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nunes, cesário joão

Jornalista, poeta e escritor, nasceu na freguesia de São Gonçalo, no Ribeiro Seco, a 6 de maio de 1905, desconhecendo-se a data e o local do seu falecimento. Era filho de Manuel Francisco Nunes e de Virgínia Cândida Gomes Nunes. Casou-se com Maria Elisa Nunes, filha de José Fernandes de Gouveia e de Olívia da Natividade Fernandes de Gouveia, com quem teve uma filha, Irene Maria José Nunes da Costa. Era debuxador de bordados da Madeira de profissão, sendo os seus trabalhos considerados ainda hoje autênticas obras de arte. No entanto, assumiu-se como um homem multifacetado, dedicando-se igualmente à escrita jornalística e literária, quer em prosa, quer em poema. Assinava os seus textos literários não só com o seu nome, Cesário Nunes, mas com vários pseudónimos, como Ene, João Verdades e Falco. Sob o pseudónimo João Verdades, foi premiado nos jogos florais da Madeira organizados pelo Ateneu Comercial do Funchal em 1946, ganhando o 2.º lugar pelo conto “A Aguardente” e uma menção honrosa pelo conto infantil “O Aparo de Ouro”. No âmbito da sua atividade jornalística, foi correspondente do Comércio do Porto, periódico no qual desempenhou também a função de redator; na Madeira, foi delegado regional do jornal A Cidade, de Lisboa, e colaborou nas publicações periódicas Diário de Notícias, Eco do Funchal, Madeira Nova, Voz da Madeira e Diário da Madeira, entre outras. Nesta última, desempenhou a função de redator-principal a partir de maio de 1961 e manteve, entre outras, as secções “Gis na Parede” – com início a 27 de maio de 1972 e com grande sucesso junto do público, graças a um humor e a uma ironia refinados –, tal como “Ventos Ilhéus” e “Ardósia do Mundo”, ambas iniciadas a 19 de fevereiro de 1966. Enquanto jornalista, esteve envolvido em vários casos importantes da época, nomeadamente na chamada “questão Hinton”, ligada ao monopólio do fabrico de açúcar e álcool, que deu origem a um dos principais debates que animou a política e a opinião pública antes e durante a Primeira República. Na sua obra Política Sacarina (1940), um estudo sobre a economia insular, Cesário Nunes documentou referida situação, asseverando: “Em Portugal nenhuma questão económica atingiu tão alta preponderância e trouxe então grandes embaraços legislativos às entidades governativas como o problema sacarino da Madeira” (VIEIRA, 2004, 173). O facto de os textos que escreveu neste contexto serem citados em vários processos mostra bem a importância da sua opinião. Esteve também envolvido nos principais casos políticos do seu tempo, nomeadamente na Revolta da Madeira, sendo, nessa medida, seu um dos depoimentos que integram o livro A Revolta da Madeira – 1931 (1994). Em 1975, Cesário Nunes foi detido na sequência de uma carta que escreveu para o Diário da Madeira. No Jornal da Madeira do dia 16 de maio de 1975, pode ler-se um comunicado do quartel-general do Comando Territorial Independente da Madeira, com data de 15 de maio de 1975, que dá conta de que, a 10 de maio de 1975, haviam sido publicados no Diário da Madeira três artigos, bem como uma carta inserta na secção “Correio da Madeira”, que denotavam tendências contrárias à unidade nacional, motivo pelo qual haviam sido detidos os seus autores: Cesário Nunes, autor da carta, António de Castro Jorge, M. Macedo de Faria e Manuel Rodrigues. Para além da já referida obra Política Sacarina, estudo dedicado a António de Oliveira Salazar que consiste no primeiro número dos Cadernos Madeirenses, César Nunes é também autor do opúsculo História das Tábuas da Calheta. Um Novo Machim, publicado no Catálogo Coletivo de Bibliotecas da Madeira. Consta que terá destruído inéditos seus, num momento de revolta para com as injustiças e ingratidões de que foi alvo. Nestes, incluir-se-ia um livro de contos com o título Galeria, que teria prefácio do escritor Ferreira de Castro. Desconhece-se se uma obra em dois volumes intitulada Encruzilhada, que tinha em preparação, chegou efetivamente a ser publicada. Na obra Musa Insular, de Luís Marino, constam dois poemas que permitem aferir a sua qualidade poética. São eles “Conselhos”, poema de estrofe única dedicado à sua filha, e o soneto – modelo poético praticado abundantemente entre os poetas madeirenses – “Lágrimas”. Obras de Cesário João Nunes: “Conselhos”; “Lágrimas”; Política Sacarina (1940); História das Tábuas da Calheta. Um Novo Machim (1944). António José Borges (atualizado a 03.03.2018)   artigos relacionados: jorge, antónio vitorino castro república periódicos literários (sécs. XIX e XX) poetas  

Literatura

companhia portuguesa rádio marconi

A Companhia Portuguesa Rádio Marconi (CPRM), popularmente conhecida como Marconi, assumiu um papel importante na sociedade madeirense a partir dos finais do primeiro quartel do séc. XX, com realce para o seu protagonismo no campo das telecomunicações. De facto, a intervenção da Marconi veio transformar os hábitos quotidianos dos madeirenses. Além disso, os meios que a empresa colocou ao dispor vieram banir as barreiras que definiam o casulo do isolamento do arquipélago. Os anos 20 foram de autêntica euforia em relação às ondas elétricas. O período de 1920 a 1926 foi de perfeita loucura nos Estados Unidos, o que levou o Governo a estabelecer, em 1926, uma legislação especial para disciplinar o espetro radioelétrico. Esta vaga chegou à Madeira no verão de 1927, altura em que surgiram os primeiros anúncios para a venda de material de telefonia da Marconi e Sterling. As primeiras receções de rádio tiveram lugar no ano seguinte e, em 1929, davam-se os primeiros passos de uma emissão, com a onda de 47 m. Para isso, deverá ter contribuído a presença de Alberto Carlos de Oliveira, funcionário da empresa do cabo submarino. Ele havia iniciado, em 1914, em Cabo Verde, as primeiras comunicações com os navios do alto mar. Em 1920, foi transferido para a delegação da empresa no Funchal e aqui manteve as experiências, tendo ensaiado, em 1925, a transmissão com um emissor de lâmpadas em ondas curtas. Foi assim que se gerou na Madeira uma verdadeira e duradoura afición pelo “senfilismo”. Uma das fases mais decisivas da história da Marconi na Madeira aconteceu em 1986, com a elevação da delegação local ao estatuto de direção regional. Até 1982, a empresa era representada por um gerente de estação, passando, desde então, a existir o cargo de delegado regional, para o qual foi empossado Graciano Góis, a 15 de maio. A partir de 15 de março de 1991, a Marconi passou a dispor de novas instalações para a sede da sua delegação regional na Madeira. Um espaço amplo, até então abandonado, foi transformado e adaptado para a prestação de um novo serviço, que a imortalizará nos anais da história da Ilha. No ano de 1995, a Portugal Telecom adquiriu o capital da CPRM na íntegra, concluindo, em 2002, o processo de fusão. A Companhia Rádio Marconi foi constituída em 20 de junho de 1897, mas só em 1922 a empresa chegou a Portugal, onde se tornou pioneira na prestação do serviço de telecomunicações: pela lei n.º 1353, de 22 de agosto de 1922, o Governo foi autorizado a contratar com a Marconi Wireless Telegraph Company Ltd. o estabelecimento de uma rede radiotelegráfica. Todavia, nesta lei estabelecia-se como cláusula contratual a obrigatoriedade de a empresa constituir uma congénere nacional até ao fim do ano. A constituição teve lugar a 14 de setembro e, a 8 de novembro, foi assinado o acordo de concessão do serviço público de radiocomunicações da CPRM, ficando ela com o direito de exploração dos serviços entre o continente, a Madeira, os Açores, as províncias ultramarinas e o estrangeiro, por um período de 40 anos. Novos contratos foram assinados a 23 de abril de 1930, 20 de novembro de 1956 e 23 de abril de 1966. No último, foi ampliada a concessão ao serviço de cabo submarino e o prazo foi prorrogado por mais 25 anos. Durante o período da primeira concessão, a CPRM empenhou-se no estabelecimento de um serviço nacional e ultramarino: a 15 de dezembro de 1926, a inauguração das instalações em Lisboa coincidiu com a abertura dos circuitos radiotelegráficos entre o continente e as novas estações telegráficas do Funchal e de Ponta Delgada. Nos anos imediatos, para além da prestação de novo serviço (o radiotelefone), abriram-se novos circuitos nas possessões ultramarinas: em Cabo Verde, em Angola e em Moçambique (1927), e, depois, em Macau (1939), em Goa (1938), em São Tomé (1949), em Timor (1950) e na Guiné-Bissau (1959). Com estas iniciativas, a Marconi dava corpo à unidade do espaço metropolitano e colonial. A concretização, em 1926, de uma estação de telefonia sem fios (TSF) no Caniçal, trouxe a este rincão o nome de Marconi, através dos inventos e de uma delegação da empresa, criada em setembro de 1922 para prover o território nacional de uma rede de TSF. Esta presença foi evidente a partir de 15 de dezembro de 1926, data memorável para os anais da firma, e que marca o início de atividade em Portugal e também a afirmação da TSF em detrimento do cabo submarino, que entra na curva descendente. Desde então, a concorrência entre os dois meios de comunicação dominará o panorama regional, até que a companhia do cabo submarino encerre, em 1970, os seus serviços na Ilha, ficando a CPRM com o exclusivo das comunicações por TSF e por cabo submarino. A viragem não foi pacífica, manifestando-se através de uma concorrência entre os meios de transmissão de telegramas por TSF e por cabo submarino. Uma das primeiras consequências foi a redução das taxas cobradas por palavra na emissão de telegramas. Em 1942, a Via Portucale confirma a supremacia da TSF. A derrota do cabo submarino na guerra de comunicação era evidente: o cabo estava velho e sujeito a constantes e custosas reparações e as despesas de manutenção eram elevadas, não podendo o cabo, deste modo, competir com o seu concorrente, a TSF. Os reflexos das descobertas de Marconi chegaram a Portugal por intermédio da companhia Marconi Wireless Telegraph Co. Ldt., a quem o Governo português concedeu, a 22 de agosto de 1922, a exploração, por um período de 40 anos, da rede de radiotelegrafia nacional. A 14 de setembro do mesmo ano, foi constituída a empresa em Portugal e, a 15 de dezembro de 1926, data já mencionada, eram inaugurados os primeiros serviços de TSF de ligação do continente com a Madeira, os Açores e a Inglaterra. Entretanto, em 1966, foi feita nova concessão por 25 anos, sendo a prestação de serviços alargada ao cabo submarino, de que resultou o aparecimento de novo cabo, no Funchal, em 1970. No entanto, as transmissões da telegrafia sem fios na Madeira não se iniciaram só em 1926 com a estação da Marconi do Caniçal, pois no período da Primeira Guerra Mundial os Ingleses haviam já criado um serviço na Quinta Santana (espaço do Hospital Dr. João Almada), que encerrou as suas atividades a 2 de abril de 1919. O material ficou na Ilha, sendo usado na montagem de uma nova estação no 1.º andar de um edifício da R. de João Gago, onde estava instalada a Estação Telegráfico-Postal do Funchal. As obras da primeira estação ficaram concluídas a 31 de maio de 1922, iniciando-se as emissões no dia seguinte. As primeiras comunicações foram com Las Palmas e, depois, com o vapor inglês Kenil Worth Castle. Esta estação fora criada por despacho publicado no Diário do Governo, a 26 de julho. Todavia, a pretensão dos madeirenses era a de uma estação telegráfica mais adequada, integrada na rede estabelecida para todo o país, aprovada na Câmara dos Deputados a 21 de agosto de 1922. A 20 de agosto, o Diário de Notícias reclamava a montagem de uma estação telegráfica no Funchal, para o necessário apoio à navegação, uma vez que a existente cobria um raio de ação de apenas 400 milhas. Em 1926, a estação do Funchal estava situada no Pico Rádio, mas, com a entrada em funcionamento, a 4 de novembro, da estação do Caniçal, o serviço marítimo passou a ser assegurado por esta. O desenvolvimento dos meios de comunicação por meio de ondas eletromagnéticas iniciara-se em 1924, tendo-se alcançado alguns progressos nos anos de 1935-1938, que levaram ao início das emissões regulares de televisão em Londres, a partir de 25 de agosto de 1938. Note-se que algumas das experiências que conduziram à afirmação da televisão tiveram lugar na Madeira em 1936, por iniciativa de W. L. Wrigth. Todavia, a televisão só chegou aos lares madeirenses bastante mais tarde, se excetuarmos a receção da das Canárias. O historial da CPRM em Portugal estende-se por mais de meio século, sendo rico em realizações que fizeram deste rincão ocidental um espaço aberto e em contacto permanente com o mundo. A posição charneira de Portugal continental e das ilhas do arquipélago da Madeira e dos Açores fez com que este eixo se afirmasse como importante no domínio das telecomunicações. A segunda fase de concessão, que se iniciou em 1956, distingue-se pelo recurso a novos e mais adequados meios de comunicação. Na déc. de 60, deu-se a reafirmação do cabo submarino, com a inauguração da estação de Sesimbra, a 11 de agosto de 1969. Este serviço (Sat-1) divergia para uma ligação de Londres a Portugal e à África do Sul, num comprimento total de 10.787 km, com capacidade para 360 circuitos. Estabeleceram-se três amarrações ao longo do percurso (Tenerife, Sal e Ascensão). Seguiram-se outros, que estabeleceram a ligação com a Madeira (1971), a França (1979), Portugal/Senegal/Brasil (1982), Marro­cos (1982) e a África do Sul (1992). Em 1964, foi criada, nos Estados Unidos, a Intelsat (Organização Internacional para a Exploração de Telecomunicações por Satélite), mas Portugal só aderiu à organização em 1971, de modo que o primeiro serviço só foi instalado em 1974. Na estação terrena instalada em Sintra, estabeleceram-se os primeiros contactos, com Angola e Moçambique, e só depois com os Açores (1917) e a Madeira (1982). Em Sintra, foram instaladas estações para o serviço de satélites disponíveis: Intelsat, Eutelsat, Inmarsat. Na Madeira, até à inauguração do serviço radiotelegráfico da Marconi, a 15 de dezembro de 1926, como anteriormente referido, o serviço de comunicação entre a Ilha e o exterior fazia-se por cabo submarino ou por uma incipiente estação de TSF, montada em junho de 1922 na Estação Rádio Telegráfica do Funchal, situada na R. de João Gago. Todavia, um mês depois, chegava ao Funchal o equipamento necessário para a montagem da nova estação radiotelegráfica da Madeira, que ficou instalada no Caniçal. Os trabalhos continuaram em ritmo acelerado e, a 10 de julho de 1926, o superintendente da estação de Lisboa, João Maria Carneiro, fez a primeira inspeção ao posto do Caniçal, onde se davam os últimos retoques na instalação das antenas e dos equipamentos. Finalmente, a 4 de novembro, os trabalhos estavam concluídos, podendo a estação receber as primeiras mensagens e estabelecer contactos com o exterior. Durante o dia, 10 telegrafistas mantiveram contactos com os inúmeros vapores que circulavam nas águas do oceano, próximas da Madeira. A abertura do serviço da Marconi na Madeira surgiu num momento de grandes dificuldades económicas, agravadas com a crise do comércio do bordado e do encerramento de algumas casas bancárias. Os prenúncios da crise que assolou o Estado americano em 1929 eram já evidentes neste ano, e conduziram ao processo conhecido como Revolta da Madeira. O serviço da estação de TSF da Marconi era feito com extrema dificuldade, devido às difíceis condições de acesso ao local onde estavam instaladas as antenas e à inexistência de pessoal habilitado. O acesso às referidas instalações era muito mais fácil por via marítima do que pelos caminhos íngremes que circundavam as serras entre Machico e o Caniçal. Deste modo, a empresa tinha ao seu dispor, na vila de Machico, uma embarcação a remos que transportava os técnicos e os operadores. Eles, de um modo geral, viviam no Funchal e deslocavam-se para aí, no início, de barco e, depois, nos transportes públicos disponíveis. A estação encontrava-se isolada e, por isso mesmo, haviam-se instalado aí os meios para que os funcionários da empresa se pudessem manter entre uma semana a 15 dias. Para além das instalações de radiotelegrafia, existiam quartos de dormir, cozinha e refeitório. A alimentação dos funcionários baseava-se em peixe seco e carne salgada, que adquiriam na vila vizinha do Caniçal, e em produtos de produção própria no local: aí plantavam leguminosas e tratavam de coelhos e de galináceos. O testemunho de alguns funcionários traça de forma emotiva os primeiros anos de vida da Marconi na Madeira. Numa prolongada conversa que tivemos oportunidade de presenciar em Lisboa, ficamos a saber das dificuldades e da monotonia do dia a dia na estação do Caniçal, das dificuldades para aí chegar e da vida boémia dos saraus musicais dos casinos e dos salões madeirenses da época, no período de descanso. Foi com esta verdadeira aventura, que exigiu um redobrado esforço, que a Madeira perdeu o isolamento, através dos serviços de TSF da Marconi. As antenas e a estação estavam colocadas num extremo da Ilha, num local com as melhores condições de receção e emissão para os meios técnicos da época, mas o principal destinatário estava no Funchal. Deste modo, entre as duas localidades, existiam fios telegráficos de comunicação que percorriam mais de 50 km. O centro estava instalado na estação telegráfica postal da Trav. do Cabido. Todavia, a partir de 1927, foi negociado com os CTT a instalação de um posto da Marconi nesta estação. Aí foi instalado, em setembro de 1927, um aparelho de comunicação permanente com o Caniçal. Em face disto, melhoraram os serviços de atendimento ao público, que passaram a ser feitos ininterruptamente, só fechando aos sábados, domingos e feriados, mas, em 4 de fevereiro de 1931, passarão a ficar abertos todos os dias. Durante os 42 anos de existência, este serviço de radiotelegrafia fixa da Marconi foi alvo de múltiplas transformações, sendo as mais significativas operadas em 1947, com a oferta do serviço radiotelefónico, a partir da estação do Garajau. As telecomunicações implantam-se para serviço da sociedade, em que elas são o cordão umbilical que mantém a ancestral ligação ao velho continente e ao espaço envolvente. A TSF, ativa durante as 24 h do dia, é a voz permanente do madeirense anónimo, das autoridades locais, dos veraneantes e dos estrangeiros de passagem, e a única boia de salvação para as embarcações em dificuldades. Pelos transmissores de faísca e depois pelos eletromagnéticos perpassam variados problemas. O operador e o boletineiro são correias de transmissão do circuito e nada mais. Apenas quando a situação atinge os limites e acontece alguma anormalidade, os operadores, até então meros agentes passivos, passam a ser ativos protagonistas. Assim sucedeu em abril de 1931, durante a célebre Revolta da Madeira, em que, pela primeira vez, foi posta à prova a funcionalidade e a importância da Marconi nas transmissões a longa distância, através da estação de TSF do Caniçal. Quando, a 4 de abril, rebentou a Revolta, o cabo que ligava o Funchal a Lisboa emudeceu e, por isso, a única via de contacto com o exterior eram as ondas eletromagnéticas emitidas pela estação de TSF da Marconi, no Caniçal. As comunicações preferenciais da estação eram com Lisboa, que depois fazia a conexão com o mundo. Todavia, a Madeira poderia estabelecer contactos com as estações de Ponta Delgada, de Las Palmas e de Madrid. Quando, em Lisboa, o recetor emudeceu para os sinais da Ilha, o emissor madeirense não deixou de emitir, orientando-se para os Açores, Las Palmas ou Madrid. Todavia, até ao dia 26 de abril, a troca de telegramas com Lisboa foi apenas entre o Governo da Junta Revolucionária e o da ditadura. A 26 de abril, os emissores e recetores da estação de TSF da Marconi foram silenciados. As tropas destacadas para a Ilha, com o objetivo de pôr cobro à rebelião, desembarcaram primeiro no Caniçal, com o intuito de desmantelar a estação telegráfica. A força tomou, sem oposição da guarnição revolucionária, as instalações da estação e desmantelou o emissor e o recetor. Por algum tempo, a Madeira perdeu a ligação com o mundo. Os técnicos telegrafistas da Marconi das estações do Caniçal e do Funchal tiveram alguns dias de férias. Este foi o único período, em 65 anos da empresa na Madeira, em que as instalações foram silenciadas, após terem sido protagonistas ativas de uma conjuntura política peculiar, e um importante instrumento de agitação política por parte dos revolucionários. O desenvolvimento das novas tecnologias conduziu ao paulatino apagamento desta estação, que terminou em 1982, com o aparecimento de uma via alternativa para o cabo submarino, com a inauguração da Estação de Satélites. Desde esta data, com as remodelações posteriormente realizadas, aí passou a funcionar apenas uma estação do serviço móvel marítimo e uma casa de repouso para os funcionários da empresa. O Porto Santo, porém, já então uma importante estância de veraneio, continuava isolado e carente destes meios. Foram incessantes os esforços do Ateneu Comercial do Funchal e de um grupo de madeirenses ilustres para que o Porto Santo ficasse servido de TSF. Em fevereiro de 1927, conjugaram-se os esforços da Marconi com os das autoridades do arquipélago e deu-se início às obras de construção do edifício para instalar a estação de TSF. As habituais dificuldades burocráticas impediram que o material para a montagem da estação chegasse prontamente. Por outro lado, o equipamento era obsoleto e provinha da estação de Sintra. Mesmo assim, conseguiu-se mantê-lo e, em outubro de 1928, faziam-se os primeiros ensaios, estabelecendo-se contactos com a estação do Caniçal e o Funchal. Entretanto, a imprensa anunciava que estava prevista a sua inauguração para 25 de novembro de 1928. Mas só a 16 de março do ano seguinte saiu do Funchal o Gavião, levando a bordo as autoridades que, no dia seguinte, iriam inaugurar a nova estação. O equipamento aí instalado, sendo de segunda mão, não durou muito tempo, e cedo sugiram as dificuldades: a 15 de dezembro de 1932, o transmissor estava mudo, e permaneceu nestas circunstâncias até à chegada de novo aparelho, a 10 de novembro de 1935. Este era um novo equipamento de radiotelegrafia, mas não se adaptou às condições da Ilha, uma vez que, a 15 de janeiro de 1939, perdeu de novo a “voz”, e só em novembro chegou à Ilha novo equipamento. A Marconi, entretanto, mantinha-se atenta aos novos inventos ao nível das telecomunicações, procurando adequar as instalações e os serviços na Madeira a esta realidade. Foi neste sentido que, em janeiro de 1938, iniciou as obras para a construção de um novo posto no Garajau (Caniço), capaz de prestar o serviço de radiotelefonia. A 10 de dezembro, todos os serviços foram transferidos para a nova estação, que começou os contactos com o continente e os Açores. As instalações do Caniçal (1 de janeiro de 1939) foram desmanteladas e postas à venda a 9 de julho de 1939, sem haver comprador. No decurso da Segunda Guerra Mundial, esta estação exerceu uma função primordial nas ligações da Madeira com exterior, mercê do bloqueio marítimo a que a Ilha esteve sujeita. Entretanto, as instalações da empresa no Funchal ganharam uma nova dinâmica com a abertura ao público de um serviço de aceitação e distribuição de telegramas. A nova realidade surge a partir de 31 de dezembro de 1943, com a inauguração em novo edifício, na Av. Arriaga. O serviço funcionou até 1942 na Trav. do Cabido, sendo transferido a 29 de março de 1942 para o 1.º andar da Rosa d’Ouro, à Av. Dr. António José de Almeida, de onde depois foi deslocado, a 29 de março do ano seguinte, para a sede definitiva da Av. Arriaga, inaugurada a 28 de outubro. Aqui passou a funcionar um serviço permanente de atendimento e de distribuição de telegramas. O último era realizado, de início, pelos boletineiros-peões, e, depois, a partir de 1970, por motociclistas. Na déc. de 50, redobraram as responsabilidades da Companhia, ao ser-lhe atribuída a exploração do rádio móvel marítimo: os serviços aumentaram em área, volume e qualidade. Imperativos técnicos conduziram a que se fizesse uma subdivisão entre os serviços de emissão e receção: o Garajau permaneceu como central, dispondo apenas das antenas de receção, enquanto o Caniçal foi reativado como posto de emissão, e, no Funchal, ficaram centralizados, desde 4 de julho de 1951, os serviços de rádioescuta naval. A mudança técnica das instalações do Caniço só ficou concluída a 25 de março de 1968, com a inauguração da nova estação do Caniçal. No ato, estiveram presentes o governador civil do distrito e o diretor técnico da Marconi, Fernando Feijó. Aí ficaram instalados os serviços de receção das comunicações telegráficas e telefónicas e da estação costeira para a navegação. As obras iniciaram-se em setembro de 1966, nas instalações abandonadas em 1942, tendo sido visitadas a 17 de agosto de 1967 pelo então ministro das Comunicações. Nos primeiros anos das comunicações por radiotelefone para o exterior, o ambiente das operações era algo surrealista, comparado com a situação que muito depois se viveria: a ligação era feita via rádio através do operador da Marconi com a estação de Lisboa. Quando sucedia qualquer interferência, interrompia-se a ligação e os operadores procediam à mudança de canal para uma melhor receção. A sintonia era feita por meio de uma gravação do bailinho da Madeira, que era passada pela estação do Caniçal. Concluída esta operação, os utentes continuavam a sua receção. As ligações com o Porto Santo continuavam a ser um problema, pois, em junho de 1945, em plena época de veraneio, houve mais de uma interrupção. A solução viria a estar na nova estação de radiotelefonia inaugurada a 30 de agosto de 1959. Na época, era grande o incremento do serviço telefónico no arquipélago e a Marconi preparava-se para adequar a disponibilidade dos serviços aos madeirenses. No Natal de 1958, prometeu presentear os madeirenses com novos serviços (o telex e a radiofotografia), mas tal só veio a suceder muito mais tarde. O telefone chegou à Madeira em 1911, mas só na déc. de 50 teve um maior incremento, tendo-se iniciado, em 1958, o processo de automatização da rede telefónica do Funchal, através das novas instalações no edifício dos Correios, na Av. de Zarco. O aumento desmesurado da procura dos serviços de radiotelefonia e o carácter obsoleto dos meios disponíveis para a ligação com o exterior levaram a Marconi a apostar noutro serviço capaz de satisfazer as necessidades da Ilha. Sob o lema “servir mais e melhor”, a Marconi avançou, a partir de 1969, com um novo meio de comunicação: o cabo submarino. A partir do verão de 1971, a Madeira foi servida por novo cabo submarino, com capacidade para corresponder às necessidades dos locais, em substituição do cabo dos Ingleses. As obras começaram em dezembro de 1971, e em maio do 1972 foi lançado o cabo submarino, que viria a ser inaugurado a 2 de setembro. Para a inauguração, deslocou-se propositadamente à Ilha o secretário de Estado das Comunicações, Oliveira Martins. No ato, estiveram presentes o presidente e o vice-presidente do Conselho de Administração da Marconi, respetivamente Manuel de Athayde Pinto de Mascarenhas e José Maria Camolino Ferraz de Matos e Silva. As referidas instalações foram, depois, visitadas pelo Chefe de Estado, Américo de Deus Rodrigues Thomaz, aquando da sua visita à Madeira, em 1962. O cabo submarino alargou as possibilidades às ligações com o exterior e à disponibilização de novos serviços, como o telex. As telecomunicações, que haviam avançado de forma lenta no meio aquático, ganharam um novo vigor com a conquista do espaço celeste. Desde as primeiras tentativas de afirmação, na déc. de 50, sucederam-se inúmeros progressos que chegaram também às telecomunicações madeirenses. Todavia, a Madeira, que havia sido dos primeiros locais a usufruir das ligações por cabo submarino e depois por TSF, foi a última a usufruir desse novo serviço de telecomunicações – o satélite. As ligações por essa via entre as ilhas, o continente português e o mundo só tiveram lugar em 1982, i.e., passados mais de oito anos sobre a entrada em funcionamento deste serviço em Portugal. Esta nova via foi possível graças à abertura de uma nova estação terrena em Sintra. A montagem da estação do Funchal, situada em São Martinho, iniciou-se em fevereiro de 1980, num investimento global de mais de meio milhão de contos. Os trabalhos para este empreendimento tiveram lugar em outubro de 1977, com a criação de um grupo de trabalho que tinha o objetivo de estudar as possibilidades de alargamento à Madeira deste meio de comunicação. Em fevereiro de 1980, iniciaram-se as obras e foi aberto um concurso internacional para o fornecimento do material necessário às estações terrenas da Madeira e de Sintra: o contrato de fornecimento foi assinado a 18 de fevereiro de 1981 com o consórcio italiano Satelit Telecomunications Systems. A antena instalada foi do tipo Cassegram, com refletor parabólico de 25 m de diâmetro, pesando 240 t. No ato de inauguração, que teve lugar no dia 16 de novembro, estiveram presentes o secretário de Estado dos Transportes Exteriores e Comunicações, José da Silva Domingos, e os presidentes dos conselhos de administração da CPRM e dos CTT (Correios e Telecomunicações de Portugal)/TLP (Telefones de Lisboa e Porto), Miguel Horta e Costa e Oliveira Martins, respetivamente, bem como as autoridades regionais. A abertura do referido serviço na Ilha veio propiciar aos madeirenses o acesso direto às emissões televisivas. Por outro lado, este meio veio proporcionar aos 20.000 assinantes da rede telefónica da Madeira o acesso telefónico direto à Europa e a alguns países da África e da América, favorecendo uma maior aproximação entre os madeirenses residentes na Ilha e aqueles que se encontravam emigrados nos mais diversos destinos. Neste contexto, merece referência a inauguração, a 20 de fevereiro de 1984, das ligações telefónicas diretas com a Venezuela e a África do Sul; seguiram-se o Panamá e as Antilhas Holandesas (20 de setembro de 1984), o Havai (19 de janeiro de 1985) e a Europa Oriental (28 de agosto de 1986). Esta ligação direta chegou a mais de 70 países. Em 15 e 16 de dezembro de 1986, a Marconi propiciou aos madeirenses o visionamento de alguns canais televisivos que, recebidos em Sintra através do Eutelsat I-F1, eram retransmitidos para o Funchal pelo Intelsat V-F11. Esta situação transitória foi uma demonstração daquilo que foi possível com o lançamento da série de satélites Eutelsat II, que permitiram à Madeira a receção de TV e outros sinais de telecomunicações, com uma antena parabólica de dimensões reduzidas. Perante esta situação, a Marconi passou a oferecer aos madeirenses 288 circuitos, sendo 144 de cabo submarino e 144 via satélite. Todavia, os serviços da Companhia não se ficaram por aqui, pois, para além do cabo submarino de fibra ótica, para substituir o de 1972, digitalizou-se as comunicações por satélite. Este esforço de modernização dos serviços da empresa, a partir de 1982, está avaliado em 1.700.000 contos. Refira-se ainda o Serviço Móvel Marítimo (SMM). Esta via baseava-se num serviço telefónico e telegráfico permanente em VHF (frequência muito alta), onda média e curta. A sua modernização teve lugar a partir de 1979, assistindo-se, desde 1984, a uma melhoria e a uma variedade na oferta de serviços: em 1984, entrou em funcionamento a estação de VHF do Porto Santo; em maio de 1986, foi a vez da estação da Ponta do Pargo; a 1 de agosto de 1988, inaugurou-se o centro de operações do Funchal, a partir do qual são telecomandadas as estações espalhadas pelo litoral da Ilha; em 1989, foi o estabelecimento da cobertura em onda média, com a entrada ao serviço das estações da Ponta do Pargo (em abril), de Pico da Cruz (em maio) e do Porto Santo (em julho). Com este investimento, no valor de cerca de 350.000 contos, a Marconi conseguiu a cobertura total da zona económica exclusiva madeirense, sendo a primeira no país a merecer tal oferta de serviços. A maior oferta de serviços pela Marconi e a reafirmação da Madeira como eixo importante das telecomunicações com o Atlântico Sul levaram a Companhia a apostar num novo Centro de Telecomunicações, capaz de corresponder a esta realidade. Assim, desde 25 de setembro de 1992, a Madeira dispõe deste Centro, que coordena a atividade da empresa, em termos do tráfego dos cabos submarinos de fibra ótica e transmissão digital (Eurafrica, Sat-2, Columbus-2, Inland), da rede móvel e dos satélites. Esta infraestrutura concentra os serviços que estavam dispersos pelo Porto Novo, Garajau e Funchal. Aí está instalada a nova estação de cabos submarinos dos sistemas Euráfrica e Sat-2, os serviços de exploração, englobando o Centro de Operação e Controlo do SMM e a Central Telegráfica, bem como os serviços técnicos e administrativos. A inauguração do Centro foi simultânea à do cabo submarino internacional Euráfrica. A esta seguiu-se, a 28 de abril de 1993, a do cabo Sat-2, que liga a República da África do Sul às Canárias e à Madeira. Este é o maior cabo submarino do Atlântico e o terceiro a nível mundial. O Sat-2 permite a ligação de 15.000 circuitos telefónicos e a transmissão de 32 canais de televisão. Esta aposta da Marconi levou a que a Madeira retomasse a histórica vocação de plataforma do Atlântico. De novo, a Madeira assume um papel destacado como entroncamento de infraestruturas submarinas de telecomunicações, e Portugal passa a dispor de uma posição de relevo na rede atlântica de cabos submarinos. Alberto Vieira (atualizado  01.02.2018)   artigos relacionados: ateneu comercial do funchal radiodifusão portuguesa / rdp - madeira correios telegrafia sem fios (tsf)

Física, Química e Engenharia Sociedade e Comunicação Social

nóbrega, januário justiniano de

Escritor, poeta e jornalista. Consta que deixou vasta produção poética de elevado valor. A sua obra póstuma Visita de Sua Majestade a Imperatriz do Brazil, viúva, Duquesa de Bragança, à Ilha da Madeira, e Fundação do Hospício da Sereníssima Princesa D. Maria Amélia foi editada em 1867, na Madeira. Palavras-chave: Escritor; Poeta; Jornalista. Nasceu no Funchal a 25 de fevereiro de 1826 e faleceu a 28 de julho de 1866. Foi escriturário da administração do concelho do Funchal desde 30 de junho de 1837 e tornou-se 3.º escrivão da mesma administração a 8 de janeiro de 1857. Apesar de apenas possuir pouco mais do que a instrução primária, revelou-se um dos melhores jornalistas do seu tempo e tinha especial aptidão para a escrita literária, tornando-se reconhecido também como poeta. Persistem dúvidas sobre as reais circunstâncias que envolveram a sua morte: terá perecido como vítima de queda de uma rocha à beira-mar, ou, na verdade, terá existido suicídio derivado de uma suposta alienação mental, numa altura em que tinha preparado uma coletânea de poemas para publicar. Consta que deixou vasta produção poética de elevado valor, cuja localização se desconhece. Escreveu alguns artigos políticos, bastante reconhecidos pela sua qualidade e rigor, tendo colaborado nomeadamente nos periódicos O Funchalense, A Folha, Campo Neutro, Flor do Oceano, Estudo, e no Semanário Oficial, que dirigiu. Há registo de colaboração sua nas obras Flores da Madeira e Álbum Madeirense. O mais importante e copioso repositório de informações, elementos e notícias que interessam à história do arquipélago da Madeira encontra-se no arquivo da Câmara Municipal do Funchal, que contém muitos e valiosos documentos, sobretudo dos sécs. XV, XVI e XVII. Alguns deles foram publicados por Álvaro Rodrigues de Azevedo nas suas anotações às Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso. Entre os escritos que se extraviaram, está um que, tendo sido entregue ao governador José Silvestre Ribeiro, vem mencionado num artigo intitulado “Ilha da Madeira e seu Arquipélago”, do Dicionário Universal Português, nos seguintes termos: “Semelhantemente aconteceu com o manuscrito de uma obra histórico-estatística da Ilha da Madeira do malogrado e talentoso escritor madeirense Januário Justiniano de Nóbrega, a este pago pelo cofre da Câmara do Funchal, e portanto a esta pertencente […]” (ALBUQUERQUE, 1982). Consta que certas partes deste manuscrito ficaram na posse de Rodrigues de Azevedo. A sua obra póstuma, Visita de Sua Majestade a Imperatriz do Brazil, Viuva, Duquesa de Bragança, á Ilha da Madeira, e Fundação do Hospicio da Serenissima Princesa D. Maria Amelia, que se encontra no Arquivo Municipal do Funchal e na Biblioteca Municipal do Funchal, foi editada por Júlio da Silva Carvalho, na Typografia da Flor do Oceano. Silva Carvalho assinou o prefácio. Na Biblioteca Municipal do Funchal encontram-se, de Justiniano de Nóbrega, a Reimpressão das Rimas de Francisco Álvares de Nóbrega, sem editor, publicada no Funchal, segundo consta por volta de 1850, sem capa nem folha de rosto; e, em coautoria, Flores Agrestes. Poesias de João F. d´Oliveira e Januario J. de Nobrega, com edição no Funchal, pela Typografia Funchalense, em 1860. A segunda parte desta obra nunca foi publicada, porque Januário de Nóbrega, num acesso de loucura, destruiu as poesias e outros escritos que possuía, especialmente as peças inéditas. Luís Marino transcreveu, na sua obra Musa Insular, o longo e esteticamente cuidado poema “Apelido de Zargo”, composto por 15 estrofes de sextilhas, e que se serve, a abrir, de uma epígrafe de Cordeiro retirada da História Insulana, de tendência moralista: “Crescerá mais a fidalguia que começa em obras próprias, para os seus descendentes, do que a que só se jacta da dos descendentes, já alheia” (MARINO, 1959). Obras de Januário Justiniano de Nóbrega: Reimpressão das Rimas de Francisco Álvares de Nóbrega (1850?); Flores Agrestes. Poesias de João F. d´Oliveira e Januario J. de Nobrega (1860); Visita de Sua Majestade a Imperatriz do Brazil, Viuva, Duquesa de Bragança, á Ilha da Madeira, e Fundação do Hospicio da Serenissima Princesa D. Maria Amelia (1867); “Apelido de Zargo” (s.d.).   António José Borges (atualizado a 03.03.2018)   artigos relacionados: frutuoso, gaspar azevedo, álvaro rodrigues de poetas nunes, cesário joão

Literatura

nunes, eduardo fernandes

Eduardo Fernandes Nunes nasceu na freguesia de São Roque, Funchal, a 14 de setembro de 1910. Filho de António Fernandes Nunes e de Maria Matilde Fernandes Nunes, frequentou a Escola Industrial e Comercial de António Augusto de Aguiar e, mais tarde, o liceu do Funchal. Desce cedo, revelou uma grande vocação para a escrita, o que o tornou mais tarde um reconhecido jornalista, não só na Madeira, como também no território continental português e até no Brasil. Iniciou a carreira em 1937, no Diário da Madeira, com o qual colaborou até à suspensão deste matutino. Enquanto jornalista deste diário publicou várias novelas e livros inéditos, como o romance Porto Santo – Da Terra e do Mar, Do Amor e da Madeira e Embriagues, Crónicas Dialogadas. Foi correspondente no Funchal de vários jornais nacionais como O Século e o Primeiro de Janeiro, da agência internacional “The Associated Press”, em Nova Iorque, e ainda das revistas Flama e Cinematógrafo. Eduardo Nunes, como assinava, enquanto escritor/novelista, publicou contos e crónicas, mas foi na reportagem que se destacou com A Virgem de Fátima na Madeira, uma obra a que chamou “a reportagem das reportagens” e que lhe valeu a bênção apostólica do Papa Pio XII, em carta que lhe foi dirigida pelo cardeal G. B. Montini, secretário de Estado do Vaticano (NUNES, 1952, 2). A Virgem de Fátima na Madeira, editada em 1948, com prefácio de Feliciano Soares, testemunha o acontecimento cuja “inconcebível grandeza não podia ficar dispersa nas colunas dos jornais ou nas fotos dos repórteres fotográficos” (Id., Ibid., 4). A reportagem que compõe o livro teve por base, na sua continuidade cronológica, as descrições dos jornais diários Diário de Noticias e O Jornal, tendo sido toda ela, porém, e para o efeito, refundida. Com este “arranjo”, Eduardo Nunes pretendeu abarcar tudo o que foi publicado em data própria, mantendo na forma contextual o “sabor da hora” em que o facto foi vivido. Na sua obra destacam-se ainda textos em prosa como A Levada do Norte, mas o mais relevante é Porque me Orgulho de Ser Madeirense, publicado em 1951, com segunda edição em 1954. Ao longo das 125 páginas deste livro o autor revela e enaltece vários aspetos da ilha da Madeira, desde a sua descoberta no contexto da epopeia portuguesa dos Descobrimentos até à paisagem, aos costumes, ao folclore e às romarias. Além destas obras, publicou ainda a reportagem ilustrada “Levada Central da Calheta”, em 1953, e, no mesmo ano, “Central Salazar – opúsculo documentário ilustrado”. Em 28 de agosto de 1954, publicou a primeira crónica de viagem “Rumo ao Brasil”, na qual narra, no Diário de Notícias da Madeira, a viagem que fez desde o Funchal até ao Rio de Janeiro. Ao longo dos meses seguintes, escreve sobre as comemorações do 4.º centenário de São Paulo, cidade onde testemunha a inauguração, a 21 de agosto, do parque urbano de Ibirapuera. Eduardo Nunes pertenceu à direção do Clube Desportivo Nacional, onde exerceu funções de secretário-geral. Desempenhou o mesmo cargo na Associação de Jornalistas da Madeira, e foi ainda secretário da delegação, no Funchal, do Sindicato Nacional dos Jornalistas. Morreu em Lisboa no dia 4 de abril de 1957, vítima de cancro.   Obras de Eduardo Fernandes Nunes: A Virgem de Fátima na Madeira: Reportagem (1948); Porque me Orgulho de Ser Madeirense (1951); “Levada Central da Calheta” (1953); “Central Salazar” (1953); “Crónica de Viajem, Rumo ao Brasil” (1954); A Levada do Norte; Porto Santo – Da Terra e do Mar, Do Amor e da Madeira e Embriagues, Crónicas Dialogadas.   António José Macedo Ferreira (atualizado a 03.03.2018)

Literatura

moçambique

A mais antiga referência que existe sobre a região de Moçambique está relacionada com o açúcar da ilha da Madeira, pois foi com conservas madeirenses que Vasco da Gama, aquando da sua primeira viagem, presenteou o xeque de Moçambique. Isto aconteceu porque os Portugueses sabiam que aquelas conservas seriam presentes muito apreciados no mundo islâmico. Este foi um episódio que marcou o início das relações da Ilha com aquela região de África e que, ao longo dos tempos, permitiu outras oportunidades. No séc. XVI, em 1588, o primeiro bispo nomeado para o Japão, o Jesuíta madeirense Sebastião de Morais, faleceu em Moçambique, quando seguia de viagem para tomar posse do bispado. António de Abreu, do Arco da Calheta, andou pelo Oriente desde 1511 e prestou serviços importantes à Coroa. Em 1526, quando foi nomeado capitão-mor de Malaca, foi obrigado a invernar em Moçambique. Na centúria seguinte, em 1642, Francisco Fernandez Furna, dedicado ao tráfico de escravos, criou uma empresa para o comércio em Moçambique, na Índia e na China. Depois, foi muito importante, no cimentar das relações de Moçambique com a Madeira, a presença de madeirenses ilustres nesse terriório, e.g. Aires de Ornelas (1866-1930), D. Manuel Ferreira Cabral (1918-1981), e D. Teodósio Clemente Gouveia (1889-1962): o primeiro como governador-geral de Moçambique (de 1896 a 1906), o segundo como arcebispo de Moçambique (de 1936 a 1962) e o terceiro como bispo da Beira (de 1967 a 1971). É necessário ainda assinalar a passagem pelo Funchal, em viagem de retorno, do Maj. Joaquim Mouzinho de Albuquerque, que desempenhava o cargo de comissário régio em Moçambique. À sua chegada ao Funchal, a 7 de dezembro de 1897, foi muito saudado, com um jantar no Palácio de S. Lourenço e com um espetáculo de música e iluminações no Jardim Municipal. Partiu para Lisboa, no dia 12 de dezembro. É precisamente durante o período do governador natural da Camacha que surgiram dados sobre o movimento de emigrantes, assinalando-se, entre 1872 e 1915, através dos registos de passaporte, a intenção de 391 madeirenses emigrarem para Moçambique. Destes, apenas um manifestou concretamente o seu destino final – a Beira; pensa-se que os demais se dirigiam à então Lourenço Marques (posterior Maputo) e que, depois, se decidiram por outros destinos. Outros faziam de Lourenço Marques uma escala para entrarem na África do Sul, como foi o caso de Joe Berardo, que em 1963 aportou em Moçambique, e de outros que tentavam, desta forma, escapar à Guerra Colonial. Para o período de 1930 a 1948, existem dados sobre a emigração de madeirenses para Moçambique, através da documentação do arquivo da Agência Ferraz. Por aqui, sabe-se que saíram 122 madeirenses. Outras fontes indicam que, em 1935, saíram 226 madeirenses e que, num período de 10 anos, Moçambique recebeu 389 emigrantes da Ilha. O grupo associado à Agência Ferraz fixou-se maioritariamente na capital, e apenas 24 seguiram para outros destinos, e.g. Beira, Manhiça, João Belo, Vila Cabral, Quelimane, Ressano Garcia, Namaacha, São Jerónimo/Magude, Malhadugene. A proveniência destes também é maioritariamente da Calheta, com particular incidência para a freguesia do Estreito da Calheta, da qual partiram 33 madeirenses, representando 31 % das diversas freguesias do concelho, donde saíram 75 moradores. Se se considerar o perfil destes emigrantes, constata-se que foram maioritariamente ligados à terra, pois 49,2 % foram identificados, em termos profissionais, como agricultores e lavradores. Também havia indivíduos de outros ofícios (pedreiro, carpinteiro, padeiro, moleiro, mestre de obras, trabalhador) e de outras atividades (empregada doméstica, empregado de comércio, proprietário, construtor civil, estudante, funcionário público, comerciante). Atente-se que a Madeira podia ser também uma etapa para chegar aos altos cargos de administração em Moçambique, tendo-se verificado isto no caso de António Manuel de Castro e Mendonça, que foi governador da Ilha, de São Paulo, e, entre 1809 e 1812, de Moçambique. O mesmo sucederia com Gabriel Teixeira e Sebastião Xavier Botelho, que, da Madeira, passou para idênticas funções em Moçambique. Este grupo de madeirenses que saíram para Moçambique foi oriundo de diversas freguesias do Funchal (Santo António, São Martinho, São Gonçalo, Santa Maria Maior, São Pedro, Santa Luzia, Sé) e rurais (Estreito e Arco da Calheta, Calheta, São Vicente, Paul do Mar, Porto Moniz, Fajã da Ovelha, Ribeira da Janela, Prazeres, Santana, Gaula, Ponta de Sol, Madalena do Mar, Porto Santo, Ponta do Pargo, Porto da Cruz). O grupo mais numeroso, com 134 madeirenses (34 %), era proveniente do Estreito da Calheta. Deve-se ainda referir a emigração forçada, com a pena de degredo, que aconteceu em algumas situações. Em 1828, houve o degredo de Luiz Pimenta de Aguiar, por razões políticas, nunca regressando à Ilha. Seguiu-se o P.e João Rodrigues Pestana, da Calheta, em 1886. Em 1887, assinalou-se o degredo de João Reinolds, do Porto Santo.   Os registos históricos documentaram muitos madeirenses que se dirigiram para Moçambique e tiveram um papel de relevo na colónia, e.g. militares, médicos e funcionários do Estado. O Com. João Inocêncio Camacho de Freitas, que foi governador civil da Madeira entre 1951 e 1969, procedeu a levantamentos hidrográficos em Moçambique. Outros, de que ficaram notícias, foram: Aires Ferreira Sousa (1867-1947); Alexandre José Sarsfield (1856-1926); Alfredo França Dória Nóbrega (1897-1979); Álvaro de Sousa Drumond Borges (n. 1897); António Américo da Costa Pereira (1879-1922); António Avelino Afonso (1872-1964); António Félix Pita Júnior (1895-1951); Cândido Augusto Pereira (1892-1956); Daniel Pereira Pestana (1824-1906); Elmano de Freitas Moura (n. 1932); Emanuel da Paz Correia Aguiar (n. 1940); Francisco Silvestre Varela (1883-1963); Gabriel Maurício Teixeira (1897-1973); Jacinto Ferreira Rodrigues Baptista (1883-1936); Jacinto Sebastião Spínola (1881-1951); Jaime de Campos Ramalho (1873-1935); Jaime Martinho Ferreira Leal (1888-1962); João António de Bianchi (1884-1969); João de Freitas Alves (1926-1998); João de Silvério Caldeira; João Gomes de Abreu (1888-1958); João Inocêncio Camacho de Freitas (1899-1969); Joaquim do Espírito Santo Mota de Vasconcelos (1902-1976); Jordão Abel Rodrigues (1880-1956); Jorge Teófilo Jardim Bulher (n. 1926); Jorge de Almada Schiappa de Azevedo (1905-1972); José Afonso (n. 1912); José Almada (1888-1979); José Carlos de Vasconcelos (1878-1933); José de Freitas Soares (n. 1908); José Gonçalves Costa (1899-1967); José Gonçalves Costa (1899-1968); José J. Ferreira; José Joaquim de Freitas Ferraz (n. 1821); Leonel Câmara (n. 1923); Lúcio Tolentino da Costa (1870-1939); Luís Camacho Barbeito (1902-1971); Luís Vieira de Castro (1921-1984); Manuel de Sousa Brazão (1884-1923); Manuel Ferreira Rosa (n. 1898); Manuel Gonçalves Alegria (1919-1977); Manuel Leovegildo Rodrigues (1881-1959); Manuel Simão Rodrigues (n. 1932); Manuel Teodoro dos Ramos (n. 1925); Nicolau António de Sousa Drumond Borges (n. 1923); Teófilo de Andrade Rodrigues (1912-1980); Tomás de Jose Basto Machado (n. 1913); Tomás José Basto Machado (n. 1913); Vasco da Gama Andrade Rodrigues (n. 1909); Vasco da Gama Pestana (n. 1907); Vasco da Gama Rodrigues (1888-1977). Por fim, a testemunhar a influência e presença de madeirenses em Lourenço Marques, destaca-se, naquela cidade, uma casa típica da Madeira.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

Madeira Global

nascimento, joão cabral do

João Cabral do Nascimento nasceu no Funchal (R. do Carmo), em março de 1897, no seio de uma família madeirense, cuja genealogia integra diversas filiações nacionais, como o próprio notou na sua Genealogia da Família Medina…, em cuja gens, de resto, Nascimento se inscrevia. Para além dos Medina e Vasconcelos, família com raiz judaica e com relevância política e cultural nas ilhas atlânticas, há também a referir os Caiados, família portuguesa instalada na Madeira desde o séc. XV (e nome que o autor recuperará para um dos seus pseudónimos – João de Cayado) e, entre outras, os Crawford, família escocesa residente na Ilha desde o séc. XVIII. Acresce ainda a este cosmopolitismo familiar a ligação de Cabral do Nascimento a um empresário francês residente na Madeira e casado com Matilde de Menezes Cabral, tia do autor Adolpho Constant Burnay, que foi padrinho de batismo de Cabral do Nascimento. Na verdade, trata-se de um escritor e agente cultural, cuja obra integra várias centenas de textos publicados em livro e na imprensa periódica, assim como um vasto conjunto de traduções, a criação e a coordenação de alguns dispositivos culturais (entre os quais se destaca o Arquivo Distrital do Funchal, diversos jornais e revistas) e ainda a colaboração em grupos e iniciativas que, na Madeira e na então metrópole, marcaram a vida cultural e política do séc. XX. Entre estes últimos, salientam-se o círculo integralista de António Sardinha, as tertúlias dos Artistas Independentes e diversos grupos de criadores e intelectuais ligados a periódicos como Orpheu, A Monarquia, Restauração, Cadernos de Poesia, Távola Redonda, Colóquio-Letras, etc. Não surpreende, portanto, que um dos traços mais marcantes na sua obra seja, justamente, um certo cosmopolitismo, que não deixa de conviver, sempre de forma (auto)crítica e tensional, com uma aguda atenção dada às realidades culturais, sociais e políticas de Portugal e da Madeira. Isto é, uma forma muito própria de nacionalismo e regionalismo que se distingue claramente do exclusivismo e do ufanismo que outros nacionalismos e regionalismos assumiram em Portugal e na Madeira no séc. XX. Parecendo paradoxal, este posicionamento ambivalente e tensional era já defendido por João Cabral (do Nascimento) em 1924, no artigo “Queiroz póstumo”, por si publicado no Diário de Notícias do Funchal, a 26 de abril. Aqui, satirizando a “patriotice” dos que defendiam o confinamento da cultura portuguesa (e madeirense) aos limites das suas fronteiras geopolíticas e culturais, Nascimento defendia, com Eça de Queiroz, que “um povo só vive porque pensa” e “um espírito superior, afeito às coisas elevadas e espirituais, esse aprende a ser nacional se acaso atravessa o estrangeiro ou aí instala a sua residência” (CABRAL, DN, 26 abr. 1924, 1). É certo que, no primeiro quartel do séc. XX, Nascimento assumiu publicamente a sua adesão ao nacionalismo monárquico, quer junto do integralismo lusitano de António Sardinha, ao longo do ano de 1917, quer, depois, junto dos dissidentes nacionalistas integrais de Coimbra, entre os quais viria a ser uma figura-chave nos anos de 1921-22, ao serviço do semanário Restauração. É igualmente verdadeiro que muitos daqueles com quem privou foram figuras próximas de Salazar e do Estado Novo (Francisco Franco, António Ferro, João de Castro Osório, Luís Vieira de Castro, Amândio César, entre outros), sendo ainda notória, na versão de 1933 do seu Além-Mar, alguma aproximação de Nascimento a valores legitimados pelo regime recentemente instituído, algo que, de resto, aconteceu com muitos monárquicos, nesse mesmo período. Entre esses valores, destaque-se: a estética adotada no grafismo geométrico da capa do opúsculo; a opção pelo registo épico nacionalista; ou, na sua fábula, a subliminar manifestação de uma esperança num líder capaz de mobilizar a grei na busca de um caminho para a ordem. Esta nova versão revista de Além-Mar, poemeto épico publicado pela primeira vez em 1917, apresenta variações significativas na sua fábula, distanciando-se, por isso, do registo desencantado e antiépico da 1.ª edição, publicada nos anos da Grande Guerra. Tudo isto não invalida, porém, que se considere Cabral do Nascimento ora como um nacionalista cosmopolita, avesso a conceções monológicas e puras de nação, ora como um cosmopolita nacionalista, cuja obra evidencia um permanente trânsito e diálogo entre o que (lhe) era familiar e (lhe) era estranho, entre distintas culturas e línguas, entre diversos textos, tempos, posicionamentos ideológicos e estéticos, numa itinerância particularmente atenta a questões de identidade e de memória. O passado, a memória e a dor causada pela memória do que nesse mesmo passado foi experienciado ou foi desenhado como utopia serão, aliás, tópicos fundamentais na sua poesia, evidenciando-se de igual forma no trabalho que desenvolveu como arquivista, investigador sobre a história da Madeira, genealogista ou até antologiador de textos de períodos históricos anteriores. Na verdade, a autonomia crítica que sempre marcará a sua atuação como agente cultural e político leva-o a distanciar-se rapidamente do integralismo lusitano e do neorromantismo lusitanista, ao publicar no Diário da Madeira, logo a 25 de dezembro de 1917, uma carta em que se desvincula do grupo de Sardinha e das suas “doutrinas artísticas” (“Integralismo lusitano”, Diário da Madeira, 25 dez. 1917, 1). O mesmo acontecerá relativamente ao projeto político do Estado Novo, ao demarcar-se deste, e em particular do obscurantismo do seu lema, “orgulhosamente sós”, logo a partir da déc. de 1940. Já a residir em Lisboa e paralelamente à atividade docente que, iniciada em 1922 na Escola Industrial e Comercial do Funchal e no Instituto Comercial do Funchal, será retomada nas escolas Veiga Beirão e Ferreira Borges (Lisboa, entre 1937 e 1958, ano da sua aposentação), Cabral do Nascimento reorienta a sua atividade cultural para a tradução de autores estrangeiros, os quais, assim, são integrados no sistema cultural português. Algumas dessas traduções viriam mesmo a ser objeto de censura pelo lápis azul. A evidenciar também esse distanciamento de Nascimento relativamente ao projeto de nação do Estado Novo, note-se que, nesse mesmo período, o autor insular não se inibe de publicar poemas como “Na vilazinha pobre”, onde, com o sarcasmo corrosivo que muitas vezes se encontra nos seus textos em prosa, denuncia os efeitos nefastos que entrevia nessa forma exclusivista de pensar as sociedades, as culturas e os sujeitos, ridicularizando a imagem de um “Portugal-vilazinha-pobre” que Salazar se orgulhava de estar a implementar no país. Enquanto autor literário (poeta, cronista e ficcionista), rejeitará sempre o registo panfletário, evitando, de igual forma, processos de referencialidade denotativa, heranças, certamente, do convívio inicial com a estética e a poética simbolistas. Mas nem por isso a obra de Cabral de Nascimento (literária e não só) pode ser lida como um conjunto de fenómenos culturais totalmente desvinculados da polis e da política. Move-o, sobretudo, a busca de um saber em crescendo, a que, porém, não são alheios os valores éticos e deontológicos do rigor autocrítico ou da exigência epistemológica, criativa e cívica que sempre manifestou. Lembre-se, a título de exemplo: o perfecionismo e a depuração linguística da sua poesia; a continuada revisão dos livros que foi publicando, incluindo-se também aqui as suas traduções; e até o seu afastamento da Madeira e dos cargos que aqui ocupava, quando, nos anos 30, na qualidade de cidadão insular, mas também enquanto diretor do Arquivo Distrital do Funchal e sócio eleito quer da Associação de Arqueólogos Portugueses, quer do Instituto Português de Arqueologia Histórica e Etnografia, se opõe à política de turismo em implementação na Ilha e às lutas locais pelo poder, no quadro das quais, em seu entender, não estavam a ser asseguradas a preservação e a dignificação do património histórico e cultural do arquipélago. A este respeito, não se ignore também que, em outubro de 1924, Nascimento assumira, por algum tempo, o cargo de delegado do Governo no Funchal, quando o presidente do Ministério era o madeirense Alfredo Rodrigues Gaspar. Nessa ocasião, participou no debate público sobre o modelo de política de turismo para a Madeira, defendendo, entre outras propostas, a criação de um museu regional, com a salvaguarda de que este não fosse destinado ao turista, como então se defendia na Ilha. Num artigo de opinião publicado a 28 de novembro de 1925, no Diário de Notícias do Funchal, a que deu o título “Acêrca do Museu”, João Cabral (do Nascimento) contra-argumentará esse posicionamento dominante, defendendo que o museu, com uma “biblioteca anexa” e dando visibilidade às “manifestações artísticas regionais (ou cujos documentos se consigam obter)”, deveria funcionar como dispositivo cultural, pedagógico e científico, destinado à “mocidade das escolas”, àqueles “que se entregam a monografias regionais” e, de um modo geral, ao “povo” que, assim, “adquiri[ria] certos conhecimentos […] que tanto lhe escasseiam” (CABRAL, DN, 28 nov. 1925, 1). Ainda a este respeito, recorde-se que no início de 1937, ano em que, desencantado com as dinâmicas políticas, sociais e culturais em curso na Ilha, acabará por abandonar o Funchal, passando a residir em Lisboa, Nascimento integrava o recém-formado Conselho de Turismo da Madeira, órgão local onde procurou, sem sucesso, arguir o seu posicionamento sobre a política de turismo para a Madeira, contra as perspetivas mercantilistas aí dominantes. Cabral do Nascimento constrói, assim, uma obra (literária e não só), cujos posicionamentos surgem em grande parte sustentados por uma experimentação do que era próprio do “outro”, mas que, de alguma forma, ao ser conhecido/experimentado, passava também (mesmo que em conflito ou oposição), a integrar o que era próprio de si e da sua obra: a língua, o texto, a cultura, a conceção estético-artística, os valores ideológico-políticos desse(s) “outro(s)”. Assim, e apesar de toda a autonomia que, após as décs. de 1920-1930, o levaria a evitar filiações em grupos ou até em associações políticas, culturais e profissionais (incluindo-se aqui a Sociedade Portuguesa de Autores e a Associação Portuguesa de Escritores, cujos convites para adesão declinou, respetivamente em 1965 e em 1973), Cabral do Nascimento assume-se como um autor não-insulado e em recorrente visitação de uma pluralidade de sistemas que quer conhecer por dentro e que ultrapassam em muito as fronteiras dos sistemas culturais madeirense e português. Experimentando-os até onde lhe permitia a sua alteridade, procurava depois rever ou confirmar o seu próprio lugar identitário, estético, epistemológico e político. Em simultâneo, afirmava-se como um sujeito que, apesar dessa contínua aprendizagem, assumia com determinação, mas sem protagonismos exibicionistas, o dever de e o legítimo direito a inscrever a sua voz (pessoal, literária e ideológica) e o seu corpo (físico, cultural e político) no mundo. Disso nos dá conta, e.g., no poema “Memória”, publicado significativamente nos números 32 e 33 de Panorama. Revista Portuguesa de Arte e Turismo (1947), onde encontramos uma voz poética periférica e ignorada pelos outros, ou melhor, pelo outro-eu, dado que esse outro é, na verdade, Lisboa. Mas é um sujeito que, mesmo perante essa marginalização, quer deixar as suas “passadas” e a sua “fala” “nova” inscritas nesse mundo que as não vê/lê/ouve ou que as insiste em rasurar da memória. A obra de Cabral do Nascimento dá conta de um complexo processo discursivo que fica marcado pelas dinâmicas da hipertextualidade e do contraponto, este último aqui entendido no sentido proposto por Edward Said). Apesar de perfeitamente aceites nos sistemas culturais e literários dos inícios do séc. XXI, na déc. de 1910, estas dinâmicas discursivas seriam inusitadas na Madeira e até a nível nacional, como demonstra a história da receção de autores coevos como Fernando Pessoa ou Almada Negreiros, efetivos interlocutores de Cabral do Nascimento, no debate sobre o modernismo e as vanguardas que, nesses mesmos anos, se desenvolvia em Portugal. Ler a obra poliédrica do autor madeirense exige, pois, um paralelo exercício de itinerância discursiva: ora pelos discursos desses outros autores evocados e transferidos criticamente para a obra de Nascimento, ora pelos múltiplos trabalhos do próprio autor madeirense. Estes últimos, justamente por se apresentarem como resultantes de um continuado exercício de revisão e reescrita, surgem como ensaios provisórios ou fragmentos de uma obra compósita e em devir, cuja construção do(s) sentido(s) ganha (um pouco à semelhança do drama em gente de Pessoa) com o cruzamento dessas múltiplas textualidades autónomas, mas afinal implicadas umas nas outras, e que, nessa exata medida, apelam a uma constante (re)leitura crítica e em rede. Trata-se, na verdade, de uma dinâmica de composição e de leitura que Nascimento experimentou, desde o início da sua vida literária, com a adoção do género folhetim, embora essa sua prática, por ser desconhecida até muito depois, não tenha sido analisada com a devida relevância por críticos e académicos atentos à obra e à poética do intelectual madeirense. Referimo-nos em particular a Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos, folhetim publicado no Diário da Madeira, na segunda metade de 1916, em coautoria com Ernesto Gonçalves, Luís Vieira de Castro, Alfredo de Freitas Branco e Álvaro Manso de Sousa; e, já em 1921-1922, aos folhetins publicados no jornal Restauração e atribuídos a três figuras autorais criadas por Nascimento: João da Nova, Simão Escórcio e Houston Cherry. Convocando as palavras de Edward Said, quando atribui a alguns intelectuais o perfil da figura do exilado, um “perturbador do status quo”, ocupado em “derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que tanto limitam o pensamento humano e a comunicação” (SAID, 2000, 13-14), podemos afirmar que também a obra de Nascimento, e pesem embora as suas simpatias conservadoras no domínio da política, nos revela um intelectual exílico, que quase sempre foi um tradutor: um mediador empenhado em viajar entre espaços, tempos, culturas e línguas, ora trazendo esses muitos outros até ao hic et nunc do texto e do leitor, ora, inversamente, levando estes até esses outros. O objetivo da globalidade heterogénea da sua obra foi, sobretudo, servir de ponte ou criar textos e dispositivos culturais capazes de suplantar os abismos temporais, espaciais, linguísticos, ideológicos e culturais que separam sujeitos e as suas comunidades. Não apenas com a missão de contribuir para o que considerava ser o bem comum, mas também como dinâmica fundamental de questionação autorreflexiva e de permanente refazer da sua própria identidade, quer como sujeito político, quer como autor literário e agente cultural. Poliédrica, também nas opções genológicas praticadas (poesia lírica; narrativa em verso e prosa; folhetim; ensaio; crónica; artigo jornalístico e artigo historiográfico; crítica literária; descrição genealógica, etc.), essa heterogeneidade e transitoriedade exílicas, não raras vezes geradoras de tensões e até de aparentes paradoxos, reencontram-se na sua assinatura autoral, ou melhor, nas suas assinaturas autorais, dado que foram vários os nomes com que assinou os seus trabalhos. O seu mais antigo texto conhecido até aos começos do séc. XXI surge assinado com o seu nome civil e remonta a 1913, tendo saído em Gente Nova, uma edição comemorativa do primeiro aniversário da Caixa Escolar do Lyceu do Funchal, escola frequentada por Nascimento a partir de 1911, onde participou em várias iniciativas culturais e onde realizaria os estudos secundários, antes de ingressar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em outubro de 1915. Com apenas 15 anos, o jovem autor publicava, em 1913, a narrativa breve “Um engano”, onde o estranho e o fantástico fazem notar o diálogo que Nascimento sempre manterá com Edgar Allan Poe e com a cultura anglo-saxónica. A este respeito, saliente-se que a última edição (ne varietur) do seu Cancioneiro, datada de 1976, encerra, justamente, com uma “recriação em português” do poema “O corvo” de Poe, sublinhando, assim, o traço dialógico da sua poética, mas também a valorização da atividade tradutória e das culturas anglófonas na globalidade da sua obra A partir de 1913, o nome de Cabral do Nascimento passa a constar com crescente regularidade e destaque nos jornais funchalenses: Alma Nova; Heraldo da Madeira; e sobretudo Diário da Madeira, onde, até à déc. de 1920, será um assíduo colaborador, mesmo nos anos em que se encontrava a estudar em Lisboa e, depois de 1919, em Coimbra, em cuja universidade finalizará a licenciatura em Direito em 1922. Publicará também com regularidade no jornal A Monarquia, em Lisboa, no ano de 1917. E já na década seguinte, destacam-se as suas colaborações recorrentes no semanário Restauração de Coimbra (1921-1922) e no Diário de Notícias do Funchal (1923-1934). Porém, se a maioria desses textos dispersos e os vários livros que publicou ao longo da vida surgem assinados com o seu nome civil, embora, por vezes, com ligeiras variações (João Cabral, Joam Cabral do Nascimento, João Cabral do Nascimento, Cabral do Nascimento, J. C., J. C. N), foram também diversas as situações em que recorreu a pseudónimos, tais como: João de Caiado ou João de Cayado, nom de plume com que subscreveu, na déc. de 1910, vários artigos no Diário da Madeira; e Mário Gonçalves, pseudónimo com que assinou algumas traduções incómodas para o Estado Novo ou que não caberiam dentro da lista das suas afinidades eletivas. Esta variação na onomástica autoral da sua obra não se esgota aqui, chegando mesmo, nas décs. de 1910 e 1920, à criação dos semi-heterónimos Ismael de Bô, João da Nova, Simão Escórcio e Houston Cherry, porquanto, nestes últimos casos, os textos subscritos por essas assinaturas apresentam de diferenciador relativamente aos textos assinados com o nome civil do escritor. Se o ideologema e os valores legíveis nessas textualidades se mantêm idênticos em uns e em outros, na escrita assinada pelos três semi-heterónimos ganham particular destaque registos e processos de construção discursiva que quase estão ausentes da poesia assinada com o nome civil do autor, embora aflorando pontualmente em algumas das suas crónicas. Entre estes traços distintos, destacamos o recurso à ironia, ao sarcasmo e à paródia, por vezes geradores de um discurso que toca o non-sens, distanciando-se, assim, da limpidez e contensão discursivas que se registam na sua poesia. E sublinhamos de igual forma, nos folhetins desses semi-heterónimos, o registo lúdico e provocatório, assim como uma técnica composicional que não raras vezes se aproxima de um certo experimentalismo, nomeadamente pela adoção do corte e colagem ou da citação recontextualizada. Retrato de João Cabral do Nascimento por Abel Manta Por outro lado, embora a sua obra tenha passado a ocupar um lugar discreto nos vários sistemas culturais lusófonos (incluindo-se aqui o nacional português, mas também o madeirense), Cabral do Nascimento foi um escritor e um agente cultural e político com mérito reconhecido ao longo de toda a sua vida, quer por figuras relevantes no panorama cultural e académico nacional e internacional, quer por algumas das principais instituições ligadas à cultura portuguesa do séc. XX. A consulta da correspondência e notas pessoais conservadas no seu espólio, à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (espólio N28), surpreende não apenas pelo número e prestígio dos seus interlocutores, mas acima de tudo pela heterogeneidade política, artística e geracional dessas figuras, incluindo-se aqui, entre muitos outros, nomes como: Abel Manta, Afonso Lopes Vieira, António Ferro, António Sardinha, António Sérgio, Carlos Queiroz, David Mourão-Ferreira, Fernando Lopes-Graça, Fernando Pessoa, Haroldo Campos, Jacinto do Prado Coelho, João Brito Câmara, João Ameal, João Gaspar Simões, Joaquim Montezuma de Carvalho, Jean Michel Massa, Jorge de Sena, Júlio Dantas, Leroy James Benoit, Luís Amaro, Luiz Peter Clode, Maria Archer, Philéas Lebesgue, Ruy Cinatti, Tomás Kim, Vitorino Nemésio. Confirmou-se, assim, o prognóstico que, logo em 1914, era publicado no Diário da Madeira, após a divulgação dos seus primeiros textos no Funchal e a sua intervenção nas Conferências Académicas Quinzenais do Lyceu: o tímido e discreto João Cabral do Nascimento (traço de personalidade que manterá ao longo da sua vida) era então apreciado como um jovem dotado de um “precoce e prometedor desenvolvimento intelectual” (“Lyceu do Funchal. Conferências académicas”, Diário da Madeira, 18 dez. 1914, 1). A matrícula na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa leva-o, no ano seguinte, até à capital, onde participou ativamente em vários círculos artísticos e culturais, muitas vezes acompanhado por dois amigos também do Funchal: Alfredo de Freitas Branco, escritor, monárquico e futuro visconde do Porto da Cruz, que, nos anos da Segunda Guerra Mundial, viria a ser um germanófilo e apoiante do regime nazi; e Luiz Vieira de Castro, também escritor, monárquico e filho do banqueiro madeirense Henrique Vieira de Castro, que em diversos momentos desses anos assumiria o papel de mecenas dos jovens criadores e intelectuais insulares. Em 1916, Nascimento publicava em Lisboa o seu primeiro livro, intitulado As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas, o qual surpreenderá os escaparates e os críticos literários de então, sobretudo pela qualidade poética e por se tratar do primeiro livro de um jovem e desconhecido poeta madeirense. Os textos deste breve opúsculo de poemas, onde se torna evidente o diálogo com o simbolismo finissecular, eram significativamente dedicados a alguns dos seus companheiros de letras, insulares e continentais (Ernesto Gonçalves, Américo Durão, Alfredo Guisado, Elmano Vieira, Álvaro Manso de Sousa ou Luís Vieira de Castro), mas também a figuras autorais ficcionais, algumas das quais criadas pelo próprio Nascimento ou por amigos de carne e osso a quem também dedicava o livro: Ana Clara e Ismael de Bó, criados por Nascimento; Manoel de Lins, por Ernesto Gonçalves; e Pedro de Meneses, por Alfredo Guisado. As Três Princesas… viria a receber, nesse mesmo ano, uma crítica muito positiva publicada por Fernando Pessoa na revista Exílio, onde o criador do drama em gente sublinha uma suposta aproximação de Nascimento às vanguardas modernistas e em particular ao sensacionismo. O autor madeirense rejeitará sempre essa afiliação sensacionista, declarando-o abertamente num artigo que, em 1925, assinala a efeméride da publicação da revista Orpheu, publicado no Diário de Notícias do Funchal, a 5 de abril, e intitulado “Dez anos depois”. Embora declarando a sua fidelidade aos “clássicos”, à “gramática” e à “decência”, Nascimento salienta, a relevância cultural e artística do projeto Orpheu, assim como a influência que essas primeiras experiências vanguardistas, “prudentemente expungi[das de] certas inconveniências da sua estética”, tiveram “não só na literatura, mas na música e nas artes plásticas, e em tudo o mais […] [d]a geração nova”, acrescentando ainda, em jeito de confissão, o seu encontro de passagem com o sensacionismo: “O movimento sensacionista colhera-me de surpresa, no acordar da lira – ó romântica imagem! – e enredára-me nas suas teias espessas” (CABRAL, DN, 5 abr. 1925, 1). Se dúvidas restassem acerca desta confissão estética e poética de Cabral do Nascimento relativamente à sua aproximação às vanguardas estéticas então em debate na capital, elas eclipsam-se quando notamos a dedicatória de alguns dos poemas de As Três Princesas… a Alfredo Guisado e Pedro de Meneses; quando percebemos toda a estrutura fragmentária e dialogante da globalidade da sua obra; quando verificamos que esse diálogo também inclui figuras autorais dotadas de alguma autonomia e que foram criadas pelo próprio Nascimento; e, sobretudo, quando lemos o projeto narrativo Novela Romântica…, publicado em folhetim, na segunda metade de 1916, no Diário da Madeira. Polifónica e irreverente, desde logo pela autoria coletiva atribuída a cinco artistas vagabundos e por adotar um registo narrativo por vezes non-sens e provocatoriamente sarcástico, essa narrativa fragmentária e autobiográfica dá conta das aventuras ficcionais de seis diletantes cosmopolitas em deriva pelo mundo: os cinco artistas vagabundos e Colecta de Nylves, uma mulher moderna transgressiva, que assume o papel de intelectual-líder do grupo. Mais do que uma simples narrativa ou um ato criativo meramente lúdico, esta novela constitui um irónico exercício autorreflexivo ora sobre a modernidade cosmopolita coeva, assombrada por inúmeras crises, de entre as quais a Primeira Guerra Mundial seria a mais evidente; ora sobre o papel das artes (os protagonistas da narrativa surgem associados às várias artes – a música, a dança, as artes plásticas, a poesia e a ficção), das vanguardas e dos neorromantismos no mundo seu contemporâneo. Oscilando entre, por um lado, o cosmopolitismo e a irreverência vanguardista que, na fábula, os artistas vagabundos efetivamente personificam e, por outro lado, a distância crítica que os narradores-autores constroem com o seu discurso (auto)irónico e sarcástico, acerca da vida e dos valores modernos, Novela Romântica… constitui-se, uma vez mais, como experimentação paródica de múltiplas tendências estéticas e poéticas, mas sobretudo como exercício de reflexão crítica promovida no Funchal, sobre o debate artístico e cultural que, nesse mesmo período, se desenrolava em Lisboa e Coimbra, assim como em outras cidades do país que, à semelhança do Funchal, muitas vezes são rasuradas da cartografia e da história do primeiro modernismo Português. A participação de Cabral do Nascimento neste debate estender-se-á de forma evidente até meados da déc. de 1920. Entre 18 e 27 de agosto de 1918, anuncia em vários textos publicados no Diário da Madeira o projeto já em curso de criação de uma Antologia de Poetas da Ilha da Madeira, projeto que, no entanto, nunca viria a ser editado. Nascimento propunha-se reunir um conjunto alargado de autores e textos do passado e do presente, por forma a inaugurar uma reflexão séria sobre a existência ou a necessidade de criação de uma literatura madeirense, conceito que aqui deve ser entendido enquanto sistema literário insular autónomo do nacional, algo muito próximo do que, nas décs. de 1920 e 1930, também acontecerá nos Açores e em Cabo Verde. Nesse mesmo jornal, saíram vários fragmentos de um estudo introdutório a constar nessa antologia, sendo que num desses fragmentos, transformado em artigo-ensaio sobre a “novíssima geração” de autores madeirenses, Nascimento aborda a questão da relação dos novíssimos insulares com as vanguardas. Não surpreende, portanto, que ainda em 1918 este intelectual integre a tertúlia dos Artistas Independentes (1918-1933), promovida no café funchalense Golden Gate, e em que também participaram Alfredo Miguéis, Emanuel Ribeiro, Ernesto Gonçalves, Francisco Franco, João Abel Manta e Henrique Franco. Em 1919, já a estudar na Universidade de Coimbra, para onde transferiu a sua matrícula depois da Primeira Guerra Mundial, funda, com Luiz Vieira de Castro, Alfredo Brochado e Américo Cortez Pinto, a eclética e efémera revista Ícaro, dirigida por Ernesto Gonçalves. Se o título aponta para o regresso a um certo classicismo, ao culto da beleza e da harmonia das formas, conforme é também sublinhado no editorial de abertura do n.º 1 da revista, a escolha da figura de Ícaro como patrono da publicação revela algo que, sendo profundamente moderno, é claramente verbalizado nesse mesmo texto de apresentação: o “frémito aventureiro – aspirando à Beleza, ao Sonho e à Vida”; a “ânsia imperfeita e humana” de absoluto e de “revelar, de anunciar novas formas de Sonho e de Beleza” (“Ícaro”, Ícaro, n.º 1, jul. 2019, 1). Em 1921, preside, em Lisboa, ao Comício dos Novos, representando a academia de Coimbra. Esta iniciativa, promovida por vários artistas ligados a Orpheu, a Exílio e a Portugal Futurista (e.g., António Ferro e Almada Negreiros), assim como às belas artes, teve lugar no cinema Chiado Terrace e procurou não só analisar criticamente os sistemas culturais e artísticos nacionais, como também discutir a necessidade de modernização da Sociedade Nacional de Belas Artes. A sua atividade cultural e política implicada em publicações periódicas intensifica-se nesse ano e no seguinte. Em 1921 colabora no único número da revista Nova Phenix Renascida, dirigida por Vieira de Castro, que, na linha de Ícaro e com uma orientação declaradamente europeísta, mas sem a pretensão de querer ser um “órgão de nenhuma côterie, nem tampouco […] [condicionado por] qualquer programa determinado”, assume o propósito de contribuir, com a sua “critica impiedosa”, para a dinamização e modernização do sistema literário nacional que, em palavras de Manoel de Menezes no texto de abertura da revista e intitulado “Portugal Literário”, necessitava regressar aos autores de avant-guerre, por se encontrar urgentemente necessitado de renascimento, fosse pelo vício do compadrio bajulador e falta de exigência da crítica, de autores, de pseudocríticos e das editoras; fosse pelo abandono da literatura por parte de autores conceituados e com valor, entretanto ocupados com a vida política; fosse ainda pela superficialidade e exibicionismo excessivo que encontravam na nova geração do Chiado (MENEZES, 1921, 1). Em fevereiro de 1922, ano em que termina o curso de Direito e regressa ao Funchal, toma ainda a função de subdiretor do semanário Restauração que ajudara a fundar em 1921, vindo a assumir, em maio de 1922, o cargo de secretário do Nacionalismo Integral, grupo monárquico defensor de um entendimento entre as diversas fações monárquicas, apoiado pelo madeirense Aires de Ornelas, e cujo órgão de divulgação foi esse mesmo jornal. O falhanço das negociações entre monárquicos estará implicado no regresso de Nascimento à Ilha e no seu progressivo afastamento da atividade político-partidária. No Funchal, exerce advocacia por um curto período, seguindo, logo depois, outros rumos profissionais que pouco terão a ver com a sua área de formação académica. Exerce a docência na Escola Industrial e Comercial do Funchal e no Instituto Comercial do Funchal, mas logo reorienta a sua atividade profissional para a investigação e divulgação histórica. Na segunda metade da déc. de 1920, dá os primeiros passos para a constituição do que virá a ser o Arquivo Distrital do Funchal (posteriormente, Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira (ABM)), instituição que apenas viria a ser constituída de jure em 1931, ano em que assume oficialmente o cargo de diretor, o qual seria por ele ocupado até 1954, embora de forma pouco convencional e por impasses administrativos. Leitor atento do que no mundo acontecia, colabora regularmente no Diário de Notícias, ao longo dos anos 20, onde vai comentando criticamente questões prementes na sociedade madeirense, em Portugal e a nível internacional: o bolcheviquismo; o fascismo; os totalitarismos; o antissemitismo crescente na Europa; a crise de Marrocos; as comemorações da suposta descoberta da Madeira por Zarco; o regionalismo insular; o descuido com que se tratava o património material e imaterial da Ilha; algumas decisões político-administrativas tomadas na Madeira; a morte ou o esquecimento de figuras relevantes da cultura portuguesa e madeirense, como Camilo Pessanha, Eça de Queiroz, Medina e Vasconcellos, António Sardinha, e muitos outros. Em junho de 1927 participa na excursão académica às ilhas Canárias, na qualidade de diretor pedagógico, em parceria com Manuel de Matos. Esta viagem ficaria registada em filme por Manuel Luiz Vieira, embora se desconheça o paradeiro da película. Na sequência dos movimentos autonomistas experienciados nas décs. de 1910 e 1920, nas ilhas da Macaronésia, esta viagem tinha como objetivo aproximar as culturas insulares atlânticas e aprofundar o conhecimento mútuo. Previa-se igualmente uma viagem aos Açores. Em 1928, João Cabral do Nascimento casa-se com Maria Franco e em 1929 nasce o seu único filho, João Crawford de Meneses Cabral, de quem virá a ter dois netos: o ator e encenador Filipe Crawford, especialista conceituado na área do teatro de máscara; e a artista plástica Maria Teresa Crawford Cabral. Ambos reconhecem o papel que Maria Franco e Cabral do Nascimento tiveram na sua formação estética e cultural. Maria Franco, também ela pintora e tradutora (cuja obra merece ser revisitada), era sobrinha de Francisco e Henrique Franco. O casamento entre ela e Cabral do Nascimento estreitava, assim, os laços de camaradagem cultural e amizade que, desde as décadas anteriores, existiam entre o escritor e os dois artistas plásticos. A este respeito, é de notar que em 1926 se publicara a 1.ª edição de Descaminho, onde a poesia de Nascimento se cruza com as xilogravuras de Francisco Franco, num processo dialogante inovador e que ultrapassa em muito o da tradicional ilustração visual de textos escrito. Em 1930, regressa temporariamente a Lisboa, desta vez com Maria Franco, e com um subsídio da Junta de Educação Nacional, encarregado da tarefa de realizar investigação em bibliotecas e arquivos sobre a história da Madeira. Na sequência desta sua atividade, publica vários estudos e recolhas documentais sobra a história da Madeira, assume oficialmente o cargo de diretor do Arquivo Distrital do Funchal (ADF), inicia a publicação do boletim desta instituição, intitulado Arquivo Histórico da Madeira (financiado pela Câmara Municipal do Funchal, mas cuja publicação seria muitas vezes suportada por Nascimento), dinamiza a incorporação, no ADF, de múltipla documentação relevante para o conhecimento da história do arquipélago que, até à data, se encontrava à guarda de diversas instituições ou até de particulares. Este processo gerará alguma conflituosidade institucional e social, nomeadamente com alguns responsáveis por instituições da Igreja Católica, que não aceitaram essa transferência documental. É particularmente acesa a polémica que, em 1934, Nascimento trava com o Cón. Homem de Gouveia, nas páginas de vários periódicos locais. O motivo da discussão não era explicitamente o da transferência de documentação da Igreja para um arquivo laico, mas compreende-se que esse assunto estaria no fundo da polémica. Já a residir definitivamente em Lisboa, é convidado a lecionar um curso de férias na Faculdade de Letras de Lisboa. Em 1941, acompanha de perto a criação do projeto Cadernos de Poesia, cujo lema, “A poesia é só uma”, foi uma sugestão de Cabral do Nascimento, de acordo com testemunhos de Jorge de Sena, um dos mentores do projeto, e seu amigo pessoal. Em 1942, inicia a sua atividade tradutória, não por acaso com a publicação quer da História da Literatura Inglesa de Benjamin Ifor Evans, editada pelo Instituto Britânico, quer do romance O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Mr Hyde de Robert L. Stevenson. De extrema relevância para o sistema cultural português da segunda metade do séc. XX, seja pelo número de textos traduzidos, seja pela variedade e qualidade dos autores que, por essa via, entraram em Portugal, a obra tradutória de Nascimento ocupou-se, em grande parte, da transferência para português de textos anglófonos. Em 1943, recebe o Prémio Antero de Quental, atribuído pelo Secretariado de Propaganda Nacional ao seu mais recente livre de poesia, Cancioneiro, editado nesse mesmo ano. Isso não invalida, porém, que em 1955, ano em que publica o seu último livro de poemas inéditos (Fábulas), a sua tradução de Le Lettere da Capri de Mário Soldati, assinada por Mário Gonçalves e a italiana Inácia Dias Fiorillo, tenha sido censurada pelo “lápis azul”. Assumindo, em português, o provocatório título Carne Viva, a tradução do romance de Soldati seria considerada pelos censores uma obra potencialmente pornográfica. Na déc. de 1960, visita por duas vezes Angola, província onde residiam o filho e os netos: Luanda, em 1961; Sá da Bandeira (mais tarde, Lubango), em 1962. Em carta a João Gaspar Simões, datada de 13 de outubro de 1962, assume o desejo de permanecer em Angola, não fosse a insegurança decorrente da Guerra Colonial, conflito que eclodira no ano anterior. São vários os poemas que, na secção final da última edição de Cancioneiro (1976), fazem referência a Angola ou até, de forma subliminar, à ruína ou ilusão do sonho imperial português. Em 1975, assiste à morte de Maria Franco, esposa e companheira de um longo percurso vida. Debilitado com essa perda e com alguns problemas de saúde agravados com o avançar da idade, morre a 2 de março de 1978, em Lisboa, no Campo Grande, a poucos dias de completar os 81 anos. O seu corpo foi sepultado no Cemitério do Alto de São João, na capital portuguesa, mas parte da sua obra permaneceu ativa, ainda que de forma discreta, seja nas muitas traduções por si realizadas e que continuaram a ser reeditadas; seja no ABM, cuja génese se fica a dever a Cabral do Nascimento e ao seu companheiro de juventude, Álvaro Manso de Sousa. A cidade do Funchal concedeu o nome de João Cabral do Nascimento a uma pequena rua situada no periférico bairro das Virtudes. Uma rua discreta, cortada por outras pequenas ruas e que termina num beco sem saída. A placa identificadora dessa rua apresenta-o como advogado e poeta. Contudo, a sua obra foi, como por aqui se torna evidente, bem mais vasta e complexa do que aí se indica. Obras de João Cabral do Nascimento: As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas (1916); Além-Mar. Poemeto Épico que Fez Joam Cabral do Nascimento para Narrar a História Tormentosa das Caravelas que Aportaram à Ilha da Senhor Infante na Madrugada do século XV (1917); Hora de Noa ou o Livro dos Trinta e Três Sonetos (1917); Alguns Sonetos (1924); “Queiroz póstumo” (1924); “Dez anos depois” (1925); “Acêrca do Museu” (1925); Descaminho (1926); Apontamentos de História Insular (1927); Arrabalde (1928); Documentos para a História das Capitanias da Madeira (1930); Genealogia da Família Medina da Ilha da Madeira, com Algumas Notas Inéditas acerca do Poeta Francisco de Paula Medina e Vasconcelos (1930); Litoral (1932); Poesias Escolhidas (1936); 33 Poesias (1941); Cancioneiro (1943); Confidência (1945); Líricas Portuguesas (1945); Lugares Selectos de Autores Portugueses que Escreveram sobre o Arquipélago da Madeira (1949); Poemas Narrativos Portugueses (1949); Digressão (1953); Fábulas (1955); A Madeira (1958); Colectânea de Versos Portugueses do Século XII ao Século XX (1964).   Ana Salgueiro (atualizado a 03.03.2018)

Literatura