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Em 1556, logo após a promoção de D. Fr. Gaspar de Casal para a mitra de Leiria, D. João III procedeu à indigitação do novo prelado para a Diocese do Funchal, tendo, desta vez, a escolha recaído em D. Fr. Jorge de Lemos, Dominicano, licenciado em teologia, nascido em Lisboa e filho de D. Francisco Velho e de D. Brites de Lemos. A opção por esta figura insere-se num contexto em que se operaram algumas alterações nos critérios de provimento episcopal, que começaram a verificar-se na segunda metade do reinado do Piedoso, patentes, e.g., na preferência de que passaram a ser alvo os religiosos filiados em congregações regulares, particularmente os Dominicanos e os Jesuítas. Com a indigitação de frades militantes naquelas congregações, pretendia-se dotar as Dioceses, sobretudo as ultramarinas, de prelados que acedessem a deslocar-se para as partes mais ou menos remotas do império, a fim de promoverem uma ação evangelizadora e atenta à defesa dos interesses da monarquia nessas paragens. Falhada a tentativa de prover o Funchal com o também Dominicano Fr. Gaspar dos Reis, o Rei escolheu, então, D. Fr. Jorge de Lemos, figura em que se começavam a evidenciar algumas das qualidades que o concílio tridentino, na altura em curso, elegia como curiais para o desempenho do múnus episcopal, a saber, a disponibilidade para a residência e a vivência de uma espiritualidade intensa, a par de necessárias competências administrativas. Confirmado pelo Papa Paulo IV a 9 de março de 1556, o novo bispo tornou-se o primeiro prelado a assumir pessoalmente a condução dos destinos da Diocese. Desembarcado na Ilha em 1558, foi D. Fr. Jorge, naturalmente, bem recebido pelos seus fiéis e logo deu início a um conjunto de reformas de que entendia estar o bispado carecido. Após analisar a composição e as remunerações do cabido, decidiu o bispo proceder a algumas alterações, as quais vieram a resultar na criação de lugares para mais dois moços de coro e no aumento dos vencimentos dos cónegos e capelães. Amante da música, da qual era tão “ciente […] como se professasse”, tinha o bispo trazido de Lisboa um músico a quem encarregou de proceder à reforma do coro da Catedral, tendo desta intervenção resultado a criação do cargo de mestre de capela e do lugar de subchantre, o que, em conjunto com outras modificações que introduziu no regimento interno da Sé, muito contribuiu para que os ofícios religiosos, a que assiduamente assistia, ganhassem nova dignidade (NORONHA, 1993, 90). Outra das situações a que o bispo acudiu logo no próprio ano em que chegou à Ilha dizia respeito à necessidade de se proceder a ordenações, pois os intervalos, relativamente largos, que tinham mediado entre as anteriores visitas episcopais haviam deixado a Ilha carente de clérigos devidamente habilitados. Para suprir essa falta, D. Fr. Jorge de Lemos rapidamente procedeu a um conjunto de ordenações que ficaram registadas em dois livros, um para ordens de epístola e outro para ordens de missa, com data de 10 de dezembro de 1558 e assinaturas de António Costa e do próprio bispo; os livros pertencem ao espólio do cabido da Sé do Funchal. Consciente de que a prolongada ausência de prelado tinha permitido a instalação de um clima de pouca observância dos preceitos religiosos, D. Fr. Jorge de Lemos empreendeu uma campanha de correção dos abusos com recurso a um programa visitacional de que ficaram, porém, muito poucos registos. Da veemência desta intervenção, sobrou para o bispo a fama de ser rigoroso e severo nas punições, mas resultou, também, a promulgação de uma série de medidas que refletiam o empenho episcopal na correção dos desmandos e se traduziram numa produção legislativa que acentuava a necessidade de as justiças seculares auxiliarem as religiosas, tendo em vista o cabal cumprimento das determinações destas últimas. Assim, a 18 de fevereiro de 1588, D. Sebastião fazia publicar alvará onde se ordenava que o corregedor da capitania do Funchal, o provedor dos resíduos e o juiz de fora se disponibilizassem para acudir ao bispo sempre que as pessoas condenadas em visitação a penas até 2000 réis se recusassem a cumprir o castigo. Logo de seguida, a 12 de março, o monarca promulgava nova determinação, que constrangia o corregedor e outros oficiais de justiça na Madeira a prestarem ao prelado toda a ajuda e o auxílio requeridos. Apesar da clareza da mensagem, nem tudo terá corrido da melhor forma na articulação entre os dois braços da justiça, porque, em 1564, o Rei voltava a publicar um alvará em que deixava claro que incumbia aos oficiais judiciais seculares a punição de qualquer pessoa que afrontasse a justiça eclesiástica com más palavras, injúrias ou de qualquer outro modo. A produção de toda esta legislação demonstra bem a vontade de o Rei colocar as justiças mais diretamente dependentes da Coroa ao serviço da administração eclesiástica, à qual, em contrapartida, também era solicitado auxílio para intervir, e.g., quando se detetassem devedores à Fazenda Real nas visitações, e mostra igualmente bem que a monarquia tinha perfeita consciência da importância da Igreja, localmente representada pelos bispos, enquanto instrumento a utilizar no reforço da autoridade dos poderes do centro. D. Fr. Jorge de Lemos, por seu lado, também se esforçava por dar o devido andamento aos processos decorrentes das visitações, e é nesse sentido que devem ser entendidas as diligências que efetuou para comprar, a 5 de março de 1565, umas casas para servirem de aljube, ou seja, de prisão eclesiástica para encarcerar todos aqueles que não tivesse sido possível condicionar de outro modo. Outra área em que foi sensível, e deixou marcas, a intervenção de D. Fr. Jorge de Lemos foi a da reorganização eclesiástica do território urbano do Funchal. Até àquele momento, a cidade não tinha tido mais que uma freguesia, primeiro sedeada junto a Nossa Senhora do Calhau, depois mudada para ocidente da ribeira de João Gomes, quando da elevação do Funchal a cidade e da transferência dos principais serviços religiosos de Santa Maria do Calhau para a igreja grande, e futura Sé, em 1508. O crescimento populacional que entretanto se verificara não se compadecia mais com a estrutura vigente, pelo que o bispo decidiu voltar a autonomizar a paróquia de Santa Maria, a qual se viu transformada em colegiada e dotada de três beneficiados e um pároco, aos quais se veio juntar um cura em 1589. Por alvará de D. Sebastião, com data de 1 de agosto de 1566, foi igualmente criada a freguesia de S. Pedro, que mais tarde se veria também elevada à categoria de colegiada. Em 1561, D. Fr. Jorge de Lemos acedeu a ser provedor da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, mas em 1563 já estava a caminho do reino, pondo fim a um período de residência de apenas 5 anos e a um episcopado que durou, na totalidade, 13. Na corte, onde ia tratar de assuntos relativos à sua Diocese, conseguiu obter de D. Sebastião a carta régia que fundava o Seminário do Funchal. No referido documento, com data de 20 de setembro de 1566, o Rei encomendava a D. Fr. Jorge que “assim o faça fazer e ponha logo em efeito”, mas a celeridade manifestada pela vontade real acabou por ser gorada pela decisão do bispo de não regressar à Diocese, ficando assim o projeto do seminário adiado para um pouco mais tarde (SILVA, 1964, 2). Um dos fatores que, porventura, mais terão contribuído para a recusa do prelado foi o saque de corsários franceses que a Madeira sofreu nesse mesmo ano de 1566, e durante o qual, por um período de vários dias, o Funchal e as zonas vizinhas se viram violentamente atacados e pilhados. Este acontecimento, aliado aos dissabores que a sua intervenção corretiva lhe acarretara, à idade e ao seu precário estado de saúde, foram certamente motivos bastantes para D. Jorge de Lemos ter desistido de retornar à Ilha, ainda que não tenha abandonado as preocupações com ela, como se vê, e.g., pelo facto de a criação da freguesia de S. Pedro ocorrer já no período em que o prelado se encontrava no reino. Como resultado do ataque dos corsários, o capitão donatário da Madeira, João Gonçalves da Câmara, organizou rapidamente no reino uma pequena armada para ir em socorro dos madeirenses e, em conjunto com a tripulação, levou dois Jesuítas com o objetivo de prestar apoio religioso e moral à população. Tão bem se desincumbiram eles da tarefa, que os moradores do Funchal, agradados das prédicas e dos sermões que lhes tinham sido prodigalizados, logo começaram a fazer pressão no sentido de ser a cidade dotada de um colégio daquela ordem, de fundação ainda recente. O Rei, sensibilizado, anuiu às pretensões insulares e, por alvará de 20 de agosto de 1569, autorizou a fundação de um colégio da Companhia de Jesus no Funchal, tendo este sido o último ato digno de registo que ocorreu no período da vigência do episcopado de D. Fr. Jorge de Lemos. Com efeito, a 11 de novembro de 1569, o bispo alcançou, finalmente, a resignação das funções episcopais, que há muito pedia. Depois da renúncia, ficou D. Fr. Jorge de Lemos ocupado no cargo de esmoler-mor de D. Sebastião, o que, segundo Noronha, muito se adequava à personalidade do antigo prelado, cuja disposição para distribuir largas esmolas se tornara patente ainda enquanto bispo, como prova o facto de ter aceitado ser provedor da Misericórdia. Em 1573, faleceu, em Lisboa, o quarto prelado do Funchal, tendo sido sepultado no convento da ordem em que professara. Foi um bom representante da novo perfil episcopal preconizado por Trento, na medida em que não se furtou à residência e, durante o tempo em que, pessoalmente, assumiu a condução dos destinos da Diocese, se manteve atento à correção dos desvios morais dos seus diocesanos, visitando ou fazendo visitar o território, à gestão do território eclesiástico, e aos mais desfavorecidos, a quem distribuía esmola sempre que se lhe deparava ocasião. A sua devoção pessoal traduzia-se na frequência com que assistia aos ofícios divinos na Sé e nos esforços que envidou para que aquelas celebrações decorressem com a maior dignidade. Por tudo isto, seria, com certeza merecedor do elogio que saiu da pena do grande cronista da Ordem de S. Domingos, Fr. Luís de Sousa, que declarou ter o seu priorado sido abençoado pela presença de duas personalidades que muito o honravam: Fr. Bartolomeu dos Mártires, e “frei Jorge de Lemos, Bispo do Funchal, na ilha da Madeira”, acrescentando que, se outras coisas se não pudessem dizer de frei Jorge Vogado, prior da ordem, “senão esta última, assaz merecedor ficava com ela deste lugar” (NORONHA, 1993, 89).     Ana Cristina Machado Trindade (atualizado a 14.12.2017)

Religiões

seminário

Uma determinação do concílio de Trento apontava para a necessidade de criação de seminários como instrumento de formação de um clero mais preparado e capaz de contrariar a Reforma Protestante. Pouco depois desse decreto, no século XVI, e ainda que a sua concretização tardasse alguns anos, a Ilha da Madeira viu ser formalmente criado o seminário. Esta escola caracterizou-se, desde a sua fundação, por uma longa itinerância por diversos espaços da cidade e por um esforço continuado de renovação curricular que pudesse ir acompanhando os tempos. Palavras-chave: Concílio de Trento, seminário, currículo, edifício. A preocupação da Igreja com a formação do clero é muito anterior à existência de seminários, que só foram formalmente instituídos com o Concílio de Trento. Assim, nos períodos anteriores ao Concílio, os futuros eclesiásticos recebiam a sua educação em escolas conventuais ou paroquiais, ministrada por frades para isso deputados ou por párocos que acumulavam as funções de assistência espiritual da sua comunidade de fiéis com as da docência possível. Sendo a falta de uma instrução capaz uma das insuficiências mais sentidas no momento em que a dissidência protestante cindiu a cristandade, a ela se atribuiu grande responsabilidade na facilidade com que se disseminaram os ideais reformistas, sendo essa a razão que levou o Concílio tridentino a determinar a abertura de escolas consagradas à educação dos jovens que pretendiam seguir a carreira eclesiástica. De acordo com Pallavicino, historiador do Concílio, a instituição destas escolas foi mesmo a mais importante obra de Trento, “pois é sabido que em todas as repúblicas, os cidadãos não são mais do que o produto da educação recebida” (SILVA, 1964, 1). Neste sentido, a criação dos seminários representava a intenção de travar o progresso da Reforma Protestante, disponibilizando aos fiéis um corpo de sacerdotes doravante bem mais preparado. No caso do bispado do Funchal, a primeira tentativa de fundar um seminário foi prosseguida pelo bispo D. Fr. Jorge de Lemos (1556-1569), que foi também o primeiro que pessoalmente assumiu a condução dos destinos da Diocese criada em 1514. Nomeado ainda antes do fim do Concílio (1563), o prelado, que após cinco anos de governo presencial se retirou para o reino, instou junto do Rei, D. Sebastião, no sentido de se instaurar no bispado um seminário, isto apenas três anos volvidos sobre o decreto que instituía aquela escola. O Rei deliberou, em carta régia com data de 20 de setembro de 1566, a fundação do seminário, o qual, todavia, apenas seria realmente criado no decurso do episcopado de D. Jerónimo Barreto (1574-1585), que foi indigitado bispo do Funchal em 1573 e foi para a Ilha no ano seguinte. Ainda antes de abandonar o reino, D. Jerónimo Barreto voltou a abordar o Soberano para lhe solicitar cópia da carta que instituía o Seminário, dado ter-se perdido o primeiro exemplar do documento, ao que o Rei prontamente acedeu. Chegado à Ilha – e em data indeterminada, que Fernando A. Silva situa entre 1575 e 1585 e que Abel Silva propõe ter sido num momento mais próximo de 1575-1576, com o argumento de que o interesse manifestado pelo prelado não se compadeceria com grandes delongas –, o Seminário do Funchal é finalmente instituído. A urgência da instalação não permitia as necessárias demoras com a construção de um edifício de raiz para abrigar os seminaristas, até porque, na altura, nem o próprio bispo gozava, ainda, do privilégio de habitação construída para paço episcopal, o que só viria a acontecer no virar do século XVI, com D. Luís de Figueiredo Lemos (1586-1608). Assim, o Seminário ficou inicialmente alojado na morada do prelado, situada perto da que foi depois chamada ponte do Torreão, nas cercanias, portanto, do Colégio dos Jesuítas, que, por esse tempo, começava a lecionação de algumas das disciplinas que integravam o currículo dos seminaristas: Teologia, Moral, Latim e Retórica. A cargo do Seminário propriamente dito ficariam o ensino da Gramática e do canto, conforme se pode depreender do documento de fundação da escola, no qual mandava o Rei atribuir à instituição os 45.000 reis que até ao momento se pagavam aos mestres de gramática e de canto que havia na cidade. Em 1590, um relatório de visita ad sacra limina, da autoria de D. Luís Figueiredo de Lemos, dava conta do funcionamento da escola, da renda de que dispunha (850 ducados concedidos pelo Rei) e de um número indeterminado de seminaristas que frequentavam as aulas do colégio, onde eram “instruídos em letras e virtudes, para depois, com honestidade, se desempenharem do cuidado das almas” (SILVA, 1964, 5). Este mesmo prelado deliberou a construção do paço episcopal, que igualmente se situava nas imediações dos Jesuítas, ao qual anexou o Seminário, passando então os jovens alunos a residir numa rua que, a partir do paço, tomou o nome de R. do Bispo. A determinação do número de colegiais que poderiam frequentar o Seminário foi tarefa atribuída pelo Rei ao prelado, que o deveria fazer tendo em conta as rendas disponíveis; e foi assim que D. Jerónimo Barreto se decidiu por 10 estudantes, quantitativo que se manteve até 1789, quando passou a 12, tendo posteriormente sido alargado a 18. Cerca de 100 anos depois da sua instalação no paço episcopal, o Seminário viu-se transferido para umas casas inicialmente destinadas a um convento que nunca se chegou a concretizar. A razão da mudança prende-se com a vontade do bispo de então, D. José de Sousa de Castelo Branco (1698-1721), de alargar os aposentos episcopais, pelo que os seminaristas foram ocupar as instalações devolutas situadas na rua que, a partir daí, ganhou a designação “do Seminário”. Ali se mantiveram os jovens candidatos ao sacerdócio até que, em 1748, um sismo de magnitude considerável abalou a cidade, provocando danos em muitas habitações, nas quais se incluía o prédio do Seminário. Governava, então, a diocese D. Fr. João do Nascimento (1741-1753), que muito se empenhou na reconstrução do edifício, tal como já antes se comprometera com a reforma da instituição, para o que fizera publicar, a 12 de dezembro de 1746, uns estatutos que deveriam regular toda a vida do Seminário. Assim, logo no capítulo I, dispunha o bispo as condições de admissão de colegiais ou porcionistas (que se distinguiam dos primeiros por pagarem parte do seu sustento, enquanto alunos), indicando que deveriam ter no mínimo 12 anos, ser filhos de legítimo matrimónio, não ser suspeitos de raça moura, negra ou judaica ou de “outra nação infeta”, e saber ler e escrever. Acrescentava, o bispo que, apesar de o texto do Concílio dispor que não seria necessária mais ciência para além destes conhecimentos iniciais, lhe parecia conveniente virem já instruídos de alguns princípios de gramática e solfa, pois a ignorância destas bases dilatava excessivamente o tempo de permanência dos alunos na instituição. Nos mesmos estatutos, mas agora no capítulo V, preconizava-se o programa total de estudos que, de uma duração total de sete anos, dedicava os primeiros quatro ao Latim e à Solfa, e os últimos três à Moral e à Filosofia. Ao arruinar o edifício do Mosteiro Novo, o já referido terramoto de 1748 vai obrigar os alunos a abandonarem o prédio e a andarem itinerantes por um período de 12 anos, sendo possível que se tivessem abrigado nas instalações do antigo convento seráfico, nas margens da Ribeira de S. João. Na sequência do abalo, pretendeu o prelado mudar a localização da escola para mais perto da Sé, no local correspondente ao que foi depois o Lg. da Restauração, mas não logrou obter do Rei a necessária autorização, pelo que o estabelecimento se manteve onde estava, sujeito a um processo de deterioração que já tinha obrigado D. José de Sousa Castelo-Branco a agir. A intervenção do prelado não se revestiu, contudo, da profundidade suficiente, o que explica que o bispo seguinte, D. Fr. Manuel Coutinho (1725-1741), constatasse a emergência de obras que orçaram em 300.000 réis, os quais, segundo ele informava em relatório de visita ad sacra limina de 1735, se supririam em parte pelos rendimentos de alguns benefícios vagos, e em parte a expensas do próprio prelado. Apesar da boa vontade de D. João do Nascimento e dos novos estatutos da escola, o prelado seguinte, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1757-1785), chegou ao Funchal acompanhado por dois missionários lazaristas que, entre as tarefas de pregação e visitações, também vinham incumbidos de proceder às de reorganização do seminário. Contudo, o estado de degradação do edifício continuou a configurar-se como um impedimento que obstou à pretendida intervenção dos lazaristas, conforme afirma Luís Machado de Abreu. Na narrativa da sua estadia na Madeira, os dois missionários referem que trabalharam com os ordinandos, propondo-lhes exercícios espirituais “num hospício fora da cidade com capela dedicada a S. João Batista”, o que permite conjeturar que durante algum tempo o referido hospício pudesse ter alojado os seminaristas (SILVA, 1964, 11-12). A expulsão dos Jesuítas, em 1759, tornou devolutas as instalações do seu colégio, o que levou D. Gaspar Afonso da Costa Brandão a reivindicar aquele espaço para aí alojar o Seminário. Este desiderato, porém, só veio a materializar-se no episcopado seguinte, de D. José da Costa Torres (1786-1796), que obtém de D. Maria I a ansiada autorização, por provisão de 22 de setembro de 1787, onde também se faz eco das queixas do bispo em relação à falta de mestres para ensinar os seminaristas, função que era dos Jesuítas, e ficara a descoberto, por força da sua expulsão. Para suprir esta carência, adianta Fernando Augusto da Silva a possibilidade de os Franciscanos terem assegurado a lecionação, mas a falta de suporte documental inviabiliza a confirmação desta hipótese. Poderá, porém, supor-se que o facto de os seminaristas receberem formação no antigo convento seráfico de S. João da Ribeira possa ter deixado instalar a ideia de que as aulas seriam ministradas por Franciscanos, e não por Lazaristas, como efetivamente aconteceu. A disponibilidade de D. Maria I para ajudar a melhorar a situação do Seminário traduziu-se ainda no aumento de rendas para a instituição, às quais anexou os rendimentos de algumas capelas que, por estarem vagas, tinham passado a integrar o património do Fisco da Real Coroa e que, no seu conjunto, disponibilizaram mais 936.400 réis, que assim se vinham juntar aos anteriores 663.000 réis com que a Alfândega do Funchal já financiava a instituição. O facto de o edifício do Colégio já estar desabitado há cerca de 30 anos obrigava a que também nele houvesse que fazer obras, tarefa que D. José da Costa Torres abraçou, em paralelo com outra intervenção que visava a reorganização do plano de estudos. Essa reorganização encontra-se espelhada num edital, com data de novembro de 1787, que o bispo fez afixar na porta da Sé, onde se determinava que os candidatos à primeira ordem sacra teriam de mostrar suficientes conhecimentos de Latim, Retórica e Filosofia Racional e Moral, o que seria certificado por um exame prévio. A instrução em Ciências Eclesiásticas era também requisito para a prossecução de estudos, sendo, porém, adequada ao grau a que se apresentavam os candidatos. Para o acesso ao sacerdócio exigia-se ainda algum domínio de Direito Canónico, Direito Público Eclesiástico, Dogmática e Teologia Moral, assuntos sobre os quais deveriam ser instruídos “pelo tempo que nos parecer necessário” (SILVA, 1965, 15). O número de seminaristas estava agora fixado em 12, embora o prelado manifestasse vontade de aumentar esse quantitativo logo que a disponibilidade financeira o permitisse. Concluídas as obras de reparação do Colégio, a mudança do Seminário para o novo edifício operou-se a 31 de março de 1788. Mas o facto de a doação das capelas operada pela Rainha não ter sido um processo linear, uma vez que algumas delas já tinham sido atribuídas a pessoas que agora delas não queriam prescindir, levou a que o bispo tivesse de empreender novas diligências no sentido de vir efetivamente a desfrutar dos rendimentos prometidos, sem os quais não seria possível manter o ambicioso projeto de reforma do Seminário. Ultrapassada essa questão, poderia supor-se que a escola eclesiástica pudesse, finalmente, estar disponível para o crescimento que se desejava; mas algumas circunstâncias da política internacional encarregar-se-iam de trazer novos dissabores à instituição. Assim, em 1801, e já em tempo do novo antístite, D. Luís Rodrigues Vilares (1797-1810), a conjuntura política internacional, marcada pela ação de Napoleão Bonaparte, determinou que os Ingleses fossem para a Madeira, a fim de defender a Ilha, e os seus interesses em particular, da cobiça dos Franceses. O desembarque de um contingente de alguns milhares de homens trouxe consigo o problema das acomodações dessa tropa, e, depois de várias reclamações britânicas, entre as quais a de estarem mal instalados os seus homens, o comandante inglês forçou o então governador da Madeira, D. José Manuel da Câmara, a desocupar o edifício do Colégio para aí se aboletarem os soldados britânicos, que viriam a permanecer nesse local até abandonarem a Ilha, em 1802. De novo sem acomodações, o Seminário viu-se, uma vez mais, transferido para o paço episcopal; mas a saída dos Ingleses veio permitir ao prelado a reclamação da cedência do Colégio, agora vago, a fim de aí se reinstalar a escola. Esta pretensão episcopal não encontrou, contudo, eco no governador, que a ignorou, optando por entregar o Colégio a militares portugueses, que o transformaram em quartel. A atitude do governador veio agravar as já tensas relações entre ele e o prelado; a inflexibilidade demonstrada pelas duas partes naquilo que cada uma considerava ser seu direito tornou-se um fator determinante no exílio a que o governador sujeitou o bispo, obrigando-o a um desterro de alguns meses na freguesia de Santo António da Serra. O facto de o governador ter sido posteriormente sancionado pelo reino com a destituição do cargo não veio, contudo, trazer melhorias dignas de registo à situação do Seminário, que continuou abrigado no paço do bispo até 1810, altura em que novamente foi transferido para as antigas instalações no Mosteiro Novo, onde haveria de permanecer até à construção de edifício de raiz, em 1909. Neste período de aproximadamente 100 anos, o plano curricular da escola foi sendo objeto de sucessivas alterações, que procuravam pô-lo a par das transformações que o mundo à sua volta sofria. Assim, se em 1812 apenas se conseguiam ministrar as aulas de Teologia Moral, já no ano seguinte vinham-se juntar a esta disciplina as de Teologia Dogmática e Filosofia Racional, o que era obviamente escasso mas era o possível nos tempos conturbados que então se experimentavam. Em 1814, o vigário capitular, D. Joaquim de Meneses e Ataíde (1811-1819), pretendeu implementar um programa formativo bem mais ambicioso, do qual constavam cadeiras novas como Francês, Inglês, Geografia e Desenho, que surgiam a par das já habituais Teologia Dogmática e Moral, História Eclesiástica, Música, Cantochão e Latim, mas não se conseguiu determinar se este projeto chegou, de facto, a ser experimentado. As notícias do currículo do seminário que se reportam ao ano de 1822 dão conta de um curso onde apenas figuram aulas de Gramática Latina, Latinidade, Francês, Retórica, Filosofia e Teologia. As dificuldades políticas que então sofria a Madeira, que se ressentia de nova ocupação inglesa (entre 1807 e 1714), e a posterior implantação do liberalismo (em 1820) foram trazendo dificuldades acrescidas à vida do seminário. Apesar de uma lei de 1845 determinar que nas escolas eclesiásticas funcionasse “um curso de estudos teológicos e canónicos” que englobasse as matérias de “instrução prática do catecismo, de explicação do evangelho, da forma de administração dos sacramentos, da prática dos ritos e das cerimónias da Igreja, do canto e de todos os mais exercícios espirituais e eclesiásticos”, a verdade é que, dois anos depois, apenas se conseguia assegurar a lecionação de Teologia Moral, estando suspensa a Dogmática, que só veio a ser reintroduzida por ação do bispo D. Manuel Martins Manso (1850-1858), que conseguiu ainda restabelecer o ensino de Escritura Sagrada, em 1858. Esta formação deficitária procurava completar-se com alguns cursos esporádicos sobre assuntos teológicos e morais (SILVA, 1946, 264). Entretanto, a nível nacional, foi promulgada legislação que obrigava à organização de cursos teológicos trienais, compostos por, no mínimo, oito cadeiras. Na Madeira, a implementação desta determinação foi levada a cabo por D. Patrício Xavier de Moura (1859-1872), que a 1 de outubro de 1865 fez publicar um edital do qual constavam as novas regras a aplicar ao ensino religioso. O desenho curricular proposto compreendia a lecionação de História Eclesiástica e Sagrada, Filosofia do Direito e Teologia Dogmática no 1.º ano, a que se seguiam, no 2.º, Teologia Dogmática Especial, Direito Canónico e Teologia Moral. Para o 3.º ano estavam reservadas as disciplinas de Teologia Pastoral, Eloquência Sagrada, Hermenêutica e a prossecução de Teologia Moral, excedendo-se, assim, em uma disciplina, o mínimo preceituado (ACDF, cx. 32-A, doc. 10). A partir da criação do Liceu do Funchal, em 1837, a preparação dos alunos anterior ao ingresso no Seminário era assegurada por aquela instituição, situação que se manteve até 1877 – ano em que a ida para o Funchal do bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1877-1911) determinou, mais uma vez, uma profunda alteração na vivência educativa do Seminário. Com efeito, D. Manuel Agostinho Barreto, chegado à Ilha em fevereiro, dedicou-se de imediato ao problema da reforma da escola, onde interveio não só para a dotar de um currículo novo, mas também com o propósito de melhorar o clima interno de convivência dos alunos, segundo ele demasiado desacompanhados, por terem a liderar a instituição um reitor e um prefeito ocupados em diversas tarefas para além das de supervisão do Seminário. Dispondo, no momento, apenas das velhas e degradadas instalações do Mosteiro Novo, o prelado não se deixou amedrontar pelas circunstâncias; e, mesmo nesse edifício decrépito, deu início ao processo de transformação da escola, que passava por recriar os serviços religiosos e disciplinares, bem como pela introdução de um curso preparatório de ensino secundário, anterior à frequência dos três anos finais da formação. Com a transferência do ensino secundário para o interior do Seminário, o prelado pretendia evitar as perturbações que a saída diária para o Liceu provocava nos alunos, que a partir de então se poderiam concentrar de forma mais consistente no programa de estudos que lhes estava destinado. Ignorando o coro de críticas que lhe foi dirigido, quer pela sociedade em geral, quer mesmo por alguns elementos do clero que consideravam o plano de reforma demasiado radical e ambicioso, D. Manuel Agostinho Barreto conseguiu abrir as aulas em outubro do ano em que chegou. Para levar a bom termo este arrojado projeto de inovação, o bispo fez-se rodear de auxiliares preciosos, que o ajudaram a concretizar os seus objetivos. Foi um deles o P.e Ernesto Schmitz, membro da Congregação da Missão que, em 1878, fora para o Funchal para desempenhar a função de capelão do Hospício. Logo no ano seguinte, foi-lhe confiada a tarefa da direção espiritual do Seminário, que acumulava com a de capelão. A partir de 1881, contudo, passou a dedicar-se em exclusivo às atividades escolares, vindo depois a alcançar a posição de vice-reitor do Seminário. Foi sob a direção do P.e Schmitz que a reforma de D. Manuel Agostinho Barreto começou a concretizar-se, quer na vertente da alteração do comportamento dos seminaristas, doravante submetidos a este “disciplinador inflexível”, quer no tocante ao corpo curricular, que passou a integrar o estudo de matérias como a Zoologia, a Física, a Química e até a Sociologia (SILVA, 1946, 273). Foi, sobretudo, na área da Zoologia que o P.e Schmitz se notabilizou, investindo numa investigação que tornou a Madeira parte do mundo culto daquela época, nomeadamente através da produção de importantes coleções de exemplares de fauna terrestre e marinha do arquipélago, que mais tarde deram origem a um Museu de História Natural. Por pertencer a uma congregação religiosa, o P.e Schmitz estava obrigado a uma obediência que o forçou a abandonar a Madeira em 1899, a fim de ir dirigir um colégio na Bélgica. Regressado ao Funchal e ao Seminário em 1902, deixou definitivamente a Ilha em 1908, desta vez rumo a Jerusalém, onde veio a falecer em 1922. A transformação que o prelado pretendia fazer no Seminário contemplava a construção de raiz de um edifício para a instalação da escola que, até então, não desfrutara de tal privilégio. A ocasião veio a proporcionar-se em 1902, altura em que o bispo, por ter recebido vultuosa herança, se achou capaz de meter ombros à tarefa. Na busca de terreno apropriado para erguer o Seminário, o prelado deparou-se com as ruínas do antigo Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação, cujas instalações se tinham vindo a degradar consideravelmente depois da morte da última freira, ocorrida em 1890, e que acabou por ser cedido à Diocese pelo Governo do reino em decreto de 11 de julho de 1905. Logo no ano seguinte começaram as obras, que deitaram abaixo tudo o que restava do velho mosteiro, exceto o coro e a capela. Em 1909 estava pronta metade da construção, e D. Manuel Barreto entendeu haver condições para operar a transferência dos alunos, o que se processou em outubro do mesmo ano. Mas, quando esperava poder concluir o empreendimento, foi surpreendido pela Implantação da República, a 5 de outubro de 1910, e pela obrigatoriedade da extinção do Seminário, decretada pela lei da separação da Igreja e do Estado, datada de 20 de abril de 1911. Este conjunto de circunstâncias poderá ter contribuído para apressar a morte deste bispo (que se encontrava com mais de 70 anos), ocorrida apenas dois meses mais tarde. Iniciava-se então novo período no já acidentado percurso daquela escola, que nunca fora possível fixar num espaço. Os antigos seminaristas voltaram ao velho edifício do Mosteiro Novo, onde permaneceram até 1916; no ano letivo seguinte, instalaram-se no paço episcopal e dali passaram, em 1918, para uma quinta no Trapiche, nos arredores do Funchal, rumando em 1919, e mais uma vez, para o Mosteiro Novo. Em 1913, o abandonado edifício da Encarnação foi destinado ao funcionamento de uma escola exclusivamente feminina de Utilidades e Belas Artes, projeto que acabaria por se extinguir em 1919. Nesse mesmo ano, a Junta Geral solicitava ao Governo central licença para instalar no prédio diversas repartições suas, o que lhe foi concedido mediante o pagamento de uma renda. A Igreja madeirense, e designadamente o novo bispo, D. António Manuel Ribeiro (1914-1947), considerou injusta a apropriação do edifício da Encarnação por parte dos poderes civis e foi repetidamente tentando fazer regressar o prédio à sua tutela. Desta insistência, da promulgação de nova legislação que autorizava a existência dos seminários suprimidos e de um estudo que mostrava a ilegalidade cometida pelo Estado na apropriação do edifício da Encarnação acabou por resultar, em 1927, um decreto que previa a restituição do prédio à Igreja. Esta decisão desagradou à Junta Geral, que a ela se opôs, negando-se à devolução e interpondo variados recursos, com que conseguiu protelar a decisão final por mais seis anos. Resolvido, finalmente, o contencioso, em outubro de 1933 os seminaristas regressaram ao edifício, nele se mantendo até 1975. Entre 1933 e 1958, o Seminário da Encarnação era o único que existia na Madeira. Mas como, a partir daquele último ano, as normas de Roma passaram a exigir a presença de dois seminários, um maior e um menor, o bispo que então dirigia a Diocese, D. David de Sousa (1957-1965), diligenciou, com auxílios quer da Igreja quer da sociedade civil, a aquisição do antigo Hotel Bela Vista, situado na R. do Jasmineiro, depois transformado em seminário maior. Quando, em 1974, D. Francisco Santana (1974-1982) se tornou bispo do Funchal, decidiu transformar o edifício da Encarnação em centro pastoral diocesano, para o que o libertou da presença dos alunos a fim de se realizarem algumas obras. Os tempos conturbados que então se viviam, ainda muito próximos da Revolução de 25 de abril, a convicção de que o prédio estaria devoluto e o enorme acréscimo de alunos que então assoberbava a escola pública levaram a que, em outubro desse mesmo ano de 1974, o edifício fosse ocupado por alunos e professores. Perante a consumação daquele facto, a Diocese optou por cobrar uma renda e autorizar a instalação da Escola Básica de 2.º e 3.º Ciclos Bartolomeu Perestrelo, que ali se manteve até ser ela própria dotada de um edifício de raiz, o que veio a acontecer em 2005. Os seminaristas que estudavam no 2.º e 3.º ciclos do ensino básico passaram então a ter aulas numa escola apostólica criada para o efeito, antes de prosseguirem a sua carreira académica fazendo o secundário na R. do Jasmineiro. Com vista a resolver o problema dos jovens que não dispunham de recursos económicos, decidiu-se que eles pernoitariam no seminário e frequentariam o ensino público. Após a morte do prelado, a escola apostólica passou a funcionar no Seminário Menor. A partir dos anos 60 do séc. XX, as funções do Seminário Maior transitaram para Lisboa, passando os jovens a formar-se em variados seminários e na Universidade Católica. Isto deu-se depois de se ter tentado acomodar o Seminário Maior do Funchal nas instalações dos Dehonianos em Alfragide, experiência que não deu os resultados pretendidos, passando os seminaristas a ficar alojados nos seminários maiores de Braga, Porto e Lisboa. No Funchal, no início do séc. XXI, os candidatos à vida sacerdotal mantinham-se na R. do Jasmineiro, fazendo a sua formação escolar até ao 9.º ano em escolas públicas e transitando depois para a Associação Promotora do Ensino Livre, fundada em 1978, onde concluíam o ensino secundário.   Cristina Trindade (atualizado a 30.12.2017)

Religiões

remates de telhado

Uma das originalidades da arquitetura popular madeirense são os remates de telhado, colocados nos extremos dos beirais, que aparecem, por exemplo, com cabeças de menino e de senhora, pombas, bem como outros animais, folhas de acanto, naturalistas e estilizadas, numa diversidade francamente interessante e quase única no contexto nacional. Não temos referências sobre a sua origem, sendo sempre evasivas as respostas dadas pelos mais antigos proprietários, que se refugiam no costume e pouco mais. Nenhum deles conseguiu, pois, explicar por que se optou por este ou aquele modelo e não por outro, não tendo, em princípio, a mínima ideia de qualquer significado que possam ter estes elementos. Cabeça de menino. Foto: BF As construções urbanas e mais abastadas apresentam remates congéneres da arquitetura portuguesa e internacional divulgada nos finais do séc. XIX, com recurso a platibandas rematadas com urnas, algumas de faiança das fábricas do norte de Portugal, provavelmente de Vila Nova de Gaia. Já muito raras são as figuras alegóricas, igualmente em faiança, que proliferaram também a partir dos finais desse século como remates de fachada, sendo quase todas entretanto apeadas, tal como as decorações de algumas fachadas com azulejos arte nova, que vão igualmente rareando. Se alguns remates centrais de telhado em forma de agulha são semelhantes aos vigentes no continente, os figurativos que rematam os beirais na arquitetura popular madeirense afastam-se, no entanto, totalmente dos congéneres continentais, constituindo uma marca e uma presença profundamente originais que teima em sobreviver. A configuração destes remates de telhado que conhecemos na Madeira não é, em princípio, muito antiga, pois que a cobertura por telha com beiral não deve ser anterior aos meados do séc. XVIII. Na pouca iconografia que conhecemos, quase toda de caráter senhorial ou militar, as coberturas de telha são interiores às empenas, fazendo convergir as águas sempre para caleiras igualmente interiores e saindo as mesmas por gárgulas na divisão dos telhados, quase sempre múltiplos. Acresce que, até meados e finais do séc. XIX, a arquitetura popular e tradicional madeirense manteve-se com coberturas de colmo, sendo raras as coberturas de telha. Nas descrições dos muitos viajantes estrangeiros que passaram pela Madeira, em princípio mais sensíveis às especificidades locais que os naturais, não lhes é feita qualquer referência aos remates, pelo que, a existirem, não teriam, por certo, a exuberância que lhes conhecemos hoje. A atenta inglesa Isabella de França (1795-1880), no Journal da sua visita à Madeira, em 1853, dedica duas linhas à arquitetura popular, dizendo apenas que, nas habitações mais modestas, “as telhas estão seguras com pedras, de forma que o vento as não leve, e rematam-se no topo com uma panela de barro invertido” (FRANÇA, 1970, 65). A utilização destas marcas ou sinais, no entanto, tem de ser muito antiga e de se encontrar profundamente enraizada no sentir e viver populares para ter tido, nos inícios do séc. XX, a espantosa e invulgar popularidade com que chegou até nós. Sendo já pontual nos Açores – em alguns casos, por recente importação da Madeira, como na Caloura, na ilha de S. Miguel –, reduz-se, no território continental, a uma outra estilização mais erudita e cosmopolita do que a existente nas áreas periurbanas e rurais madeirenses. Aliás, também na área periurbana do Funchal e nas habitações mais abastadas, a opção vai para a aplicação de elementos mais estilizados e menos figurativos, como folhas de acanto e concheados. Este costume perdeu-se quase por completo nos Açores, sendo, no entanto, referido por vários investigadores, como Luís Bernardo Leite de Ataíde, Alfredo Bensaúde e Ernesto Ferreira, que associam essas antigas representações às festividades do Espírito Santo, embora admitindo o seu cariz arcaico e fálico. Efetivamente, até o termo “pomba” ou mesmo “pombinha” têm em ambos os arquipélagos fortes ressonâncias sexuais, sendo, tanto nos Açores como na Madeira, fortemente inibitórios. De resto, a pombinha do Espírito Santo, tão celebrada pelos foliões, representa sempre a proteção e é celebrada como símbolo da abundância e da fecundidade, não espantando o seu aparecimento emblemático nas habitações, como elemento zelador da família no campo da saúde, bem-estar e alegria do lar. Pombo. Foto: BF A grande diferença dos remates madeirenses é a sua associação às cabeças de menino, mas também a cabeças femininas, mais requintadas e com elementos específicos de abastança, como brincos e colares. Parece, assim, estar-se na presença, não só de símbolos de virilidade, fertilidade e abundância, como seriam as pombas evocativas do Espírito Santo, que a Igreja Católica reservou como instrumento divino de Encarnação da Virgem, como da felicidade imediata do casal, como seriam as cabeças de menino, alusivas aos filhos que geraram. A generalização do costume dos remates de telhado em forma de pomba levou, no entanto, à sua utilização em outras habitações, como na residência paroquial de S. Pedro do Funchal, um dos poucos exemplares verdadeiramente artesanais localizados em plena cidade e obtidos pela modelação de argamassa e telha recortada. A enorme divulgação dos remates de teto figurativos na Madeira parece estar associada ao surto de construção ocorrido entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, que surgiu na sequência da divulgação da telha Marselha e adveio do poder económico dos emigrantes de “torna-viagem” (Emigração), especialmente de Demerara, daí a designação “demeraristas” dada às suas habitações (Arquitetura). Deve datar dessa época a encomenda massiva às antigas olarias madeirenses dos remates e a sua execução em barro então cozido por moldes, embora também apareçam exemplares em fibrocimento. Existem cerca de meia dúzia de variantes das pombinhas, em repouso ou com asas levantadas, sendo inclusivamente utilizadas como remates e decoração das asnas superiores dos tetos, que parecem já apontar, por vezes, para um gosto orientalizante ou orientalista, dito “chinoiserie”. A utilização destes remates é, aliás, muito comum na arquitetura chinesa, tendo influenciado decidamente alguns exemplares madeirenses mais eruditos, como os dragões chineses que ainda subsistem numa habitação abastada do sítio do Trapiche, na freguesia de Santo António do Funchal, onde as telhas de divisão das águas se apresentam decoradas no dorso com elementos lanceolados, e que também existiram numa outra habitação da freguesia do Monte, junto do cemitério, que foi já demolida. A imaginação popular, entretanto, foi criando outras variantes, como papagaios, muito divulgados, alguns tipos de cabeças de cão, gatos em meia figura – que surgem no centro de Machico ligadas às datas de 1924 e 1932 – e galos, sendo estas duas últimas figuras algo raras. Relativamente às figuras de cão, deve registar-se alguma influência inglesa, uma das matrizes de referência da cultura madeirense dos finais do séc. XIX, pois que o modelo que se tipificou foi o do buldogue, e não o dos normais cães de guarda portugueses. As variantes das folhas de acanto também são várias, podendo aparecer colocadas na vertical ou inclinadas e simplificadas para pequenos elementos lanceolados ou pela aplicação de simples pontas obtidas pelo recorte de telhas. Divulgaram-se igualmente elementos inspirados em concheados, conhecidos como “patas de leão”, que, dada a extinção das olarias na RAM, passaram a ser comercializados por olarias continentais. Os novos modelos da arquitetura e da construção civil já não contemplam a aplicação destas antigas marcas ancestrais e o encerramento das olarias madeirenses, na última década do séc. XX, decretou o fim desta ancestral tradição.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

Antropologia e Cultura Material Arquitetura Cultura e Tradições Populares

pacheco, antónio aires

António Aires Pacheco Nasceu em São Bartolomeu de Vilarouco, concelho de São João da Pesqueira, distrito de Viseu, a 15 de setembro de 1854. Cursou Teologia no Seminário do Funchal e foi ordenado sacerdote, em agosto de 1880, pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), que o levou para a Madeira aquando da sua tomada de posse efetiva da Diocese, em 1877. Exerceu as funções de professor e vice-reitor do Seminário Diocesano e foi elevado à dignidade do canonicato em 1888. De 1882 a 1889, foi redator do semanário madeirense A Verdade que, a partir de 14 de abril de 1883, ostenta como subtítulo: “Semanário religioso, polémico e noticioso”. Este órgão da Associação Católica do Funchal não refere no cabeçalho o nome do redator, mas o Elucidário Madeirense afirma-o e o próprio semanário, numa pequena notícia no n.º 524, de 24 de agosto de 1885, à página 3, informando o regresso ao Funchal do P.e António Ayres Pacheco, vindo de Santana, refere-o nessa função; também o n.º 568, de 21 de julho de 1886, ao noticiar, na página 1, a realização de exéquias na Sé do Funchal por alma do Maj. Daniel Simões, professor do Liceu, informa que o pregador será o P.e Ayres Pacheco, “redator principal desta folha”. Exerceu ainda o cargo de diretor espiritual da Associação Católica do Funchal, que fora criada a 21 de junho de 1874, e que passou a publicar o referido semanário a partir de 10 de Fevereiro de 1875. O envolvimento do semanário em muitas polémicas – com a imprensa local, com o alferes César de Freitas e até com o Cón. Filipe José Nunes, em vários artigos não assinados e que portanto deveriam ser da autoria do redator – terá possivelmente ditado a partida do então já cónego da Sé do Funchal para Lisboa. Efetivamente, a 4 de junho de 1897, pediu a demissão das funções de cónego da Diocese do Funchal, passando a estar incardinado no Patriarcado de Lisboa, onde começou a exercer as mesmas funções em outubro de 1901. Foi ainda capelão e mestre-de-cerimónias da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, bem como desembargador da Relação e Cúria Patriarcal. A 19 de janeiro de 1912, é-lhe passada carta de pároco encomendado para a freguesia de Nossa Senhora das Mercês. Entre 1912 e 1923, foi, por diversas vezes, vigário-geral interino e provisor do Patriarcado. Distinguiu-se como orador sagrado, tendo pregado em diversas localidades, nomeadamente Funchal, Lisboa, Porto e Barcelos, merecendo especial destaque as orações fúnebres proferidas nas exéquias do Rei D. Luís, na Sé do Funchal, no dia 29 de novembro de 1889, e nas exéquias do Rei D. Carlos e do príncipe Luís Filipe, a 25 de abril de 1908, no Mosteiro dos Jerónimos. Foi também notável a sua ação como polemista católico, com o opúsculo O Sudário Negro no Banco dos Réus, em resposta ao folheto O Sudário Negro ou Apontamentos para a Biografia de D. Manuel Agostinho Barreto Bispo do Funchal, publicado pelo jornalista Frederico Pinto Coelho (1851-1916) em 1881, e ainda com um opúsculo em defesa de D. António Mendes Belo, no qual apresentou vários documentos relativos à expulsão do patriarca de Lisboa. Para além disso, colaborou nos jornais A Época e Novidades. Foi-lhe atribuída a comenda da Ordem de São Tiago. Faleceu em São João da Pesqueira, a 3 de novembro de 1946. Obras de António Aires Pacheco: O Sudário Negro no Banco dos Réus (1882); El-Rei D. Luís I. Oração Fúnebre (1890); No Templo dos Jerónimos. Oração Fúnebre Proclamada nas Exéquias de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luís Filipe, Mandada Celebrar pelo Governo no dia 25 de Abril de 1908 (1908); A Expulsão do Senhor Patriarca D. António I. Documentos para a História da Perseguição Religiosa em Portugal (1912).     Gabriel Pita (atualizado a 19.12.2017)

Religiões

palácios

O termo “palácio” parece não ter sido utilizado na Madeira durante os primeiros séculos de povoamento, sendo geralmente empregados os vocábulos “aposento”, “casas” ou “paços”, palavra a que recorreu o doutor Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) nos finais do séc. XVI. O termo “paço”, com a mesma raiz latina que “palácio”, apresenta variantes nos séculos seguintes, nomeadamente “solar” ou “moradia”, como era denominada a residência dos Carvalhal, passando a designação para a rua e sendo depois corrompida para “mouraria”. Na planta do brigadeiro Reinaldo Oudinot (1747-1807), de outubro de 1804, aquela ainda aparece registada como “Rua da Moradia” (IGP, cota 539). Planta da cidade do Funchal. Agostinho José Marques Rosa. Arquivo Rui Carita. Em rigor, o solar é a casa onde nasceu uma determinada linhagem nobre, passando assim de geração em geração, o que em relação aos novos domínios da expansão portuguesa tem aplicação difícil, pois os elementos fundadores vieram de fora, tornando-se complicado concretizar se, p. ex., os Esmeraldo nasceram na importante residência da rua que ainda hoje tem o seu nome ou no chamado Solar dos Esmeraldos, na Lombada da Ponta do Sol (Arquitetura senhorial). Acresce que as principais famílias terratenentes começaram a fixar-se na cidade logo entre os sécs. XVI e XVII, pelo que a utilização do termo “solar” apresenta limitações, sobretudo quando como que se duplica, como acontece no caso do Solar do Aposento, em Ponta Delgada, ligado à família de Horácio Bento de Gouveia (1901-1983) e cuja última proprietária foi D. Maria Hilária Dinis Abreu de Freitas (m. 2003). Solar do Aposento. Ponta Delgada. Arquivo Rui Carita. Uma das primeiras utilizações do termo “palácio” deve ter sido a que fez o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598), em referência à fortaleza do Funchal, que disse ser um “bom palácio residencial”, apesar de entender que pouco valia como obra de defesa (AGS, Guerra y Marina, leg. 127, docs. 42 e 46) (Palácio e fortaleza de S. Lourenço). Os cronistas insulares, como Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) ou o mencionado Gaspar Frutuoso, não utilizaram o termo “palácio”. Este cronista açoriano, embora com base no texto que Dias Leite lhe enviara do Funchal, acrescenta inúmeras informações recolhidas por pessoas que conheciam a Madeira, dado que o próprio nunca terá estado na Ilha. Faz assim menção ao “aposento antigo, muito rico, com casa de dois sobrados e pilares de mármores nas janelas e em cima seus eirados” de João Esmeraldo (c. 1460-1536); às “ricas casas e aposentos” onde morava Pedro de Valdavesso e Francisco de Salamanca; às “ricas casas de dois sobrados, com poço dentro e portas de serventia”, na “chamada Rua do Sabão”, onde morava o escritor Tristão Gomes de Castro (1539-1611), “que chamam o Perú”, nome que passou a ser o das rua de cima dessas casas, hoje o troço mais baixo da R. dos Ferreiros; bem como aos “ricos aposentos” de uma mulher nobre que não nomeia e às “casas, como paços muito grandes”, onde Martim Vaz de Cairos tinha “uma comprida sala, em que jogam a péla” (FRUTUOSO, 1968, 112-113). As casas mais importantes eram designadas “paços”, palavra utilizada por Frutuoso para se referir à Quinta das Cruzes, onde vivia o governador da capitania, Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586), nos finais do séc. XVI: “uns paços grandes e sumptuosos” (Id., Ibid., 115). As casas dos capitães do Funchal, na fortaleza da cidade, no entanto, são mencionadas somente como “ricos aposentos, onde o capitão pousa, adornados com seu jardim e frescura” (Id., Ibid., 111). Cerca de 100 anos depois, em 1698, tendo o novo governador da Madeira, D. António Jorge de Melo (c. 1640-1704), solicitado “instruções” em Lisboa “de como se deve portar o governador dela para fazer bem a sua obrigação”, S. Lourenço não era de forma alguma um palácio. O informador daquele, que tudo leva a crer ter sido o madeirense doutor António de Freitas Branco (1639-c. 1700), alto funcionário do Conselho de Estado, “no que toca à casa que deve levar” o governador, descrimina não só os funcionários administrativos como também “um secretário e de muito segredo e confiança” (BNP, reservados, Col. Pombalina, cód. 526, fls. 275-282). Adita que o governador deveria levar igualmente “um homem que lhe governe a casa, dois pajens acrescentados”, “um copeiro, um cozinheiro e dois lacaios, que logo lá se fazem fidalgos, e um negro que leve a alcatifa e a cadeira” (Id.., Ibid.). Indica também a necessidade de levar “móveis de casa, duas dúzias de cadeiras e tamboretes, três bufetes, um grande com gavetas para escrever, outro para a casa do secretário e outro para vestidos na casa de dormir”, tal como uma “mesa grande para comer, porque às vezes pode convidar alguns fidalgos ou capitães, achando-se na sua casa em horas de comer” (Id., Ibid.). António de Freitas Branco, o provável informador, fora criado no Funchal e depois fixara-se em Lisboa, mas estava permanentemente a par do que se passava na Ilha, nomeadamente que as “casas” da fortaleza não possuíam qualquer recheio, tendo o governador de levar quase tudo consigo. O termo “palácio” tinha assim um significado algo diferente daquele que veio a ter depois, indicando especificamente uma residência de aparato exterior e com recheio de certa qualidade. O vocábulo, de início, dizia também respeito à alta personagem residente nesse grande imóvel ou à sua família, passando depois a alargar-se, abarcando determinadas instituições administrativas, camarárias ou de justiça. O termo só deve ter aparecido na Madeira nos finais do séc. XVII ou nos inícios do XVIII, em relação à residência dos governadores e capitães-generais da Ilha e, depois, ao longo desse séc. XVIII, a propósito do paço episcopal; somente nos finais de Setecentos terá sido aplicado às residências tradicionais das principais famílias madeirenses. O uso de “palácio” em menção ao paço episcopal do Funchal surgiu em 1725, numa queixa apresentada pela Câmara contra o prelado diocesano D. frei Manuel Coutinho (1673-1742), referenciando “os pretos e pretas cativos, que andam pelas ruas e as amas dos expostos, que por causa da sua pobreza, se entregam ao seu vício”, ou seja, a prostituição, e que tinham “declarado no palácio episcopal ao escrivão da câmara” eclesiástica, que, face a terem sido condenados “pelo seu trato” a pagarem as respetivas penas, “era-lhes forçoso fazerem mais ofensas a Deus” (ABM, Câmara..., liv. 1436, fls. 62-65v.). A mesma expressão surge novamente a 15 de janeiro do ano seguinte, quando as freiras da Encarnação “romperam” a “clausura desesperadamente” para serem recebidas pelo prelado, explicando-se que foram detidas junto ao largo do colégio dos padres da Companhia, “em distância de um tiro de escopeta do palácio” episcopal, pelo desembargador José de Siqueira, que veio a servir de interlocutor entre as mesmas e o bispo (Id., Ibid.). A designação “palácio episcopal” mantém-se ao longo desses anos, como permite verificar o pedido de aumento do edifício, muito afetado pelo terramoto de 1748, alegando-se aí que ele “já antes era muito pequeno, pelo que se tinha ocupado o colégio de S. Luís, [até então] seminário da diocese” (ANTT, Provedoria..., liv. 973, fl. 57). A ampliação foi solicitada logo no mesmo ano de 1748, havendo diligências em 1749, altura em que efetuou o projeto o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins e se orçamentaram as obras. Vestígios do palácio dos Acciauoli. Arquivo Rui Carita Na planta de Agostinho José Marques Rosa, datável de cerca de 1800 e que foi oferecida ao 2.º visconde de Balsemão, aparecem mencionados vários palácios, nomeadamente o palácio de Nuno de Freitas, ou seja, a quinta das Cruzes, então propriedade de Nuno Martiniano de Freitas e depois do seu filho, o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880); o de João de Carvalhal (1778-1837), isto é, o então palácio de S. Pedro (Carvalhal, 1.º conde de); o de D. Guiomar (1705-1789), já falecida, mas cuja importante construção na R. do Castanheiro ainda se impunha e impõe (Vilhena, D. Guiomar de); o de Francisco António da Câmara, na R. dos Ferreiros, que passou depois aos condes de Torre Bela e veio a ser demolido em 1942 para a construção do tribunal; o do Senhor Fernando José Correia (1768-1821), assim tratado por ter casado em 1792 com D. Emília Henriqueta Pinto de Sousa (1775-l850), filha do secretário de Estado visconde de Balsemão (1735-1804), a quem é dedicada a planta; e o dos Acciauoli, conjunto edificado que já se encontra registado na planta de Mateus Fernandes (c.1520-1597), de 1567/1570, ocupando então essas “casas de Zenóbio Acciauoli” (c. 1530-1598) (BNB, cartografia, 1090203) um quarteirão inteiro, até à Trav. do Forno, mas cuja família já não residia no local no final de Setecentos, vindo-se a levantar depois na área sul o Bazar do Povo, podendo alguns dos elementos edificados que se encontram sobre a atual Farmácia Nacional remeter aos inícios do séc. XVIII. Os palácios dos Carvalhal e dos Correia foram reconstruídos nos finais do séc. XVIII, encontrando-se em obras por volta de 1790. Existe algum paralelismo entre uma e outra edificação, marcadamente neoclássicas, podendo ambas as reconstruções ter decorrido sob a direção de António Vila Vicêncio (c. 1730-1796). As obras das casas do futuro visconde de Torre Bela não devem ter tido o seu acompanhamento muito direto, pois embora se encontrasse no Funchal por volta 1790, quando assumiu o posto de coronel do regimento de milícias da Calheta e quando terão tido início os trabalhos de construção em causa, já estava em Lisboa a 22 de outubro de 1792, vindo a contrair aí matrimónio com a filha do secretário de Estado Luís Pinto de Sousa, visconde Balsemão. Só se deslocou novamente ao Funchal para ver as obras nos inícios de 1803, tendo saído da Madeira em fevereiro de 1804, na fragata “Andorinha”, com o futuro conde de Carvalhal (1778-1837), seguindo depois para Berlim e não regressando à Ilha. O palácio Torre Bela levantou-se em terrenos desta família, na sua posse, pelo menos, desde os finais do séc. XVI, tendo chegado a residir aí os bispos do Funchal. As primeiras casas foram destruídas por um incêndio, a 26 de julho de 1594, que se propagou ao quarteirão poente, ainda hoje delimitado pelas ruas da Queimada de Baixo e da Queimada de Cima (Urbanismo). Reconstruídas após o fogo, foram residência, nos inícios do séc. XVIII, do genealogista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730). Nos finais de Setecentos, deram lugar ao palácio, cuja construção não reaproveitou quase nada das edificações anteriores. Na fachada voltada para a R. dos Ferreiros, o palácio apresenta um piso nobre de excecional altura, com oito janelas de sacada que se articulam com as do piso inferior, de serviços; tem ainda um segundo piso, também destinado a serviços, na área sul, dado o desnível do terreno. A fachada sobre a Trav. do Forno permite uma leitura idêntica; exibe um fortíssimo cunhal de bases relevadas a marcar especialmente o piso térreo, e apresenta mais dois corpos de serviços, ao nível da mesma fachada, sendo o intermédio torreado e com cinco pisos. Solar dos Leais. Arquivo Rui Carita A fachada à R. dos Ferreiros é rematada por um filete relevado de cantaria aparente e cornija, na qual existem cinco gárgulas de cantaria, indicativas de ter existido um conjunto correspondente de telhados de tesoura, entretanto uniformizados. Esta fachada ostenta um portal de pilastras relevadas, sendo o entablamento encimado pelas armas dos Torre Bela, partidas de Correia e Henriques, assentes em cartela rococó e rematadas por coroa de visconde, logo, posterior a 1812, data da atribuição do título. Interiormente, o palácio apresenta um átrio, reformado nos finais do séc. xix, do qual terão sido retiradas as armas do 3.º visconde de Torre Bela, o diplomata Russel Manners Gordon (1829-1906) (Quinta do Monte), peça talvez de 1857, posteriormente colocada num dos salões do piso nobre. O palácio terá passado por grandes obras interiores nos meados do séc. XIX, época em que foram executados os estuques rococó do piso nobre. Em 1879, o palácio passou a servir de sede ao Clube Funchalense, que aí permaneceu até 1901. Logo nesse ano, o palácio foi solicitado pelo Grémio dos Industriais de Bordado da Madeira, sendo depois ocupado por diversas firmas, nomeadamente a Casa Americana, de que subsistem fotografias. Nessa sequência, acabaram por se instalar ali, pelo menos até à déc. de 70 do séc. XX, outras empresas de bordado. O edifício foi classificado como Imóvel de Interesse Público, a 26 de setembro de 1940, mas o decreto foi suspenso a 1 de novembro seguinte, no quadro das classificações de imóveis de propriedade particular. Mais complexa foi a vida do palácio dos Carvalhal, reformulado por volta de 1790, igualmente com enorme impacto volumétrico no tecido urbano. A campanha de obras, no entanto, abordou essencialmente o corpo principal, quase quadrado, reintegrando a torre central, bastante alterada nos meados do séc. XX, a que se justapõe um corpo longitudinal, a norte e a avançar para oeste, que mantém inúmeras preexistências, p. ex., os arcos, pavimentos e fornos dos sécs. XVII e XVIII. O conjunto integra, para oeste, uma área calcetada e exibe a data de 1929 sob a sua entrada; posteriormente, veio a incluir também um pequeno parque, hoje ocupado por um jardim de plantas aromáticas, onde teria sido o jardim interior do palácio. Portal do palácio de S. Pedro   Palácio de S. Pedro A fachada principal, à R. da Mouraria, apresenta três pisos, tendo nos cunhais importantes pilastras de cantaria aparente com bases relevadas e embasamento de cantaria rematado por friso relevado onde assentam as janelas gradeadas do piso térreo. Ao centro, a fachada é rasgada centro por um imponente portal com pilastras triplas, entablamento, lintel de balanço e frontão curvo, interrompido pelas armas dos Carvalhal, esculpidas em mármore, com escudo ondulado e ladeado por palmas, com coronel de nobreza e timbre – tratam-se já das armas do 2.º conde, logo, o elemento remonta aos meados do séc. XIX. O andar de serviços apresenta janelas de guilhotina com molduras boleadas, de cantaria, filete exterior relevado, entablamento e a articularem-se com o piso superior pelo prolongamento das ilhargas. O piso nobre é separado do inferior por um friso relevado, onde assentam as janelas de sacada, com grades elaboradas que pensamos serem mais recentes, prolongadas e corridas sobre os cunhais, tendo essas janelas molduras de cantaria idênticas às do andar inferior, mas com lintel de balanço. O conjunto é rematado por uma cornija de balanço, assente sobre um friso de cantaria que possui três gárgulas em forma de canhão e nascendo de enrolamentos vegetalistas, no ritmo dos telhados de tesoura, de águas múltiplas, pelos vários corpos. Na Calç. de Santa Clara, aparece recuada a fachada do corpo posterior e mais antigo, com a porta da primitiva capela encimada por largo arco de cantaria gradeado e janelão superior, igualmente gradeado. A capela encontra-se ainda dotada de um retábulo dos finais do séc. XVIII ou inícios do XIX, embora já sem qualquer imaginária ou outro equipamento religioso. Estuque Palácio de S. Pedro. Arquivo Rui Carita Sala do palácio de S. Pedro. 1900. Arquivo Rui Carita O 1.º conde de Carvalhal da Lombada pouco usufruiu do palácio, pois privilegiou a quinta do Palheiro Ferreiro como residência após a turbulenta “ocupação” absolutista, vindo a falecer nela, a 11 de novembro de 1837. O mesmo não se passou com o 2.º conde, o seu sobrinho António Leandro (1831-1888), que ali ofereceu uma receção ao infante D. Luís de Portugal, em 1858, e à futura imperatriz do México, Carlota da Bélgica, em dezembro de 1859, entre outras, conseguindo esbanjar totalmente a sua importante fortuna, num curto espaço de tempo. Embora ainda vivesse no palácio, em 1882, viu-se obrigado a arrendar parte do edifício para a instalação do Hotel Sheffield, dirigido por Varolina Sheffield; um ano depois, arrendou outra parte ao colégio de S. Jorge, dirigido pela futura madre Mary Jane Wilson (1840-1916). António Leandro Carvalhal Esmeraldo, 2.º conde de Carvalhal, veio a falecer no palácio a 4 de fevereiro de 1888 e, em 1897, foi ali instalado o Clube Internacional. Uma das filhas do falecido conde, D. Teresa Câmara, viscondessa do Ribeiro Real (1836-c. 1925), em 1921, deu início ao processo de venda do palácio, então por 535 contos, tendo a Câmara do Funchal oferecido 400 contos através do seu advogado, Dr. Nuno Ferreira Jardim (1850-1941). A venda, entretanto, foi contestada pelos coproprietários, condes de Resende e família de Eça de Queiroz, herdeiros da outra irmã, D. Maria das Dores. A viscondessa do Ribeiro Real, a 20 de janeiro de 1923, mandou proceder à venda em leilão do que restava do recheio do palácio e, a 19 de setembro de 1929, a Câmara conseguiu a confirmação da expropriação do imóvel, passando o palácio à sua posse e sendo o pagamento efetuado mediante um empréstimo da Caixa Geral de Depósitos. Por essa data, que figura na entrada para o pátio, procedeu-se à instalação das coleções do Museu de História Natural no andar nobre; no ano seguinte, a Biblioteca Municipal acomodou-se também no primeiro piso do palácio. Em 1933, o Arquivo Regional da Madeira alojou-se provisoriamente no piso térreo do edifício, onde permaneceu até à déc. de 90. Ainda em 1935, o Dr. Fernão de Ornelas Gonçalves (1908-1978), presidente da Câmara Municipal do Funchal, fixou residência no palácio, continuando a habitá-lo até à sua saída da presidência, em 1946. No ano seguinte, em janeiro, deflagrou um incêndio na torre do palácio, levando à destruição da coleção de pintura doada por Alfredo Miguéis (1883-1943). Nos meados de 1947, efetuou-se o restauro do imóvel, tendo o pintor Max Römer (1878-1960) procedido ao retoque do teto armoriado. A 9 de setembro de 1964, inaugurou-se o busto do naturalista Adolfo César de Noronha (1873-1963), um dos principais impulsionadores do museu municipal ali instalado, uma peça da autoria do mestre Pedro Anjos Teixeira (1908-1997). Ao longo do séc. XX, outros edifícios passaram a ser designados como palácios, nomeadamente as casas senhoriais dos Ornelas, na R. do Bispo; as casas do morgado Nicolau de Freitas Barreto, na R. João Esmeraldo e hoje Pç. Colombo, onde se encontra o Tribunal de Contas; e as antigas casas dos cônsules, na R. da Conceição, hoje em parte no Lg. do Carmo, onde se encontra o Tribunal de Menores. Idêntica designação recebeu o novo edifício da Junta Geral, refeito sobre o anterior seminário diocesano da Encarnação e notavelmente ampliado e decorado ao longo da Primeira República, sendo então designado Palácio da Junta Geral; o novo edifício deste órgão administrativo, que se transferiu para as antigas instalações da Misericórdia do Funchal, adaptadas segundo o projeto do arquiteto Januário Godinho de Almeida (1910-1990), de 1952, voltou a ter essa denominação. Pontualmente, a designação de palácio foi também atribuída ao edifício reformulado da Câmara Municipal do Funchal e, depois, ao novo tribunal do Funchal, igualmente da autoria de Januário Godinho, e conhecido como Palácio da Justiça (Cidade modernista). Palácio da Justiça. Foto BF   Rui Carita (atualizado a 19.12.2017)

Arquitetura

quintas românticas: arquitetura e turismo

Ao longo do séc. XIX, a desagregação do regime de morgadio, que as reformas liberais realizaram em Portugal, libertou a propriedade rural e suburbana dos seus vínculos (Vínculos e capelas), pondo-a ao alcance de uma nova burguesia comercial. Vendidas ou alugadas a terceiros, i.e., transformadas em bens transacionáveis, as quintas madeirenses (Quintas madeirenses), incluindo as de origem mais antiga, foram-se adaptando ao novo regime e ao novo estilo de vida – o estilo de vida burguês. O mesmo aconteceu com os seus proprietários, que se “inglesaram” – termo que, quando aplicado à Madeira oitocentista, se pode traduzir por “aburguesaram”. A quinta romântica madeirense não deve, pois, ser associada à lavoura, ao regime de morgadio (Morgadios) ou à aristocracia terratenente, mas sim à residência burguesa oitocentista: a unidade unifamiliar rodeada por jardim ocasionalmente, por mata, etc. As pequenas quintas que, a partir de finais do séc. XVIII, mas sobretudo no séc. XIX, povoaram os arrabaldes do Funchal, constituíram, pois, uma tipologia semelhante à villa burguesa, a qual, a partir de meados de Oitocentos, proliferou também na Europa e na América do Norte. Em ambos os continentes, esta tipologia apareceu não só na periferia das urbes industriais, como também nas estâncias terapêuticas – elas próprias satélites dessas urbes, lugares de cura e de refúgio das suas atmosferas poluídas e irrespiráveis. Na Europa, era possível encontrá-la com frequência nas rivieras francesa ou italiana. No séc. XIX, a maior parte das quintas madeirenses constituíram proveitosas fontes de receita para os seus proprietários. Estas receitas não resultavam da exploração agrícola dos seus terrenos, que eram escassos ou mesmo inexistentes, mas do aluguer à estação, i.e., do chamado turismo terapêutico. Com efeito, os seus principais inquilinos foram os enfermos, que, desde inícios do séc. XIX, se deslocavam para as ilhas em cura de ares e que, ao contrário do turista posterior, aí permaneciam por longas temporadas (normalmente durante a estação de Inverno). A quinta romântica madeirense foi, pois, uma tipologia “proto-turística” ou, utilizando uma terminologia mais precisa: uma tipologia do turismo terapêutico. É essa a razão pela qual se deveria preferencialmente designá-la como “quinta de aluguer”. Na periferia do Funchal – do início do séc. XIX ao eclodir da Primeira Guerra Mundial – a quinta de aluguer foi, aliás, a mais importante tipologia do turismo terapêutico na Madeira. No quadro das ilhas atlânticas, o fenómeno pode considerar-se uma verdadeira especificidade do arquipélago português. Nas Canárias , o aluguer de quintas não só foi mais tardio, como nunca chegou a ter a mesma expressão. A manifesta superioridade económica e militar de Inglaterra, que chegou a ocupar a Madeira no início de Oitocentos (Ocupações inglesas), teve uma pesada influência sobre o modo de vida das elites locais. No séc. XVIII, os negociantes de vinho britânicos (Vinho da Madeira) que fixaram residência na Ilha começaram por se instalar em casas que já existiam, adaptando-as, em muitos casos, ao seu modo de vida. No primeiro terço do século seguinte, porém, surgiram os primeiros exemplares construídos por eles de raiz. Estes traduziam a nova mentalidade vigente em Inglaterra: o Romantismo, uma relação contemplativa com a paisagem, a inserção da casa em contextos que convidavam a meditar sobre a alma da natureza e a natureza da alma. Tudo isto era novidade absoluta na Ilha. Com efeito, a residência deixou de ser a sede de uma exploração agrícola, para passar a ser, fundamentalmente, um lugar de habitação, de lazer e de desfrute da paisagem – um novo tipo, muito distinto da casa rural insular anterior ao séc. XIX. A antiga loja destinada à lavoura, que fazia da antiga casa rural não só uma residência da família, como também uma unidade de produção, já não estava presente neste novo tipo. A relação de salas e quartos com o exterior, cuidadosamente ajardinado, era assegurada pela janela à francesa, que proporcionava aos moradores um contacto direto com o jardim. As escadas eram interiores, sendo uma delas de aparato e outra de serviço. A entrada conduzia às zonas sociais da habitação e os percursos que se estabeleciam entre os diversos compartimentos eram concebidos para responder aos rituais do receber da polite society, ao qual, a casa, independentemente da sua dimensão, tinha de responder. As funções dos compartimentos interiores especializaram-se, surgindo as salas de jantar, de estar e de jogos, a biblioteca e as áreas de serviço, reservadas aos empregados. Os compartimentos destinados a receber exploravam as formas contrastantes, as plantas elípticas ou retangulares, com absides salientes nas fachadas – as chamadas bow e bay windows. Para além da inovadora relação que teciam com a paisagem, estas villas introduziram no arquipélago um novo repertório formal: os vãos com lintel curvo; o uso frequente do motivo serliano – os vãos tripartidos em que a abertura central era maior e rematada em arco; a presença de cornijas e platibandas em vez do tradicional beirado; os cunhais com aparelho rusticado; e, finalmente, as referidas bow e bay windows que, muitas vezes, assumiam a forma de volumes cilíndricos a toda a altura das fachadas. Os padrões de conforto ao gosto inglês constituíram também uma novidade. Os chamados rotulados ou mucharabis em madeira que, ainda no séc. XVIII, preenchiam os vãos de muitas das casas do Funchal, foram substituídos pela janela de guilhotina com gelosia e lamberquim exteriores –justamente atribuída à influência inglesa. Se bem que a introdução da janela de guilhotina possa ter constituído uma melhoria nas condições de conforto da casa, é discutível que os tetos em estuque, que vieram substituir os altos tetos em masseira, tenham contribuído para melhorar o conforto interior da casa, revelando um progresso. O mesmo se pode dizer da platibanda, que foi utilizada em algumas das villas construídas por estes mercadores de vinho, a qual, ao contrário do beirado com sub-beira (duplo ou triplo) de utilização comum na Ilha, lidava mal com o escoamento de águas do telhado, dando origem a infiltrações e à consequente degradação de paredes e de revestimentos. Dir-se-ia, portanto, que o complexo processo de miscigenação, em que a arquitetura local se viria a cruzar com modelos oriundos de outras paragens, não resultou apenas em progressos para a primeira, devendo antes falar-se de um processo com perdas e ganhos. O jardim foi outra das componentes da quinta de aluguer que mais marcada influência receberam da cultura britânica. Todos eles, mesmo os mais pequenos, mesmo aqueles moldados na tradição mediterrânica dos socalcos, foram herdeiros da mentalidade romântica que, no início do séc. XIX, esteve intimamente ligada ao jardim inglês, destacando-se: os bosques e as clareiras relvadas, os lagos, os fontanários, os tanques, os percursos sinuosos povoados de pequenos templos, os pormenores arquitetónicos recuperados de outros edifícios e de outros acontecimentos, e a moldagem da natureza, que constituía o esplendoroso pano de fundo da arquitetura. No território escasso e acidentado da Ilha, o que estes jardins perderam em extensão ganharam em dramatismo, ao abrirem-se aos panoramas abissais, aos cumes das montanhas ou ao horizonte longínquo do oceano. A influência de Loudon (1783-1843), o grande divulgador desta arte junto da classe média oitocentista, chegou à Madeira por via dos ingleses. Naquela influência se refletia com nitidez o ideal da casa burguesa, que encontrava no jardim – a natureza criteriosamente domesticada – o enquadramento ideal para o florescimento da vida privada. Este estava relacionado, simultaneamente, com a proteção da intimidade da casa e com o espaço de encontro e de lazer dos seus habitantes. À Madeira coube, ainda, outra função: a terapêutica, pois era ao ar livre que os doentes pulmonares faziam o tratamento. Mas a cura de ares era também uma cura de paixões. Por isso, na relação que a casa tecia com o jardim – e, num sentido mais lato, com a paisagem – ressoava um quadro difuso em que sintomas e sentimentos se confundiam. Na quinta de aluguer oitocentista, o jardim foi tanto a manifestação da alma romântica, quanto o dispositivo de tratamento. No que respeita à arquitetura da casa, não eram, todavia, as villas construídas pelos mercadores de vinho o tipo mais característico da quinta oitocentista da Madeira. Houve, na Ilha, um conjunto de circunstâncias de ordem social e económica que fez com que quase todas estas casas tivessem sido concebidas por construtores anónimos. A sua construção fez-se de acordo com saberes e tecnologias que, durante séculos, mantiveram um elevado grau de imutabilidade: o modo de lavrar e de assentar as cantarias, de erguer as paredes, de caiar as fachadas, de escolher a madeira para os sobrados, de armar os telhados e de revesti-los a telha de meia cana, bem como de calçar, a seixo basáltico, os passeios dos jardins. A grande maioria destas quintas, independentemente do seu grau de erudição, alicerçou-se no sistema de medidas e proporções que caracterizava a “casa da Macaronésia” (FERNANDES, 1992, 233) – um sistema que não foi exclusivamente de invenção local, mas que se inscrevia no património comum da cultura mediterrânica, transportada para a Ilha pelos primeiros povoadores. É por essa razão que a maioria das quintas de aluguer, sejam elas originárias do séc. XIX, do séc. XVIII ou mesmo do séc. XVII, se apresentava como um conjunto de grande coerência morfológica. Com efeito, foi a persistência de determinadas constantes de natureza construtiva, estrutural, espacial e decorativa que tornou reconhecível a arquitetura destas casas, conferindo-lhes um carácter singular que as distinguiu das que foram construídas durante a mesma época noutras regiões do país – um facto que levou alguns autores do século passado a falar da existência de uma “casa madeirense” (MATOS, 2008, 130). Na verdade, tratava-se mais de uma “maneira madeirense” de adaptar a um novo meio um modelo forâneo (MARTÍN RODRÍGUEZ, 1978, 40) – a casa mediterrânica e da Europa ocidental. Essa adaptação deu origem a uma síntese entre as componentes nacional e regional que, na Ilha, a partir de finais do séc. XVIII, se cruzou com a arquitetura inglesa de inspiração romântica. Não é difícil descrever a aparência da maioria destas casas: um volume paralelepipédico com dois pisos; uma planta retangular ou quadrada; uma predominância dos cheios sobre os vãos, cuja proporção tendia a repetir-se; o recurso à simetria como regra compositiva elementar das fachadas, quase sempre planas, onde os vãos, com as suas persianas instaladas à face, pareciam reduzir-se a um desenho sem espessura; o telhado de quatro águas, com o característico “sanqueado” e remate em duplo ou triplo beirado; um alpendre adossado à fachada do piso em contacto com o solo ou no patamar da escada exterior, nos exemplares de origem setecentista. Dir-se-ia, portanto, que, em todas elas, a arreigada devoção do construtor a um determinado tipo de soluções, mil vezes testadas pelas gerações que o precederam, acabava por vingar. A exceção a esta regra residia, pois, nas villas dos mercadores de vinho, cuja arquitetura – sobretudo a dos exemplares mais puros – deixava claramente transparecer a sua conceção erudita de origem exógena. Não querendo deliberadamente pactuar com as tradições locais, os britânicos introduziram, na cadeia evolutiva da casa insular, uma verdadeira rutura morfológica e tipológica. Desde cedo, porém, alguns dos seus novos repertórios formais, bem como os padrões de conforto que exigiam das suas casas, foram sendo apropriados pelos construtores locais. Num lento processo de miscigenação, estes souberam afeiçoá-los à sua austera e frugal arquitetura, cujas raízes mergulhavam profundamente no solo da Ilha e na memória coletiva da sua gente. Por obra destes construtores, populares ou eruditos, as tradições locais e os contributos alheios enlaçaram-se, dando lugar a uma expressão original, onde por detrás de uma aparência chã e frugal, se ocultavam interiores sofisticados. Tendo em atenção, fundamentalmente, a sua estrutura espacial e funcional, as quintas românticas madeirenses podem ser classificadas em três tipos. O tipo 1, que poderia designar-se como a casa rural sobrada e anterior ao séc. XIX, resultou da adaptação de casas rurais de origem setecentista, ou mesmo seiscentista, ao aluguer à estação. Construídas na sua origem como residências de agricultores abastados ou como sedes de morgadio, todas elas eram casas complexas, que se desenvolviam em dois pisos, com cozinha, quartos e loja, integrando um corpo único e formalmente coerente. Uma característica comum a todos os exemplares que integravam este tipo era a presença do piso nobre, que coincidia sempre com o andar, e a presença da escada exterior, normalmente com alpendre. O piso térreo – a loja – originalmente reservado às alfaias, ao lagar ou à arrecadação de produtos agrícolas, passava a piso habitável depois das obras de adaptação que usualmente introduziam também a escada interior e o corredor. A cozinha tanto podia ocupar o rés-do-chão, como o piso nobre, sobrevivendo em algumas o sistema de forno-lareira-chaminé, uma das características morfotipológicas da casa da Macaronésia. Este tipo era, portanto, o que mais se aproximava do fundo comum e original da casa insular, e revelava, apesar da adaptação ao novo meio, uma arreigada ligação à casa mediterrânica. A existência de capela em algumas delas era outra das características que ocorriam apenas neste tipo. A casa e a capela datavam, quase sempre, de épocas diferentes e, quando juntas, nem sempre apresentavam fachadas complanares, deixando transparecer um processo de construção ao longo do tempo que testemunhava a sucessão de ciclos de fartura e de escassez. Este tipo teve como exemplares mais significativos as quintas das Angústias (núcleo original) (Quinta Vigia), de S. João (demolida), e da Achada. O tipo 2, que poderia designar-se como as villas dos mercadores de vinho, cujos exemplos mais notáveis surgiram no primeiro terço do séc. XIX, foi acima caracterizado e teve como exemplares mais significativos as quintas do Monte (Quinta do Monte), Palmeira, e Deão (demolida). Quinta do Monte. Foto: Museu Vicentes Finalmente, o tipo 3, que poderia designar-se como a casa compacta de origem oitocentista, era o mais comum na quinta de aluguer. Na segunda metade do séc. XIX, assistiu-se a uma síntese em que a casa enraizada na tradição local se adaptou às exigências funcionais e aos padrões de conforto da sua clientela vitoriana. Quer na disposição dos compartimentos interiores, quer na forma como se relacionava com a sua envolvente, ela era o reflexo da nova moral burguesa, de um ideal higiénico e antiurbano, irrealizável no denso tecido da cidade tradicional. Concebida para a vida familiar – ocupando, por regra, o miolo de um lote murado –, a casa precisava do jardim não só como espaço de lazer e de proteção da intimidade dos seus habitantes, mas também como garantia de salubridade. Tratava-se de uma casa compacta, com dois ou mais pisos, com cobertura em telhado de quatro águas, e com planta quadrada ou retangular. No interior, apareciam um corredor e escadas – uma principal, geralmente centralizada, e uma secundária destinada ao serviço. A cozinha e as zonas de serviço anexas ocupavam, quase sempre, o piso em contacto com o solo, sendo o tradicional sistema de lareira-forno-chaminé a exceção. No sótão, usualmente reservado aos quartos dos empregados, apareciam por vezes as trapeiras; no piso de contacto com o jardim, localizavam-se as áreas comuns da habitação – as salas de estar ou de jantar –, estando os pisos superiores reservados aos quartos. A simetria era, quase sempre, a regra compositiva das fachadas onde, à semelhança das antigas casas da Macaronésia, imperava a regularidade de proporções e predominavam os cheios sobre os vãos, rasgados a espaços iguais. Esta austera frugalidade podia ser, porém, enganosa. Com efeito, o interior beneficiava de um sofisticado grau de conforto, a que não eram alheias as exigências da clientela vitoriana que as alugava: janelas de guilhotina com sistema de contrapeso, tetos em estuque ornamentado, soalhos em madeira, requintados trabalhos de carpintaria pintada, lareiras ou salamandras inglesas em vários compartimentos, e um quarto de banhos. No exterior, debruçada sobre o arruamento, surgia com frequência a casinha-de-prazer – termo que designava, na Madeira, os pequenos pavilhões de jardim de onde era possível observar o exterior ou contemplar a paisagem sem ser observado de fora. Este tipo teve como exemplares mais significativos as quintas da Vista Alegre, Perestrelo, Faria, Favilla (demolida), Lyra, e dos Ilhéus.   Rui Campos Matos (atualizado a 16.12.2017)

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