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aclamação de d. joão iv

A notícia da aclamação de D. João IV chegou à Madeira pela altura do Natal de 1640, numa vaga informação veiculada por um navio inglês proveniente de Sevilha. A confirmação oficial chegou a 10 de janeiro seguinte, procedendo-se à aclamação nas câmaras do Funchal, Machico, Porto Santo, etc. No entanto, a 25 de janeiro, um tumulto popular leva à invasão da Câmara do Funchal e à expulsão do juiz Luís Fernandes de Oliveira, que tinha sido contador do presídio castelhano, elegendo-se uma nova vereação e, nessa sequência, também um novo provedor da Fazenda. D. João IV enviou depois um novo governador, acompanhado de uma alçada, para investigar as alterações, mas também as dívidas, à Fazenda, vindo o corregedor a ser assassinado às portas da Câmara. Palavras-chave: alçadas; ordem pública; defesa; Fazenda régia. A notícia da aclamação de D. João IV (1604-1656), dos inícios de dezembro de 1640, chegou à Madeira por alturas do Natal desse ano. Um navio inglês proveniente de Sevilha e com destino às Canárias aportou ao Funchal a 26 desse mês e deixou um vago alerta de que algo de anormal se teria passado em Lisboa. A confirmação oficial chegou a 10 de janeiro seguinte, através das cartas, datadas de 19 de dezembro, enviadas por D. João IV ao governador e ao bispo, e levadas por Cap. Diogo Monteiro na sua caravela, tal como se fez para as ilhas de Cabo Verde (Cabo Verde) e para Angola (África), dando conta de “como aprouve a Deus Nosso Senhor restituir-lhe a coroa destes Reinos” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, liv. 1328, fls. 7-8) e da maneira como “fora alevantado com muito alvoroço e devida satisfação” (Ibid.). As cartas foram lidas na Câmara no dia seguinte, procedendo-se à aclamação e marcando-se para o domingo seguinte, dia 13 de janeiro, a procissão solene e as festas “como dispõe o regimento” (Ibid.). A sessão camarária registou a presença de todas as autoridades da Ilha: o Gov. Luís de Miranda Henriques (c. 1600-1648) (Henriques, Luís de Miranda), o bispo do Funchal, D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), (Fernando, D. Jerónimo) e sobrinhos, D. António Fernando de Melo e D. José de Melo Fernando, os vereadores, o procurador do concelho, então o castelhano D. António de Herrera y Rojas, filho do falecido marquês de Lançarote (1537-1598) (Lançarote, conde de), o ouvidor e o provedor, incluindo o comandante do presídio castelhano, Cap. Tomás Velasquez Sarmiento, e de tudo foi lavrado auto (Ibid., fls. 8-9v). A 11 de janeiro, o governador escreveu ao Cap. Manuel de Vasconcelos da Câmara de Machico a contar o que se passara em Lisboa e no Funchal. A aclamação em Machico processou-se no dia 13, elaborando-se o Auto do Levantamento do Muito Alto e Poderoso Rei Dom João, o Quarto, Nosso Senhor, a que se seguiu o juramento, no dia 28, “estando presentes os Oficiais da Câmara, de Guerra, e a Nobreza e o Povo dela” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Regimento Geral, t. 2, fls. 44-45v.). Na sequência de Machico, igualmente se escreveu ao Gov. Martim Mendes de Vasconcelos da ilha do Porto Santo. Nesse mês de janeiro, o Porto Santo encontrava-se bloqueado por uma armada turca de 12 de navios de Argel. A missão foi entregue ao filho do governador, Matias de Mendonça e Vasconcelos, juiz ordinário da Câmara de Machico. Conhecedor da costa do Porto Santo, conseguiu, durante a noite, furar o bloqueio da esquadra corsária e levar a notícia ao pai. Recebida a notícia no Porto Santo, logo foi celebrada à maneira da época, com salvas de artilharia e descargas de mosquetes e arcabuzes. A esquadra turca, não estando habituada àqueles ruídos na ilha, pensou tratar-se dum forte reforço e levantou o bloqueio. O sucesso foi logo dado como milagroso, atribuído a um favor divino que não só livrara a terra portuguesa do Rei estrangeiro, como o Porto Santo da esquadra turca, tendo por isso Martim Mendes de Vasconcelos foro de fidalgo um ano depois, a 9 de setembro de 1642, com “hábito da ordem de Cristo para um filho que ele nomear, com 200$000 réis” (Inventários dos Livros das Portarias..., 1909, I, 9v.). No entanto, nem tudo terá corrido a favor, surgindo também dificuldades. As primeiras notícias negativas que aparecem referem a colocação de panfletos contrários à aclamação de D. João IV, “pasquins malsonantes pelas portas das igrejas, contra o respeito e decoro devido ao dito Senhor”, que foram retirados pelo P.e Lourenço Barradas Ferreira (FREITAS, 1973, 173). A informação, no entanto, é vinculada pelo próprio através da sua habilitação de genere, atestada pelo bispo do Funchal, pelo que, a ter ocorrido tal episódio, não teria passado de uma ocorrência pontual. A primeira alteração a processar-se no Funchal foi a extinção do presídio castelhano, levada a cabo pelo governador, que cumpriu assim um desejo antigo da população do Funchal. A guarnição foi inicialmente dispersa pelas vilas da Ilha, no sentido de a afastar do Funchal, e foi depois embarcada para as Canárias, tendo alguns militares optado por ficar nas fileiras da dinastia de Bragança. O mesmo se passou com o presídio do castelo de S. Jorge, em Lisboa, mas não com o de Angra, nos Açores, que resistiu cercado durante um ano, com vários mortos de uma parte e outra nos recontros efetuados. Registe-se, no entanto, que, embora a 25 de janeiro a Câmara do Funchal tenha determinado enviar para Lisboa as cartas a notificar a aclamação na Madeira, só a 26 de fevereiro estas foram assinadas. Saliente-se que a ordem dada ao mestre da caravela Francisco Belo para não sair do Funchal sem levar as cartas para D. João IV foi sob pena de 200 cruzados e quatro anos de degredo, o que parece indicativo da vontade de as enviar. No entanto, os problemas logo surgidos, acarretando distúrbios mais graves, devem ter colocado tudo em causa. Nesse dia 25 de janeiro, o povo acudiu à Câmara em tumulto, expulsando o juiz Luís Fernandes de Oliveira, que tinha sido contador do presídio castelhano, e elegendo novos juiz, procurador do concelho, vereadores e almotacel. Não contente com isso, passou à casa do escrivão da Câmara e fortificações, Paio Rodrigues Pais da Cunha, que estava suspenso e que, mais tarde, seria mesmo enviado sob prisão para Lisboa, e fizeram-no voltar à Câmara, expulsando o Cap. Manuel Teixeira Pereira, que fazia então de escrivão. Em tumulto cada vez maior, lançou-se a multidão contra o escrivão da Fazenda Manuel de Ceia e um seu sobrinho, por se ter falado de tributos, “e os matariam, sem dúvida” (ANTT, PJRFF, liv. 965, fls. 202ss.), caso não interviessem o governador, o bispo e elementos do cabido da Sé. A multidão foi então à Alfândega, expulsando o provedor Manuel Vieira Cardoso e obrigando João Rodrigues de Teive a servir nesse lugar. O provedor escapou ao furor da multidão escondendo-se em casa do bispo, mas os populares ocuparam a sua casa e mataram-lhe as aves de estimação. Todas estas ações foram de imediato confirmadas por autos lavrados na Câmara e na Alfândega, sinal de não serem só por imposição popular, mas de terem por detrás gente informada que sabia o que estava a fazer. No dia seguinte, o bispo foi à Câmara e voltou a fazer a aclamação com a nova vereação. No entanto, não reconhecendo o Gov. Luís de Miranda Henriques a nova vereação, a 28 de fevereiro elegeu-se outra e lavrou-se novamente o auto. A notícia chegou a Lisboa e, a 2 de agosto, D. João IV escreveu à Câmara mandando proceder-se contra os culpados das alterações de 25 de janeiro e nomeando depois um novo governador para a Madeira. Entretanto, a 25 de outubro, voltou a escrever “mandando que enquanto não viesse o Governador e o Corregedor para a Madeira, se não alterasse nada do que se tinha feito sobre as alterações e motins que na Ilha houve” (ARM, CMF, avulsos, cx. 2, doc. 262). No entanto, o novo Gov. Nuno Pereira Freire (c. 1595-c. 1660) (Freire, Nuno Pereira), com a instalação do novo Governo em Lisboa, só se apresentou na Ilha mais de um ano depois, a 19 de agosto de 1642, tomando posse no dia seguinte. Com o novo governador, chegou uma alçada constituída pelo juiz corregedor Gaspar Mouzinho Barba e o oficial de diligências Amaro Godinho Borges, que haveriam de ter um fim triste na Ilha. Este corregedor ia investigar os tumultos de 25 de janeiro do ano anterior, sendo também indicado para tomar conta da Fazenda, dada a pouca ou nenhuma confiança que suscitara em Lisboa a nomeação popular do provedor naquela altura. Acresce que o novo provedor chegava igualmente encarregado da contramarcação da moeda e da revisão dos complicados processos de dívidas em atraso à Fazenda Real, o que causou um ainda maior mal-estar no Funchal. No final do mês de dezembro de 1643, o trabalho do corregedor deve ter estado na origem de um sedição ou um motim contra o governador, que envolveu uma série de morgados, para além de outras figuras menores. Nesse quadro, o governador tinha mandado proceder a alterações no elenco camarário, onde havia alguns elementos indiciados como tendo dívidas em atraso à Fazenda, em princípio, os vereadores Manuel Homem e Luís Manuel Leme da Câmara. Dada a não apresentação na Alfândega dos últimos implicados, o juiz deslocou-se à Câmara para prender os vereadores, a 29 de dezembro de 1643. Interpôs-se então Pedro Bettencourt de Atouguia, que, após breves palavras, assassinou o corregedor com uma estocada de espada. O assassino ainda foi preso, mas, evadindo-se, foi acolher-se ao Convento de S. Bernardino, em Câmara de Lobos, de que a sua família era padroeira, acabando os seus dias no então oratório de S. Sebastião da Calheta como leigo e ao abrigo da justiça. D. João IV condescendeu com a situação, em princípio por não ter ainda a informação do assassinato do corregedor, e, em carta ao governador, recomenda-lhe que “se evitassem os efeitos das inimizades e ódios, ordenando-se às justiças que não procedam contra pessoa alguma por coisas que sucedessem no tempo da sua aclamação” (ABM, CMF, RG, t. 6, fl. 53). No entanto, em poucos meses estava na Madeira um juiz desembargador, desta vez da Relação do Porto, Jorge de Castro Osório, com indicações para investigar a morte do corregedor anterior (Ibid., fl. 65). O novo juiz recebeu na Madeira o apoio do oficial Amado Godinho Borges, que por uns tempos serviu de provedor da Fazenda. Em breve trecho, foram ambos envenenados, “mortos com peçonha”, como refere a mercê régia para a viúva do oficial da justiça e da Fazenda (Inventário dos Livros..., 1909, 411). Na Ilha, os documentos oficiais são sempre lacónicos: “faleceu, não se confessou” (ARM, RP, Sé, Óbitos, liv. 73, fls. 169-170). O velho e experiente bispo do Funchal retirou-se entretanto para Lisboa, ficando a Diocese em sede vacante várias dezenas de anos. O Rei enviou para a Madeira novo governador, Manuel de Sousa Mascarenhas (c. 1595-c. 1660) (Mascarenhas, Manuel de Sousa), com fortes ligações familiares à Ilha e até aqui com propriedades. Esperava assim acalmar os ânimos, o que não veio a acontecer, essencialmente pelos desmandos do governador. Com a subida ao trono de D. João IV e as alterações políticas daí advindas, logo aumentou o movimento do porto do Funchal. Aliás, as primeiras medidas militares de D. João IV em relação à Madeira visaram precisamente o movimento do porto. Para o controlo das principais medidas militares, constituiu-se o Conselho da Guerra, sendo uma das suas primeiras medidas para a Madeira a cativação dos bens, existentes no porto do Funchal, que pertenciam a Pedro de Baessa Diogo Rodrigues, natural de Lisboa, e a Jorge Gomez Alemo, e que era preciso acautelar. Foram expedidas a 20 e 23 de agosto de 1641 e assinadas pelo conde almirante Rodrigo Botelho. Neste quadro, processaram-se diversos melhoramentos no calhau da cidade, como a montagem do cabrestante da praia e, depois, a fortificação do cais da Alfândega (Reduto da Alfândega) e até de cais particulares, como o da família Fernandes Branco, na foz da ribeira de Gonçalo Aires (Forte dos Louros). Com o alvará de franqueamento do comércio e da navegação para Oriente, de 12 de dezembro de 1642, logo vários madeirenses com interesses comerciais entre Lisboa e o Brasil, como Francisco Fernandes Furna, ampliam as suas atividades até à Índia e à China. No mesmo sentido, estabeleceram-se outros contactos com portos europeus, sendo desta altura os contratos comerciais de navios marselheses com a Ilha da Madeira.   Rui Carita (atualizado a 25.11.2016)

História Política e Institucional

zona franca ou centro internacional de negócios da madeira

A criação da Zona Franca da Madeira (ZFM), que veio também a ser designada por Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM), resultou de um conjunto de circunstâncias e causas de natureza diversa, sendo umas remotas e outras próximas: por um lado, as aspirações ancestrais dos madeirenses, fundadas na existência de um porto franco de consumo existente nas ilhas Canárias, e, por outro, o movimento que, sob a égide da Associação Comercial e Industrial do Funchal (ACIF), conduziu, face à situação da economia da Madeira na década de 70 do séc. XX, à reflexão do modelo de zona franca mais adequado e consentâneo com as características geográficas, geológicas, morfológicas, económicas e sociais da Madeira. Este desiderato havia já sido ensaiado através da lei n.º 265, de 24 de julho de 1914, que autorizou o Governo a adjudicar a construção e a exploração duma zona franca na Madeira que seria instalada no local julgado mais conveniente por uma comissão técnica, durante 60 anos. Na zona franca, seriam permitidas todas as operações de beneficiação, empacotamento e transformação dos géneros do arquipélago da Madeira em outros produtos comerciáveis, com a exceção do vinho, beneficiando de isenção de direitos para embarcar, desembarcar e depositar aqueles géneros, isenção que não abrangia o cacau e o azeite não destinado a conservas. A zona franca ficava sujeita ao regime fiscal dos armazéns gerais francos, aprovado pelo dec. de 27 de maio de 1911, e a sociedade adjudicatária garantia as suas obrigações legais e contratuais nos termos previstos pela lei de 13 de junho de 1913, que havia autorizado a construção e a exploração de um porto franco em Lisboa. Esta iniciativa legislativa não foi prosseguida e, na déc. de 1970, a ACIF levou a cabo as providências necessárias ao apuramento e à definição do modelo da zona franca mais adequado à Madeira com base nesta dicotomia: uma zona franca comercial ou de consumo, como a das Canárias, ou uma zona franca empresarial, como na Irlanda e nas ilhas do Canal. Para esse efeito, a ACIF promoveu, em 1974, a realização de um estudo da viabilidade e oportunidade da criação de uma zona franca, sustentado em inquérito destinado a recolher a opinião de largos sectores da população sobre o projeto, tendo sido consultados todos os organismos oficiais, os representantes dos vários sectores da vida económica da Região, bem como outros profissionais de diversas atividades. Neste inquérito, a área abrangida pela zona franca admitia três hipóteses: um porto franco, uma zona franca extensiva a toda a ilha da Madeira, ou uma zona abrangendo todo o arquipélago da Madeira. Assente em participação ativa e relevante das entidades consultadas e nos resultados desse inquérito, a ACIF assegurou a elaboração de um estudo prévio, cujo texto provisório foi colocado à apreciação e discussão em 1975, através da consulta às entidades e aos profissionais já auscultados no inquérito anteriormente realizado. O texto preliminar e provisório desse estudo foi publicado na íntegra na imprensa diária, tendo, assim, o debate sido alargado a toda a população. O texto definitivo do estudo prévio resultou da inserção dos contributos obtidos através das diligências efetuadas, contendo uma análise das vantagens advenientes da criação da zona franca – então referenciada como regime de franquia aduaneira –, bem como um projeto de diploma legal e respetivo regulamento atinentes ao correlato regime. Este estudo foi apresentado, em 1975, à então Junta de Planeamento da Madeira, a qual entendeu que, dada a natureza e a importância de que o projeto se revestia, devia o mesmo ser objeto de aprofundamento através de uma entidade internacional especializada na matéria. A ACIF, tendo em consideração que o estudo em causa devia abranger uma perspetiva global, integrada e de longo prazo da economia regional, obteve propostas de três empresas especializadas: a americana International Finance Consultants, a britânica M. L. H. Consultants Ltd e a alemã Agrar und Hydrotechnik, cujos representantes se deslocaram à Madeira para a prestação de esclarecimentos sobre as propostas apresentadas, em reuniões em que também participaram os vogais para o Planeamento e Finanças e para a Indústria, Agricultura e Pescas da então Junta Regional da Madeira. Em 1976, a realização do estudo foi adjudicada à sociedade International Finance Consultants, a qual apresentou o estudo em 1977, tendo o mesmo sido objeto de ajustamentos face ao pedido formulado em 1978 pelo Governo da República de adesão do país à então Comunidade Económica Europeia. Com base neste estudo e nas diligências efetuadas junto do Governo da República, foi, em 1980, criada a Zona Franca da Madeira visando satisfazer uma velha aspiração dos Madeirenses e tendo como pressupostos a especial situação geoestratégica da Madeira, onde se conjugam as características específicas da economia regional com a sua peculiar configuração sócio-política, de molde a facultar o aparecimento de novos sectores voltados para o desenvolvimento económico e social da Região. Na iminência da criação da zona franca, o conselho do Governo regional procedeu à definição da localização e demarcação da área onde a mesma seria instalada, tendo a escolha recaído na freguesia do Caniçal, em território que se delimitava, devido aos princípios e orientações do ordenamento territorial da zona litoral, entre o Garajau e a Ponta de São Lourenço, pela pertença de imóveis afetáveis da Região na referida freguesia, pela localização do aeroporto, pela melhoria do eixo rodoviário que o liga ao Funchal, e pela previsível construção de viadutos previstos sobre as ribeiras em Santa Cruz e no Porto Novo. Em 1988, o Governo regional voltou a pronunciar-se sobre os critérios de implementação da Zona Franca Industrial, tendo em consideração os interesses legítimos do agregado populacional do Caniçal, a localização definitiva das instalações escolares e desportivas, a existência de um porto de pesca e os campos agrícolas experimentais do Governo. Nessa primeira data, ficou assente que seriam definidos posteriormente o regime jurídico-fiscal aplicável, a natureza, o âmbito territorial e as características da zona franca, bem como a regulamentação da atividade nela desenvolvida, tendo em consideração os condicionalismos resultantes das negociações encetadas para a adesão de Portugal à então CEE. Essa definição foi efetuada em 1982, ficando determinado que poderiam ser autorizadas, na zona franca, todas as atividades de natureza industrial, comercial ou financeira, sendo os pedidos de instalação das empresas apreciados e decididos com base em dois parâmetros fundamentais: a idoneidade da firma impetrante e o interesse económico da atividade a desenvolver. Nessa mesma data, ficou a zona franca industrial definida como um enclave territorial onde as mercadorias que nele se encontram são consideradas como não estando no território aduaneiro para efeito de aplicação de direitos aduaneiros, de restrições quantitativas e de mais imposições ou medidas de efeito equivalente. A zona franca deveria ser exteriormente resguardada por uma vedação, de harmonia com o disposto no Código da Reforma Aduaneira, e disporia de uma estância aduaneira e de um posto fiscal próprios, que vieram a ser criados em 1990. A regulamentação operada teve em atenção as normas comunitárias concernentes ao funcionamento de zonas francas e ao denominado regime de aperfeiçoamento ativo, em subordinação ao princípio de conformação das disposições legais aplicáveis à zona franca ao ordenamento jurídico comunitário. Nesse mesmo ano, foi constituída a comissão instaladora da ZFM, composta por dois representantes do Governo regional da Madeira e dois representantes – um efetivo e um suplente – da ACIF. O período compreendido entre 1982 e 1985 foi dedicado à conceção e definição do regime fiscal da zona franca e da sua administração e exploração em regime de concessão. Assim, em 1985, foi aprovado um regime fiscal que se traduziria num sistema contratual de usufruição dos benefícios fiscais, fortemente inspirado pelo regime constante do Código de Investimento Estrangeiro então vigente, mas, que, por não corresponder à proposta apresentada pelo Governo regional ao Governo da República, foi substituído, seis meses depois, por novo decreto-lei, que consagrou o princípio da usufruição automática dos benefícios e incentivos fiscais e financeiros pelas empresas, logo após o seu licenciamento no âmbito da zona franca. Na conceção do regime de incentivos foi tido em consideração o disposto no Tratado de Roma relativamente ao desenvolvimento regional e as regras de salvaguarda da distorção da concorrência no seio da Comunidade Económica Europeia. Paralelamente, a Assembleia Regional da Madeira aprovou o regime de administração e exploração da ZFM, autorizando o Governo a adjudicar, em regime de concessão e com dispensa da realização de concurso, a sua gestão a uma entidade privada nacional ou estrangeira, na qual a Região Autónoma da Madeira (RAM) viesse a participar ou à qual viesse a associar-se. A previsão da existência de uma comissão para assegurar uma simplificação dos procedimentos administrativos, bem como um desburocratizado acompanhamento e fiscalização das atividades licenciadas, foi uma antevisão do gabinete da Zona Franca criado no ano seguinte com esse escopo e essa missão funcional, com a concomitante extinção da comissão instaladora da Zona Franca. O prazo da concessão foi estabelecido em 30 anos, sem prejuízo da sua eventual renovação ou prorrogação, ficando o Governo regional autorizado a regular as condições de exercício das atividades, quer da concessionária quer dos utentes da zona franca. Nesse mesmo ano de 1986, foi regulado o exercício de atividades financeiras através das denominadas sucursais financeiras exteriores, tendo o Governo regional procedido, em 1987, à regulamentação das condições de instalação e funcionamento daquelas sucursais. O exercício destas atividades foi alargado, em 1994, quer às instituições constituídas de raiz quer às sucursais financeiras internacionais, as quais podiam realizar operações com residentes, faculdade que se encontrava vedada às sucursais financeiras exteriores. Em 1987, o Governo regional da Madeira adjudicou a administração e a exploração da zona franca à Sociedade de Desenvolvimento da Madeira, S.A., e aprovou o Regulamento das Atividades Industriais, Comerciais e de Serviços Internacionais no âmbito institucional da ZFM. No reconhecimento da proeminência económica e social, contributiva do desenvolvimento da Região, e da concomitante necessidade de uma gestão célere, proficiente e atempada, considerada como pressuposto e condição essencial para uma maior simplicidade e eficiência do processo decisório, o Governo regional não só rejeitava e removia os processos de antanho, os quais recorriam a desnecessárias complexidades e delongas processuais, desencorajadoras do investimento prosseguido por entidades caldeadas em regimes mais simplificados, como também fundamentava a opção por uma gestão empresarial em termos privados da zona franca. O diploma em causa estabeleceu o regime de licenciamento das atividades em consideração, as competências da concessionária nesse licenciamento, na aprovação dos projetos de instalação e funcionamento das empresas industriais e na fiscalização das obras com base em licença emitida pela concessionária, assim como o regime de uso dos imóveis por via da subconcessão do domínio público em autoconstrução ou de direito de uso em pavilhões construídos pela concessionária, os quais, finda a concessão, revertem gratuitamente para a RAM. Em 1988, os princípios de simplificação, desburocratização e de celeridade fundamentaram a criação da Conservatória do Registo Comercial Privativa da Zona Franca da Madeira e do Cartório Notarial também privativo da zona franca, cujo início de funcionamento foi fixado para o dia 1 de abril de 1989, tendo sido estabelecido que os atos praticados por aqueles serviços privativos se encontravam isentos de qualquer taxa ou emolumento. Os mesmos princípios determinaram, em 1989, a criação da IV Série do Jornal Oficial, destinada exclusivamente às empresas licenciadas na zona franca – cujas publicações, não exigidas em regimes europeus congéneres, foram também isentas de pagamento de taxas –, a autorização da constituição, em 1994, das sociedades comerciais por quotas e anónimas unipessoais e, em 1995, o reconhecimento da faculdade de as sociedades licenciadas usarem palavras ou parte de palavras estrangeiras ou de feição estrangeira na composição das suas firmas ou denominações. Estes princípios, pioneiros no país quer em relação à autorização das sociedades unipessoais, mais tarde autorizadas só para o tipo por quotas, quer em relação à simplificação administrativa e à prática e objetivos empresariais, permitiram que, na sua conceção, a ZFM constituísse o primeiro exercício unitário, integrado e coerente de internacionalização da economia portuguesa. Nesse mesmo sentido, em 1988, tendo em consideração que muitos dos investidores seriam oriundos de países com ordenamentos jurídicos diversos do sistema português, designadamente dos países da common law, e reconhecendo a necessidade de dotar a ZFM de instrumentos mais eficazes na captação do investimento direto estrangeiro, foi autorizada a instituição de instrumentos de trust, instituto jurídico até à data inexistente no ordenamento jurídico português. Este regime de propriedade fiduciária, envolvendo uma relação tripartida entre o settlor ou instituidor, o trustee e os beneficiários ou a causa específica por eles prosseguida, que nos regimes romano-germânicos encontram fronteiras com as fundações, o usufruto, o mandato sem representação e o fideicomisso ou a fidúcia, permitiu à zona franca disponibilizar aos seus utentes um meio jurídico que lhes era facultado noutros regimes e jurisdições congéneres. Em 1989, foi criado o quarto sector de atividades, acrescentando-se à Zona Franca Industrial, aos serviços financeiros e aos serviços internacionais o Registo Internacional de Navios da Madeira (MAR), o qual foi criado visando a prossecução de dois fins: em primeiro lugar, estancar os processos de saída de navios do registo convencional português para registos de conveniência (flagging-out) e, em segundo lugar, atrair novos armadores e navios, oferecendo condições de custos semelhantes às apresentadas pelos registos mais competitivos. Nesse sentido, o MAR foi dotado de uma somissão técnica, composta por um representante do membro do Governo responsável pelo sector dos transportes, um representante da RAM e um representante da Inspeção Geral de Navios. Adentro das condições indispensáveis à atratividade do MAR, a Lei do Orçamento do Estado para 1989 procedeu à consagração da isenção do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) para os tripulantes embarcados nos navios matriculados no MAR e o próprio diploma que procedeu à sua criação não só aplicou aos navios o regime fiscal da zona franca, como também permitiu às partes que designassem a lei que regula a constituição das hipotecas, tendo o aprofundamento do regime de graduação dos privilégios creditórios determinado o recesso da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimos, assinada em Bruxelas em 10 de abril de 1926, que se havia tornado um impedimento à adesão dos armadores devido às objeções colocadas pelos credores hipotecários em relação à graduação dos seus créditos. Paralelamente, foi facultado aos tripulantes dos navios o acesso ao regime do seguro social voluntário. A reforma fiscal operada em 1989, com a extinção da contribuição predial e industrial, da sisa e do imposto profissional, e a concomitante criação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), do Imposto Municipal sobre os Imóveis (IMI) e do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas (IMT), determinou que o regime fiscal da ZFM ficasse, em grande parte, plasmado no Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), então aprovado. Nesse sentido, o primeiro regime fiscal (regime i) da zona franca, que vigorava desde 1986, passou a constar do EBF e permitiu o licenciamento de atividades até 31 de dezembro de 2000, usufruindo as empresas que as desenvolvessem da isenção de IRC até 31 de dezembro de 2011. O regime ii, com uma taxa de tributação em IRC de 1 %, 2 % e 3 %, respetivamente nos anos de 2003-2004, 2005-2006 e de 2007 a 2011, entrou em vigor a 1 de janeiro de 2003, permitindo o licenciamento de atividades até 31 de dezembro de 2006, com o usufruto desse benefício pelas entidades que as prosseguissem até 31 de dezembro de 2011. O regime iii, com uma taxa de tributação em IRC de 3 %, 4 % e 5 %, respetivamente nos anos de 2007-2009, 2010-2012 e de 2013 a 2020, entrou em vigor a 1 de janeiro de 2007, permitindo o licenciamento de atividades até 31 de dezembro de 2013, prazo que, de acordo com a legislação comunitária adrede posta em vigor, foi prorrogado, por duas vezes, até 31 de dezembro de 2014, com usufruição dos benefícios fiscais até 31 de dezembro de 2020. As empresas licenciadas no CINM são contribuintes fiscais portugueses para todos os efeitos, pendendo sobre elas as obrigações gerais a que se encontram adstritos os contribuintes em geral, e pagam uma taxa de instalação aquando do licenciamento, e uma taxa anual de funcionamento, através de depósito nos cofres da concessionária nos termos previstos na lei e no contrato de concessão. Os resultados obtidos pela aplicação destes regimes são de natureza qualitativa e quantitativa. Os primeiros, já referidos, permitiram que o CINM constituísse o primeiro exercício político-económico de internacionalização da economia portuguesa, rasgando novos rumos para o ordenamento jurídico português, introduzindo princípios e regras de simplificação administrativa e desburocratização do processo decisório e de licenciamento e exercício de atividades no âmbito do CINM. Do ponto de vista quantitativo, pela aplicação do regime i, constata-se que, em 2000, se encontravam licenciadas cerca de 5900 entidades, congregando 2900 empregos diretos e indiretos, e com o registo de 264 embarcações no MAR. A remuneração média dos quadros qualificados que trabalhavam no CINM era superior em cerca de 60 % à média da Região. Os capitais sociais agregados das sociedades ascendiam ao equivalente a 8600 milhões de euros e os investimentos efetuados pela concessionária na construção e manutenção das infraestruturas internas da ZFI eram de cerca de 18,7 milhões de euros, tendo os utentes investido mais de 143 milhões de euros nas suas unidades industriais. Nesta data, o CINM erigia-se já como um dos pilares fundamentais da economia da Região com um contributo de cerca de 20 % para a formação do respetivo PIB. Em 2000, com o procedimento formal de investigação instaurado pela Comissão Europeia, por força da entrada em vigor das Orientações sobre os Auxílios de Fiscalidade Regional, cujo início de prazo não coincidia com o fim da vigência do regime i, e com a aprovação do regime ii, que só entrou em vigor a 1 de janeiro de 2003 e que introduziu limites máximos (plafonds) ao benefício fiscal usufruído em IRC pelas entidades licenciadas no CINM, verificou-se não só um hiato de dois anos sem licenciamento de atividades, como um retrocesso na atratividade do regime e na adesão dos investidores. Esse retrocesso foi acelerado pela interrupção, em 2010, do processo negocial para revisão e aumento dos plafonds, que havia sido iniciado em 2009, junto da Comissão Europeia, o qual veio a ser retomado em 2011, com conclusão favorável em 2013. Também contribuiu para o agravamento desse retrocesso a revogação do benefício da isenção de dividendos aos sócios e acionistas das empresas licenciadas, benefício que, de acordo com a Comissão Europeia, não se encontrava sujeito a limitação temporal. O referido retrocesso foi reconhecido em 2012 pela Assembleia Legislativa da Madeira que, tomando as suas questões como causas e fundamentos, solicitou ao Governo da República a reabertura do processo negocial dos plafonds, no cumprimento dos deveres para-constitucionais que impendem sobre os órgãos de soberania para assegurarem a rentabilidade e competitividade internacional do CINM. Desse modo, em finais de 2014, encontravam-se licenciadas 1868 entidades, com a criação de cerca de 3000 empregos diretos, estando matriculadas 323 embarcações no MAR. Os capitais sociais agregados das entidades licenciadas ascendiam a 6,4 mil milhões de euros e os investimentos em infraestruturas e equipamentos na ZFI eram de 24 milhões de euros pela concessionária e de 200 milhões pelos utentes. José António Câmara (atualizado a 11.10.2016)

Direito e Política Economia e Finanças História Económica e Social

quercus-madeira

A Quercus-Madeira, fundada a 28 de janeiro de 1995, é o Núcleo Regional da Associação Nacional de Conservação da Natureza (Quercus), uma das principais organizações não-governamentais de ambiente em Portugal, e é constituída pelos sócios residentes no Arquipélago da Madeira. O Núcleo Regional da Quercus na Madeira, tal como os restantes núcleos desta Associação, organiza-se internamente numa Assembleia de Núcleo, que reúne pelo menos uma vez por ano os associados residentes, e numa Direção de Núcleo, eleita em Assembleia de Núcleo e composta, no mínimo, por presidente, tesoureiro e secretário. A Quercus-Madeira tem como objetivos os que decorrem dos Estatutos da organização em que se insere, destacando-se os de alertar e apoiar os cidadãos em relação às disfunções ambientais, fomentar e promover a educação cívica e ambiental, defender e promover a conservação dos valores naturais, e desenvolver estudos que contribuam para o conhecimento e a defesa dos valores do património natural e cultural. Decorrente da sua Declaração de Princípios, a Quercus norteia a sua intervenção cívica e política pelos valores da independência e da autonomia, sendo uma organização apartidária, liberta de qualquer tutela económica, religiosa ou racial, e consubstanciando a sua ação no lema “Pensar Globalmente, Agir Localmente”. A Quercus-Madeira, como toda a estrutura nacional da Associação, aborda as mais variadas áreas essenciais à sustentabilidade ambiental, tendo dado particular atenção à educação ambiental, à gestão dos resíduos, à escassez e qualidade da água, à conservação da natureza, ao ordenamento do território, à poluição, à eficiência energética e à energias renováveis. A origem do Núcleo Regional da Quercus na Madeira está diretamente associada à vontade de um grupo alargado de alunos que, no ano letivo de 1994/1995, frequentava o 3.º ano do curso de Biologia na Universidade da Madeira. Estes jovens, que tinham vontade de se organizar e constituir uma associação de defesa do ambiente, fizeram-se sócios da Quercus e constituíram o Núcleo Regional. A reunião preparatória que resultou no pedido formal à Direção Nacional da Quercus para a constituição de uma estrutura regional na Madeira ocorreu a 27 de outubro de 1994. Face à vontade subscrita por 15 alunos da licenciatura em Biologia e ao apoio do professor Jorge Paiva, a Direção Nacional autorizou a constituição do Núcleo Regional da Madeira a 28 de janeiro de 1995. A primeira Direção da Quercus-Madeira foi eleita a 15 de fevereiro de 1995 numa Assembleia de Sócios do Núcleo que decorreu no Colégio dos Jesuítas, Universidade da Madeira, tendo Hélder Spínola sido eleito Presidente, Maria Cristina de Matos Niza Secretária, Dília Maria Góis Gouveia Menezes tesoureira, e Odília Maria Freitas Garcês e Irene Gomez Câmara vogais. A apresentação pública da constituição da Quercus-Madeira ocorreu a 12 de abril de 1995, numa sala do Ateneu Comercial do Funchal, tendo suscitado uma forte curiosidade por parte da comunicação social regional. A Quercus-Madeira, sem sede, abriu um apartado na estação de correios e começou por usufruir de algum apoio logístico da própria Universidade da Madeira: dispunha de um armário para o seu arquivo, utilizava as salas para reuniões e fazia uso dos serviços de telecópia da instituição para contatos com a comunicação social. Em maio de 1996, com a eleição do primeiro Reitor da Universidade da Madeira, foi perdendo este apoio, passando a manter o seu arquivo em casa dos dirigentes e estabelecendo contactos com a comunicação social via serviço de telecópia dos Correios de Portugal. À medida que a Quercus na Madeira vincava a sua discordância com as opções que considerava desviadas da sustentabilidade – nomeadamente o atraso na aprovação dos Planos Diretores Municipais e outros instrumentos de ordenamento do território, a gestão da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos, que estava a criar problemas de contaminação das águas subterrâneas, os despejos de terras para dentro das ribeiras e diretamente para o mar e a falta de medidas para evitar os efeitos sobre a saúde pública da aplicação de materiais contendo amianto –, foi dando a conhecer o seu trabalho e atraindo novos sócios. Passado o primeiro ano desde a sua fundação, este Núcleo Regional deixou de ser um projeto de um grupo de estudantes de Biologia para passar a integrar elementos de outras proveniências da sociedade madeirense. Efetivamente, aquando da constituição de uma nova direção, a 27 de fevereiro de 1997, a maioria dos dirigentes eleitos já não pertencia ao grupo inicial de fundadores. No início de 1997, a Quercus-Madeira, ainda sem sede própria, passou a contar com um espaço na Escola da APEL para manter o seu arquivo e fazer as suas reuniões de trabalho. A utilização deste novo espaço resultou dos contactos estabelecidos entre a nova Secretária da Direção da Quercus-Madeira, Carina Martins Nunes, e o diretor da escola, Mário Casagrande (1930-2009). Um ano depois, também este espaço ficou indisponível e até ao ano 2000 a Quercus-Madeira funcionou sem sede, fazendo as suas reuniões em cafés, na casa dos dirigentes ou em espaços solicitados à Câmara Municipal de Machico. No ano 2000, fruto de uma colaboração que vinha a ser mantida com a Câmara Municipal de Machico, foi estabelecido um protocolo para a constituição de um centro de educação ambiental que passou a ser também a sede da Associação. A Quercus-Madeira passou assim a ter sede fixa num antigo quiosque, onde iniciou também a dinamização do novo Centro de Educação Ambiental de Machico. Em 2004, o Centro de Educação Ambiental e a sede da Quercus-Madeira passaram a funcionar no Mercado Municipal de Machico. A partir de 2011, por indisponibilidade da autarquia local, o Centro de Educação Ambiental de Machico cessou funções, mas a sede da Quercus-Madeira manteve-se no local. A Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza é uma Organização Não Governamental de Ambiente que se formalizou a 31 de outubro de 1985, mas que já desenvolvia atividade desde finais de 1984. A sua constituição resultou da união de esforços entre vários ativistas e associações ambientalistas, que sentiram a necessidade de uma organização mais forte e de âmbito nacional dedicada à conservação da natureza. A base da sua fundação foi determinante na definição do tipo de estrutura interna que adotou, a qual, além dos órgãos nacionais, é marcada pelas existência de Núcleos Regionais espalhados de norte a sul do país, incluindo os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Os primeiros Núcleos Regionais da Quercus foram constituídos a partir da integração de associações locais de defesa do ambiente previamente existentes, algumas que participaram na fundação da Associação e outras que se juntaram mais tarde. Numa segunda fase, já na década de 90 do século XX, e à semelhança do que aconteceu na Madeira, a organização local dos sócios deu origem a Núcleos Regionais nascidos dentro da própria Quercus. O facto de os Núcleos Regionais da Quercus constituírem estruturas democráticas, com dirigentes eleitos pelos seus sócios, e possuírem autonomia de funcionamento, proporcionou a esta Associação uma grande agilidade de atuação que é, em grande medida, responsável pela forte implantação e influência em todo o território português. Apesar de estes Núcleos Regionais possuírem autonomia estatutária para definir a sua estrutura organizativa, nomeadamente criando delegações na sua área geográfica, são muito raros os exemplos de concretização dessa faculdade. O Núcleo Regional da Madeira chegou a aprovar, em outubro de 1995, a criação de uma Delegação no Concelho de Santana, mas, à semelhança de tentativas para o Estreito de Câmara de Lobos e para o Porto Santo, essas estruturas acabaram por não vingar. A Quercus possui como órgãos sociais a Assembleia-Geral, a Mesa da Assembleia-Geral, a Direção Nacional, o Conselho Fiscal e a Comissão Arbitral, possuindo ainda um Conselho de Representantes que reúne os membros da Direção Nacional e os presidentes dos Núcleos Regionais. Se os Núcleos Regionais permitem à Quercus uma forte implantação geográfica, os órgãos nacionais, em particular a Direção Nacional, apoiados em estruturas como os grupos de trabalho e os projetos nacionais, garantem uma atuação global coerente e sólida. Ambas as estruturas, nacionais e regionais, na sua ação concertada, completam um modelo de organização que consubstancia de forma eficaz o lema: “Pensar Globalmente, Agir Localmente”. Apesar de a Quercus ter atualmente uma intervenção muito diversificada, abrangendo áreas temáticas como a gestão dos resíduos, a qualidade do ar, a eficiência energética, as energias renováveis, a qualidade e escassez dos recursos hídricos, entre muitas outras, a preocupação predominante dos seus fundadores centrou-se essencialmente nas questões associadas à conservação da natureza. Esse foi justamente o motivo para a adoção do nome Quercus, o nome científico do género a que pertencem os carvalhos, sobreiros e azinheiras, que são as árvores predominantes do coberto vegetal primitivo do território continental português, e do símbolo da organização, uma folha e uma bolota de carvalho-negral (Quercus pyrenaica). Os dirigentes da Quercus são eleitos para mandatos de dois anos de entre os sócios da Associação e exercem os seus cargos de forma não remunerada. Tendo em conta as estruturas nacionais e regionais definidas estatutariamente, o número de dirigentes necessários para completar todos os cargos é superior a 80. Além dos dirigentes, o funcionamento da Associação requer também a ocupação de outros cargos, nomeadamente na coordenação de grupos de trabalho e de projetos. Entre 1995 e 2000, 0 presidente do Núcleo Regional da Quercus na Madeira foi Hélder Spínola, biólogo e um dos fundadores deste núcleo, que mais tarde, entre 2003 e 2009, foi também presidente da Direção Nacional desta Associação. A segunda Direção do Núcleo foi eleita a 27 de fevereiro de 1997, tendo Hélder Spínola sido acompanhado por uma equipa maioritariamente constituída por sócios não pertencentes ao núcleo de fundadores: Carina Martins Nunes, como Secretária, Élvio Duarte Martins de Sousa, como Tesoureiro, e Élia Maria Basílio Rodrigues, Idalina Perestrelo Luís, Joselino Humberto Henriques Silva, Maria Conceição Andrade Silva, Odília Maria Freitas Garcês e Ysabel Margarita Amaro Gonçalves, como vogais. Idalina Perestrelo Luís foi a segunda presidente da Quercus-Madeira, tendo iniciado funções a 5 de agosto de 2000, por nomeação da própria Direção do Núcleo, e sido eleita para o cargo a 28 de outubro de 2000. Desde 2000, e ao longo dos sete mandatos sucessivos para os quais foi eleita, Idalina Perestrelo Luís foi sempre acompanhada na Direção do Núcleo por Elsa Maria Freitas Araújo, como vice-Presidente. A partir de outubro de 2013, Elsa Araújo passou a ser a Presidente do Núcleo Regional da Quercus na Madeira. Desde 1995, o Núcleo Regional da Quercus na Madeira envolveu-se em inúmeras atividades com o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade ambiental e para uma mudança de paradigma na sociedade madeirense. À semelhança da matriz que caracteriza a ação nacional da Quercus, toda a atividade do Núcleo Regional foi marcada por duas formas principais de atuação, os projetos e a intervenção pública, em ambas abrangendo os mais diversos temas ambientais. A mudança de atitudes e comportamentos para com os valores ambientais foi um dos objetivos em que a Quercus-Madeira apostou desde início, tendo desenvolvido várias iniciativas e projetos com esse fim. Nesse âmbito, destaca-se uma parceria com a Câmara Municipal de Machico e a criação do Centro de Educação Ambiental de Machico (CEAM), cuja abertura oficial, em julho de 2000, contou com a presença do Presidente da Direção Nacional da Quercus. Ao longo dos seus 13 anos de funcionamento, o Centro de Educação Ambiental dinamizado pelo Núcleo Regional da Quercus desenvolveu largas centenas de ações de sensibilização, em particular nas escolas da Madeira, tendo abordado temáticas tão diversas como a defesa do património natural, os incêndios florestais, o ordenamento do território, a redução, reutilização e reciclagem de resíduos, a gestão sustentável dos recursos hídricos, e a eficiência energética, entre muitos outros. Além de palestras e debates, a Quercus-Madeira dinamizou, através do CEAM, atividades de reflorestação e manutenção no Parque Ecológico do Funchal, editou publicações, preparou exposições e promoveu passeios a pé. De entre os vários recursos de divulgação e educação ambiental publicados pela Quercus-Madeira é de particular realce a revista Raízes, uma publicação periódica que lançou o seu primeiro número em outubro de 2001. Ao longo de sete anos e de 34 números, a revista Raízes apresentou em capa uma grande variedade de temas, como o património malacológico do Porto Santo e dos seus ilhéus, a fauna cavernícola de Machico, a avifauna da lagoa do Lugar de Baixo, as florestas da ilha da Madeira, a qualidade ambiental das ribeiras e o problema dos incêndios florestais. Associados a estes e outros temas, muitos foram os cidadãos que deram o seu contributo voluntário na preparação de conteúdos, em particular profissionais da área da biologia, mas também juristas, professores e estudantes, entre outros. Um dos temas a que o Núcleo Regional da Quercus na Madeira tem dedicado especial atenção tem sido a gestão de resíduos, não só ao nível da educação e sensibilização ambiental, nomeadamente com o projeto Ponta de Sol Mais Brilhante em 2004 e 2005, mas também através da implementação de projetos iminentemente práticos. Exemplo disso foi a recolha de pilhas usadas, um projeto nacional da Quercus que o Núcleo Regional estendeu à Madeira logo no início de 1995, reunindo mais de 10 quilos de pilhas, as quais se juntaram, em 1998, às 11 toneladas recolhidas em todos os Núcleos da Associação para serem encaminhadas para reciclagem em França. Ainda em 1998, com a ajuda de algumas dezenas de jovens voluntários, esta estrutura regional da Quercus fez um levantamento exaustivo da quantidade e do tipo de resíduos existentes nas praias e calhaus da Madeira, tendo encontrado um litoral pejado de lixo com origem na própria ilha. A disponibilidade de bebidas em embalagens retornáveis, como forma de prevenir a produção de lixo, foi um assunto constante nas preocupações da Quercus-Madeira, que insistiu sempre na fiscalização e cumprimento da Lei. Em fevereiro de 2009, a Quercus trouxe à Madeira mais um projeto pioneiro, tendo, primeiro em parceria com o centro comercial Dolce Vita e depois com os hipermercados Continente, iniciado a recolha seletiva de rolhas de cortiça para posterior reciclagem no âmbito do projeto Green Cork, cujos lucros são utilizados para a reflorestação. Nos primeiros dois meses, o projeto Green Cork conseguiu reunir na Madeira mais de meia tonelada de rolhas de cortiça. Ainda na mesma área, uma das batalhas em que a Quercus-Madeira mais investiu foi a oposição à opção pela incineração como destino final dos resíduos sólidos urbanos produzidos no Arquipélago da Madeira. Em 1998, assim que o governo regional anunciou a intenção de construir uma central de incineração, a Quercus-Madeira promoveu uma petição para que o projeto não fosse concretizado, tendo recolhido mais de 700 assinaturas, que foram entregues na Assembleia Legislativa da Madeira. Quando, em janeiro de 1999, o Governo Regional da Madeira iniciou a discussão pública do estudo de impacte ambiental da obra de Ampliação e Remodelação da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos da Meia Serra, o Núcleo Regional da Quercus foi a única organização que se opôs a este projeto. A 22 de Agosto de 1999, a Quercus-Madeira organizou a iniciativa Ar Puro que, junto à igreja do Rochão, na Camacha, reuniu cidadãos e representantes de partidos na sensibilização para os perigos decorrentes das emissões de uma central de incineração. A 7 de dezembro de 1999, ao início da noite, devido à queda de um muro que ameaçava ruir já há algum tempo, ocorreu uma derrocada de resíduos do aterro sanitário da Estação da Meia Serra para o interior da lagoa de arejamento dos lixiviados, provocando uma enxurrada que desceu ao longo da ribeira da Cerejeira, destruiu por completo uma habitação e danificou três viaturas no sítio do Ribeiro Serrão. O sobressalto causado por esta calamidade terá estado na origem do ataque cardíaco que vitimou, no decorrer dessa mesma noite, um residente, o senhor José Arnaldo das Neves Vieira, com 39 anos, que, ao longo desse ano, vinha colaborando abertamente com a Quercus-Madeira por uma solução diferente para a gestão dos resíduos. Este facto levou a um envolvimento maior da população da Camacha, em particular dos moradores dos sítios do Ribeiro Serrão e Rochão, que, juntando-se à Quercus, se manifestaram contra o projeto à entrada da Estação a 27 de dezembro de 1999, reunindo perto de uma centena de pessoas. A manifestação repetiu-se a 2 de janeiro de 2000, envolvendo cerca de 300 pessoas. Nesse dia, as barreiras metálicas e a Brigada de Intervenção Rápida da Polícia de Segurança Pública, liderada no local pelo próprio comandante regional da PSP, não foram suficientes para demover a população de entrar na Estação para constatar in loco a estabilidade dos resíduos depositados no aterro e o que estava a ser feito para garantir a sua segurança. Apesar destas iniciativas, o projeto foi avante e a incineradora foi inaugurada em 2004. Possuindo o Arquipélago da Madeira um património biológico extraordinariamente importante, a conservação da natureza foi outra área onde o Núcleo Regional da Quercus mais interveio. Além dos contributos que deu na divulgação do património natural insular, a Quercus-Madeira agiu inúmeras vezes na tentativa de alterar o curso de algumas ações que entendia serem lesivas à biodiversidade. Desde a sua fundação, insistiu na retirada do gado ovino, caprino e bovino que pastoreava em regime livre nas serras da Madeira e impedia a regeneração da vegetação, deixando as serras escalvadas e à mercê dos processos erosivos, pondo em causa a biodiversidade e a segurança das populações pelo risco de aluvião. Também por insistência do então Vereador do Ambiente da Câmara Municipal do Funchal, Raimundo Quintal, mentor da criação do Parque Ecológico do Funchal, onde implementou essa medida, o Governo Regional da Madeira acabou por aceitar a retirada do gado das serras, tendo dado por concluído esse processo em 2003. Outra ameaça à biodiversidade que a Quercus-Madeira sempre combateu foi o flagelo dos incêndios florestais, tendo desenvolvido o projeto Vigilância Contra Fogos Florestais em 1997 e 1998 e, nos anos seguintes, criado uma rede informal de vigilância com mais de 100 voluntários no âmbito do projeto De Olhos na Floresta. Para minimizar o problema dos incêndios florestais, esta Associação insistiu constantemente numa estratégia para a Madeira apostada na prevenção, na vigilância e numa primeira intervenção rápida e eficaz. Em 1999, em colaboração com a Câmara Municipal de Machico, a Quercus-Madeira elaborou a candidatura do projeto Recuperação da Floresta Laurissilva das Funduras ao programa LIFE Natureza, projeto que foi submetido em nome da Direção Regional de Florestas e obteve um financiamento europeu superior a meio milhão de euros. A execução do projeto teve início em janeiro de 2000 e decorreu até ao fim de 2003, tendo a Quercus-Madeira assegurado a implementação das medidas de educação ambiental que ficaram à responsabilidade da Câmara Municipal de Machico. A Quercus-Madeira também se mobilizou várias vezes para tentar evitar a concretização de alguns projetos no coração da floresta Laurissilva. Por exemplo, no início do século XXI, quando o Governo Regional avançou com a asfaltagem da estrada do Fanal, entre a Ribeira da Janela e o Paul da Serra, a Quercus, além das intervenções públicas, procurou, sem sucesso, que a UNESCO, que em 1999 reconheceu o estatuto de Património Natural Mundial à floresta Laurissilva, negasse essa pretensão. Ainda assim, a contestação à asfaltagem levou a que, a partir do Fanal e até ao Paul da Serra, a largura da estrada fosse reduzida. Já em 2008, unindo esforços com a Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal e com um conjunto alargado de cidadãos, a luta foi contra a pretensão do Governo Regional da Madeira de viabilizar a construção de um teleférico no Rabaçal, na cabeceira da ribeira da Janela, em plena floresta Laurissilva, tendo pedido a intervenção da UNESCO e da Comissão Europeia, às quais enviou uma petição com mais de 5000 assinaturas. Adicionalmente, em Março de 1999, estas duas associações de defesa do ambiente interpuseram em Tribunal uma ação judicial a pedir a nulidade da Declaração de Impacte Ambiental favorável assinada pelo Secretário Regional do Ambiente. Devido a esta forte contestação, a construção do teleférico não avançou e a Declaração de Impacte Ambiental acabou por caducar por ter sido ultrapassado o prazo da sua validade, situação que levou o Tribunal Administrativo e Judicial do Funchal, em setembro de 2011, a encerrar o processo. Ao longo do tempo, a Quercus-Madeira alertou para inúmeras situações e opções que constituíam ameaças ao ambiente: Contestou as ações de abate ao Pombo Trocaz (Columba trocaz), espécie protegida e exclusiva da Madeira, , iniciadas pelo Governo Regional em 2004; opôs-se, a partir de 2002, à construção de um Radar Militar no Pico do Areeiro, em Sítio da Rede Natura 2000, junto ao único local no mundo onde nidifica a Freira da Madeira (Pterodroma madeira), uma ave marinha fortemente ameaçada; alertou insistentemente para as consequências negativas sobre os ecossistemas marinhos costeiros decorrentes dos despejos de terras provenientes de obras públicas e privadas; colocou na ordem do dia os perigos para a saúde pública decorrentes da inalação de fibras de amianto, presentes em materiais utilizados na construção de inúmeros edifícios no Arquipélago da Madeira; insistiu na necessidade de melhorar os transportes públicos de modo a garantir uma alternativa válida ao transporte individual e reduzir a poluição dentro da cidade do Funchal; defendeu uma maior aposta na eficiência energética e nas energias renováveis; pressionou inúmeras vezes para o cumprimento da Lei no que diz respeito à realização de análises e divulgação dos resultados relativos à água para consumo humano; insistiu na necessidade de serem adotados e respeitados os instrumentos de ordenamento do território previstos na legislação portuguesa, em particular os Planos Diretores Municipais, os Planos de Ordenamento da Orla Costeira e a Reserva Ecológica Nacional; cooperou com a organização internacional Save the Waves na contestação contra a destruição das ondas para a prática de surf no Jardim do Mar; cooperou com a Sociedade de Desenvolvimento Ponta Oeste numa solução para a preservação da Lagoa do Lugar de Baixo na Ponta do Sol; e, entre muitas outras iniciativas, tentou impedir o avanço de projetos turístico-imobiliários sobre o litoral.   Hélder Spínola (atualizado a 11.10.2016)

Biologia Terrestre Geologia Ciências do Mar Ecologia

freire, ascenso de sequeira

"Ascenso de Sequeira Freire do conselho de SAR Governador Capitão-General dessa Ilha, tomou posse a 8 de dezembro de 1803 Gov. até 5 de agosto de 1807"   O governo de Ascenso de Sequeira Freire (c. 1760-c. 1825) decorreu no complexo período da neutralidade da corte portuguesa de 1804 a 1807 (Guerras Napoleónicas), no qual a Madeira se viu envolvida na guerra de corso entre os navios de Inglaterra, França, Espanha e, também já, dos Estados Unidos da América, que, não sendo novidade, atingiu níveis muito altos e criou problemas administrativos com a entrega e abandono na Ilha de inúmeros elementos dos navios apresados pelos corsários. Ascenso de Sequeira Freire foi o primeiro governador a ir para a Ilha com carta patente de governador da Madeira e do Porto Santo, e já estaria indigitado nos meados de abril de 1803, pois que a 30 desse mês foi-lhe entregue um aviso com as anteriores instruções enviadas a D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1726-1799) e a D. José Manuel da Câmara (c. 1760-c. 1825), embora as novas instruções só tenham sido formalizadas a 28 de novembro. O atraso da sua nomeação oficial enquadra-se na complexa situação política internacional das guerras europeias, envolvendo então a movimentação das forças francesas. Na Madeira, entretanto, haviam ocorrido graves confrontos entre o Gov. D. José Manuel da Câmara e o bispo D. Luís Rodrigues Vilares (c. 1740-1810), que levariam ao afastamento de ambos para Lisboa, acrescidos da aluvião de 9 de outubro de 1803, porventura uma das mais graves catástrofes ocorridas na Madeira e que se calcula ter feito cerca de 600 mortos (Aluvião de 1803). O novo Gov. Ascenso de Sequeira Freire chegou à Madeira na fragata Carlota Joaquina, a 5 de dezembro, e tomou posse a 8 desse mês, “pela devoção e piedade que lhe inspirava, por ser (dia) consagrado à Conceição da Virgem Nossa Senhora”, como ainda informou José Manuel da Câmara (ARM, Governo Civil, liv. 197). Os primeiros meses devem ter sido complicados, pois que só entrou para a confraria de N.ª Sr.ª da Soledade, no convento de S. Francisco, como era tradição dos governadores desde os meados do séc. XVIII, a 20 de março do seguinte ano de 1804. Na mesma fragata em que veio o governador, veio também o juiz desembargador Joaquim António de Araújo, para proceder a uma “sindicância” sobre as atitudes do anterior governador e do bispo, aliás com carta régia também datada de 15 de outubro (Ibid., liv. 199, fl. 5), tendo ambos regressado ao continente nos dias 10 e 11 do mesmo mês, mas em navios diferentes, para que na Ilha não interferissem no trabalho do desembargador. O governador, logo nesses dias, pelo seu gabinete no palácio de S. Lourenço, despachava ordens para o Corr. José Pedro de Lemos, para a Câmara do Funchal e mesmo para o deão, ordenando que se disponibilizassem para tudo o que o desembargador necessitasse para o seu trabalho. Não temos referência ao tempo que o desembargador Joaquim de Araújo levou a concluir o seu processo, mas deve ter passado alguns meses a ouvir os vários intervenientes e com certeza a fazer acareações, pois as relações entre as duas entidades extremaram-se muito para além do razoável. A acusação do bispo e do governador veio a ser feita pelo desembargo do paço, em meados de 1805, altura em que “foi tomado em madura consideração” todo o material recolhido, concluindo-se que ambos não se haviam portado bem. No entanto, o príncipe regente veio a perdoar a ambos, autorizando o bispo a regressar à sua diocese, o que só viria a fazer mais tarde e concedendo ao governador “a honra e mercê” de ir beijar a “Minha Real Mão”. Futuramente, sobre este assunto deveria ser “guardado perpétuo silêncio” (Ibid., liv. 199, fls. 24v.-25v.). No longo despacho, no entanto, não se deixa de imediatamente ordenar a regulamentação minuciosa do cerimonial e etiqueta entre o governador e os bispos das ilhas adjacentes, com os locais onde se deveriam acompanhar um ao outro, até onde e quem os acompanharia depois, que lugares deveriam ocupar e onde, mesmo em relação às restantes autoridades insulares, como a Câmara, até para evitar situações como a da procissão do Corpus Christi, que parece ter sido um dos motivos para os confrontos destas entidades. A articulação do cerimonial acompanhou logo o despacho de acusação. Ainda se refere no despacho do processo que o Colégio, posto que doado à mitra por D. Maria I, em 1787, “se conserve para aquartelamento de tropa e também como celeiro público”, como fora destinado na carta régia de 24 de junho de 1800, assim como que a nova praça do Mercado, estabelecida nos terrenos da antiga capela de S. Sebastião e casas contíguas, cuja demolição tinha sido aprovada por carta régia de 5 de março de 1803, também se deveria manter. Por último, era suspenso o escrivão Manuel do Nascimento da Silva, “pela facilidade que praticou nas acusações” ao prelado, e determinava-se a “repreensão em câmara” do escrivão João Francisco da Câmara Leme, “por se queixar sem motivo do governador” (Ibid.). Em julho de 1805, o Gov. Ascenso de Sequeira Freire acusava a receção do aviso régio “acerca dos conflitos havidos” entre o bispo e anterior governador. Informava então ter “ordenado a repreensão” e suspensão dos escrivães envolvidos no processo em causa, assim como agradecia “a definitiva resolução de ser aplicado o ex-convento dos jesuítas ao aquartelamento da tropa e a celeiro público”, como já havia sido determinado pela anterior carta régia de 24 de junho de 1800 (Ibid., liv. 203, fls. 42-43). O governador vinha para uma comissão de três anos, que já sabia vir a ser um trabalho difícil. A 9 de outubro, a Ilha fora assolada por uma terrível aluvião que destruíra parcialmente a parte baixa da cidade, assim como as áreas ribeirinhas das restantes vilas e povoações, sendo necessário proceder a profundas obras de reconstrução, principalmente dos paredões das ribeiras, cujas ordens passaram inclusivamente a ser escrituradas num livro independente. Acrescia que nestes finais de 1803 também uma série de pestes assolava vários portos do Mediterrâneo, obrigando a redobrar as medidas de segurança e de saúde nos portos portugueses, medidas que no Funchal assumiam especial relevância, dada a fama de que a Ilha já começava a gozar como estância de turismo terapêutico. Os seguintes cuidados do gabinete do Gov. Ascenso de Sequeira Freire foram para a segurança do porto, no aspecto das visitas aos navios, ordens que imediatamente se comunicaram ao oficial das visitas José Francisco Esmeraldo, para o comandante da artilharia e para o Sarg.-mor Francisco Martins Pestana, tendo-se transmitido também para o Porto Santo. O registo do porto estava a cargo da fortaleza do Ilhéu, à qual competia manter em ordem principalmente os navios mercantes, fazendo inclusivamente fogo real com dois tiros sobre os navios que não cumprissem os requisitos estabelecidos. Dentro desses aspectos, deve ter sido pressionado também o meirinho da então praça de S. Sebastião, Manuel de Sousa Drummond, que de imediato pediu a demissão. Aliás, este seria um elemento que depois levantaria outros problemas, entrando várias vezes em conflito com os elementos da Casa dos Vinte e Quatro e, em abril de 1804, especificamente por causa da venda de carne no açougue de forma ilegal, pelo que o governador não hesitou em o mandar prender. Algumas das principais preocupações do Gov. Ascenso de Sequeira Freire foram, assim, para a defesa geral da Ilha, não só em relação às intempéries, que nestes primeiros meses do seu governo continuavam a assolar a Madeira, como também para a defesa militar, que igualmente se adivinhava absolutamente necessária. Na noite de 8 para 9 de janeiro de 1804, uma enorme tempestade de “muita chuva e trovões” fez naufragar na baía do Funchal duas galeras inglesas, uma das quais apresada aos espanhóis, lançando-as sobre a praia frente à fortaleza e palácio de S. Lourenço e tendo perecido afogados dois ingleses da guarnição de uma delas. Nos inícios de abril voltava a haver problemas, embora sem especiais estragos (Ib., liv. 203, fls. 3v-4 e 9). O Gov. Ascenso de Sequeira Freire tinha tomado posse do Governo a 8 de dezembro e logo a 10 da presidência da Junta da Fazenda, e os primeiros assuntos que ali despachou foram os pendentes em relação à secretaria do Governo e à Fazenda, que, no entanto, se limitou a enviar para Lisboa, sem especial informação. Nessa sequência, em fevereiro, tratava das nomeações militares, voltando a insistir para Lisboa sobre a situação do Colégio, imprescindível para aquartelamento militar, resposta que só recebeu em 1805, com o despacho do processo sobre o seu antecessor e o bispo. Por essa altura, também se inteirou da situação das várias fortificações do Funchal, com especial atenção para a fortaleza do Ilhéu, principal defesa e registo do porto. Os cuidados sobre a situação militar de Ascenso de Sequeira Freire em breve seriam colocados à prova. Nos inícios de março, uma esquadra inglesa, numa atitude algo insólita, tentou desembarcar no Funchal 2000 homens, com a desculpa de se avizinhar um confronto com navios franceses. No dia 10 desse mês, chegara ao Funchal uma unidade naval britânica, formada por seis naus comboiadas pela fragata Egyptienne. A fragata ficou ao largo e as embarcações tentaram ancorar na baía, no que foram impedidas pela fortaleza do Ilhéu, dado já ser noite e, conforme as normas em vigor, só o poderem fazer à luz do dia. No dia seguinte, ficaram à vela, em parte devido ao mau tempo, mas em linha, o que não deixou de alertar o governador, tendo sido assim que receberam refrescos de terra. O então Cap. Charles Elphinstone Fleeming (1774-1840), comandante da Egyptienne e que já estivera no Funchal, mandou apresentar cumprimentos ao governador. Avistaram-se entretanto outros navios ao largo, que os ingleses identificaram como sendo franceses, o que não seria novidade, pois se sabia que alguns navios dessa nacionalidade cruzavam também por vezes os mares da Madeira. No entanto, o que espantou o governador, e que relatou depois para Lisboa, foi o pedido dos ingleses para desembarcarem 2000 soldados em terra, com o argumento de que, dado o combate naval que se adivinhava, não seriam necessários a bordo, pois poderiam mesmo prejudicar a manobra da esquadra. Cauteloso, Ascenso Sequeira Freire resguardou-se na neutralidade portuguesa, não autorizando o desembarque, pois a Ilha já havia sido ocupada pelos britânicos dois anos antes. Os navios ingleses afastaram-se e, perante o alvoroço na cidade, verificou-se que eram todos britânicos, trocando sinais entre si e logicamente não tendo havido confronto. Tratava-se de uma esquadra de naus de linha, sob o comando do Alm. sir Thomas Cochrane (1775-1860), futuro lord Dundonald, que depois haveria de comandar as esquadras do Chile e do Brasil, chegando a perseguir e combater navios portugueses depois da independência da antiga colónia, e estava então no encalço de uma outra esquadra francesa que saíra de Rochefort. A 12 desse mês, efetivamente, as naus dessa esquadra inglesa paravam na baía do Funchal, uma das quais era a célebre Nothumberland, de 74 peças, para carregarem vinho e refrescos, saindo na tarde desse mesmo dia. A situação foi tão estranha que o governador colocou a hipótese de se tratar de uma brincadeira. No entanto, face à possibilidade de um desembarque, colocou de prevenção e reforçou as forças armadas locais durante as duas noites seguintes. Quem reagiu de imediato a este incidente foi o cônsul espanhol, que informou o governador de ter instruções para no caso de desembarque inglês na Ilha se retirar imediatamente, pois o Governo em Madrid era então francês. Ascenso de Sequeira Freire desdramatizou a situação perante o cônsul espanhol, informando-o encontrarem-se numa situação de paz e que as ações desencadeadas se limitavam a “sustentar o lugar” (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 1476). Teria sido na sequência destes acontecimentos que o Governo de Lisboa enviara ordem para a Madeira, proibindo rigorosamente o desembarque de tropas estrangeiras e até a permanência demorada das esquadras nos portos da Ilha. Estava-se, por um lado, a tentar que se respeitasse a neutralidade assinada por Portugal e, por outro, a evitar casos semelhantes a este num futuro próximo. A importância da minuta desse ofício, igualmente enviada para a Madeira, fez com que o governador nunca se separasse da mesma, tendo assim permanecido nos arquivos da família durante muito tempo (ARM, Arquivos Particulares, Docs. Ascenso Sequeira Freire). Começa o ofício por historiar que, “Tendo Sua Majestade Britânica mandado na penúltima guerra um Corpo de Tropas Inglesas Auxiliares a essa Ilha, em consequência da íntima Aliança que então ligava as duas potências”, esse “auxílio” tinha chegado ao Funchal sem o governador de então ter recebido quaisquer instruções “com o modo de se haver naquele caso inopinado”. No entanto, “quis a Providência que o referido governador em circunstâncias tão delicadas e imprevistas se antecipasse pela resolução que tomou” ao que depois lhe foi determinado. “Sendo porém a atual situação política de Portugal diversa daquela em que então se achava, pela paz que o nosso Augusto Soberano conseguiu para os seus reinos”, era preciso “conservar pelo meio da mais exata e imparcial neutralidade” a mesma paz, “que se achará violada pela livre entrada e voluntária receção de tropas estrangeiras armadas no território dos seus reinos e domínios” (Ibid.). Com a ratificação, entretanto, do acordo entre Portugal e França, a 19 de março de 1804, em que mais uma vez se insistia na neutralidade portuguesa, a corte de Londres alarmava-se. Em breve, por exemplo, insistia-se junto do embaixador português nas razões que teriam levado ao aumento das medidas de defesa no porto do Funchal, referindo-se certamente à situação supracitada com a fragata Egyptienne, assim como se protestava contra a nomeação do Brig. Reinaldo Oudinot (1747-1807) para o Funchal, dada a sua origem francesa. O embaixador português em Londres, Domingos de Sousa Coutinho (1760-1833), chegou mesmo a alvitrar para Lisboa a necessidade de colocar em alerta máximo as defesas da Madeira, o que levou à convocação extraordinária das milícias. Estes anos continuaram a ser marcados pela presença de grandes comboios britânicos nos mares da Madeira, recorrendo ao porto do Funchal para aguada e carregamento de vinhos, que juntaram também corsários franceses e espanhóis, tal como navios norte-americanos. Todo este movimento veio a criar inúmeros problemas de segurança geral na Ilha, incluindo de saúde, com a presença de presas de várias proveniências e prisioneiros de guerra, levando à necessidade de se efetuarem visitas de fiscalização rigorosa a esses navios, a que o governador tentou de várias formas acorrer e disciplinar. A estes problemas juntavam-se ainda as dificuldades de ligação da Madeira a Lisboa, dado rarearem as embarcações portuguesas neste contexto de guerra, tendo o correio oficial que circular, por vezes, pelo arquipélago açoriano, com as demoras daí advindas. Acresciam ainda as questões levantadas pelos vários comerciantes estrangeiros e pelos respetivos cônsules insulares, em defesa dos interesses das nações que representavam. As questões ultrapassaram então os habituais problemas económicos e envolveram muitas vezes provocações graves com elementos da população do Funchal e mesmo oficiais da guarnição, chegando inclusivamente ao confronto físico. O conflito que ofereceu mais complicações ocorreu na praia do Calhau na noite de 15 de julho de 1804, com um desacato entre alguns marinheiros ingleses e populares do Funchal. Os ingleses pertenciam a mais um comboio de 45 navios que levava lord Seaforth, sir Francis Mackenzie (1754-1815), para Barbados. A 19 desse mês, o governador oficiava ao juiz de fora do Funchal: “por que me constou que alguns oficiais e marinheiros britânicos das naus e navios que se acham ancorados neste porto têm feito nesta cidade algumas desordens”, pedia a sua intervenção (ARM, Governo Civil, liv. 713, fls. 33v.-34). Em breve o governador compreendia a extensão do caso e envolvia no assunto também o corregedor e o comandante da artilharia, António Francisco Martins Pestana, dado um dos envolvidos ser um tenente de artilharia. Entre os ingleses, encontrava-se inclusivamente o próprio cônsul-geral José Pringle, que tomara posse em março de 1800, e, entre os funchalenses, o Ten. António de Carvalhal Esmeraldo, tendo este esbofeteado e ferido o cônsul inglês. O tenente foi preso quase de imediato, seguindo sob prisão para Lisboa na charrua Príncipe da Beira, embora regressasse algum tempo depois. Seguiram igualmente para Lisboa os marinheiros ingleses que haviam praticado insultos no convento de Santa Clara, tal como os que tinham açoitado um religioso franciscano, Fr. Luís de Santa Helena, inclusivamente sob escolta militar. Face à proteção tentada pelo cônsul britânico, o mesmo veio a ter também ordem de prisão, embora tal se não tenha depois consumado. O assunto teria sido tão complicado que ainda em meados de 1807 era objeto de correspondência do governador para o visconde de Anadia. Para se imaginar o movimento inglês nos mares da Madeira, a 5 de junho de 1804, por exemplo, chegava ao Funchal um comboio britânico com 48 navios mercantes e duas fragatas de guerra, que se dirigiam para as Índias Ocidentais inglesas. Também nos inícios de janeiro de 1805 eram avistadas ao largo do Porto Santo, pelo bergantim Senhora Carlota, comandado pelo Cor. Philip Lanylois, cerca de 180 embarcações que mais tarde se veio a confirmar tratarem-se de uma divisão francesa saída de Rocheford, com destino à Dominica e que ali desembarcaria depois cerca de 3000 homens. Nos mesmos inícios de 1805 ainda passavam pelos mares da Madeira seis naus inglesas, novamente sob o comando do Alm. Thomas Cochrane, e em setembro a nau Raisonable, comandada por Josias Rowley (1765-1842). Esta nau havia travado combate com outras francesas e conseguira “escapar, por ser muito veleira”, embora viesse “com feridos e algum destroço” (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 1484 e 1556). Nos finais do mesmo mês de setembro de 1805, passariam pelo Funchal as forças comandadas por sir David Baird (1757-1829), que aproveitariam a passagem para carregarem mais de 4000 pipas de vinho. Ainda nos finais do ano de 1805, passariam um comboio de 19 navios, comandado pelo brigue de guerra Wolverene, do Cap. Smith, e a escuna inglesa Quail, comandada por Patrício Lowes, que trazia um navio americano como presa, no qual se encontravam seis marinheiros espanhóis. Um ano depois, passava novo comboio, com destino às Índias Ocidentais, do qual fazia parte a fragata Orpheus, do Com. Briggs. Com toda essa movimentação, um dos problemas que continuavam a preocupar o governador do Funchal era a situação dos prisioneiros provenientes das presas corsárias. A 6 de janeiro de 1805, por exemplo, chegava novamente ao Funchal a fragata Egyptienne, comandada por Charles Elphinstone Fleming, mas então citado como “G. L. Flameng”, com quatro dias de viagem desde Lisboa, conduzindo uma galera espanhola proveniente das Canárias que apresara no mar alto, assim como uma outra presa feita por essa galera. Saiu no dia seguinte levando a presa, mas deixando a galera com 118 soldados e toda a equipagem. A galera ficara consignada ao cônsul inglês no Funchal, com a indicação de a carga de bacalhau e peixe salgado ser vendida na Ilha, o que, apesar de proibido, veio a acontecer no mês seguinte (Ibid., liv. 713, fls. 50-50v.). O movimento de corsários ingleses e americanos nos mares da Madeira era intenso, tal como das consequentes presas francesas e espanholas, onde, por vezes, se encontravam marinheiros portugueses. Em março, o cônsul José Pringle solicitava que o corsário Especulação, do Com. Matheus Valpy, pudesse ficar amarrado à fortaleza do Ilhéu para reparações, assim como o Dart, do Com. Duarte Torvel. No final desse mês, idêntico pedido era feito para o corsário Tartar, de Diogo Laine, dentro dos “dez dias aprazados”, e no início do mês seguinte, também o Rose, de que era capitão João Turse. Mas o movimento não era só de corsários ingleses, pois a 14 de abril o cônsul inglês pedia ao governador, em nome dos acordos que existiam com Portugal, que mandasse “levantar do porto” dois corsários americanos que ali estavam ancorados (Ibid., fls. 56v.-57v. e 59-59v.). No final de abril, ainda ancorou no Funchal a nau inglesa L’Immortalité, que já tinha sido francesa e que apresara a 17 de março o corsário espanhol El Intrepid Corunes, do mestre D. Patrício Farto. A bordo do corsário espanhol, foram encontrados cinco marinheiros de uma escuna portuguesa, que fora apresada pelo mesmo e que entretanto o corsário despachara para a Corunha. Os marinheiros portugueses acabaram por seguir para Lisboa na galera Raguzana. Em maio, ocorreram mais dois casos semelhantes, entrando no porto no início do mês um pequeno falucho espanhol proveniente das Canárias, muito mal tratado, sem água nem mantimentos, depois de ter sido atacado por um corsário inglês, que identificaram como Lord Nelson. No entanto, não foi autorizado a ancorar, embora viesse com um carregamento de trigo, com a desculpa de que não trazia carta de saúde. Dado o estado em que vinha, acabou por naufragar em frente à praia Formosa, espalhando a carga pela praia. A 28 desse mês, entrou no porto do Funchal a fragata britânica Cerberus, comandada por J. Selly, trazendo uma presa francesa. Depois de conversações com o cônsul francês Nicolau de La Tuellièrie (c. 1750-1820) (Quinta Vigia), os oficiais e a equipagem acabaram por seguir para Lisboa na polaca Penha de França. Nos finais de 1805, ainda o cônsul inglês dava conhecimento da entrada, de novo, da fragata britânica Tartar, então do Cap. Hawker, tendo a bordo a tripulação de um bergantim espanhol que fora apresado no mar alto, composta pelo capitão e por 13 marinheiros que ficaram no Funchal. Os prisioneiros foram instalados no forte Novo de São Pedro, que ficava no atual campo Almirante Reis, e o governador optou por coloca-los nas obras das muralhas das ribeiras da cidade, para assim obter da fazenda dinheiro para o seu sustento. Estes homens seguiram para Lisboa em janeiro do ano seguinte, na escuna Piedade e Almas. A 6 de maio desse ano de 1806, o brigue inglês Saracen ancorava no Funchal em situação semelhante, com um navio espanhol como presa e descarregando igualmente a sua tripulação no Funchal. Entre janeiro e fevereiro de 1806, ocorreu outro caso no Funchal, bem ilustrativo da situação então vivida. Nos inícios de fevereiro, o cônsul francês pedia ao governador proteção especial para o Cap. francês De Larné Greardiere, que desde janeiro se encontrava no Funchal aguardando um navio. O capitão francês teria vindo na escuna Piedade e Almas, proveniente de S. Miguel, nos Açores, em cujos mares havia perdido em combate o seu navio. No entanto, tendo sido do conhecimento dos ingleses a sua presença no Funchal e existindo um navio inglês surto no porto, o brigue Raven temia que, saindo do porto da cidade, viesse a ser preso. O governador intercedeu junto do cônsul inglês, pelo que à noite veio o agente consular francês “em grande uniforme” agradecer-lhe a intervenção (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 1698, 1719 e 1720). Como se não bastassem os problemas de corso que envolviam portugueses, ingleses, franceses e espanhóis, por vezes ainda se infiltravam nos mares da Madeira os piratas argelinos. Uma declaração de João McAuley, capitão da galera inglesa Three Brothers, apresentada ao vice-cônsul inglês Archibald Brown, em julho de 1807, dava conta da perseguição que lhe moveram dois navios argelinos bem armados, os quais, segundo soubera pelo Cap, Sanford, da galera americana South Caroline, andariam à caça de navios portugueses e espanhóis. Aliás, essa informação foi depois confirmada pelo comandante da esquadra portuguesa do Estreito, Luís da Motta Feio Torres (1732-1813), que os teria avistado da nau Rainha de Portugal, pelo que também alertou os habitantes do Porto Santo e do Algarve para o facto, e, inclusivamente, deixou na área do Estreito uma nau, uma fragata e um bergantim. Nos inícios de março de 1807, passava pelo Funchal a fragata inglesa La Modeste, que também já fora francesa e que transportava para a Índia o seu novo governador, Gilbert Elliot, lord Minto (1751-1814). A fragata ficou oito dias no Funchal para arranjar um mastro que se desconjuntara na viagem e também para dar assistência ao filho do futuro governador da Índia, que vinha doente. Alguns dias depois, passaria pelo Funchal para fazer aguada uma outra divisão naval inglesa, constituída por quatro naus de linha, uma fragata e vários brigues, “não se sabendo ao certo o destino que levavam”, como refere o governador (Ibid., doc. 1718). Em meados de maio, a divisão comandada pelo Alm. Samuel Hood (1724-1816), que andava a patrulhar os mares da Madeira, também aportou ao Funchal, com cinco naus de linha e duas fragatas. A divisão ancorou entre 17 e 19 de maio, juntando-se-lhe depois a fragata Comus, que aprisionara um pequeno caiaque espanhol perto das Canárias. Nos inícios do mês de julho de 1807, passaria pelo Funchal a nau de guerra inglesa Malabar, comandada por J. Temple, a acompanhar nove transportes com tropas e munições de guerra com destino a Montevideu, sendo as tropas comandadas pelo Gen. Turner e pelo Brig.-Gen. Clavering. Pelo Funchal passaram ainda a galera inglesa Three Brothers e o bergantim português Flor de Lisboa, que foram perseguidos pelos corsários argelinos, a fragata Tiveed, comandada por J. Symonds, e o brigue Júlia, por R. Yarker, comboiando 32 navios mercantes, que carregaram vinhos na Madeira. Em abril de 1806, a Câmara do Funchal pedia a recondução do Gov. Ascenso de Sequeira Freire. Na sessão de 2 desse mês, foi decidido escrever a Sua Alteza expondo “o bem que tem servido o atual governador [...] na administração da justiça às partes, pedindo ao mesmo soberano que haja por bem de o conservar no seu governo” (ARM, Câmara Municipal do Funchal, liv. 1366, fls. 31v.-32). No entanto, não era essa a posição do governador, que em dezembro lembrava ao visconde de Anadia, João Rodrigues de Sá e Melo (1755-1809), sobrinho do anterior governador da Madeira, João António de Sá Pereira (1719-1804), barão de Alverca, “que a 8 do corrente fez três anos que tive a honra de tomar posse deste governo, em que tenho desejado cumprir com os meus deveres, auxiliado pelas luzes e muito favor de V. Ex.ª”. O governador solicitava assim o seu regresso ao continente, até “pelo desarranjo da minha família e casa, e pela falta de minha Mãe que tão sensível me tem sido” (ARM, Arquivos Particulares, docs. Ascenso Sequeira Freire). O visconde de Anadia escreveria em 7 de janeiro seguinte, “respondendo à carta que tive o gosto de receber”, onde informa que “Sua Alteza Real condescendendo benignamente com os desejos de V. Ex.ª” tinha nomeado já um novo governador para a Madeira, “recaindo essa escolha em meu primo” Pedro Fagundes Bacelar Antas e Meneses, “cujas qualidades me afiançam que saberão seguir o prudente e bem dirigido sistema de governo que V. Ex.ª adotou com tanto proveito desses povos”. Deve ter sido com essa carta que o visconde de Anadia enviou um desenho de uma condecoração de cavaleiro da Ordem de Malta, com que fora agraciado, e um cartão do ourives que a fazia em Lisboa (Ibid.). No mês seguinte, o governador respondia à carta congratulando-se com a nomeação do novo governador, a que troca os apelidos, o que era normal, referindo Pedro Fagundes de Antas Bacelar e Meneses, “que virá fazer pelas suas boas qualidades a fortuna destes madeirenses”. Como era hábito, o governador guardou as cópias das suas cartas e o original da missiva do visconde de Anadia nos seus arquivos pessoais, encontrando-se parte deles no ARM, aguardando a chegada breve do seu substituto, que ocorreria no seguinte mês de agosto desse ano de 1807.     Parece que a transmissão de governo foi muito rápida e Ascenso de Sequeira Freire não deu conta ao seu sucessor de uma série de preocupações que tinha, com base em notícias que recebera de Londres, de que se preparava nova ocupação britânica da Ilha. No espaço de poucos meses, o novo governador, Pedro Fagundes Bacelar Antas e Meneses, era confrontado com a saída da família real de Lisboa para o Brasil, a ocupação do território continental por forças francesas e a ocupação da Madeira por tropas britânicas. Ascenso de Sequeira Freire seria colocado em Lisboa como chefe da Legião Nacional do Campo de Santa Clara, onde estava em setembro de 1811 e parece ter falecido por 1825.   Rui Carita (atualizado a 10.04.2016)  

História Política e Institucional Personalidades

atouguia, antónio aloísio jervis de

Nascido no Funchal, o visconde de Atougia desempenhou um papel importante na guerra civil que opôs liberais e absolutistas, combatendo ao lado dos primeiros, e teve uma carreira brilhante no território continental, como deputado, par do Reino e ministro. Recebeu várias comendas e foi agraciado com o título de visconde. Palavras-chave: guerra civil; deputado; par do Reino; ministro.   António Aloísio Jervis de Atougia nasceu no Funchal, a 7 de julho de 1797, filho do morgado Manuel de Atouguia Jervis e de Antónia Joana de Carvalhal Esmeraldo. Em 1811, iniciou os estudos secundários no colégio inglês Old Hall Green, nos arredores de Londres, matriculando-se depois em Matemática, na Universidade de Coimbra. Terminado o curso, em 1822, foi nomeado lente substituto da Academia da Marinha, mais tarde denominada Escola Naval, tornando-se professor catedrático em 1834. Fig. 1 – Retrato a óleo de António de Atouguia, de 1852.Fonte: CHAGAS, 1895, X.   Fugindo à perseguição contra os liberais, emigrou para Inglaterra, em junho de 1828, mas logo em agosto regressou ao Funchal para se juntar ao governador da Madeira, Cap.-Gen. José Lúcio Travassos Valdez, na luta contra as tropas absolutistas de D. Miguel. Perante a vitória destas, refugiou-se no navio inglês Alligator, com outros madeirenses, e rumou novamente a Inglaterra, daqui partindo, em 1831, para a ilha Terceira, nos Açores, onde foi organizada a resistência dos liberais. Em 1832, participou na tentativa falhada de conquista da Madeira, dominada pelas forças absolutistas, regressando de seguida aos Açores e indo finalmente juntar-se às tropas de D. Pedro IV, no Porto. Com a vitória liberal, em 1834, foi nomeado governador civil do Porto e condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada. De 25 de julho a 25 de novembro de 1835, fez parte do Governo presidido pelo duque de Saldanha, como ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. Foi deputado pela Madeira, em 1834-1836, 1837-1838, 1838-1840, 1840-1842, e, mais tarde, por Oliveira de Azeméis, em 1851-1852, tendo feito parte das comissões da Marinha, Ultramar e Guerra. Em 1841, presidiu à Câmara de Deputados e, entre 1858 e 1861, presidiu algumas vezes, interinamente, à Câmara dos Pares. Em 1842, foi nomeado ministro da Marinha e Ultramar, no Governo presidido pelo duque de Palmela, de 7 a 9 de fevereiro de 1842, num ministério conhecido como Governo do Entrudo. Fez parte do ministério presidido pelo duque de Saldanha (22/05/1851-06/06/1856), como ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, de 4 de março de 1852 a 6 de junho de 1856, acumulando com a pasta de ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, a partir de 31 de dezembro de 1852. Foi ainda diretor da Escola Politécnica de Lisboa e conselheiro do Tribunal de Contas. Foi nomeado par do Reino a 5 de janeiro de 1853 e agraciado com o título de visconde de Atouguia, por duas vidas, a 15 de março de 1853, tendo também recebido várias comendas nacionais e estrangeiras. Em 1832, iniciou-se na maçonaria, em Angra do Heroísmo. Faleceu em Lisboa, a 17 de maio de 1861.     Gabriel Pita (atualizado a 07.10.2016)

História Política e Institucional Personalidades

arte na educação

Em matéria de arte na educação, a RAM aproveitou a descontinuidade territorial, que a separa do continente português e a privou de usufruir de muitas valências, invertendo a seu favor o sabor da insularidade. Usufruiu do mar e do que, em matéria social, este podia oferecer, proporcionando uma estreita relação com outros povos que ali paravam. Falamos, e.g., de uma forte relação com a comunidade inglesa, que por lá se estabeleceu no séc. XIX e com individualidades de outras nacionalidades, como a alemã, a espanhola e a russa, que ao longo dos séculos se distinguiram na relação com os autóctones. Pelos registos apurados, podemos afirmar que, desde o início do séc. XIX, as artes fizeram regularmente parte da educação. Existem referências à aprendizagem da música, à prática do canto, às danças de salão, às récitas teatrais e às artes e ofícios, a par de outras atividades de cariz artístico, como os lavores e a aprendizagem das línguas. Fazendo um périplo pelos periódicos entre 1821 e 2015, é possível observar-se o lugar que as artes ocuparam em instituições de ensino regular, bem como confirmar a existência de aulas artísticas de cariz doméstico e até em instituições mais regulamentadas. Na Madeira, as escolas com opção de disciplinas de âmbito artístico fizeram parte da educação ao longo do séc. XIX. Quando, em 1835, se assistiu à implementação do ensino primário obrigatório, uma das consequências foi a criação de múltiplas escolas e colégios. Na Madeira, a rede pública de escolas deveria ser notoriamente insuficiente, visto que encontramos, ao longo de Oitocentos, diversas escolas em espaços domésticos ou sem designação oficial onde era possível as famílias optarem por uma ou mais atividades artísticas, como o ensino do canto, da guitarra, do piano ou da dança, a par do desenho. Além destas atividades, as escolas e os pequenos colégios permitiam igualmente a opção pelo ensino das línguas, nomeadamente a francesa e a italiana, justificando-se esta última, sobretudo, quando do bel canto se tratava. Estas disciplinas (artísticas e línguas) tinham normalmente um custo acrescido. Apesar do ensino feminino já existir no reinado de D. Maria I, foi com a reforma do ensino primário, em 1836, que foram implementadas as “escolas de meninas”. Na Madeira, também encontramos referências ao ensino feminino na imprensa, registando-se que as escolas ou colégios para meninas eram dirigidas por senhoras, como atesta o seguinte anúncio: “Colégio para educação de meninas, direção de Felisberta Augusta Teixeira” (com opção de lições de piano, dança e desenho com pagamento extra) (A Flor do Oceano, 12 set. 1839, 4). Neste contexto, é interessante constatar a presença contínua do ensino da dança, a par de disciplinas ligadas às línguas, à música e ao desenho. As aulas de artes não aconteciam apenas em escolas ou colégios de ensino primário. Ao longo de todo o séc. XIX, há registos de aulas particulares, organizadas nas casas dos professores ou mesmo dos alunos. Entre outros, recolhemos anúncios na imprensa local de aulas de dança ministradas por Eduardo Soares e Paulo Valentino d’Ornelas Costa; lições de música, rabeca, piano, violoncelo e violino dadas por Nuno Graceliano Lino; e de piano e canto pelo P.e João Aleixo de Freitas. Até ao último quartel do séc. XIX, os docentes eram essencialmente masculinos, começando as mulheres, nessa altura, a predominar no ensino das artes. Importante, já então, era a presença de professores de naturalidades diferentes da portuguesa, proprietários, e.g., da Eschola Collegial Inglesa, que tinha lições de música e do Collegio de Jane H. Manly Tello. Estes factos revelam bem, ao nível da educação, a influência da comunidade inglesa na Madeira oitocentista. Além do ensino artístico em contexto doméstico, também era possível desenvolver-se uma prática artística em contexto institucional, principalmente nas sociedades e clubes que proliferaram no séc. XIX, depois da revolução liberal. Neste âmbito, salienta-se o coro da Sociedade Philarmonica; a Academia Marcos Portugal, que proporcionava lições de solfejo para violino, violeta, violoncelo, rabecão grande e instrumentos de metal e palheta; e a Sociedade Recreio Musical, com aulas de dança dadas por Eduardo Soares, que acumulava com aulas que lecionava no Theatro D. Maria Pia. Como se depreende do anteriormente enunciado, a maior parte das instituições e aulas artísticas desenvolvia-se fora do domínio público, embora houvesse algumas exceções. O Liceu, e.g., apresenta-se como uma escola oficial genérica que incluía atividades de educação artística. Outro caso de atividades artísticas promovidas por uma instituição pública é o da escola municipal de D. Francisco Vila y Dalmau, onde era possível estudar canto e dança. Por fim, uma categoria que não deve ser esquecida: as aulas proporcionadas por professores e companhias que passavam pelo Funchal, como, e.g., as aulas de dança do Circo Equestre, em 1865. Era comum que os artistas que passavam pela Madeira para realizar concertos e espetáculos se disponibilizassem também para dar aulas particulares a quem estivesse interessado, situação que se manteve na primeira metade do séc. XX, como mostram os seguintes casos divulgados pela imprensa periódica: maestro Ricardo Nicosia Cortesi (piano); professor Cleto Zavala (lições de piano); cavalheiro inglês, muito competente para ensinar violino; professor D. Domingo Bosch (lições de piano). Na transição do séc. XIX para o XX, qualquer novo estabelecimento de ensino vocacionado para mulheres que fosse criado no Funchal teria mesmo de incluir, quase obrigatoriamente, a disciplina de piano, embora de forma opcional, pois era lecionada em regime de aulas individuais. No colégio para meninas de D. Christina Adelaide Gomes, e.g., o currículo era constituído pelas disciplinas de inglês, francês, português, piano, machete, canto, viola e dança, em 1895. Em 1909, o colégio para raparigas João de Deus informava que as suas alunas podiam ter “aulas especiais de canto, piano e dança” com a professora Cora Cunha, discípula de Maria Capitolina Crawford do Nascimento Figueira (Almanach de Lembranças Madeirense, 1909, 288-289). Poucos anos mais tarde, por volta de 1912, foi criada, no convento de S.ta Clara, a Escola de Utilidades e Belas Artes, que se destinava a raparigas e que incluía no seu currículo também as áreas de música e de dança, assim como o ensino de piano em aulas individuais, de forma opcional.   Mª Adelaide Meneses e alunas. Photographia Vicentes. Fonte: Arquivo Sílvio Fernandes   Este aumento do papel da mulher na educação artística contribuiu, provavelmente, para a sua emancipação profissional através da música. Enquanto noutras áreas era considerado pouco apropriado que a mulher de classe média assumisse uma profissão, no caso da música, a mulher começou regularmente a aparecer como professora, sobretudo nas áreas do canto, do piano e da dança. No período entre 1812 e 1880 surgem poucas mulheres a lecionar, mas a partir de 1870 inverte-se esta tendência, aparecendo frequentemente mulheres a lecionar música como atividade profissional remunerada, desaparecendo, e.g., quase por completo, os professores de piano masculinos. No séc. XX, a par das reformas a no ensino oficial das artes, continuaram a ser criadas diversas escolas particulares de cariz doméstico que ofereciam no seu currículo a opção de atividades artísticas. Temos, assim, o Collegio de Santa Clara (piano e canto); o Collegio Maria José Ferreira (classe de dança, francês, inglês e música); o Colégio do Lisbonense (classes de instrução primária, português, francês, inglês, piano, dança e lavores); e o Colégio Madeira (classes de dança por Eugénia Rêgo). É igualmente relevante encontrarem-se anúncios com a redação que se segue, sem nomear as professoras: “Uma senhora devidamente habilitada dá lições de piano e francês em sua casa ou na das alunas, por preços moderados” (DNM, 9 out. 1911, 1); “Senhora competentemente habilitada dá lições de piano e bandolim” (DNM, 26 mar. 1915, 1); ou ainda, o pormenor, “Classe de dança – Para principiantes e praticantes” (DNM, 6 out. 1911, 2); “Chamamos a atenção para o anúncio que hoje publicamos sob a epígrafe, ‘Classes de piano’, recomendando a professora, que tem toda a competência requerida” (DNM, 19 ago. 1917, 1). No ensino específico e particular, nomeadamente em contexto doméstico, encontramos referências a lições de música dadas por Eduardo Antonino Pestana; Isabel Pamplona Spínola; Nuno Graceliano Lino; Artur Maria Lopes; Alfredo A. Graça, com o pormenor de se referenciar o método (piano e rabeca pelo curso do Real Conservatório de Lisboa, e bandolim pelo método de Christofaro y Gautiero); Angelique de Beer Lomelino; Gabriella Campos (lições de piano e solfejo pelo método do Conservatório de Lisboa); Maria Eugénia de Afonseca Acciaiolly Rêgo Pereira (ensinava coreografia erudita e folclórica a membros das classes alta e média madeirense num salão de dança); M. Graça Rego (ex-aluna dos professores Cleto Zavala, em piano e Beer Lomelino, em canto, dava lições de piano e canto); Maria Izabel Ferraz (aulas de dança). Denota-se uma preocupação com a metodologia aplicada e os fins a que se destinava. Leia-se “Lições de música. Curso geral completo pelos métodos mais modernos adotados no Conservatório de Lisboa” (DNM, 16 maio 1917, 1); “Professor Vasco de Oliveira (curso de violino seguindo todo o programa do conservatório (escola de Leonard)” (DNM, 4 abr. 1919, 1). Mantêm-se as escolas dirigidas por estrangeiros com atividades artísticas e as sociedades e clubes com atividades de educação artística: o artigo “Academia Dançante” referencia já o Atheneu Commercial com a professora Mathilde Xavier Ferraz, que dá lições de dança; o Grupo Recreativo da Mocidade Portuguesa proporciona aulas de música e classes de dança acompanhadas pelo pianista Leandro S. C. de Freitas. No contexto das escolas oficiais de ensino genérico, existem igualmente diversas menções ao ensino de disciplinas artísticas: no Instituto de Ensino Secundário e Comercial, referem-se aulas de música, em que os métodos adotados são os mesmos do Conservatório de Lisboa e um curso de canto regido por uma distinta professora, que dava lições individuais e em classe; no Liceu Jaime Moniz, o professor de canto coral era Júlio Câmara, contanto a tuna académica e o orfeão com a direção de Gustavo Coelho; na Escola de Utilidades e Belas Artes (estabelecimento de ensino feminino), era possível aprender dança, piano e canto. Em 1943 ocorreu um dos principais acontecimentos no campo da educação artística na Madeira, uma iniciativa que, em 2015, continua a dar frutos. Nesse ano, Luiz Peter Clode e seu irmão William Clode fundaram a Sociedade de Concertos da Madeira, que reunia um escola de intelectuais e artistas portugueses e estrangeiros, naturais ou residentes na Ilha, com a finalidade de contribuir para o crescimento de artistas e público especializado. No seguimento da criação dessa instituição, a prática das expressões artísticas cresceu substancialmente e, a partir de 1946, altura em que foi fundada, no âmbito da mesma, a Academia de Música da Madeira, que mais tarde conseguiu o paralelismo pedagógico com o Conservatório de Música de Lisboa, contribuiu para a creditação de professores e alunos madeirenses. Este estabelecimento foi sucessivamente restruturado após o 25 de Abril, vindo a integrar o ensino profissional das artes na viragem do século, alterando a sua designação, em 2000, para Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira e, em 2006, para Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira Eng. Luiz Peter Clode, em homenagem ao seu mentor. Os cenários dos sécs. XX e XXI são completamente distintos e acompanham o natural desenvolvimento do ensino artístico na Região, tendo contribuído fortemente para o efeito o trabalho realizado, ao longo de 35 anos (1980-2015), pela Direção de Serviços do Ensino Artístico e Multimédia (antigo Gabinete Coordenador de Educação Artística). A par do trabalho de campo desenvolvido em toda a Região, motivou o surgimento de associações, filarmónicas e grupos de iniciativa privada que, em conjunto, contribuíram para os resultados atingidos: o ensino artístico integra, em 2015, a quase totalidade da rede do pré-escolar como atividade obrigatória e o ensino técnico profissional e especializado abrange já todas as áreas da expressão artística: a dança, a música, o teatro e variantes.   Paulo Esteireiro Teresa Norton Dias (atualizado a 26.09.2016)

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