejo penitencial saiu, na noite de 5 de abril, com a imagem do Senhor dos Passos da igreja colegiada de Santa Maria do Calhau, que percorreu as estações da Via-Sacra espalhadas pelas ruas, em todas cantando os “melhores músicos da Ilha, tristes e devotos motetes”. À chegada do piedoso préstito, o Cón. António de Freitas e Sousa pronunciou um sermão, no “qual não só incitou as lágrimas, mas comoveu a muitos para novas penitências” (Id., Ibid., 700). Houve, no dia seguinte, outra procissão com o mesmo fim, promovida pelos religiosos do Hospício de N.ª Sr.ª do Carmo, levando a imagem do Senhor dos Passos, e “em todas partes públicas iam pregando, e encarecendo o temor, que deviam todos ter da Divina Justiça, e que aquele castigo fora por causa das culpas dos habitantes daquela Cidade”. Ao recolher, pregou Fr. Bartolomeu do Pilar, comissário da Ordem Terceira do Carmo e orador sacro de reconhecida “autoridade e ciência”. Por fim, a 9 do mês, na presença do prelado, do cabido, do Senado da Câmara e de grande multidão de gente, no púlpito da Sé, o jesuíta P.e José de Figueiredo, “varão de letras e virtudes”, tomando por tema o versículo do cap. 5 da epístola de S. Tiago “Plorate pro miseriis, quae advenient vobis” (“Chorai pelas desgraças que cairão sobre vós”), pronunciou um sermão de tamanha eficácia que, conforme se lê numa relação coeva, datada de 17 de abril, “muitos, que havia anos se não aproximavam do Sacramento da Eucaristia, depostas as culpas, confessados os erros principiaram a fazer nova vida”. De resto, celebrações pias, motivadas pela catástrofe considerada sinal punitivo da cólera divina, tiveram lugar por toda a Ilha, a fim de apiedar a Providência e esperar dela “remédio para as enfermidades da alma” (Id., Ibid., 701). Na onda da jesuitofobia acerada, a que a Madeira não se furtou, a expulsão da Companhia de Jesus desencadeada sob a égide do marquês de Pombal, a terminar com a sua expulsão em 1759, repercutiu-se assaz e negativamente sobretudo no ensino e na vida religiosa, em especial, na pregação e na missionação ultramarina. A este propósito, não passe sem menção o comportamento do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, eleito em 1756 e falecido em 1783, que passava por dever a mitra, em particular, ao P.e José Moreira, confessor jesuíta que fora de D. José, e aos Inacianos em geral, e ao duque de Aveiro a posição de que na Ilha gozava. Temendo parecer conivente na aprovação do atentado ao Monarca, mesmo antes da receção da carta régia a ordenar o banimento dos Jesuítas, proibiu aos padres que dirigiam o colégio da cidade o exercício dos ministérios sagrados. Deliberação que se apressou a reiterar num edital mandado afixar às portas das igrejas. E, embora reconhecesse junto dos Franciscanos do Convento da cidade que tais medidas eram contrárias à assistência religiosa do povo, pois até concordava serem os Inacianos madeirenses “muito diligentes e úteis”, persistiu em suspender-lhes a licença de confessarem e pregarem, considerando-os “autores de erros ímpios”, no que se mostrava de um grande servilismo ao marquês de Pombal na acusação feita e repetida pelos “mentores” das conjuras urdidas contra a Companhia de Jesus no burgo funchalense. Chegou o prelado a ultrapassar mesmo o natural decoro, ao assistir e aplaudir uma comédia “nojenta”, cujo tema era o suplício dos Távoras, com destaque para a idosa marquesa, o jesuíta P.e Malagrida e seus irmãos de religião (MARQUES, 2013, 367). A culminar o controverso consulado pombalino, as autoridades madeirenses engrossaram o movimento, encabeçado pela metrópole, de ação de graças à Providência, por o marquês de Pombal haver saído ileso de um suposto atentado contra a sua vida, por altura da inauguração do majestoso monumento do Rei D. José, na Pç. do Comércio, ocorrida a 5 de junho de 1775, trama assassina atribuída ao quase desconhecido forasteiro genovês José Baptista Pele, que, logo perseguido e preso, acabou barbaramente executado após sumário processo. Na igreja de S. João Evangelista do Funchal, a 20 de janeiro de 1776, na cerimónia religiosa gratulatória, a propósito celebrada, pregou Fr. Inácio José de Verona, carmelita descalço. Escassa é a informação disponível acerca deste religioso, por certo com estreitas ligações ao representante pombalino na Madeira que o escolheu para a celebração, talvez com reservada intenção, na antiga igreja do Colégio dos Jesuítas, os quais, em 1760, haviam sido proscritos da Madeira. O texto do sermão, no mesmo ano publicado, foi pelo autor oferecido ao Cap.-Gen. João António de Sá Pereira, sobrinho do todo-poderoso ministro e presidente da Real Junta da Fazenda da Madeira (1767-1777), considerado por sua ação reformadora na Ilha o “Pombal madeirense”. Pode, pois, ler-se no rosto do sermão: “Oração na ação de graças, que a Real Junta da Fazenda da Ilha da Madeira fez celebrar pela prodigiosa conservação da muito necessária vida do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Marquês de Pombal Sebastião de Carvalho e Melo na Igreja de S. João Evangelista da cidade do Funchal em 20 de janeiro, dirigida pelo seu presidente o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor João António de Sá Pereira” (Do Conselho de Sua Magestade Fidelissima, 1776). A contrastar com a censurável atitude face aos Jesuítas, D. Gaspar Brandão, que chegara ao Funchal a 5 de agosto de 1757, passa por ter sido um prelado zeloso na pastoreação da Diocese. Levou consigo da metrópole dois padres lazaristas, Alasia e Reis, que durante 10 anos o ajudaram na reforma da disciplina de conventos de frades e freiras e do clero diocesano, e na morigeração dos costumes através das missões evangélicas pregadas ao povo, assinaladas nas cruzes erguidas nos adros de algumas paróquias ilhenses. Do liberalismo ao regicídio O reinado de D. Maria I e o férreo Governo do intendente Pina Manique assistiram impotentes ao desencadeamento da atividade maçónica, de que D. José da Costa Torres, doutor em Cânones e professor da Universidade de Coimbra, eleito bispo do Funchal em 1784, sofreu rude embate, a que frontalmente respondia. Não se mostrava o clero alheio ao envolvimento das lojas maçónicas. No cabido funchalense, o próprio deão Francisco Lopes Rocha não escondia ligações comprometedoras com os pedreiros-livres, como a proteção concedida a um ex-seminarista, Francisco Álvares da Nóbrega, natural de Machico, poeta árcade na gíria conhecido por “Camões Pequeno” que se suicidou aos 34 anos, não sem dedicar um soneto satírico à saída do bispo da Ilha, aquando da sua nomeação, em 1796, para a Sé de Elvas, em que o trata por “flagelo tenaz da humana gente,/ Mais terríbil que fome, guerra e peste. […] Esse aborto da torpe hipocrisia” (BORGES, 1987, 305-306 e 310). À semelhança do que sucedia no continente, não ficavam indiferentes os púlpitos aos ataques feitos contra a religião católica, e os seus representantes acabaram por repetir o que pelos impressos circulava. Passadas as invasões francesas, de nefastas consequências, ao falar delas não ficava o clero pelas menções que se limitassem apenas às mortes e à destruição de bens, embora tudo isso fosse bem trágico e pavoroso: a ideologia maçónica era veneno satírico. Por sua vez, o miguelismo, baluarte de ideários integristas, porfiando luta sem tréguas à Constituição de 1820 e à Carta Constitucional, também travou na Madeira dura batalha, arrastando o clero e o púlpito. Tudo acabara por ser mais uma das sequelas do período de sede vacante da Diocese do Funchal, após a morte do bispo D. Luís Rodrigues Vilares (1796-1811), por recusa do cabido em aceitar para vigário-geral, nomeado em 1811, o bispo de Meliapor D. Fr. Joaquim Meneses de Ataíde, natural do Porto e religioso da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, que a Coroa sustentava. A situação manteve-se até 1820, altura em que D. Joaquim de Ataíde foi nomeado para Elvas, com o resultado à vista, como as pastorais que o prelado publicou, nos anos de 1811 e 1812, documentam. Em 1821, chegou à Madeira o novo bispo, D. Francisco José Rodrigues de Andrade, que teve de se haver com as perturbações e os alinhamentos vindos de eclesiásticos, como o Cón. Pedro Paulo de Abreu e Mota, fiéis a D. Miguel, proclamado em 1828 Rei absoluto. Outros, ao enfrentá-los em radical oposição, com o apoio do governador e futuro conde Bomfim, José Lúcio Travassos Valdez, criaram-lhe uma situação desconfortável que se arrastou até ao triunfo da fação liberal de D. Pedro IV, levando-o, desgostoso e cansado, a emigrar para Génova, em 1835, onde faleceu decorridos três anos de exílio. Pressionado pela delicada situação, naqueles agitadíssimos tempos, fez sair na Madeira ora pastorais verberando em severíssimos termos os eclesiásticos que se tinham manifestado por D. Miguel, ora outra de teor contrário. Entretanto, nos púlpitos, à imagem da metrópole, a controvérsia arrastava-se encarniçada. Se o bispo D. Lourenço de Távora alertava em 1615 para a fé infecionada dos estrangeiros desembarcados na Madeira, o capelão anglicano inglês John Ovington, que conhecia o meio religioso e social da Ilha e por lá passara em 1689, emitia um juízo excessivamente não lisonjeiro sobre os Jesuítas do Colégio do Funchal e os cónegos da Sé, de medíocre nível intelectual. A invasão inglesa do início do séc. XIX, a título de proteção e defesa, mais justificada e militarmente consistente ao voltarem os britânicos em 1807, vigorou até 1814, ocupando para quartel das guarnições o edifício do antigo Colégio jesuítico de S. João Evangelista, onde estava instalado o Seminário, transferido para o pequeno mosteiro novo, e o Convento da Encarnação das Clarissas, que os invasores desalojaram, indiferentes aos protestos levantados. O contingente não chegava a 1500 homens, sendo veemente a discordância do ilustrado vigário capitular D. Joaquim de Ataíde, em carta dirigida à Rainha, então no Rio de Janeiro, a denunciar e a lamentar a usurpação pelo comando inglês, escrevendo ser inaceitável que “um pequeno número de tropa ocupe os mesmos lugares em que se acomodavam muitos milhares de homens” (CARITA, 1987, 243). Acrescia, ainda, a falta que desta forma ficava a haver de “uma casa de educação para aqueles que se não destinam à vida eclesiástica”, carecendo a Ilha sobremaneira de instituições para a mocidade, razão por que os pais “ou mandam seus filhos a Londres, ou ficam sem instrução alguma, sendo aliás esta terra muito fértil em talentos” (Id., Ibid., 243). Contudo, o que fez crescer o repúdio de eclesiásticos e da população, bem notório em 1812, falando-se abertamente de “profanação”, foi a celebração do culto anglicano nas igrejas católicas da Ilha, com saliência para a igreja do Colégio e a pequena capela do Convento da Encarnação (Id., Ibid., 245-246). A resiliência continuava, porém, latente, quando chegou ao arquipélago, em 1839, o médico escocês Robert Reid Kalley (1809-1888), habilitado teólogo protestante, que se tornou o continuador de uma evangelização de resultados promissores. Eleito em 1842 conselheiro-presbítero da comunidade funchalense da Igreja Escocesa, existente desde 1822, fervia em zelo de atrair ao redil protestante os naturais madeirenses, na esteira do que em Portugal se verificava: Helena Boughton, em Lisboa; George Robinson, em Portalegre; Diogo Cassels, em Vila Nova de Gaia – secundados pelo labor dos colportores na difusão de exemplares da Bíblia que a Sociedade Bíblica de Londres espalhava sem custos pelo país inteiro. Chocado com o quadro de pobreza, precárias condições de higiene, analfabetismo e prática religiosa rude e rotineira, que na Madeira encontrou, o cirurgião Kalley aprende português e, autorizado a exercer medicina, desenvolve uma atividade social, em particular junto dos mais carentes, despida de intuitos lucrativos. Recebido o sacerdócio, complementa esta ação benemerente com o ministério de pastor. Ao tempo, a Diocese do Funchal encontrava-se sem bispo católico residente, D. Francisco José Rodrigues de Andrade (1821-1833), que, por miguelista, o regime liberal afastara, tendo sido governada durante 10 anos por um vigário capitular. De notar que, abolida a escravatura e estagnado o preço do vinho, o Novo Mundo abrira à emigração do povo da Madeira destinos económicos atraentes. No entanto, a ação filantrópica e o combate ao analfabetismo de Robert Kalley mereciam da edilidade público encómio. Crescia, porém, a animosidade do clero católico, que, desde 1844, conta com um novo prelado na pessoa de D. José Xavier de Cerveira e Sousa, mas apenas por um lustro, sendo as comunidades protestantes vítimas de perseguição. Alguns fiéis evangelistas chegam a sofrer lamentáveis violências e, à saída da missa dominical de 9 de outubro, na porta da Sé do Funchal, são queimados, como em auto de fé, exemplares da edição protestante da Bíblia, enquanto outros passam a ser escondidos nas cinzas das lareiras, fazendo-se também reuniões de culto em locais clandestinos. Durante duas semanas de graves turbulências, escreveu François Guichard, verificam-se brutalidades várias, destruições, julgamentos sumários, prisões e excomunhões, ante a colaboração forçada e a passividade das autoridades locais. As perseguições de exaltados católicos madeirenses concorreram para levar perto de um milhar de ilhéus a refugiar-se no Brasil – onde Kalley, que residiu no Rio de Janeiro desde 1855 até 1872, funda a Igreja Reformada Fluminense – e nos Estados Unidos, onde organizam, no Illinois e na ilha da Trindade, comunidades presbiterianas. A 30 de outubro de 1846, o bispo do Funchal publica uma pastoral em que pede às suas ovelhas que agradeçam ao Senhor tê-las libertado da heresia, sem que, no entanto, toda a sementeira houvesse sido arrancada. As plantações das Antilhas, as Baamas, a ilha Trindade, os Estados Unidos, o Brasil e outras regiões acolheram muitos prosélitos protestantes – calcula-se que perto de um milhar – mercê desta diáspora social e religiosa. Kalley e o pastor Hewilson, que fora para a Madeira a fim de organizar os núcleos já enraizados, tiveram de abandonar os seus portos e deixar a Ilha. O fim do Antigo Regime, com a difusão no espaço político-cultural do ideário da Revolução Francesa e o choque traumático das invasões napoleónicas, ambos de profundas interferências no conservadorismo católico, acabou por extremar, estimulado pelo ativismo das lojas maçónicas, as posições integristas e liberais, as polémicas doutrinárias e a resistência às mudanças constitucionais, a que as ilhas adjacentes não conseguiram furtar-se. Na Madeira, o clero foi arrastado pelo divisionismo corrente para confrontos, por vezes, virulentos em demasia. O púlpito, a literatura panfletária e o periodismo ideológico eram armas com que as forças se digladiavam. Note-se que durante o séc. XIX ocorreram, no país e na cristandade, eventos de grande relevância: a Patuleia, o fontismo, a questão romana no prontificado de Pio IX, o Concílio Vaticano I, a proclamação dos dogmas da Imaculada Conceição e da infabilidade do Papa, o ultimato e o regicídio. Assuntos que mereciam no púlpito comentários e juízos, desenvolvimentos de natureza teológica, moralizante e patriótica. A parenética apresenta, ainda, um elenco substancioso de pregadores, alguns simultaneamente oradores parlamentares e jornalistas empenhados, autores de sermões impressos e outra obra literária, que importará mencionar, ainda que apenas em referências nominais, e isso mesmo sujeito a omissões involuntárias. Abre o elenco o Cón. João Francisco Lopes da Rosa (1747-1820), doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra, político ligado à maçonaria, governador do bispado do Funchal na época conturbada de D. Joaquim de Ataíde, de quem foi opositor militante; sendo os restantes: P.e João Crisóstomo Spínola de Macedo (m. 1828), fundador da folha Pregador Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei (1823), o segundo periódico aparecido na Madeira, controversista truculento e semeador de discórdia, que acabou por partir para Gibraltar como deportado político; Cón. Gregório Nazianzeno Medina e Vasconcelos (1787-1858), irmão do poeta Francisco de Paula Medina e Vasconcelos, deputado, escritor, advogado, mas, sobretudo, orador e jornalista talentoso; P.e Jerónimo Álvares da Silva Pinheiro (1770-1861), natural da Calheta e vigário de Santana, de notória adesão à corrente liberal e de ativismo político entre os eclesiásticos, pregador de assinalável qualidade oratória, governador do bispado funchalense, que teve de refugiar-se no Brasil, donde regressou em 1837, com a guerra civil a lavrar no país; P.e João Manuel de Freitas Branco (1773-1831), que pronunciou na Sé da Madeira o sermão gratulatório no primeiro aniversário do governo constitucional, a 28 de janeiro de 1821, no ano seguinte publicado, e, compelido a exilar-se no Brasil, regressou, em 1828, à Ilha natal, havendo deixado um grande número de sermões manuscritos que se perderam; Fr. José Cupertino, nascido no séc. XVIII, religioso franciscano e orador sacro de grande nomeada, que pregou na igreja de S. Martinho, a 8 de julho de 1823, um sermão pela “feliz restauração” de D. João VI no “trono de seus augustos maiores”, como se lê no frontispício; P.e António Joaquim Gonçalves de Andrade (1795-1868), doutorado em Teologia, cónego e deão do cabido madeirense, orador fluente, indefetível na colaboração ao bispo D. Francisco José Rodrigues de Andrade e acérrimo opositor do pastor anglicano Roberto Kalley e da difusão do protestantismo, tendo sido capelão, confessor e secretário de D. Amélia, Imperatriz do Brasil, a residir no Funchal; Cón. Vicente Nery da Silva, nascido antes de findar a era setecentista e falecido em 1860, que era dotado de raras qualidades de inteligência, veia jornalística, invulgar talento de polemista e raras qualidades de orador sacro, eloquente e desassombrado na crítica social, sem contemplação de pessoas, mesmo ocupando lugares cimeiros religiosos e políticos, verbe émula de José Agostinho de Macedo, o que lhe valeu a prisão, ouvido e apreciado nos púlpitos da Madeira e da metrópole, sendo patente a simpatia demonstrada pelo ideário liberal e a acutilância dos panfletos político-eclesiásticos que deu ao prelo; P.e Patrício Moniz (1820-1898), nascido no Funchal mas educado desde tenra idade no Brasil, para onde fora com o pai, deputado da Madeira às Constituintes de 1821 – vítima do absolutismo miguelista que lhe acarretou o exílio em 1828 no Rio de Janeiro –, que é considerado vulto cimeiro da cultura madeirense, filósofo e jurista, com formatura em Paris, doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana, distinto jornalista, professor no Seminário funchalense nos anos 70, considerado orador de exceção na Ilha e no continente, de eloquência erudita e pendor filosófico-teológico, solicitado para orações de exéquias, como a de março de 1878, em sufrágio de Pio IX, celebrada na igreja conventual dos religiosos de S.ta Clara do Funchal, bem como para festividades solenes, embora com raros sermões escritos, porque confiado no fácil improviso, que veio a falecer em Portugal, na obscuridade e pobreza; P.e Francisco João de Freitas Ferraz (1823-1859), cidadão do Funchal e conhecido anotador da obra Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, que foi considerado, ao tempo, um dos mais brilhantes ornamentos dos púlpitos madeirenses e metropolitanos, acabando por falecer prematuramente em Lisboa, onde procurava tratamento para a tuberculose que contraíra, não deixando impresso sermão algum; P.e José Nunes (1824-1890), cura na paróquia da Sé, jornalista de cultura provada e cáustico nos discursos que pensava dar à imprensa, o que não se realizou porque a morte o arrebatou antes de materializar a intenção; P.e Fernando Augusto de Pontes (1836-1897), pároco e jornalista de fecunda produção nos periódicos locais, sacerdote ilustrado e de exemplar conduta no ministério da pregação; Cón. Alfredo César de Oliveira (1840-1908), pároco e vigário-geral, político e parlamentar no continente, jornalista brilhante e escritor, consta haver sido o seu génio oratório superior a todos os demais talentos, como testemunharam quantos o escutaram na Madeira e na metrópole, e os dois sermões publicados permitem vislumbrar; P.e Júlio César Pereira da Silva (1845-1912), que nasceu na Madeira e faleceu em Lisboa, capelão do exército, e mais tarde professor do Seminário e do Liceu de Beja, que proferiu no Funchal, em 1903, uma oração fúnebre nas exéquias do Papa Leão XIII, publicada no ano imediato, que se deve juntar a outros discursos sacros a circular, segundo aconteceu, em opúsculos; Cón. António Vicente Varela (1854-1903), natural da Ponta do Sol, formado em Teologia pela Universidade de Coimbra, jornalista combativo e crítico, não sem excessos, e por isso caindo no desagravo da hierarquia eclesiástica, sempre, porém, culto e doutrinário no ministério da pregação; Cón. António Aires Pacheco (n. 1854), nascido em Vilarouco, distrito de Viseu, que acompanhou à Madeira, em 1877, o bispo D. Manuel Agostinho Barreto e, após frequentar o Seminário do Funchal, foi ordenado em 1881, tendo-se dedicado ao jornalismo, como redator de A Verdade, deixando fama de grande vigor polémico, traduzido nos artigos publicados e no escrito O Sudário Negro no Banco dos Réus, desassombrada réplica ao autor de O Sudário, panfleto de Francisco Pinto Coelho (1851-1916) com virulento ataque a D. Agostinho Barreto, ativíssimo prelado madeirense, havendo pronunciado, em 1890, a oração fúnebre nas exéquias do Rei D. Luís, logo publicado; P.e Alfredo de Paula Sardinha (1861-1897), pároco, poeta talentoso e escritor, a quem as doenças apressaram a morte prematura, que foi brilhante orador e pregador de créditos firmados; Cón. António Homem de Gouveia (1869-1916), nascido na freguesia de Ponta de Pargo, deputado pela Madeira às Cortes legislativas de 1905 e 1907, orador sacro, que deixou publicada a oração fúnebre proferida na Sé do Funchal, a 27 de abril de 1922, nas exéquias solenes em sufrágio do Imperador austro-húngaro Carlos I, promovidas pela Câmara da cidade, onde o soberano se encontrava exilado, sendo ainda autor de três discursos proferidos no parlamento e editados: A Escravidão da Igreja em Portugal (1905), Necessidade do Descanso Dominical e A Situação da Madeira, ambos em 1907; P.e Luís Alves Martins (1873-1940), natural do continente, da freguesia de Cardigos, concelho de Mação, que foi como capelão militar para a Madeira em 1905, e pregou na Sé funchalense, em 1907, a oração fúnebre na morte de Hintze Ribeiro, político dos finais da monarquia, e, em 1908, o sermão de exéquias por alma de D. Carlos e do príncipe herdeiro Luís Filipe, publicado no opúsculo Brevi Vivens Tempore, ambos editados no Funchal; P.e José Pereira da Silva (1874-1912), nascido na cidade do Porto, que pertencia à Congregação dos Lazaristas, dado ao ministério da pregação de missões, apostolado de larga tradição na Madeira, onde chegou no mesmo ano da sua ordenação sacerdotal, 1898, e que na Sé Catedral, a 12 de novembro de 1903, pronunciou a oração fúnebre em memória de Leão XIII, logo publicada, sendo ainda professor e vice-reitor do Seminário, que teve de abandonar em 1911, para se recolher ao seu instituto religioso de Paris, onde veio a falecer. Dois grandes oradores sacros fulguram na Madeira na última metade de Oitocentos: os bispos D. Aires d’Ornellas de Vasconcelos (1872-1874) e D. Manuel Agostinho Barreto. O primeiro nasceu no Funchal a 18 de setembro de 1837, de família nobre a entroncar em Gonçalves Zarco. Concluídos os estudos preparatórios no liceu funchalense, a funcionar no antigo edifício do Seminário, rumou a Coimbra, onde já estivera o seu irmão mais velho, bacharel em Teologia, começando o curso em 1854 e doutorando-se em julho de 1860, tendo sido nomeado, no regresso à Madeira, cónego e professor do Seminário e, em 1868, vigário-geral. Esteve em Roma, no primeiro Concílio do Vaticano, merecendo a atenção de Pio IX, que, após a resignação do prelado do Funchal, D. Patrício Xavier de Moura (1859-1872), o nomeou para sucedê-lo, tendo recebido, em 1871, a sagração episcopal. No ano imediato, tomou posse da Diocese, mas só deteve o governo até 1874, ano em que foi eleito arcebispo de Goa, vindo a falecer em Lisboa, a 18 de novembro de 1880, vitimado por grave doença. Pastor zeloso, foi durante anos um pregador eloquente e evangélico, presente nos púlpitos da Ilha, antes e aquando de prelado madeirense. Ressuscitou as missões populares, caídas em desuso na Diocese, chamando padres de fora, a quem mandava pregá-las “onde não podia ir em pessoa”. Eram os sermões pronunciados textos bem preparados e escritos, tal “o respeito do orador pelo ato de ensinar no púlpito”, vindo a ser alguns deles postumamente editados (Obras de D. Ayres de Ornellas..., 1882, 60-61). Ao proferi-los, o estudo que fizera desaparecia, saindo-lhe as palavras espontâneas e ardentes, pois, segundo um contemporâneo, ungia-os a caridade que lhe transbordava do coração de bispo. O outro orador, D. Manuel Agostinho Barreto (1876-1911), que sucedeu a D. Aires d’Ornellas no governo do bispado, era muito culto e teólogo de formação, dotado de grande talento para o ministério da pregação, que aliás exerceu ao longo da vida, embora não deixasse sermões publicados. No ajuizamento de Fortunato de Almeida, “revelou-se igualmente escritor de grande mérito em suas pastorais”, bastante numerosas e de vária temática, sendo algumas “modelares pela substância doutrinária e pela contextura literária” (ALMEIDA, 1968, III, 541). A sua obra maior foi, porém, o Seminário diocesano, que remodelou e dotou de novas disciplinas, primando o ensino ministrado pela atualização científica. A suas expensas e com fundos arduamente conseguidos, ergueu o moderno Seminário da Encarnação, sem o ter visto concluído quando faleceu, em 1911, o ano primeiro do regime republicano. Durante o seu período de governo da Diocese, surgiram, em 1906, o diário católico O Jornal e, em 1908, a Quinzena Religiosa, órgão oficial da Diocese, impulsionados pelo então Cón. António Manuel Pereira Ribeiro, constituindo hoje fontes documentais de inegável valia para a história do catolicismo madeirense. Da implantação da República à contemporaneidade No elenco de pregadores da era presente que se inicia em 1910, ressaltam entre outros mais: P.e Carlos Accioly Ferraz de Noronha (1845-1924), nascido na freguesia de Santana e falecido no Funchal, pároco e professor do Seminário, poeta satírico e conceituado orador sacro; D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957), sucessor de D. Agostinho Rebelo na Diocese do Funchal, nascido na freguesia de Friande, concelho de Póvoa de Lanhoso, aluno do Colégio de S. Fiel, dos padres jesuítas, formado em Teologia pela Universidade de Coimbra em 1901, vice-reitor do Seminário de Bragança, cónego da Sé do Funchal, onde chegara em 1905, mais um dos sacerdotes vindos da metrópole durante o episcopado de D. Agostinho Rebelo, a quem sucedeu em 1914, tendo um longo governo assinalado pelo zelo na afirmação do jornalismo católico, com a proibição da leitura, em 1918, de O Vigilante, semanário republicano e anticlerical, e a publicação de duas pastorais sobre o periodismo reconhecido como “porta-voz da incredulidade e do vício”, estendendo ainda a sua atenção de pastor à pregação, que praticava na Sé, onde, já a 8 de dezembro de 1906, pronunciara o sermão da Imaculada Conceição, no ano imediato impresso (nesse mesmo dia, mas em 1955, primeiro centenário da proclamação daquele dogma mariano por Pio IX, durante o pontifical, a que presidiu na Catedral, o Rev. Francisco de Andrade, teólogo e cónego do cabido funchalense, proferiu uma eloquente parénese alusiva à festividade) (POMBO, 1956, 99-100); P.e Eduardo Pereira, nascido em 1887 e ordenado sacerdote em 1913, jornalista, poeta e escritor, autor da oração Delenda Est Carthago, tinha fama de pregador eloquente; P.e António da Silva Figueira, de Arco da Calheta, onde nasceu em 1887, pároco de várias freguesias da Madeira, poeta e jornalista, foi pregador com obra oratória impressa; P.e Alfredo Vieira de Freitas, nascido nos finais de Oitocentos, escritor e poeta de Mãos Suplicantes (1917), professor do Seminário e pregador, pronunciou, na igreja de Santa Maria Maior, o sermão comemorativo do voto da cidade; P.e Francisco de Abreu Macedo Reis, nascido em 1912, na freguesia de Madalena do Mar, exerceu o ministério do púlpito na Madeira, antes de emigrar para a África do Sul; P.e Duarte de Araújo, nascido no Funchal, em 1919, frequentou em Lisboa o Seminário dos Olivais e foi ordenado em 1948, estudioso das problemáticas sociais, escritor e orador sacro. A encerrar este rastreio reconhecidamente lacunar, centrado no período novecentista, cabe destacar o P.e Manuel Gomes Jardim, insigne orador sacro e vigoroso polemista, nascido a 8 de janeiro de 1881, em Porto Moniz, que no Seminário do Funchal cursou Humanidades e Teologia, recebendo em 1904 a ordem de presbítero. Licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, cónego do cabido madeirense desde 1921, foi docente do Seminário diocesano e jornalista católico de reputação firmada pelos temas abordados, sobretudo em matérias religiosas. A Igreja e o Protestantismo, editada em dois volumes em 1940 e 1944, constitui a sua obra de fôlego. Amostra da intensa atividade parenética exercida no arquipélago, deixou publicados: em 1912, o Sermão do Santíssimo Sacramento; em 1915, a Oração Fúnebre, proferida nas exéquias de Pio X; em 1932, A Aurora da Redenção, coletânea de 12 sermões marianos, pregados em várias igrejas e festas, de ática exposição, fluidez estilista e recorte apologético, em sua exaltação da Mãe de Jesus. E aqui fica o resultado da incursão feita à história da oratória sacra na Madeira, a partir de fontes bibliográficas escassas e dispersas, cobrindo o longo percurso de cinco séculos da Diocese do Funchal, no rastreio ao labor do púlpito no espaço insular da “pérola do Atlântico”.   João Francisco Marques (atualizado a 15.12.2017)

Religiões

livrarias

A existência de livrarias, com espaço físico ou virtual, e a facilidade no acesso ao livro, em termos de preço e disponibilidade no mercado, bem como a vulgarização do livro nas estantes das livrarias e bibliotecas pessoais é uma realidade tardia. Inicialmente, as bibliotecas (designadas de livrarias) eram institucionais. Só as famílias mais destacadas tinham lugar na sua casa para uma biblioteca, uma vez que a maioria da população não dispunha de condições para ter um espaço dedicado a essa função ou, tão-pouco, para comprar um livro. Note-se que em 7 de agosto de 1815, quando Napoleão Bonaparte escalou o Funchal a bordo do HMS Northumberland, a caminho de Santa Helena, o cônsul geral de Inglaterra, Henry Veitch, o visitou para lhe oferecer vinho, livros e fruta fresca. Também, mais tarde, Isabella de França, uma Inglesa casada com um morgado madeirense, que visitou o Funchal em 1853, refere a presença de livros em algumas casas, onde pareciam funcionar como elementos de decoração. Assim, numa visão geral das casas visitadas, refere: “Sobre as mesas encontram-se livros ricamente encadernados, porcelana francesa e outros adornos, entre os quais não faltam jarras de flores delicadas” (FRANÇA, 1970, 67). Sabemos que os livros faziam parte da bagagem dos viajantes, pois Isabella de França testemunha a presença destes no seu baú, entre roupa e outros objetos. Maria Clementina (1803-1867), freira do Convento de S.ta Clara e filha de Pedro Agostinho Teixeira de Vasconcellos e de sua mulher, Ana Augusta de Ornelas, tinha em seu poder uma coleção de livros. Fanny Anne Burney, no jornal que escreveu em 1838 e que só publicou em 1891, refere que a freira era detentora e leitora de obras de Racine, de Corine, de M.me de Stael, da tradução francesa de Abbot de Walter Scott, das Maximes de Chateaubriand, de Paulo e Virgínea, e de Génie du Christianisme. Até ao aparecimento da imprensa, a circulação do livro fazia-se através de cópias entregues a copistas especializados de instituições como conventos. Na Madeira, só com a publicação, em 1821, do jornal O Patriota Funchalense se registou a primeira tipografia, sendo a atividade exclusiva desta a edição de jornais. O primeiro livro que terá sido editado na Ilha foi Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, com as anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, em 1873, na Tipografia Funchalense. Por outro lado, não podemos esquecer o controlo da edição de livros que existiu em Portugal, primeiro pela Inquisição e depois por ordem política, que condicionou a circulação de livros. O livro era um produto raro e quase só estava disponível em bibliotecas, ou livrarias, de instituições. Conhecemos a importância das livrarias dos conventos, nomeadamente da livraria do Colégio dos Jesuítas, e da livraria da Escola Médico-Cirúrgica, no Funchal. Também podemos assinalar algumas bibliotecas privadas de instituições industriais, como a de Hinton, ou de técnicos especializados, como João Higino Ferraz, que tinham necessidade de obras especializadas de âmbito científico e que encomendavam, por interposta pessoa, livros editados em França e Inglaterra. Mas, na segunda metade do séc. XIX, a realidade madeirense começa a mudar, de forma que José Silvestre Ribeiro refere as livrarias do Paço Episcopal, dos conventos, do Seminário e da Câmara. Ademais, a tradição dos clubes privados e das associações conduziu à valorização da leitura com a disponibilização de livros. Assinale-se o Clube Inglês, onde se anuncia, com muita pompa, a disponibilidade de uma sala de leitura que vinha colmatar as necessidades de lazer dos súbditos britânicos de passagem. Note-se que os Ingleses insistiam nas carências culturais da cidade funchalense, apontando a falta de teatro, cafés e livrarias, como sucede com Emiline Stuart Wortley, em 1854. A venda de livros na Madeira parece ter começado através do comércio a retalho em lojas, mercearias e bazares, onde se vendia tudo. O comércio por miúdo de produtos em lojas especializadas é uma realidade do séc. XX. Mais tarde, vamos encontrar a venda de livros associada às tipografias em geral, às tipografias especializadas e à publicação de jornais, através de anúncios que publicitavam os locais de assinatura das publicações que apareciam em fascículos, a saber, algumas lojas de referência na cidade, que tinham representações das editoras de Lisboa. Em 1850, John Driver estranha a ausência de livrarias no Funchal, afirmando: “There is no literature – no bookseller's shop – on the whole Island; although a few books may be had in other shops, but very few [Não há literatura – não há nenhuma livraria – em toda a Ilha; embora se possa comprar um ou outro livro noutras lojas, mas muito poucos]” (DRIVER, 1850, 381-382). Dennis Embleton confirma esta ausência de livrarias e conclui: “The want of booksellers' shops is a sure sign of the backwardness of education among the people, and it is a great inconvenience to visitors [A ausência de livrarias é um sinal evidente do atraso educativo do povo, e um grande inconveniente para os visitantes]” (EMBLETON, 1862, 36). Em 1868, Gomes Leal esteve no Funchal e, numa das suas missivas, referiu uma biblioteca na Madeira “que o deixou atónito. Era muito cheia de livros de Jesuítas e, entre eles, um Dicionário Universal composto de 200 volumes. É a coisa mais curiosa que tenho visto” (NEPOMUCENO, 2008, 41). Ainda na mesma data, vemos António Nobre dizer que, na sua viagem para a Ilha, ia carregado de livros: “levo livros, muitos livros e o ‘Regresso’ para o completar: desta vez sempre irá” (NEPOMUCENO, 2008, 50). Em 1885, a situação persiste, afirmando J. Y. Johnson que: “A private library is a thing unheard of, and there is not a Portuguese bookseller's shop on the island. Some of the shopkeepers, it is true, keep books on their shelves, hut they are very few in number and chiefly works of religious devotion [Não há bibliotecas particulares, nem existe uma livraria portuguesa na Ilha. É verdade que algumas lojas vendem livros, mas são muito poucos e são essencialmente obras de devoção]” (JOHNSON, 1885, 55). Por tradição, se os leitores da Ilha não importassem os livros do continente e do estrangeiro, tinham de se sujeitar ao regime de assinaturas, que operava apenas com as publicações mais vulgarizadas. Em 1882, O Crime de Alberto Didot, por exemplo, poderia ser comprado mediante assinatura, que poderia ser feita no Funchal, nas lojas Nova Minerva, Camacho & Irs. e Camisaria Central. Já a assinatura da História de Portugal de Manuel Pinheiro Chagas poderia ser feita diretamente no jornal que publicava o respetivo anúncio. No entanto, em 1877, o Diário de Noticias refere que o Bazar Camacho e Irs. já vende livros e que a Casa Camacho e Carregal tem disponível o Almanach das Senhoras para o ano de 1878. As razões que explicam o facto de o livro ser um produto pouco comum na sociedade madeirense e de ser rara a sua venda em lojas são o elevado custo das publicações e o problema do analfabetismo, que chegou, em parte, ao séc. XXI. A paulatina vulgarização do ensino levou à necessidade de livros escolares e abriu caminho para um potencial de leitores. Assim, em 1889, a Gramática de Língua Portuguesa de João de Nóbrega Soares, que apresentava maior procura, vendia-se em diversos estabelecimentos no Funchal. Já o livro de J. C. Faria, O Archipelago da Madeira, tinha um depósito geral na casa Dilley no Funchal. A déc. de 80 do séc. XIX, marca, portanto, uma mudança de atitude em relação à venda dos livros. As publicações que eram vendidas, quase sempre através de anúncio de jornal, passam a dispor de livrarias e de vários estabelecimentos de depósito de livros. O Funchal passa a ter uma loja especializada para a sua venda. Surge, assim, em 1886, a Livraria e Tipografia Esperança, que perdurou como espaço exclusivo para a venda de livros. Em 1914, esta livraria com projeção nacional mudou-se para a R. da Alfândega e, em 1938, para a R. dos Ferreiros. Em 1973, instala-se definitivamente no número 119 da R. dos Ferreiros, com um stock de 12.000 livros diferentes. Em 1991, a continuidade da livraria foi assegurada com a criação da Fundação Livraria Esperança, Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) declarada como sendo de utilidade pública. Passados cinco anos, ampliou-se o espaço de exposição com a aquisição de um prédio que serve de anexo, com uma área de 1200 m2 e mais de 96.000 livros expostos. A partir do séc. XX, começam a surgir novas livrarias, o que quer dizer que o livro, como produto de venda, tem cada vez mais clientes. Assim, em 1906, temos a livraria Funchalense e, em 1907, a livraria Escolar de Polonia & C.ª. O Almanac Madeirense para 1909 apresenta publicidade ao Bureau de la Presse de J. M. da Rosa e Silva, um quiosque da época sito à Pç. da Constituição, onde se vendia: “livros Nacionais e estrangeiros aos preços das casas editoras – sempre as últimas novidades literárias!” (Almanac de Lembranças Madeirense para 1909, 1908). Em 1910, o Roteiro do Funchal de A. Trigo apresenta as seguintes papelarias e livrarias: Antonio d’Andrade, R. dos Ferreiros, 24 e 26; Bazar do Povo, R. do Bettencourt, 1 a 21; Coelho, Irs., Lg. da Sé, 4; livraria Escolar, R. Camara Pestana, 14; livraria Funchalense, R. do Bispo, 25 a 35; Loja Dilley, R. do Aljube, 13 e 15; Minerva Phenix, R. do Príncipe, 53; Nova Minerva, R. da Alfandega, 45. Já o almanaque ilustrado de 1913 refere em anúncio a livraria Popular de José Eduardo Fernandes na R. de João Tavira, que vende “grande variedade de quinquilharias, vidros, objetos para escritório, livros de estudo e objetos de culto religioso” (1913 – Almanach Ilustrado do Diário da Madeira, 1912). Mesmo assim, Charles Thomas-Stanford, no mesmo ano, fica com a imagem de uma terra que não é de amantes de livros, pela sua raridade: “Book-lovers will deplore the booklessness of the town – which does not boast a bookseller of any sort [Os amantes dos livros não deixarão de lamentar que se trate de uma cidade sem livros – uma cidade onde não existe uma única livraria]” (THOMAS-STANFORD, 1910, 201). No séc. XXI, o Funchal, para além destas livrarias, dispunha de outras com menor dimensão, sendo de destacar as livrarias Bertand, FNAC e Worten. Todavia, devemos salientar que o conceito de livraria corre o perigo de se perder com a assimilação por parte dos espaços de venda de produtos variados, como é o caso da livraria FNAC, que está incorporada numa loja de artigos eletrónicos e eletrodomésticos, e das livrarias dos supermercados, nomeadamente da marca Continente e Pingo Doce. O Funchal contava ainda com a Fundação Livraria Esperança, a Julber papelaria e livraria Lda, a Leya SA, e a livraria Papel e Caneta. Por tradição, as lojas especializadas em serviço de papelaria, como a livraria Figueira, a papelaria Condessa, a papelaria do Colégio e o Bazar do Povo, tinham serviço de venda de livros. A livraria Figueira viria a desaparecer. A papelaria Condessa e o Bazar do Povo cessariam o serviço de venda de livros. Apenas a papelaria do Colégio manteria uma diminuta secção de livros Por outro lado, as instituições oficiais dispõem de expositores e de serviço de vendas de publicações tanto num regime material como num virtual, pela Internet. Assim, a Direção Regional de Cultura apresenta, na R. dos Ferreiros, os livros publicados pela extinta DRAC e pelo Arquivo Regional da Madeira; já o Centro de Estudos de História do Atlântico tem, na R. das Mercês, um expositor e serviço de vendas. Também a Câmara Municipal do Funchal apresenta, no átrio do Teatro Municipal, o seu Serviço de Publicações. Com orientação definida em termos das publicações, deveremos referir a Paulinas Multimédia, que existe no Funchal. Esta livraria dedica-se a publicações de carácter religioso. Podemos referir ainda a livraria Inglesa, que funcionava em diminuto espaço do Pateo Photographia Vicentes e que tinha um serviço especializado de venda de publicações em inglês. Num âmbito especializado da banda desenhada, merece, por fim, referência a livraria Quinta Dimensão, criada em setembro de 2004, que se transformou num polo de divulgação de banda desenhada. Ainda no âmbito do mercado livreiro, não podemos esquecer a realização dos festivais literários e das feiras do livro, organizadas, desde 1975, pela Câmara Municipal do Funchal, que sempre foram um espaço de divulgação e de contacto do público com o livro.     Alberto Vieira (atualizado a 14.12.2017)  

História da Educação Literatura Sociedade e Comunicação Social Madeira Cultural

lemos, jorge de

Em 1556, logo após a promoção de D. Fr. Gaspar de Casal para a mitra de Leiria, D. João III procedeu à indigitação do novo prelado para a Diocese do Funchal, tendo, desta vez, a escolha recaído em D. Fr. Jorge de Lemos, Dominicano, licenciado em teologia, nascido em Lisboa e filho de D. Francisco Velho e de D. Brites de Lemos. A opção por esta figura insere-se num contexto em que se operaram algumas alterações nos critérios de provimento episcopal, que começaram a verificar-se na segunda metade do reinado do Piedoso, patentes, e.g., na preferência de que passaram a ser alvo os religiosos filiados em congregações regulares, particularmente os Dominicanos e os Jesuítas. Com a indigitação de frades militantes naquelas congregações, pretendia-se dotar as Dioceses, sobretudo as ultramarinas, de prelados que acedessem a deslocar-se para as partes mais ou menos remotas do império, a fim de promoverem uma ação evangelizadora e atenta à defesa dos interesses da monarquia nessas paragens. Falhada a tentativa de prover o Funchal com o também Dominicano Fr. Gaspar dos Reis, o Rei escolheu, então, D. Fr. Jorge de Lemos, figura em que se começavam a evidenciar algumas das qualidades que o concílio tridentino, na altura em curso, elegia como curiais para o desempenho do múnus episcopal, a saber, a disponibilidade para a residência e a vivência de uma espiritualidade intensa, a par de necessárias competências administrativas. Confirmado pelo Papa Paulo IV a 9 de março de 1556, o novo bispo tornou-se o primeiro prelado a assumir pessoalmente a condução dos destinos da Diocese. Desembarcado na Ilha em 1558, foi D. Fr. Jorge, naturalmente, bem recebido pelos seus fiéis e logo deu início a um conjunto de reformas de que entendia estar o bispado carecido. Após analisar a composição e as remunerações do cabido, decidiu o bispo proceder a algumas alterações, as quais vieram a resultar na criação de lugares para mais dois moços de coro e no aumento dos vencimentos dos cónegos e capelães. Amante da música, da qual era tão “ciente […] como se professasse”, tinha o bispo trazido de Lisboa um músico a quem encarregou de proceder à reforma do coro da Catedral, tendo desta intervenção resultado a criação do cargo de mestre de capela e do lugar de subchantre, o que, em conjunto com outras modificações que introduziu no regimento interno da Sé, muito contribuiu para que os ofícios religiosos, a que assiduamente assistia, ganhassem nova dignidade (NORONHA, 1993, 90). Outra das situações a que o bispo acudiu logo no próprio ano em que chegou à Ilha dizia respeito à necessidade de se proceder a ordenações, pois os intervalos, relativamente largos, que tinham mediado entre as anteriores visitas episcopais haviam deixado a Ilha carente de clérigos devidamente habilitados. Para suprir essa falta, D. Fr. Jorge de Lemos rapidamente procedeu a um conjunto de ordenações que ficaram registadas em dois livros, um para ordens de epístola e outro para ordens de missa, com data de 10 de dezembro de 1558 e assinaturas de António Costa e do próprio bispo; os livros pertencem ao espólio do cabido da Sé do Funchal. Consciente de que a prolongada ausência de prelado tinha permitido a instalação de um clima de pouca observância dos preceitos religiosos, D. Fr. Jorge de Lemos empreendeu uma campanha de correção dos abusos com recurso a um programa visitacional de que ficaram, porém, muito poucos registos. Da veemência desta intervenção, sobrou para o bispo a fama de ser rigoroso e severo nas punições, mas resultou, também, a promulgação de uma série de medidas que refletiam o empenho episcopal na correção dos desmandos e se traduziram numa produção legislativa que acentuava a necessidade de as justiças seculares auxiliarem as religiosas, tendo em vista o cabal cumprimento das determinações destas últimas. Assim, a 18 de fevereiro de 1588, D. Sebastião fazia publicar alvará onde se ordenava que o corregedor da capitania do Funchal, o provedor dos resíduos e o juiz de fora se disponibilizassem para acudir ao bispo sempre que as pessoas condenadas em visitação a penas até 2000 réis se recusassem a cumprir o castigo. Logo de seguida, a 12 de março, o monarca promulgava nova determinação, que constrangia o corregedor e outros oficiais de justiça na Madeira a prestarem ao prelado toda a ajuda e o auxílio requeridos. Apesar da clareza da mensagem, nem tudo terá corrido da melhor forma na articulação entre os dois braços da justiça, porque, em 1564, o Rei voltava a publicar um alvará em que deixava claro que incumbia aos oficiais judiciais seculares a punição de qualquer pessoa que afrontasse a justiça eclesiástica com más palavras, injúrias ou de qualquer outro modo. A produção de toda esta legislação demonstra bem a vontade de o Rei colocar as justiças mais diretamente dependentes da Coroa ao serviço da administração eclesiástica, à qual, em contrapartida, também era solicitado auxílio para intervir, e.g., quando se detetassem devedores à Fazenda Real nas visitações, e mostra igualmente bem que a monarquia tinha perfeita consciência da importância da Igreja, localmente representada pelos bispos, enquanto instrumento a utilizar no reforço da autoridade dos poderes do centro. D. Fr. Jorge de Lemos, por seu lado, também se esforçava por dar o devido andamento aos processos decorrentes das visitações, e é nesse sentido que devem ser entendidas as diligências que efetuou para comprar, a 5 de março de 1565, umas casas para servirem de aljube, ou seja, de prisão eclesiástica para encarcerar todos aqueles que não tivesse sido possível condicionar de outro modo. Outra área em que foi sensível, e deixou marcas, a intervenção de D. Fr. Jorge de Lemos foi a da reorganização eclesiástica do território urbano do Funchal. Até àquele momento, a cidade não tinha tido mais que uma freguesia, primeiro sedeada junto a Nossa Senhora do Calhau, depois mudada para ocidente da ribeira de João Gomes, quando da elevação do Funchal a cidade e da transferência dos principais serviços religiosos de Santa Maria do Calhau para a igreja grande, e futura Sé, em 1508. O crescimento populacional que entretanto se verificara não se compadecia mais com a estrutura vigente, pelo que o bispo decidiu voltar a autonomizar a paróquia de Santa Maria, a qual se viu transformada em colegiada e dotada de três beneficiados e um pároco, aos quais se veio juntar um cura em 1589. Por alvará de D. Sebastião, com data de 1 de agosto de 1566, foi igualmente criada a freguesia de S. Pedro, que mais tarde se veria também elevada à categoria de colegiada. Em 1561, D. Fr. Jorge de Lemos acedeu a ser provedor da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, mas em 1563 já estava a caminho do reino, pondo fim a um período de residência de apenas 5 anos e a um episcopado que durou, na totalidade, 13. Na corte, onde ia tratar de assuntos relativos à sua Diocese, conseguiu obter de D. Sebastião a carta régia que fundava o Seminário do Funchal. No referido documento, com data de 20 de setembro de 1566, o Rei encomendava a D. Fr. Jorge que “assim o faça fazer e ponha logo em efeito”, mas a celeridade manifestada pela vontade real acabou por ser gorada pela decisão do bispo de não regressar à Diocese, ficando assim o projeto do seminário adiado para um pouco mais tarde (SILVA, 1964, 2). Um dos fatores que, porventura, mais terão contribuído para a recusa do prelado foi o saque de corsários franceses que a Madeira sofreu nesse mesmo ano de 1566, e durante o qual, por um período de vários dias, o Funchal e as zonas vizinhas se viram violentamente atacados e pilhados. Este acontecimento, aliado aos dissabores que a sua intervenção corretiva lhe acarretara, à idade e ao seu precário estado de saúde, foram certamente motivos bastantes para D. Jorge de Lemos ter desistido de retornar à Ilha, ainda que não tenha abandonado as preocupações com ela, como se vê, e.g., pelo facto de a criação da freguesia de S. Pedro ocorrer já no período em que o prelado se encontrava no reino. Como resultado do ataque dos corsários, o capitão donatário da Madeira, João Gonçalves da Câmara, organizou rapidamente no reino uma pequena armada para ir em socorro dos madeirenses e, em conjunto com a tripulação, levou dois Jesuítas com o objetivo de prestar apoio religioso e moral à população. Tão bem se desincumbiram eles da tarefa, que os moradores do Funchal, agradados das prédicas e dos sermões que lhes tinham sido prodigalizados, logo começaram a fazer pressão no sentido de ser a cidade dotada de um colégio daquela ordem, de fundação ainda recente. O Rei, sensibilizado, anuiu às pretensões insulares e, por alvará de 20 de agosto de 1569, autorizou a fundação de um colégio da Companhia de Jesus no Funchal, tendo este sido o último ato digno de registo que ocorreu no período da vigência do episcopado de D. Fr. Jorge de Lemos. Com efeito, a 11 de novembro de 1569, o bispo alcançou, finalmente, a resignação das funções episcopais, que há muito pedia. Depois da renúncia, ficou D. Fr. Jorge de Lemos ocupado no cargo de esmoler-mor de D. Sebastião, o que, segundo Noronha, muito se adequava à personalidade do antigo prelado, cuja disposição para distribuir largas esmolas se tornara patente ainda enquanto bispo, como prova o facto de ter aceitado ser provedor da Misericórdia. Em 1573, faleceu, em Lisboa, o quarto prelado do Funchal, tendo sido sepultado no convento da ordem em que professara. Foi um bom representante da novo perfil episcopal preconizado por Trento, na medida em que não se furtou à residência e, durante o tempo em que, pessoalmente, assumiu a condução dos destinos da Diocese, se manteve atento à correção dos desvios morais dos seus diocesanos, visitando ou fazendo visitar o território, à gestão do território eclesiástico, e aos mais desfavorecidos, a quem distribuía esmola sempre que se lhe deparava ocasião. A sua devoção pessoal traduzia-se na frequência com que assistia aos ofícios divinos na Sé e nos esforços que envidou para que aquelas celebrações decorressem com a maior dignidade. Por tudo isto, seria, com certeza merecedor do elogio que saiu da pena do grande cronista da Ordem de S. Domingos, Fr. Luís de Sousa, que declarou ter o seu priorado sido abençoado pela presença de duas personalidades que muito o honravam: Fr. Bartolomeu dos Mártires, e “frei Jorge de Lemos, Bispo do Funchal, na ilha da Madeira”, acrescentando que, se outras coisas se não pudessem dizer de frei Jorge Vogado, prior da ordem, “senão esta última, assaz merecedor ficava com ela deste lugar” (NORONHA, 1993, 89).     Ana Cristina Machado Trindade (atualizado a 14.12.2017)

Religiões

seminário

Uma determinação do concílio de Trento apontava para a necessidade de criação de seminários como instrumento de formação de um clero mais preparado e capaz de contrariar a Reforma Protestante. Pouco depois desse decreto, no século XVI, e ainda que a sua concretização tardasse alguns anos, a Ilha da Madeira viu ser formalmente criado o seminário. Esta escola caracterizou-se, desde a sua fundação, por uma longa itinerância por diversos espaços da cidade e por um esforço continuado de renovação curricular que pudesse ir acompanhando os tempos. Palavras-chave: Concílio de Trento, seminário, currículo, edifício. A preocupação da Igreja com a formação do clero é muito anterior à existência de seminários, que só foram formalmente instituídos com o Concílio de Trento. Assim, nos períodos anteriores ao Concílio, os futuros eclesiásticos recebiam a sua educação em escolas conventuais ou paroquiais, ministrada por frades para isso deputados ou por párocos que acumulavam as funções de assistência espiritual da sua comunidade de fiéis com as da docência possível. Sendo a falta de uma instrução capaz uma das insuficiências mais sentidas no momento em que a dissidência protestante cindiu a cristandade, a ela se atribuiu grande responsabilidade na facilidade com que se disseminaram os ideais reformistas, sendo essa a razão que levou o Concílio tridentino a determinar a abertura de escolas consagradas à educação dos jovens que pretendiam seguir a carreira eclesiástica. De acordo com Pallavicino, historiador do Concílio, a instituição destas escolas foi mesmo a mais importante obra de Trento, “pois é sabido que em todas as repúblicas, os cidadãos não são mais do que o produto da educação recebida” (SILVA, 1964, 1). Neste sentido, a criação dos seminários representava a intenção de travar o progresso da Reforma Protestante, disponibilizando aos fiéis um corpo de sacerdotes doravante bem mais preparado. No caso do bispado do Funchal, a primeira tentativa de fundar um seminário foi prosseguida pelo bispo D. Fr. Jorge de Lemos (1556-1569), que foi também o primeiro que pessoalmente assumiu a condução dos destinos da Diocese criada em 1514. Nomeado ainda antes do fim do Concílio (1563), o prelado, que após cinco anos de governo presencial se retirou para o reino, instou junto do Rei, D. Sebastião, no sentido de se instaurar no bispado um seminário, isto apenas três anos volvidos sobre o decreto que instituía aquela escola. O Rei deliberou, em carta régia com data de 20 de setembro de 1566, a fundação do seminário, o qual, todavia, apenas seria realmente criado no decurso do episcopado de D. Jerónimo Barreto (1574-1585), que foi indigitado bispo do Funchal em 1573 e foi para a Ilha no ano seguinte. Ainda antes de abandonar o reino, D. Jerónimo Barreto voltou a abordar o Soberano para lhe solicitar cópia da carta que instituía o Seminário, dado ter-se perdido o primeiro exemplar do documento, ao que o Rei prontamente acedeu. Chegado à Ilha – e em data indeterminada, que Fernando A. Silva situa entre 1575 e 1585 e que Abel Silva propõe ter sido num momento mais próximo de 1575-1576, com o argumento de que o interesse manifestado pelo prelado não se compadeceria com grandes delongas –, o Seminário do Funchal é finalmente instituído. A urgência da instalação não permitia as necessárias demoras com a construção de um edifício de raiz para abrigar os seminaristas, até porque, na altura, nem o próprio bispo gozava, ainda, do privilégio de habitação construída para paço episcopal, o que só viria a acontecer no virar do século XVI, com D. Luís de Figueiredo Lemos (1586-1608). Assim, o Seminário ficou inicialmente alojado na morada do prelado, situada perto da que foi depois chamada ponte do Torreão, nas cercanias, portanto, do Colégio dos Jesuítas, que, por esse tempo, começava a lecionação de algumas das disciplinas que integravam o currículo dos seminaristas: Teologia, Moral, Latim e Retórica. A cargo do Seminário propriamente dito ficariam o ensino da Gramática e do canto, conforme se pode depreender do documento de fundação da escola, no qual mandava o Rei atribuir à instituição os 45.000 reis que até ao momento se pagavam aos mestres de gramática e de canto que havia na cidade. Em 1590, um relatório de visita ad sacra limina, da autoria de D. Luís Figueiredo de Lemos, dava conta do funcionamento da escola, da renda de que dispunha (850 ducados concedidos pelo Rei) e de um número indeterminado de seminaristas que frequentavam as aulas do colégio, onde eram “instruídos em letras e virtudes, para depois, com honestidade, se desempenharem do cuidado das almas” (SILVA, 1964, 5). Este mesmo prelado deliberou a construção do paço episcopal, que igualmente se situava nas imediações dos Jesuítas, ao qual anexou o Seminário, passando então os jovens alunos a residir numa rua que, a partir do paço, tomou o nome de R. do Bispo. A determinação do número de colegiais que poderiam frequentar o Seminário foi tarefa atribuída pelo Rei ao prelado, que o deveria fazer tendo em conta as rendas disponíveis; e foi assim que D. Jerónimo Barreto se decidiu por 10 estudantes, quantitativo que se manteve até 1789, quando passou a 12, tendo posteriormente sido alargado a 18. Cerca de 100 anos depois da sua instalação no paço episcopal, o Seminário viu-se transferido para umas casas inicialmente destinadas a um convento que nunca se chegou a concretizar. A razão da mudança prende-se com a vontade do bispo de então, D. José de Sousa de Castelo Branco (1698-1721), de alargar os aposentos episcopais, pelo que os seminaristas foram ocupar as instalações devolutas situadas na rua que, a partir daí, ganhou a designação “do Seminário”. Ali se mantiveram os jovens candidatos ao sacerdócio até que, em 1748, um sismo de magnitude considerável abalou a cidade, provocando danos em muitas habitações, nas quais se incluía o prédio do Seminário. Governava, então, a diocese D. Fr. João do Nascimento (1741-1753), que muito se empenhou na reconstrução do edifício, tal como já antes se comprometera com a reforma da instituição, para o que fizera publicar, a 12 de dezembro de 1746, uns estatutos que deveriam regular toda a vida do Seminário. Assim, logo no capítulo I, dispunha o bispo as condições de admissão de colegiais ou porcionistas (que se distinguiam dos primeiros por pagarem parte do seu sustento, enquanto alunos), indicando que deveriam ter no mínimo 12 anos, ser filhos de legítimo matrimónio, não ser suspeitos de raça moura, negra ou judaica ou de “outra nação infeta”, e saber ler e escrever. Acrescentava, o bispo que, apesar de o texto do Concílio dispor que não seria necessária mais ciência para além destes conhecimentos iniciais, lhe parecia conveniente virem já instruídos de alguns princípios de gramática e solfa, pois a ignorância destas bases dilatava excessivamente o tempo de permanência dos alunos na instituição. Nos mesmos estatutos, mas agora no capítulo V, preconizava-se o programa total de estudos que, de uma duração total de sete anos, dedicava os primeiros quatro ao Latim e à Solfa, e os últimos três à Moral e à Filosofia. Ao arruinar o edifício do Mosteiro Novo, o já referido terramoto de 1748 vai obrigar os alunos a abandonarem o prédio e a andarem itinerantes por um período de 12 anos, sendo possível que se tivessem abrigado nas instalações do antigo convento seráfico, nas margens da Ribeira de S. João. Na sequência do abalo, pretendeu o prelado mudar a localização da escola para mais perto da Sé, no local correspondente ao que foi depois o Lg. da Restauração, mas não logrou obter do Rei a necessária autorização, pelo que o estabelecimento se manteve onde estava, sujeito a um processo de deterioração que já tinha obrigado D. José de Sousa Castelo-Branco a agir. A intervenção do prelado não se revestiu, contudo, da profundidade suficiente, o que explica que o bispo seguinte, D. Fr. Manuel Coutinho (1725-1741), constatasse a emergência de obras que orçaram em 300.000 réis, os quais, segundo ele informava em relatório de visita ad sacra limina de 1735, se supririam em parte pelos rendimentos de alguns benefícios vagos, e em parte a expensas do próprio prelado. Apesar da boa vontade de D. João do Nascimento e dos novos estatutos da escola, o prelado seguinte, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1757-1785), chegou ao Funchal acompanhado por dois missionários lazaristas que, entre as tarefas de pregação e visitações, também vinham incumbidos de proceder às de reorganização do seminário. Contudo, o estado de degradação do edifício continuou a configurar-se como um impedimento que obstou à pretendida intervenção dos lazaristas, conforme afirma Luís Machado de Abreu. Na narrativa da sua estadia na Madeira, os dois missionários referem que trabalharam com os ordinandos, propondo-lhes exercícios espirituais “num hospício fora da cidade com capela dedicada a S. João Batista”, o que permite conjeturar que durante algum tempo o referido hospício pudesse ter alojado os seminaristas (SILVA, 1964, 11-12). A expulsão dos Jesuítas, em 1759, tornou devolutas as instalações do seu colégio, o que levou D. Gaspar Afonso da Costa Brandão a reivindicar aquele espaço para aí alojar o Seminário. Este desiderato, porém, só veio a materializar-se no episcopado seguinte, de D. José da Costa Torres (1786-1796), que obtém de D. Maria I a ansiada autorização, por provisão de 22 de setembro de 1787, onde também se faz eco das queixas do bispo em relação à falta de mestres para ensinar os seminaristas, função que era dos Jesuítas, e ficara a descoberto, por força da sua expulsão. Para suprir esta carência, adianta Fernando Augusto da Silva a possibilidade de os Franciscanos terem assegurado a lecionação, mas a falta de suporte documental inviabiliza a confirmação desta hipótese. Poderá, porém, supor-se que o facto de os seminaristas receberem formação no antigo convento seráfico de S. João da Ribeira possa ter deixado instalar a ideia de que as aulas seriam ministradas por Franciscanos, e não por Lazaristas, como efetivamente aconteceu. A disponibilidade de D. Maria I para ajudar a melhorar a situação do Seminário traduziu-se ainda no aumento de rendas para a instituição, às quais anexou os rendimentos de algumas capelas que, por estarem vagas, tinham passado a integrar o património do Fisco da Real Coroa e que, no seu conjunto, disponibilizaram mais 936.400 réis, que assim se vinham juntar aos anteriores 663.000 réis com que a Alfândega do Funchal já financiava a instituição. O facto de o edifício do Colégio já estar desabitado há cerca de 30 anos obrigava a que também nele houvesse que fazer obras, tarefa que D. José da Costa Torres abraçou, em paralelo com outra intervenção que visava a reorganização do plano de estudos. Essa reorganização encontra-se espelhada num edital, com data de novembro de 1787, que o bispo fez afixar na porta da Sé, onde se determinava que os candidatos à primeira ordem sacra teriam de mostrar suficientes conhecimentos de Latim, Retórica e Filosofia Racional e Moral, o que seria certificado por um exame prévio. A instrução em Ciências Eclesiásticas era também requisito para a prossecução de estudos, sendo, porém, adequada ao grau a que se apresentavam os candidatos. Para o acesso ao sacerdócio exigia-se ainda algum domínio de Direito Canónico, Direito Público Eclesiástico, Dogmática e Teologia Moral, assuntos sobre os quais deveriam ser instruídos “pelo tempo que nos parecer necessário” (SILVA, 1965, 15). O número de seminaristas estava agora fixado em 12, embora o prelado manifestasse vontade de aumentar esse quantitativo logo que a disponibilidade financeira o permitisse. Concluídas as obras de reparação do Colégio, a mudança do Seminário para o novo edifício operou-se a 31 de março de 1788. Mas o facto de a doação das capelas operada pela Rainha não ter sido um processo linear, uma vez que algumas delas já tinham sido atribuídas a pessoas que agora delas não queriam prescindir, levou a que o bispo tivesse de empreender novas diligências no sentido de vir efetivamente a desfrutar dos rendimentos prometidos, sem os quais não seria possível manter o ambicioso projeto de reforma do Seminário. Ultrapassada essa questão, poderia supor-se que a escola eclesiástica pudesse, finalmente, estar disponível para o crescimento que se desejava; mas algumas circunstâncias da política internacional encarregar-se-iam de trazer novos dissabores à instituição. Assim, em 1801, e já em tempo do novo antístite, D. Luís Rodrigues Vilares (1797-1810), a conjuntura política internacional, marcada pela ação de Napoleão Bonaparte, determinou que os Ingleses fossem para a Madeira, a fim de defender a Ilha, e os seus interesses em particular, da cobiça dos Franceses. O desembarque de um contingente de alguns milhares de homens trouxe consigo o problema das acomodações dessa tropa, e, depois de várias reclamações britânicas, entre as quais a de estarem mal instalados os seus homens, o comandante inglês forçou o então governador da Madeira, D. José Manuel da Câmara, a desocupar o edifício do Colégio para aí se aboletarem os soldados britânicos, que viriam a permanecer nesse local até abandonarem a Ilha, em 1802. De novo sem acomodações, o Seminário viu-se, uma vez mais, transferido para o paço episcopal; mas a saída dos Ingleses veio permitir ao prelado a reclamação da cedência do Colégio, agora vago, a fim de aí se reinstalar a escola. Esta pretensão episcopal não encontrou, contudo, eco no governador, que a ignorou, optando por entregar o Colégio a militares portugueses, que o transformaram em quartel. A atitude do governador veio agravar as já tensas relações entre ele e o prelado; a inflexibilidade demonstrada pelas duas partes naquilo que cada uma considerava ser seu direito tornou-se um fator determinante no exílio a que o governador sujeitou o bispo, obrigando-o a um desterro de alguns meses na freguesia de Santo António da Serra. O facto de o governador ter sido posteriormente sancionado pelo reino com a destituição do cargo não veio, contudo, trazer melhorias dignas de registo à situação do Seminário, que continuou abrigado no paço do bispo até 1810, altura em que novamente foi transferido para as antigas instalações no Mosteiro Novo, onde haveria de permanecer até à construção de edifício de raiz, em 1909. Neste período de aproximadamente 100 anos, o plano curricular da escola foi sendo objeto de sucessivas alterações, que procuravam pô-lo a par das transformações que o mundo à sua volta sofria. Assim, se em 1812 apenas se conseguiam ministrar as aulas de Teologia Moral, já no ano seguinte vinham-se juntar a esta disciplina as de Teologia Dogmática e Filosofia Racional, o que era obviamente escasso mas era o possível nos tempos conturbados que então se experimentavam. Em 1814, o vigário capitular, D. Joaquim de Meneses e Ataíde (1811-1819), pretendeu implementar um programa formativo bem mais ambicioso, do qual constavam cadeiras novas como Francês, Inglês, Geografia e Desenho, que surgiam a par das já habituais Teologia Dogmática e Moral, História Eclesiástica, Música, Cantochão e Latim, mas não se conseguiu determinar se este projeto chegou, de facto, a ser experimentado. As notícias do currículo do seminário que se reportam ao ano de 1822 dão conta de um curso onde apenas figuram aulas de Gramática Latina, Latinidade, Francês, Retórica, Filosofia e Teologia. As dificuldades políticas que então sofria a Madeira, que se ressentia de nova ocupação inglesa (entre 1807 e 1714), e a posterior implantação do liberalismo (em 1820) foram trazendo dificuldades acrescidas à vida do seminário. Apesar de uma lei de 1845 determinar que nas escolas eclesiásticas funcionasse “um curso de estudos teológicos e canónicos” que englobasse as matérias de “instrução prática do catecismo, de explicação do evangelho, da forma de administração dos sacramentos, da prática dos ritos e das cerimónias da Igreja, do canto e de todos os mais exercícios espirituais e eclesiásticos”, a verdade é que, dois anos depois, apenas se conseguia assegurar a lecionação de Teologia Moral, estando suspensa a Dogmática, que só veio a ser reintroduzida por ação do bispo D. Manuel Martins Manso (1850-1858), que conseguiu ainda restabelecer o ensino de Escritura Sagrada, em 1858. Esta formação deficitária procurava completar-se com alguns cursos esporádicos sobre assuntos teológicos e morais (SILVA, 1946, 264). Entretanto, a nível nacional, foi promulgada legislação que obrigava à organização de cursos teológicos trienais, compostos por, no mínimo, oito cadeiras. Na Madeira, a implementação desta determinação foi levada a cabo por D. Patrício Xavier de Moura (1859-1872), que a 1 de outubro de 1865 fez publicar um edital do qual constavam as novas regras a aplicar ao ensino religioso. O desenho curricular proposto compreendia a lecionação de História Eclesiástica e Sagrada, Filosofia do Direito e Teologia Dogmática no 1.º ano, a que se seguiam, no 2.º, Teologia Dogmática Especial, Direito Canónico e Teologia Moral. Para o 3.º ano estavam reservadas as disciplinas de Teologia Pastoral, Eloquência Sagrada, Hermenêutica e a prossecução de Teologia Moral, excedendo-se, assim, em uma disciplina, o mínimo preceituado (ACDF, cx. 32-A, doc. 10). A partir da criação do Liceu do Funchal, em 1837, a preparação dos alunos anterior ao ingresso no Seminário era assegurada por aquela instituição, situação que se manteve até 1877 – ano em que a ida para o Funchal do bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1877-1911) determinou, mais uma vez, uma profunda alteração na vivência educativa do Seminário. Com efeito, D. Manuel Agostinho Barreto, chegado à Ilha em fevereiro, dedicou-se de imediato ao problema da reforma da escola, onde interveio não só para a dotar de um currículo novo, mas também com o propósito de melhorar o clima interno de convivência dos alunos, segundo ele demasiado desacompanhados, por terem a liderar a instituição um reitor e um prefeito ocupados em diversas tarefas para além das de supervisão do Seminário. Dispondo, no momento, apenas das velhas e degradadas instalações do Mosteiro Novo, o prelado não se deixou amedrontar pelas circunstâncias; e, mesmo nesse edifício decrépito, deu início ao processo de transformação da escola, que passava por recriar os serviços religiosos e disciplinares, bem como pela introdução de um curso preparatório de ensino secundário, anterior à frequência dos três anos finais da formação. Com a transferência do ensino secundário para o interior do Seminário, o prelado pretendia evitar as perturbações que a saída diária para o Liceu provocava nos alunos, que a partir de então se poderiam concentrar de forma mais consistente no programa de estudos que lhes estava destinado. Ignorando o coro de críticas que lhe foi dirigido, quer pela sociedade em geral, quer mesmo por alguns elementos do clero que consideravam o plano de reforma demasiado radical e ambicioso, D. Manuel Agostinho Barreto conseguiu abrir as aulas em outubro do ano em que chegou. Para levar a bom termo este arrojado projeto de inovação, o bispo fez-se rodear de auxiliares preciosos, que o ajudaram a concretizar os seus objetivos. Foi um deles o P.e Ernesto Schmitz, membro da Congregação da Missão que, em 1878, fora para o Funchal para desempenhar a função de capelão do Hospício. Logo no ano seguinte, foi-lhe confiada a tarefa da direção espiritual do Seminário, que acumulava com a de capelão. A partir de 1881, contudo, passou a dedicar-se em exclusivo às atividades escolares, vindo depois a alcançar a posição de vice-reitor do Seminário. Foi sob a direção do P.e Schmitz que a reforma de D. Manuel Agostinho Barreto começou a concretizar-se, quer na vertente da alteração do comportamento dos seminaristas, doravante submetidos a este “disciplinador inflexível”, quer no tocante ao corpo curricular, que passou a integrar o estudo de matérias como a Zoologia, a Física, a Química e até a Sociologia (SILVA, 1946, 273). Foi, sobretudo, na área da Zoologia que o P.e Schmitz se notabilizou, investindo numa investigação que tornou a Madeira parte do mundo culto daquela época, nomeadamente através da produção de importantes coleções de exemplares de fauna terrestre e marinha do arquipélago, que mais tarde deram origem a um Museu de História Natural. Por pertencer a uma congregação religiosa, o P.e Schmitz estava obrigado a uma obediência que o forçou a abandonar a Madeira em 1899, a fim de ir dirigir um colégio na Bélgica. Regressado ao Funchal e ao Seminário em 1902, deixou definitivamente a Ilha em 1908, desta vez rumo a Jerusalém, onde veio a falecer em 1922. A transformação que o prelado pretendia fazer no Seminário contemplava a construção de raiz de um edifício para a instalação da escola que, até então, não desfrutara de tal privilégio. A ocasião veio a proporcionar-se em 1902, altura em que o bispo, por ter recebido vultuosa herança, se achou capaz de meter ombros à tarefa. Na busca de terreno apropriado para erguer o Seminário, o prelado deparou-se com as ruínas do antigo Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação, cujas instalações se tinham vindo a degradar consideravelmente depois da morte da última freira, ocorrida em 1890, e que acabou por ser cedido à Diocese pelo Governo do reino em decreto de 11 de julho de 1905. Logo no ano seguinte começaram as obras, que deitaram abaixo tudo o que restava do velho mosteiro, exceto o coro e a capela. Em 1909 estava pronta metade da construção, e D. Manuel Barreto entendeu haver condições para operar a transferência dos alunos, o que se processou em outubro do mesmo ano. Mas, quando esperava poder concluir o empreendimento, foi surpreendido pela Implantação da República, a 5 de outubro de 1910, e pela obrigatoriedade da extinção do Seminário, decretada pela lei da separação da Igreja e do Estado, datada de 20 de abril de 1911. Este conjunto de circunstâncias poderá ter contribuído para apressar a morte deste bispo (que se encontrava com mais de 70 anos), ocorrida apenas dois meses mais tarde. Iniciava-se então novo período no já acidentado percurso daquela escola, que nunca fora possível fixar num espaço. Os antigos seminaristas voltaram ao velho edifício do Mosteiro Novo, onde permaneceram até 1916; no ano letivo seguinte, instalaram-se no paço episcopal e dali passaram, em 1918, para uma quinta no Trapiche, nos arredores do Funchal, rumando em 1919, e mais uma vez, para o Mosteiro Novo. Em 1913, o abandonado edifício da Encarnação foi destinado ao funcionamento de uma escola exclusivamente feminina de Utilidades e Belas Artes, projeto que acabaria por se extinguir em 1919. Nesse mesmo ano, a Junta Geral solicitava ao Governo central licença para instalar no prédio diversas repartições suas, o que lhe foi concedido mediante o pagamento de uma renda. A Igreja madeirense, e designadamente o novo bispo, D. António Manuel Ribeiro (1914-1947), considerou injusta a apropriação do edifício da Encarnação por parte dos poderes civis e foi repetidamente tentando fazer regressar o prédio à sua tutela. Desta insistência, da promulgação de nova legislação que autorizava a existência dos seminários suprimidos e de um estudo que mostrava a ilegalidade cometida pelo Estado na apropriação do edifício da Encarnação acabou por resultar, em 1927, um decreto que previa a restituição do prédio à Igreja. Esta decisão desagradou à Junta Geral, que a ela se opôs, negando-se à devolução e interpondo variados recursos, com que conseguiu protelar a decisão final por mais seis anos. Resolvido, finalmente, o contencioso, em outubro de 1933 os seminaristas regressaram ao edifício, nele se mantendo até 1975. Entre 1933 e 1958, o Seminário da Encarnação era o único que existia na Madeira. Mas como, a partir daquele último ano, as normas de Roma passaram a exigir a presença de dois seminários, um maior e um menor, o bispo que então dirigia a Diocese, D. David de Sousa (1957-1965), diligenciou, com auxílios quer da Igreja quer da sociedade civil, a aquisição do antigo Hotel Bela Vista, situado na R. do Jasmineiro, depois transformado em seminário maior. Quando, em 1974, D. Francisco Santana (1974-1982) se tornou bispo do Funchal, decidiu transformar o edifício da Encarnação em centro pastoral diocesano, para o que o libertou da presença dos alunos a fim de se realizarem algumas obras. Os tempos conturbados que então se viviam, ainda muito próximos da Revolução de 25 de abril, a convicção de que o prédio estaria devoluto e o enorme acréscimo de alunos que então assoberbava a escola pública levaram a que, em outubro desse mesmo ano de 1974, o edifício fosse ocupado por alunos e professores. Perante a consumação daquele facto, a Diocese optou por cobrar uma renda e autorizar a instalação da Escola Básica de 2.º e 3.º Ciclos Bartolomeu Perestrelo, que ali se manteve até ser ela própria dotada de um edifício de raiz, o que veio a acontecer em 2005. Os seminaristas que estudavam no 2.º e 3.º ciclos do ensino básico passaram então a ter aulas numa escola apostólica criada para o efeito, antes de prosseguirem a sua carreira académica fazendo o secundário na R. do Jasmineiro. Com vista a resolver o problema dos jovens que não dispunham de recursos económicos, decidiu-se que eles pernoitariam no seminário e frequentariam o ensino público. Após a morte do prelado, a escola apostólica passou a funcionar no Seminário Menor. A partir dos anos 60 do séc. XX, as funções do Seminário Maior transitaram para Lisboa, passando os jovens a formar-se em variados seminários e na Universidade Católica. Isto deu-se depois de se ter tentado acomodar o Seminário Maior do Funchal nas instalações dos Dehonianos em Alfragide, experiência que não deu os resultados pretendidos, passando os seminaristas a ficar alojados nos seminários maiores de Braga, Porto e Lisboa. No Funchal, no início do séc. XXI, os candidatos à vida sacerdotal mantinham-se na R. do Jasmineiro, fazendo a sua formação escolar até ao 9.º ano em escolas públicas e transitando depois para a Associação Promotora do Ensino Livre, fundada em 1978, onde concluíam o ensino secundário.   Cristina Trindade (atualizado a 30.12.2017)

Religiões

remates de telhado

Uma das originalidades da arquitetura popular madeirense são os remates de telhado, colocados nos extremos dos beirais, que aparecem, por exemplo, com cabeças de menino e de senhora, pombas, bem como outros animais, folhas de acanto, naturalistas e estilizadas, numa diversidade francamente interessante e quase única no contexto nacional. Não temos referências sobre a sua origem, sendo sempre evasivas as respostas dadas pelos mais antigos proprietários, que se refugiam no costume e pouco mais. Nenhum deles conseguiu, pois, explicar por que se optou por este ou aquele modelo e não por outro, não tendo, em princípio, a mínima ideia de qualquer significado que possam ter estes elementos. Cabeça de menino. Foto: BF As construções urbanas e mais abastadas apresentam remates congéneres da arquitetura portuguesa e internacional divulgada nos finais do séc. XIX, com recurso a platibandas rematadas com urnas, algumas de faiança das fábricas do norte de Portugal, provavelmente de Vila Nova de Gaia. Já muito raras são as figuras alegóricas, igualmente em faiança, que proliferaram também a partir dos finais desse século como remates de fachada, sendo quase todas entretanto apeadas, tal como as decorações de algumas fachadas com azulejos arte nova, que vão igualmente rareando. Se alguns remates centrais de telhado em forma de agulha são semelhantes aos vigentes no continente, os figurativos que rematam os beirais na arquitetura popular madeirense afastam-se, no entanto, totalmente dos congéneres continentais, constituindo uma marca e uma presença profundamente originais que teima em sobreviver. A configuração destes remates de telhado que conhecemos na Madeira não é, em princípio, muito antiga, pois que a cobertura por telha com beiral não deve ser anterior aos meados do séc. XVIII. Na pouca iconografia que conhecemos, quase toda de caráter senhorial ou militar, as coberturas de telha são interiores às empenas, fazendo convergir as águas sempre para caleiras igualmente interiores e saindo as mesmas por gárgulas na divisão dos telhados, quase sempre múltiplos. Acresce que, até meados e finais do séc. XIX, a arquitetura popular e tradicional madeirense manteve-se com coberturas de colmo, sendo raras as coberturas de telha. Nas descrições dos muitos viajantes estrangeiros que passaram pela Madeira, em princípio mais sensíveis às especificidades locais que os naturais, não lhes é feita qualquer referência aos remates, pelo que, a existirem, não teriam, por certo, a exuberância que lhes conhecemos hoje. A atenta inglesa Isabella de França (1795-1880), no Journal da sua visita à Madeira, em 1853, dedica duas linhas à arquitetura popular, dizendo apenas que, nas habitações mais modestas, “as telhas estão seguras com pedras, de forma que o vento as não leve, e rematam-se no topo com uma panela de barro invertido” (FRANÇA, 1970, 65). A utilização destas marcas ou sinais, no entanto, tem de ser muito antiga e de se encontrar profundamente enraizada no sentir e viver populares para ter tido, nos inícios do séc. XX, a espantosa e invulgar popularidade com que chegou até nós. Sendo já pontual nos Açores – em alguns casos, por recente importação da Madeira, como na Caloura, na ilha de S. Miguel –, reduz-se, no território continental, a uma outra estilização mais erudita e cosmopolita do que a existente nas áreas periurbanas e rurais madeirenses. Aliás, também na área periurbana do Funchal e nas habitações mais abastadas, a opção vai para a aplicação de elementos mais estilizados e menos figurativos, como folhas de acanto e concheados. Este costume perdeu-se quase por completo nos Açores, sendo, no entanto, referido por vários investigadores, como Luís Bernardo Leite de Ataíde, Alfredo Bensaúde e Ernesto Ferreira, que associam essas antigas representações às festividades do Espírito Santo, embora admitindo o seu cariz arcaico e fálico. Efetivamente, até o termo “pomba” ou mesmo “pombinha” têm em ambos os arquipélagos fortes ressonâncias sexuais, sendo, tanto nos Açores como na Madeira, fortemente inibitórios. De resto, a pombinha do Espírito Santo, tão celebrada pelos foliões, representa sempre a proteção e é celebrada como símbolo da abundância e da fecundidade, não espantando o seu aparecimento emblemático nas habitações, como elemento zelador da família no campo da saúde, bem-estar e alegria do lar. Pombo. Foto: BF A grande diferença dos remates madeirenses é a sua associação às cabeças de menino, mas também a cabeças femininas, mais requintadas e com elementos específicos de abastança, como brincos e colares. Parece, assim, estar-se na presença, não só de símbolos de virilidade, fertilidade e abundância, como seriam as pombas evocativas do Espírito Santo, que a Igreja Católica reservou como instrumento divino de Encarnação da Virgem, como da felicidade imediata do casal, como seriam as cabeças de menino, alusivas aos filhos que geraram. A generalização do costume dos remates de telhado em forma de pomba levou, no entanto, à sua utilização em outras habitações, como na residência paroquial de S. Pedro do Funchal, um dos poucos exemplares verdadeiramente artesanais localizados em plena cidade e obtidos pela modelação de argamassa e telha recortada. A enorme divulgação dos remates de teto figurativos na Madeira parece estar associada ao surto de construção ocorrido entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, que surgiu na sequência da divulgação da telha Marselha e adveio do poder económico dos emigrantes de “torna-viagem” (Emigração), especialmente de Demerara, daí a designação “demeraristas” dada às suas habitações (Arquitetura). Deve datar dessa época a encomenda massiva às antigas olarias madeirenses dos remates e a sua execução em barro então cozido por moldes, embora também apareçam exemplares em fibrocimento. Existem cerca de meia dúzia de variantes das pombinhas, em repouso ou com asas levantadas, sendo inclusivamente utilizadas como remates e decoração das asnas superiores dos tetos, que parecem já apontar, por vezes, para um gosto orientalizante ou orientalista, dito “chinoiserie”. A utilização destes remates é, aliás, muito comum na arquitetura chinesa, tendo influenciado decidamente alguns exemplares madeirenses mais eruditos, como os dragões chineses que ainda subsistem numa habitação abastada do sítio do Trapiche, na freguesia de Santo António do Funchal, onde as telhas de divisão das águas se apresentam decoradas no dorso com elementos lanceolados, e que também existiram numa outra habitação da freguesia do Monte, junto do cemitério, que foi já demolida. A imaginação popular, entretanto, foi criando outras variantes, como papagaios, muito divulgados, alguns tipos de cabeças de cão, gatos em meia figura – que surgem no centro de Machico ligadas às datas de 1924 e 1932 – e galos, sendo estas duas últimas figuras algo raras. Relativamente às figuras de cão, deve registar-se alguma influência inglesa, uma das matrizes de referência da cultura madeirense dos finais do séc. XIX, pois que o modelo que se tipificou foi o do buldogue, e não o dos normais cães de guarda portugueses. As variantes das folhas de acanto também são várias, podendo aparecer colocadas na vertical ou inclinadas e simplificadas para pequenos elementos lanceolados ou pela aplicação de simples pontas obtidas pelo recorte de telhas. Divulgaram-se igualmente elementos inspirados em concheados, conhecidos como “patas de leão”, que, dada a extinção das olarias na RAM, passaram a ser comercializados por olarias continentais. Os novos modelos da arquitetura e da construção civil já não contemplam a aplicação destas antigas marcas ancestrais e o encerramento das olarias madeirenses, na última década do séc. XX, decretou o fim desta ancestral tradição.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

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pacheco, antónio aires

António Aires Pacheco Nasceu em São Bartolomeu de Vilarouco, concelho de São João da Pesqueira, distrito de Viseu, a 15 de setembro de 1854. Cursou Teologia no Seminário do Funchal e foi ordenado sacerdote, em agosto de 1880, pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), que o levou para a Madeira aquando da sua tomada de posse efetiva da Diocese, em 1877. Exerceu as funções de professor e vice-reitor do Seminário Diocesano e foi elevado à dignidade do canonicato em 1888. De 1882 a 1889, foi redator do semanário madeirense A Verdade que, a partir de 14 de abril de 1883, ostenta como subtítulo: “Semanário religioso, polémico e noticioso”. Este órgão da Associação Católica do Funchal não refere no cabeçalho o nome do redator, mas o Elucidário Madeirense afirma-o e o próprio semanário, numa pequena notícia no n.º 524, de 24 de agosto de 1885, à página 3, informando o regresso ao Funchal do P.e António Ayres Pacheco, vindo de Santana, refere-o nessa função; também o n.º 568, de 21 de julho de 1886, ao noticiar, na página 1, a realização de exéquias na Sé do Funchal por alma do Maj. Daniel Simões, professor do Liceu, informa que o pregador será o P.e Ayres Pacheco, “redator principal desta folha”. Exerceu ainda o cargo de diretor espiritual da Associação Católica do Funchal, que fora criada a 21 de junho de 1874, e que passou a publicar o referido semanário a partir de 10 de Fevereiro de 1875. O envolvimento do semanário em muitas polémicas – com a imprensa local, com o alferes César de Freitas e até com o Cón. Filipe José Nunes, em vários artigos não assinados e que portanto deveriam ser da autoria do redator – terá possivelmente ditado a partida do então já cónego da Sé do Funchal para Lisboa. Efetivamente, a 4 de junho de 1897, pediu a demissão das funções de cónego da Diocese do Funchal, passando a estar incardinado no Patriarcado de Lisboa, onde começou a exercer as mesmas funções em outubro de 1901. Foi ainda capelão e mestre-de-cerimónias da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, bem como desembargador da Relação e Cúria Patriarcal. A 19 de janeiro de 1912, é-lhe passada carta de pároco encomendado para a freguesia de Nossa Senhora das Mercês. Entre 1912 e 1923, foi, por diversas vezes, vigário-geral interino e provisor do Patriarcado. Distinguiu-se como orador sagrado, tendo pregado em diversas localidades, nomeadamente Funchal, Lisboa, Porto e Barcelos, merecendo especial destaque as orações fúnebres proferidas nas exéquias do Rei D. Luís, na Sé do Funchal, no dia 29 de novembro de 1889, e nas exéquias do Rei D. Carlos e do príncipe Luís Filipe, a 25 de abril de 1908, no Mosteiro dos Jerónimos. Foi também notável a sua ação como polemista católico, com o opúsculo O Sudário Negro no Banco dos Réus, em resposta ao folheto O Sudário Negro ou Apontamentos para a Biografia de D. Manuel Agostinho Barreto Bispo do Funchal, publicado pelo jornalista Frederico Pinto Coelho (1851-1916) em 1881, e ainda com um opúsculo em defesa de D. António Mendes Belo, no qual apresentou vários documentos relativos à expulsão do patriarca de Lisboa. Para além disso, colaborou nos jornais A Época e Novidades. Foi-lhe atribuída a comenda da Ordem de São Tiago. Faleceu em São João da Pesqueira, a 3 de novembro de 1946. Obras de António Aires Pacheco: O Sudário Negro no Banco dos Réus (1882); El-Rei D. Luís I. Oração Fúnebre (1890); No Templo dos Jerónimos. Oração Fúnebre Proclamada nas Exéquias de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luís Filipe, Mandada Celebrar pelo Governo no dia 25 de Abril de 1908 (1908); A Expulsão do Senhor Patriarca D. António I. Documentos para a História da Perseguição Religiosa em Portugal (1912).     Gabriel Pita (atualizado a 19.12.2017)

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